CBO Jovem - Conselho Brasileiro de Oftalmologia

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“Haremon”
*
* Haremon é a transliteração para o alfabeto latino das palavras da língua
da etnia sateré-mawé que significam “estou vendo”
www.cbo.com.br
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“A parte mais emocionante é quando
tiramos o tampão e a pessoa fala:
estou vendo, estou enxergando, isto
é branco, isto é verde. Então,
colocamos o colírio e ele sai
andando e esquece seu cajado no
chão. Este é momento do milagre,
para a pessoa que foi operada e
para todos que assistem a cena”.
É desta forma que Wilson Takashi
Hida descreve um dos sentimentos
que o invade durante as viagens
promovidas pela Associação
Expedicionários da Saúde,
organização que reúne médicos
voluntários em expedições que
levam medicina especializada,
principalmente atendimento
cirúrgico, a populações indígenas
da Amazônia brasileira e,
nos últimos meses, ao Haiti.
Formado em Presidente Prudente,
filho e irmão de médicos
oftalmologistas, ex-assistente do
Setor de Catarata da Oftalmologia
da Santa Casa de São Paulo,
pós-graduando do Hospital das
Clínicas da FMUSP e que atualmente
faz parte dos quadros do Hospital
Oftalmológico de Brasília, Wilson
conta nesta entrevista um pouco
de sua experiência como cirurgião
ocular em situações geográficas,
estruturais, sociais e culturais
totalmente diferentes daquelas que
normalmente ele, e a maioria dos
médicos oftalmologistas do Brasil,
atua.
JOTA ZERO - Como chegou até a Oftalmologia?
JZ - E como chegou aos Expedicionários
da Saúde?
WILSON TAKASHI HIDA - Meu pai,
Milton, foi fundador e Chefe da Oftalmologia da UNESP de Botucatu. Ele
fez residência no Japão, onde nasci.
Naquela época, em 1977, começou a
organizar projetos para a vinda de
médicos japoneses para a Amazônia.
Meu irmão mais velho, Richard, também é médico oftalmologista. Então
foi um caminho quase que natural.
WTH - Conheci Celso Takashi Nakano
na USP, que foi indicado para montar
a equipe de oftalmologia da Organização. Ao me convidar, falou que
eram necessários cirurgiões bons para atender a prioridade, cirurgia de
catarata, apesar de ter cirurgias de
hérnia, ortopédicas, pediátricas e
outras. Disse também que as pessoas
que iríamos operar simplesmente não
têm acesso a atendimento médico,
que as cirurgias seriam extremamente difíceis, de uma forma que raramente veríamos em outros lugares.
JZ - De quantas expedições participou?
WTH - Três. A primeira em abril de
2009 em Parintins (AM), a segunda
também em Parintins, em novembro
do mesmo ano, na região do Rio Andirá e a ultima em novembro de 2010,
no Rio Negro, região perto de Barcelos (AM) na divisa da Colômbia e
Venezuela. Nas duas primeiras expedições atendemos indígenas das etnias Sateré-Mawé e Hexkaryana na
última expedição da etnia Yanomani.
Nos dois casos, são 20 a
30 tribos, com caciques
A parte mais emocionante
diferentes, pagés difeé quando tiramos o tampão
rentes, algumas com ree a pessoa fala: estou vendo,
lações de amizade entre
estou enxergando, isto é branco,
si, outras não, que preisto é verde...
cisam chegar em certa
ordem para não se encontrar e que
ficam irritados se nos dirigimos a eles
em outra língua que não a deles.
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tágio mais precoce. Outra coisa que
pesa é que representamos a única
chance da pessoa se tratar. Se não
conseguirmos resolver o problema,
aquele paciente nunca mais vai ser
operado. Além disso existe uma doença, uma entidade nova, classificada
JZ - Quantas pessoas participam de uma
expedição?
Wilson Takashi Hida
Oftalmologista expedicionário
JZ - Como foi sua participação?
WTH - Na primeira expedição, não
sabia o que esperar e fiz o que pediram. Nas outras, ajudei a conseguir
patrocínio, doações e meios para que
a expedição tivesse maior sucesso.
Na primeira fazíamos as cirurgias de
catarata com um aparelho muito antigo, nas outras já levamos o Infinity
Ozil, que tem tecnologia torsional para
núcleos duros. Levamos também viscoelásticos e lentes intraoculares
Sensar AR40. Recebemos a colaboração de empresas como a Vistatek,
Abbot, Alcon, Bausch & Lomb,
Allergan Medphados e outras.
JZ - Além da precariedade do ambiente e
das distâncias, quais são as condições
que tornam as cirurgias difíceis?
ça entre os Sateré-Mawé, aparentemente por causa da alimentação, chega perto de 90%, nos pacientes submetidos à cirurgia de catarata,
enquanto que no restante da população brasileira chega, no máximo,
a 2 a 3%.
Eles não agradecem.
Parece que eles agradecem
a Deus por estarmos ali,
mas não agradecem para
nós. No começo, são muito
desconfiados e somente
depois dos primeiros
resultados é que passam
a nos olhar com mais
confiança...
em 2005 de SIFI, denominada Síndrome da íris Flácida Intraoperatória,
que pode causar complicações na
falta de tônus do músculo dilatador da
íris durante a facoemulsificação. Para
se fazer a cirurgia de catarata em
condições normais, a pupila deve estar dilatada. A incidência desta doen-
WTH - Como eles não têm acesso ao
atendimento médico, encontramos a
doença em estágio muito avançado, o
que torna a cirurgia mais difícil. Aqui
em São Paulo, por exemplo, o paciente nos chega com a doença em eswww.cbo.com.br
WTH - Cerca de cem pessoas, das
quais quatro médicos oftalmologistas.
Para se chegar ao local leva-se de 15
a 18 horas em aviões de carreira,
aviões da FAB e lanchas de alta velocidade, as voadeiras. As distâncias
são inimagináveis para quem não conhece a região. Quando os médicos
chegam, a infra-estrutura já está
pronta, com um moderno hospital de
campanha, tendas de palha com macas e redes. Ficamos de dez a quinze
dias. Os oftalmologistas se dividem
em duas equipes, uma atende o ambulatório pela manhã e opera à tarde
e a outra vice-versa. Isto permite examinar e operar os mesmos pacientes.
JZ - Se alguém aparecer com outro
problema que não a catarata, é atendido?
WTH - Sim. Atendemos tracoma, con-
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Equipe de médicos oftalmologistas: Celso Takashi Nakano (assistente do Setor de Catarata
do Hospital das Clínicas da USP e diretor do Santa Cruz Eye Institute), Fábio Nero Mitsuushi
(fellow do Setor de Catarata da UNICAMP), Francisco Penteado Crestana (assistente do Setor
de Cirurgia Refrativa do Hospital das Clínicas da USP) e Wilson Takashi Hida
JZ - Atendem também os caboclos da
região?
cirurgia, quanto tiramos o curativo, ele
olha tudo de uma forma que impressiona a todos e sai andando sem
o cajado. Quando o paciente é uma
criança a situação é mais emocionante ainda e todos nos hospital param suas atividades para assistir o
pequeno indiozinho ou indiazinha olhando o mundo num espanto alegre.
Pessoas choram nesta hora.
WTH - Sim, mas raramente.
JZ - E o doutor Wilson, o que sente?
JZ - E como é o atendimento para um
paciente que tem uma cultura diferente
da tua?
WTH - É difícil explicar. Faço cirurgias
diariamente, sei como funciona, mas
lá sabemos que eles não têm acesso e
que somos a única esperança. No
nosso mundo, é muito difícil um paciente de catarata chegar totalmente
cego às nossas mãos e mesmo quando isto acontece, ele tem a expectativa de que vai melhorar, sabe vagamente o que é cirurgia, o que é catarata. Lá não, o paciente não sabe o
que é, não sabe o que vamos fazer
com ele, não sabe nem a nossa língua.
Mesmo que tenha visto um branco,
um médico, nunca entrou num lugar
com ar refrigerado, com gente mas-
juntivite, trauma ocular, corpo estranho, glaucoma, queimadura, fazemos
óculos em alguns casos, cirurgia de
pterígio, cirurgia de pálpebra, tumores, que são encaminhados para análise patológica, mas o grosso é a
catarata.
WTH - Eles não agradecem. Parece
que eles agradecem a Deus por estarmos ali, mas não agradecem para
nós. No começo, são muito desconfiados e somente depois dos primeiros
resultados é que passam a nos olhar
com mais confiança. Devo dizer que o
impacto social da cirurgia da catarata
é muito grande nestas condições. O
paciente chega cego, apoiado num
cajado, depois de viajar vários dias a
pé pela mata. No dia seguinte à
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carada, falando para ficar quieto, rodeado de máquinas, luzes, fios grudados no corpo e nunca foi sedado.
Não temos condições de falar que
vamos cortar o olho dele, tirar a catarata e por uma lente de plástico no
lugar. Ele não sabe o que vai acontecer e qual será o resultado. Eles são
corajosos. Como não usam sal na alimentação, a pressão sanguínea de
quase todos é muito boa, mas quando
entram no centro cirúrgico ela vai
imediatamente lá para cima. Como
não têm acesso a remédios, os medicamentos fazem muito efeito e as
doses precisam ser reduzidas. A sedação é muito rápida, com doses muito pequenas. E a parte mais emocionante é quando tiramos o tampão
e a pessoa fala: estou vendo, estou
enxergando, isto é branco, isto é verde. Então, colocamos o colírio e ele
sai andando e esquece seu cajado no
chão. Este é momento do milagre, para a pessoa que foi operada e para
todos que assistem a cena.
JZ - A grande crítica que se faz a este tipo
de ação é que, de repente, aparecem os
médicos vindos não se sabe direito de
onde, fazem os tratamentos e vão embora
sem levar em conta alguma possível complicação. Os pacientes operados pelos
Expedicionários da Saúde são referenciados para algum tipo de serviço e a
referência tem algum resultado prático
em virtude das distâncias?
WTH - Sempre me interrogo sobre
isto, mas a realidade tem características que precisam ser consi-
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deradas. A tribo chega ao nosso encontro depois de uma caminhada de
dois a três dias, todos juntos. Precisam ser atendidos em determinado
prazo, antes de chegar a outra tribo,
pois pode haver conflitos e não existem condições de alojar e alimentar
tanta gente junta. Como disse, somos
a única esperança e isto não é retórica. Na expedição do Rio Andirá,
quando desmontamos tudo e fomos
para a voadeira, no nosso barco estava um índio, de cajado, que foi deixado numa parte do caminho. Ele nunca mais vai ser operado, nunca mais
vai enxergar. É diferente de um paciente comum de São Paulo ou mesmo do Nordeste. Levar a assistência
médica para esse habitante da Amazônia é infinitamente mais difícil em
termos logísticos e operacionais e
não vejo como construir uma estrutura de atendimento permanente,
mesmo se o país fosse muitas vezes
mais rico. Fazemos as coisas com o
maior cuidado para que não haja
complicação cirúrgica, intra-operatória e pós-operatória imediata e até
agora o grau dessas complicações foi
zero. A longo prazo, não temos con-
trole. Em casos mais dramáticos, principalmente envolvendo crianças, conseguimos que a FAB nos traga os pacientes para serem tratados em São
Paulo ou em outra cidade. Porém esta
realidade não deve obscurecer o fato
de que o trabalho que a Organização
Expedicionários da Saúde e seus parceiros fazem é simplesmente fantástico.
JZ - Você vai voltar?
WTH - Com certeza N
Expedicionários da Saúde é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), sem fins lucrativos, criada em 2003
por um grupo de médicos voluntários dispostos a levar medicina especializada, principalmente atendimento cirúrgico, à regiões
isoladas, favorecendo principalmente as populações indígenas. Realiza serviço complementar aos programas existentes de
atendimento à saúde indígena. O trabalho é viabilizado a partir de parcerias com atores e instituições locais para realização de
diagnósticos e pré seleção de pacientes, planejamento das viagens da equipe de médicos e de utilização de nosso Centro Cirúrgico
Móvel. Além do trabalho dos médicos voluntários, Expedicionários da Saúde conta com o apoio de outros profissionais que ajudam
a viabilizar a instituição. A parceria com empresas na forma de doações financeiras, de serviços e de materiais é o que tem tornado
o projeto viável. Os Expedicionários da Saúde levam atendimento em várias especialidades médicas e a Oftalmologia ocupa lugar
de destaque nas expedições, principalmente para a realização de cirurgias para extração da catarata, com a reabilitação visual
dos pacientes atendidos.
De acordo com o site da organização, já participaram de pelo menos uma expedição à Amazônia os médicos oftalmologistas
Alberto Carlo Cigna, Alberto Gallo Neto, Alfredo Antônio Martinelli Netto, André da Rocha Nassori, Celso Takashi Nakano, Eduardo
Lessa Martinez, Fábio Nero Mitsuushi, Francisco Arthur Queiroz Mais, Francisco Penteado Crestana, Joel Anderson Rodrigues, José
Francisco Soranz, Maria Eugênia Vôla, Renato Dichetti dos Reis Lisboa, Roberto Koyama, Rogério Sabino Bacchi, Vanderlei Rovigatti
Júnior, Vera Pereira, Wilson Takashi Hida
Mais informações sobre as atividades e formas para colaborar com a organização podem ser encontradas no site
http://www.expedicionariosdasaude.org.br/
No site www.vimeo.com/12083901 existe um documentário curta-metragem produzido por Jun Sakuma sobre uma das expedições
(com a participação de Wilson Takashi Hida) e no site http://g1.globo.com/videos/bom-dia-brasil/v/veja-o-trabalho-emocionantedos-expedicionarios-da-saude/1312510/ uma reportagem exibida no Programa “Bom Dia Brasil” em 04 de agosto de 2010 sobre
o trabalho da organização.
www.cbo.com.br
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