FICHA TÉCNICA Título original: The Romanovs 1613

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FICHA TÉCNICA
Título original: The Romanovs 1613-1918
Autor: Simon Sebag Montefiore
Copyright © Simon Sebag Montefiore 2016
Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2017
Tradução: Miguel Mata
Revisão: Carlos Jesus/Editorial Presença
Design da capa: Two Associates
Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.
1.a edição, Lisboa, maio, 2017
Depósito legal n.o 425 015/17
Reservados todos os direitos
para a língua portuguesa (exceto Brasil) à
EDITORIAL PRESENÇA
Estrada das Palmeiras, 59
Queluz de Baixo
2730­‑132 Barcarena
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Para a minha querida filha,
Lily Bathsheba
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IN MEMORIAM
Stephen Sebag­‑Montefiore
1926­‑2014
2
Isabel de Madariaga
1919­‑2014
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ÍNDICE
Lista de ilustrações ........................................................................ 11
Mapa: A expansão da Rússia, 1613­‑1917 ..................................... 14-15
Árvore genealógica: A Casa de Romanov ........................................... 16-17
Introdução .................................................................................... 19
Agradecimentos e fontes .................................................................. 33
Nota do autor ............................................................................... 39
Prólogo: Dois rapazes no Tempo da Turbulência ................... 41
ATO I: A ASCENSÃO
Cena 1: As mostras de noivas .................................................. 51
Cena 2: O jovem monge .......................................................... 91
Cena 3: Os mosqueteiros ......................................................... 119
Cena 4: O Sínodo dos Beberrões ............................................. 139
ATO II: O APOGEU
Cena 1: O imperador ............................................................... 173
Cena 2: As imperatrizes ........................................................... 211
Cena 3: A «Vénus Russa» ........................................................ 255
Cena 4: A Idade de Ouro ........................................................ 299
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Cena 5: A conspiração ............................................................. 359
Cena 6: O duelo ....................................................................... 399
Bibliografia .................................................................................. 475
Notas .......................................................................................... 494
Índice remissivo ............................................................................. 523
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INTRODUÇÃO
A coroa de Monómaco é pesada.
Alexandre Pushkin, Boris Godunov
O maior domínio é o domínio de nós próprios.
Séneca, Epístola 113
Na Rússia, nada é mais perigoso que a aparência de fraqueza.
Pyotr Stolypin
Ser czar não era fácil. A Rússia não é um país fácil de governar.
Vinte soberanos da dinastia Romanov reinaram durante 304 anos,
de 1613 até à destruição do czarismo pela Revolução em 1917.
A sua ascensão começou no reinado de Ivan, o Terrível, e terminou
na época de Rasputine. Os cronistas românticos da tragédia do
último czar gostam de sugerir que a família estava amaldiçoada, mas
na verdade os Romanov foram os construtores imperiais mais espe‑
taculares desde os mongóis. Estima­‑se que depois de chegarem ao
trono, em 1613, o Império Russo cresceu 142 quilómetros quadra‑
dos por dia ou 52 000 quilómetros quadrados por ano. Em finais do
século xix, governavam um sexto da superfície do planeta e ainda
estavam em expansão. A construção imperial estava­‑lhes no sangue.
De certa forma, o presente livro é um estudo sobre o caráter
e sobre o efeito distorcivo do poder absoluto na personalidade.
Em parte, é uma história familiar de amor, matrimónio, adultério
e filhos, mas não é como outras histórias semelhantes — as famílias
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reais são sempre extraordinárias porque o poder adoça e conta‑
mina simultaneamente a química familiar tradicional: a atração e
a corrupção inerentes ao poder impõem­‑se com frequência à leal‑
dade e ao afeto do sangue. É uma história de monarcas e das suas
famílias e séquitos, mas também é um retrato do absolutismo na
Rússia — e independentemente de outras opiniões que possamos
ter sobre a Rússia, a sua cultura, a sua alma e a sua essência foram
sempre excecionais, com uma natureza singular que uma família
aspirou a personificar. Os Romanov tornaram­‑se a definição não
só dos termos «dinastia» e «magnificência», mas também de «des­
potismo», uma parábola da loucura e arrogância do poder absoluto.
Nenhuma dinastia, com exceção da dos Césares, ocupa um lugar
tão destacado na imaginação e na cultura populares, e ambas ofe‑
recem lições universais sobre o funcionamento do poder pessoal —
antigamente e hoje. Não é por acaso que o termo «czar» deriva de
César, tal como a palavra russa para «imperador» é simplesmente
o termo latino imperator.
Os Romanov habitam um mundo de rivalidades familiares,
ambições imperiais, elegância lúrida, excessos sexuais e sadismo
depravado; é um mundo de estranhos obscuros que se declaram
subitamente a reencarnação de monarcas mortos; de noivos enve‑
nenados; de filhos torturados até à morte pelos pais; de parricídio;
de maridos assassinados pelas mulheres; de um homem santo que,
depois de envenenado e baleado, aparentemente ressuscita; de bar‑
beiros e camponeses que chegam ao poder; de coleções de gigantes
e aleijados; de arremesso de anões pelo ar; de cabeças decepadas
beijadas; de línguas arrancadas; de carne arrancada do corpo à
chicotada; de empalamentos; de chacina de crianças; de impera­
trizes ninfomaníacas obcecadas com a moda; de triângulos amo‑
rosos lésbicos, e de um imperador que escreveu a correspondência
mais erótica jamais escrita por um chefe de Estado. Mas também
é o império construído por conquistadores impiedosos e estadistas
brilhantes que conquistaram a Sibéria e a Ucrânia e tomaram de
assalto Berlim e Paris, e que gerou Pushkin, Tolstoy, Tchaikovsky
e Dostoyevsky, uma civilização de uma cultura superior e de
rara beleza.
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Descontextualizados, estes excessos parecem tão exagerados e
escandalosos que os historiadores académicos mais pudicos tendem
a açucarar a verdade em nome do decoro. Aliás, as lendas acerca
dos Romanov — fermento de filmes de Hollywood e séries de
TV — são tão emocionantes e populares como os factos. Por con­
seguinte, o narrador desta história tem que se precaver contra
o melodrama, a mitologia e a teleologia — o perigo de escrever a
história para trás — e que ter cuidado com a metodologia. O ceti‑
cismo é essencial; o rigor académico exige constância na verificação
e na análise. Mas um dos benefícios da história narrativa é que
cada reinado surge contextualizado para oferecer um retrato da
evolução da Rússia, da sua autocracia e da sua alma. E, nestas
personagens maiores do que a vida deformadas pela autocracia,
surge um espelho distorcido que reflete sobre nós todas as facetas
do caráter humano.
O desafio de governar a Rússia foi sempre monumental e o
papel do autocrata só podia ser verdadeiramente exercido por
um génio — e em todas as famílias há muito poucos. «Na Rússia,
o governo é a autocracia temperada pelo estrangulamento», disse
espirituosamente a mulher de letras francesa Madame de Staël.
Era um trabalho perigoso. Seis dos últimos doze czares foram
assassinados — dois por estrangulamento, um à punhalada, um
com dinamite, dois à bala. Na catástrofe final de 1918, dezoito
Romanov foram assassinados. Raramente foi um cálice tão rico
e tão venenoso. Dou uma atenção particular a cada sucessão, que
é sempre o melhor teste da estabilidade de um regime. É irónico
que hoje, dois séculos depois de os Romanov terem finalmente
aceitado uma lei sucessória, os presidentes russos nomeiam efeti‑
vamente os seus sucessores como fez Pedro, o Grande. Quer sejam
uma passagem de testemunho tranquila ou uma transição deses‑
perada, estes momentos de tensão extrema, quando a necessidade
existencial impõe a aplicação de todas as reservas de engenho e a
exploração de todas as intrigas, revelam os princípios fundamen‑
tais do poder.
A essência do czarismo era a projeção de majestade e força.
No entanto, tinham que ser combinadas com o que Otto von
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Bismarck, rival e aliado dos Romanov, definiu como «a arte do
­possível, do atingível, a arte do segundo melhor». Para os Romanov,
o mester da sobrevivência dependia de equilibrarem os clãs, os inte‑
resses e as personalidades de uma corte minúscula e de um império
gigantesco. Os imperadores necessitavam de manter o apoio do
exército, da nobreza e da administração. Se perdes­sem estes três
apoios, tinham muitas probabilidades de serem depostos, o que
numa autocracia significava geralmente a morte. Além de jogarem
o jogo letal da política, os soberanos tinham que emanar uma auto‑
ridade visceral, quase feral. Um czar eficaz podia ser severo se fosse
consistentemente severo. Muitos governantes não são assassinados
por serem brutais, mas sim por serem inconsis­tentes. Além disso,
os czares tinham que inspirar confiança e respeito aos cortesãos e
uma reverência sagrada aos camponeses, que eram 90 por cento
dos seus súbditos e que os viam como «paizinhos». Esperava­‑se que
fossem severos para os seus funcionários mas benignos para os seus
«filhos» camponeses: «o czar é bom», diziam os campónios, «os
nobres são malvados».
O poder é sempre pessoal: qualquer estudo sobre o líder de
uma democracia ocidental de hoje revelará que mesmo num sis‑
tema transparente, com os seus curtos mandatos, a personalidade
molda a governação. Os líderes democráticos governam com fre‑
quência através de homens de confiança e não por intermédio dos
ministros. Em qualquer corte, o poder é tão fluido como a perso‑
nalidade humana. Flui hidraulicamente da e para a fonte, mas as
suas correntes mudam constantemente; o fluxo pode ser redirecio‑
nado ou mesmo invertido. Numa autocracia, o poder está sempre
em fluxo e sofre tantas alterações como os humores, as relações
e as circunstâncias — pessoais e políticas — de um homem e dos
seus vastos e fervilhantes domínios. Todas as cortes funcionam de
forma semelhante. No século xxi, as novas autocracias da Rússia
e da China têm muito em comum com a dos czares: são dirigidas
por cliques minúsculas e opacas que adquirem riquezas fabulosas,
que estão ligadas por relações hierárquicas de patrocinato e que
estão à mercê dos caprichos do governante. Neste livro, procuro
seguir a invisível e misteriosa alquimia do poder para responder
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à pergunta essencial da política, laconicamente formulada por
um mestre dos jogos de poder, Lenine: kto kogo? — quem con­
trola quem?
Numa autocracia, os traços do caráter são amplificados, tudo
o que é pessoal é político e a proximidade em relação ao soberano
transforma­‑se em poder, urdido numa teia dourada que se estende
da coroa a todos quantos toca. Havia maneiras infalíveis de con‑
quistar a confiança íntima do czar. A primeira era servir na corte,
no exército ou no governo e, em especial, alcançar uma vitória
militar; a segunda era garantir a segurança — todos os governantes,
não apenas os da Rússia, necessitam de um carrasco indispensável;
a terceira era mística — facilitar o acesso divino à alma imperial;
e a quarta e mais antiga era amorosa ou sexual, em particular no
caso das imperatrizes. Em troca, os czares agraciavam estes servi‑
dores com um maná de dinheiro, servos e títulos. Os czares que
viravam as costas aos esquemas da corte ou que faziam reviravoltas
dramáticas na política externa contra os desejos dos seus potenta‑
dos tinham muitas probabilidades de serem assassinados — numa
autocracia sem oposição formal, o homicídio era uma das poucas
formas de protesto da elite. (A forma de protestar do povo eram os
tumultos urbanos e as insurreições campesinas, mas, para o czar,
os seus cortesãos próximos eram muito mais mortíferos do que os
distantes camponeses — e só um, Nicolau II, foi derrubado por
uma revolta popular.)
Os czares inteligentes compreenderam que não havia separação
entre as suas vidas privada e pública. A sua vida pessoal, que se
desenrolava na corte, era inevitavelmente uma extensão da política:
«O vosso destino», escreveu o historiador romano Díon Cássio sobre
Augusto, «é viver como num teatro em que o público é o mundo
inteiro.» Mas, mesmo em semelhante palco, a verdadeira tomada
de decisões era sempre nebulosa, arcana e influenciada pelos capri‑
chos íntimos do governante (tal como hoje acontece no Kremlin).
É impossível compreender Pedro, o Grande, sem olhar tanto para os
seus anões nus e papas fantoches de dildo na mão como para as
suas reformas governamentais e política externa. O sistema, não
obstante toda a sua excentricidade, funcionava e o talento chegava
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ao topo. Talvez seja surpreendente que dois dos ministros mais
capazes, Shuvalov e Potemkin, começaram como amantes impe‑
riais. Kutaisov, o barbeiro turco do ­imperador Paulo, tornou­‑se tão
influente como se tivesse nascido príncipe. Por co­nseguinte, o histo‑
riador dos Romanov deve examinar não só os decretos e as estatís‑
ticas da produção de aço, como também os arranjinhos amorosos
de Catarina, a Grande, e a luxúria mística de Rasputine. Quanto
mais poderosos se tornavam os ministros, mais os autocratas exer‑
ciam o seu poder contornando­‑os através da utilização de homens
da sua confiança. Nos imperadores talentosos, esta prática tornou
os seus atos misteriosos, espantosos e inspiradores de reverência,
mas no caso dos incompetentes prejudicou irremediavelmente a
governação.
O sucesso da autocracia depende principalmente da qualidade
individual. «O segredo da nobreza», escreveu Karl Marx, «é a
zoolo­gia» — a reprodução. No século xvii, os Romanov organi­
zavam mostras de noivas — concursos de beleza — para escolhe‑
rem as suas noivas russas, mas no início do século xix começaram a
escolher mulheres da «ganadaria da Europa» — os principados ale‑
mães —, entrando para a grande família da realeza europeia. Mas a
criação de políticos não é uma ciência. Quantas famílias geram um
líder de excelência, para não falar em vinte gerações de monarcas
selecionados principalmente pela lotaria biológica e pelos truques
das intrigas palacianas, com o acúmen necessário ao autocrata?
Poucos políticos de carreira conseguem cumprir as expectativas e
sobreviver às pressões de um alto cargo que, numa monarquia, era
preenchido de forma tão fortuita. Todavia, o czar tinha que ser ao
mesmo tempo ditador, generalíssimo, sumo sacerdote e «paizinho»,
e para o conseguir necessitava de todas as qualidades enumeradas
pelo sociólogo Max Weber: o «dom pessoal da graça», a «virtude da
legalidade» e a «autoridade do ontem eterno», por outras palavras,
carisma, legitimidade e tradição. E, além de tudo isto, tinha que
ser eficiente e sábio. O respeito temível era essencial: na política,
o ridículo é quase tão perigoso como a derrota.
Os Romanov produziram dois génios políticos — os «Grandes»,
Pedro e Catarina — e vários indivíduos dotados de talento
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e magne­tismo. Depois do assassinato brutal do imperador Paulo
em 1801, todos os monarcas foram diligentes e trabalhadores e
a maioria foi carismática, inteligente e competente, mas o cargo
era tão difícil para o comum dos mortais que já ninguém cobiçava
o trono: era um fardo que tinha deixado de ser agradável. «Como
pode um homem governar sozinho [a Rússia] e corrigir as suas
injustiças?», perguntou o futuro Alexandre I. «Isto seria impos‑
sível para um homem com capacidades normais como eu, e até
para um génio...» Alexandre fantasiou com a hipótese de fugir e
viver numa quinta à beira­‑Reno. Os seus sucessores tiveram um
pavor medonho da coroa e evitaram­‑na sempre que puderam, e
quando lhes entregaram o trono tiveram que lutar para se man‑
terem vivos.
Pedro, o Grande, compreendeu que a autocracia exigia verifi­
cações e ameaças constantes. Os perigos da governação de um
Estado colossal presidindo a um despotismo pessoal sem regras
nem limites claros eram — e são — de tal ordem que é fútil
acusar os governantes russos de paranoia: a vigilância extrema,
apoiada na violência repentina, era e é a sua condição natural
e essencial. Sofrem do que o imperador Domiciano se queixou
(pouco antes de ser assassinado): «a sorte dos príncipes é mui­
tíssimo infeliz porque, quando denunciavam uma conjura, só
acreditavam neles depois de serem assassinados». Mas o medo
não bastava: mesmo depois de assassinar milhões de pessoas,
Estaline continuou a queixar­‑se de que ninguém lhe obedecia.
A autocracia «não é tão fácil como parece», disse a surpreen‑
dentemente inteligente Catarina: o «poder ilimitado» era uma
quimera.
A Rússia foi frequentemente redirecionada por decisões indi‑
viduais, mas raramente da forma pretendida. Parafraseando o
marechal prussiano Helmuth von Moltke, os «planos raramente
sobrevivem ao primeiro contacto com o inimigo». Os acidentes,
as fricções, as personalidades e o acaso, influenciados pelas ques‑
tões práticas dos canhões e da manteiga, são a paisagem real da
política. Potemkin, o grande ministro dos Romanov, refletiu que,
em qualquer Estado, o político não se deve limitar a reagir às
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contingências, deve «melhorar os acontecimentos». Ou, na frase
de Bismarck, «a tarefa do estadista é ouvir as pisadas de Deus a
caminhar pela história e tentar agarrar­‑se à banda do Seu casaco
quando Ele passa». Mas os últimos Romanov tentaram desesperada
e obstinadamente contrariar a marcha da história.
Os crentes na autocracia russa estavam convencidos de que
só um indivíduo todo­‑poderoso e abençoado por Deus podia
projetar a majestade fulgurante necessária para dirigir e impres‑
sionar o império multinacional e gerir os interesses complexos de
um Estado tão vasto. Ao mesmo tempo, o soberano tinha que
personificar a missão sagrada do cristianismo ortodoxo e dar
significado ao lugar especial da nação russa na história mundial.
Dado que nenhum homem ou mulher podiam desempenhar
sozinhos estes deveres, a arte da delegação era uma competência
essencial. O mais tirano dos Romanov, Pedro, o Grande, foi soberbo
a encontrar e nomear seguidores talentosos provenientes de toda
a Europa, independentemente da sua classe ou raça, e não foi
por acaso que Catarina promoveu não só Potemkin mas também
Suvorov, o grande comandante militar da era Romanov. Estaline,
também muito hábil a escolher subordinados, refletiu que fora este
o dom superlativo de Catarina. Os czares procuraram ministros
com a capaci­dade de governar, mas o autocrata devia sempre
governar por direito próprio: um Romanov nunca poderia nomear
um mestre como Richelieu ou Bismarck. Os imperadores tinham
que estar acima da política — e ser políticos astutos. Quando o
poder era sabiamente delegado e os conselhos generalistas eram
tidos em conta, até um governante medianamente talentoso podia
conseguir muitas coisas, embora a autocracia moderna exigisse
uma gestão tão delicada das questões complexas como a política
democrática de hoje.
O contacto do czar com o povo era próprio de uma Rússia
primitiva de camponeses e nobres, mas tem algumas semelhan‑
ças com o Kremlin do século xxi — glória no estrangeiro e
segurança doméstica em troca da governação de um homem
e da sua corte e do seu enriquecimento quase ilimitado. O con‑
trato tinha quatro componentes — religioso, imperial, nacional
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e militar. No século xx, o último czar ainda se viu como senhor
de um património pessoal — abençoado pela sanção divina.
Foi uma evolução: no século xvii, os patriarcas (prelados da Igreja
Ortodoxa) podiam desafiar a supremacia dos czares. Depois de
Pedro, o Grande, dissolver o patriarcado, a dinastia apresentou­
‑se quase como uma teocracia. A autocracia era consagrada no
momento da sagração em coroações que apresentavam os czares
como elos transcendentes entre Deus e o homem. A Rússia foi o
único lugar em que o Estado, constituído por funcionários meno‑
res e apagados, se tornou quase sagrado. Mas este aspeto tam‑
bém evoluiu com o tempo. Embora se fale muito no legado dos
imperadores bizantinos e dos cãs «gengiscizados», no século xvi
não havia nada de especial no estatuto dos czares, que tal como
outros monarcas europeus derivavam o seu carisma da cristologia
real medieval. Porém, ao contrário do resto da Europa, a Rússia
não desenvolveu assembleias independentes nem instituições civis,
pelo que a sua condição medieva durou muito mais tempo — até
ao século xx, quando já parecia bizarramente obsoleta, mesmo
em comparação com a corte dos kaisers alemães. Esta missão mís‑
tica, que justificou o regime Romanov até 1917, explica bastante
as convicções intransigentes do último czar, Nicolau, e da sua
mulher, Alexandra.
A autocracia era legitimada pelo império multirreligioso e
multiétnico em constante expansão, mas os imperadores tardios
consideraram­‑se primeiro líderes da nação russa e só depois da
comunidade eslava. Quanto mais abraçaram o nacionalismo russo,
mais excluíram (e perseguiram) as suas enormes populações não
russas, tais como os polacos, os georgianos, os finlandeses e, em
especial, os judeus. Em Um Violino no Telhado, o leiteiro judeu Tevye
diz: «Deus abençoe o czar e o mantenha... longe de nós.» Esta con‑
tradição entre império e nação causou muitas dificuldades. A corte
dos Romanov era uma mistura de agência imobiliária familiar,
ordem cruzada ortodoxa e quartel­‑general militar, características
que de formas muito diferentes explicam parte do zelo e da agres‑
sividade dos regimes sucessores dos Romanov, a União Soviética e a
atual Federação Russa.
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Mesmo na era pré­‑industrial, a agenda do czar transbordava
de cerimónias sacras e revistas militares, para não falar nas lutas
facciosas e nas disputas familiares, o que lhe deixava muito pouco
tempo para pensar profundamente na solução de problemas com‑
plexos. Seria um trabalho esgotante para um político nato durante
cinco anos, quanto mais para um mandato vitalício — e muitos
czares governaram mais de vinte e cinco anos. Dado que a maioria
dos líderes eleitos das nossas democracias tende a quase enlouque‑
cer antes do fim de dez anos no cargo, não admira que os czares
que reinaram muitas décadas tenham ficado exaustos e frustrados.
A capacidade do czar para tomar a decisão certa também era
limitada pela informação que recebia do seu séquito: todos os
monarcas disseram que estavam envoltos em mentiras, mas quanto
mais governavam, mais acreditavam no que queriam ouvir. «Tomai
cuidado para que não fiqueis cesarificado, tingido de púrpura»,
avisou Marco Aurélio... mas era mais fácil de dizer do que de fazer.
As exigências intensificaram­‑se com o passar dos séculos. Era mais
difícil dirigir um império de comboios, telefones e couraçados do
que um de cavalos, canhões e bacamartes. Embora o presente
livro seja um estudo sobre o poder pessoal, uma ênfase exagerada
no pessoal obscurece a influência das forças históricas, a potência
das ideias e o impacto do aço, da dinamite e do vapor. Os pro‑
gressos técnicos intensificaram os desafios que se colocaram a uma
autocracia medieval.
Ao ler sobre a deriva caótica e a decadência caprichosa dos
czares tíbios de finais do século xvii e as imperatrizes hedonistas
do século xviii, o historiador (e o leitor deste livro) tem que pergun‑
tar: como é que a Rússia teve tanto êxito aparentemente tão mal
governada por esta gente grotesca? No entanto, mesmo com uma
criança ou um idiota no trono, a autocracia funcionou. «Deus está
no céu e o czar está longe», diziam os camponeses, que nas suas
aldeias remotas pouco sabiam do que acontecia em Petersburgo
e estavam­‑se nas tintas — desde que o centro se aguentasse. E o
centro aguentou­‑se porque a dinastia Romanov foi sempre o vértice
e a fachada de um sistema político assente em redes de ligações
familiares e pessoais, funcionando ocasionalmente em antagonismo
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e muitas vezes em cooperação, que governaram o reino como
­parceiros juniores do trono. O sistema era flexível. Sempre que um
czar casava, a família do cônjuge entrava para o núcleo do poder,
e os czares promoveram validos talentosos, generais vitoriosos e
estrangeiros competentes, em particular príncipes tártaros, alemães
do Báltico e escoceses jacobitas, que refrescaram o círculo de liga‑
ções e forneceram a base social que contribuiu para fazer da Rússia
um império pré­‑moderno de tanto sucesso.
O seu coração era a aliança entre os Romanov e a nobreza,
que necessitava do apoio régio para controlar o seu património
fundiário. O pilar desta parceria era a servidão. Na prática, o ideal
da autocracia era um acordo segundo o qual os Romanov exerciam
o poder absoluto e ofereciam glória imperial enquanto a nobreza
governava as suas propriedades sem interferências. A coroa era
o maior latifundiário, pelo que a monarquia nunca se tornou o
joguete da nobreza, como aconteceu em Inglaterra e na França.
Todavia, a rede de clãs nobres aparentados servia no governo,
na corte e sobretudo no exército dinástico­‑aristocrático clássico,
que raramente desafiou os czares e se tornou uma máquina efi‑
caz de expansão imperial e coesão do Estado, unindo nobres e
camponeses sob a potente ideologia do czar, Deus e nação. Desde
que os Romanov ascenderam ao poder numa desesperada guerra
civil, o Tempo da Turbulência (1603­‑1613), o regime esteve sem­
pre em pé de guerra. As guerras constantes contra polacos, suecos,
otomanos, britânicos, franceses e alemães fizeram com que a auto‑
cracia se desenvolvesse como um centro de comando que mobili‑
zou a nobreza e importou constantemente a tecnologia ocidental.
A coroa e a nobreza espremiam os recursos dos servos, que paga‑
vam impostos, forneciam cereais e serviam como soldados de forma
muito mais barata do que noutras partes da Europa. O sucesso dos
Romanov na unificação do país e o receio profundo de novas tur‑
bulências significaram que, mesmo em caso de liquidação do czar, a
monarquia esteve geralmente segura e contou sempre com o apoio
da nobreza — com raras exceções em 1730, 1825 e 1916­‑1917.
Durante a maior parte do tempo, os Romanov e os seus seguidores
cooperaram na empresa sagrada, prestigiosa e lucrativa de repelir
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as agressões estrangeiras e construir um império. Por conseguinte,
este livro não é apenas uma história dos Romanov; inclui a his‑
tória de outras famílias, tais como os Golitsyns, os Tolstoys e os
Orlovs.
O nexo desta aliança era a corte, um entreposto de prémios,
um clube de charme e majestade, onde imperatrizes supostamente
triviais como Ana e Isabel se revelaram especialmente hábeis a
refinar a relação com os seus emproados magnatas. Esta parceria
prosperou até à Guerra da Crimeia, na década de 1850, quando
o velho regime teve que ser convertido num Estado moderno viável.
A contenda no estrangeiro exigiu que o império Romanov com‑
petisse num constante torneio geopolítico contra a Grã­‑Bretanha,
a Alemanha, o Japão e a América, cuja riqueza e tecnologia
ultrapassavam em muito as da Rússia. O potencial da Rússia só
poderia ser libertado com a reforma da posse da terra pelos cam‑
poneses, a industrialização acelerada baseada no crédito ocidental,
o alargamento da participação política e o desmantelamento da
autocracia corrupta e repressiva, mas os dois últimos Romanov,
Alexandre III e Nicolau II, eram ideologicamente incapazes de
o fazer. Viram­‑se confrontados com um dilema: como manter as
suas vastas fronteiras e projetar poder à medida das suas pretensões
imperiais com base numa sociedade atrasada. Se fracassassem no
estrangeiro, perdiam legitimidade no país. Quanto mais falhassem
internamente, menos se podiam dar ao luxo de jogar aos impérios
no estrangeiro. Se recorressem ao embuste e fossem desmascarados,
teriam que retirar humilhados ou lutar e arriscar­‑se a uma catás‑
trofe revolucionária.
É pouco provável que mesmo czares do calibre de Pedro ou
Catarina tivessem conseguido resolver os problemas decorrentes
da revolução e da guerra mundial que se colocaram a Nicolau II
no princípio do século xx, mas, por desgraça, o Romanov que
enfrentou a pior crise foi o menos capaz e o mais tacanho — e o
mais azarento. Nicolau foi um fraco juiz de homens e era avesso
a delegar. Não só não conseguiu desempenhar o papel de autocrata,
como também usou o seu poder para garantir que mais ninguém
conseguia.
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O êxito dos modos antigos até à década de 1850 dificultou
ainda mais a mudança. Tal como a cultura radical e mortífera da
União Soviética só pode ser compreendida através da ideologia
marxista­‑leninista­‑estalinista, o trajeto tolo e contraproducente dos
últimos Romanov só pode ser entendido através da sua ideologia:
a autocracia sagrada. Acabou por destruir a monarquia, tornando­
‑se um fim em si própria, um obstáculo ao funcionamento de um
Estado moderno: o dilema impossível era atrair políticos capazes
e alargar a participação no regime sem perder os seus pilares anti‑
quados, a nobreza e a Igreja — Trotsky chamou­‑lhe o mundo dos
«ícones e das baratas».
Aliás, a época dos Grandes Ditadores das décadas de 1920 e
1930 e as novas autocracias do início do século xxi mostram que
não há nada de incompatível entre a modernidade e o autoritarismo,
mesmo no mundo da Internet e das notícias vinte e quatro horas
por dia. Foi o caráter da monarquia czarista e da sociedade russa
que as tornou disfuncionais. As soluções não eram tão simples como
hoje parecem, amplificadas pela presunçosa superioridade ocidental.
O reformador Alexandre II aprendeu que «a sorte do rei», nas pala‑
vras de Marco Aurélio, era «fazer o bem e ser amaldiçoado». Os his‑
toriadores ocidentais criticam os últimos dois czares por não terem
instituído imediatamente a democracia, mas talvez seja uma ilusão:
uma cirurgia tão radical poderia ter morto o doente muito antes.
O destino da família Romanov foi insuportavelmente cruel e é
frequentemente apresentado como inevitável, mas vale a pena lem‑
brar que a força da monarquia era tanta que Nicolau II governou
vinte e dois anos — os primeiros dez com um sucesso moderado —
e sobreviveu à derrota militar, ao fervilhar revolucionário e a três
anos de guerra mundial. A Revolução de fevereiro de 1917 destruiu
a monarquia mas a família só ficou condenada em outubro, quando
caiu nas mãos dos bolcheviques, sete meses depois da abdicação.
E, mesmo nessa altura, Lenine ponderou cenários diferentes antes
de presidir ao crime atroz: a chacina dos pais e dos filhos inocentes.
Nada na história é inevitável.
O massacre marca o fim da dinastia e da nossa narrativa mas
não o fim da história. Os próprios ossos dos Romanov são tema
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de uma intensa controvérsia política e religiosa e os seus interesses
imperiais — da Ucrânia ao Báltico, do Cáucaso à Crimeia, da Síria
e Jerusalém ao Extremo Oriente — continuam a definir a Rússia e o
mundo tal como o conhecemos. A ascensão e queda dos Romanov,
salpicada de sangue, revestida a ouro, incrustada com diamantes,
marcial, luxuriosa e fatídica, continua a ser tão fascinante como
relevante e tão humana como estratégica, e é uma crónica de pais
e filhos, de megalómanos, monstros e santos.1
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PRÓLOGO
Dois rapazes no Tempo da Turbulência
A história da dinastia Romanov começa e acaba com dois
adolescentes frágeis, inocentes e doentes. Eram ambos herdeiros de
uma família política destinada a governar a Rússia como autocrata,
e foram ambos criados em tempos de revolução, guerra e chacinas.
Foram escolhidos por terceiros para um papel sagrado mas temí‑
vel que não eram adequados para desempenhar. Separados por
305 anos, cumpriram os seus destinos em cenários extraordinários
e terríveis que se desenrolaram longe de Moscovo em edifícios
chamados Ipatiev.
À 1h30 do dia 17 de julho de 1918, na Casa Ipatiev, em
Ekaterimburgo, nos Urales, a 1300 quilómetros a oriente de Moscovo,
Alexei, de treze anos, hemofílico e filho do ex­‑czar Nicolau II, foi
acordado juntamente com os pais, as quatro irmãs, três criados e
três cães. A família foi informada de que devia preparar­‑se com
urgência para se mudar para um lugar mais seguro.
Na noite de 13 de março de 1613, no Mosteiro de Ipatiev, nos
arredores da vila arruinada de Kostroma, no rio Volga, a 320 qui‑
lómetros a nordeste de Moscovo, Miguel Romanov, de dezasseis
anos, fraco de pernas e com um tique no olho, o único sobrevivente
de cinco irmãos, foi acordado pela mãe, que lhe anunciou a che‑
gada de uma delegação. Tinha que se preparar com urgência para
regressar com os dignitários à capital.
Ambos os rapazes ficaram sobressaltados com a ocasião exce‑
cional que tinham pela frente. Os pais tinham almejado o prémio
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máximo da coroa em seu nome, mas esperavam protegê­‑los dos
perigos inerentes. Contudo, não os puderam proteger porque
a família tinha­‑se envolvido, para o bem e para o mal, no jogo
cruel do poder hereditário na Rússia, e os seus ombros fracos
foram escolhidos para suportarem o fardo terrível da governação.
Porém, não obstante todos os paralelos entre estes momentos
trans­cendentes das vidas de Alexei e Miguel, veremos que eles
viajaram em direções muito diferentes. Um foi o princípio, o outro
foi o fim.
Alexei, cativo dos bolcheviques numa Rússia despedaçada por
uma selvagem guerra civil e por invasões estrangeiras, vestiu­‑se,
tal como o resto da família. Tinham cosidas nas roupas as famosas
joias da dinastia, destinadas a uma futura fuga para a liberdade.
O garoto e o pai, o ex­‑czar Nicolau II, vestiram simples camisas
e calças militares, com o respetivo boné de pala. A ex­‑czarina
Alexandra e as adolescentes vestiram blusas brancas e saias pretas,
sem casacos nem chapéus. Disseram­‑lhes para levarem pouca coisa,
mas eles tentaram obviamente levar almofadas, bolsas e recordações
porque não sabiam se regressariam nem para onde iam. Os pais
sabiam que não tinham muitas probabilidades de saírem vivos da
sua situação traumática, mas mesmo naquela época dura era cer‑
tamente impensável fazer mal a crianças inocentes. Toldados pelo
sono e esgotados por viverem no desespero e na incerteza, não
desconfiaram de nada.2
Miguel Romanov e a mãe, a freira Marta, tinham sido recen‑
temente cativos, mas agora eram quase fugitivos, fazendo por
não darem nas vistas. Tinham procurado refúgio num mosteiro
numa terra despedaçada pela guerra civil e por uma invasão
estrangeira, um cenário semelhante ao da Rússia em 1918.
Também estavam acostumados a viver em perigo de vida, e o
seu medo era justi­ficado: o rapaz era procurado por esquadrões
da morte.
A mãe, a freira Marta, na casa dos cinquenta anos, tinha sofrido
muito com os reveses do Tempo da Turbulência. A família caíra do
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esplendor e do poder para a prisão e para a morte, mas recompusera­
‑se: no entanto, o pai do rapaz, Filaret, estava cativo dos polacos
e vários tios tinham sido assassinados. Miguel era quase analfabeto,
não tinha nada de assertivo e estava cronicamente doente. O mais
provável é que ele e a mãe esperassem apenas manter­‑se com vida
até ao regresso do pai. Mas será que ele regressaria?
A mãe e o filho, com um misto de temor e expectativa, disseram
à delegação de dignitários de Moscovo para se encontrar com o
rapaz de manhã, no exterior do Mosteiro de Ipatiev. Não sabiam o
que lhes traria a alvorada.3
Em Ekaterimburgo, os guardas da Casa Ipatiev viram os
Romanov descer as escadas. No patamar, passaram por uma ursa
e duas crias embalsamadas e benzeram­‑se. Nicolau levava o filho
doente ao colo.
O comandante, um comissário bolchevique chamado Yakov
Yurovsky, conduziu a família ao exterior: atravessaram um pátio e
desceram para uma cave iluminada por uma única lâmpada elé‑
trica. Alexandra pediu uma cadeira e Yurovsky mandou trazer
duas para os membros mais débeis da família, a ex­‑czarina e
Alexei. Ela sentou­‑se numa e Nicolau sentou o filho na outra,
pondo­‑se de pé à frente dele. As quatro grã­‑duquesas, Olga,
Tatiana, Maria e Anastácia — cuja alcunha coletiva era o acró‑
nimo OTMA —, ficaram de pé atrás de Alexandra. Yurovsky
saiu apressadamente da cave. Havia muitos preparativos para
fazer. Durante dias, telegramas em código tinham sido trocados
entre Ekaterimburgo e Moscovo sobre o futuro da família impe‑
rial porque as forças antibolcheviques, conhecidas por «Brancos»,
avançavam sobre Ekaterimburgo. O tempo estava a esgotar­‑se.
Um esquadrão da morte esperava na sala vizinha; alguns homens
estavam bêbedos e todos estavam fortemente armados. A família,
serena e tranquila, ainda estava desarranjada e confusa de sono,
esperando talvez que durante a perambulação apressada fosse
salva pelos Brancos, que estavam tão próximos. Sentaram­‑se vira‑
dos para a porta, calmos e expectantes, como se fossem tirar uma
fotografia de grupo.
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* *
Na madrugada de 14 de março, Miguel, vestido formalmente
com um casacão forrado a pele e com um chapéu guarnecido
de zibelina, saiu do mosteiro com a mãe e deparou­‑se com uma
procissão liderada por potentados moscovitas (boiardos) e bispos
ortodoxos (metropolitas). Fazia um frio de rachar. Os delega‑
dos ­apro­ximaram­‑se. Os boiardos trajavam cafetãs e peles; um dos
metropolitas trazia o Ícone Miraculoso da Catedral da Dormição,
que Miguel terá reconhecido do Kremlin, onde tinha estado recen‑
temente cativo. Como elemento persuasor adicional, seguravam no
alto a Nossa Senhora de São Teodoro, o ícone patrono da família
Romanov.
Quando chegaram ao pé de Miguel e da mãe, fizeram uma
vénia e transmitiram­‑lhe a sua espantosa notícia. «Senhor Soberano,
Senhor de Vladimir e Moscovo, Czar e Grão­‑Príncipe de Toda
a Rússia», disse o chefe da delegação, Fyodorit, metropolita de
Riazan. «A Moscóvia não podia sobreviver sem um soberano...
e a Moscóvia estava em ruínas», pelo que uma Assembleia da
Terra tinha­‑o escolhido para soberano que «brilhe pelo czarismo
russo como o sol», e pediram­‑lhe que «lhes concedesse aquela
graça e não desdenhasse de aceitar os seus apelos» e se «dignasse
a ir para Moscovo o mais rapidamente possível». Miguel e a mãe
não ficaram contentes. «Eles disseram­‑nos», contaram os delegados,
«com muita fúria e choros, que Ele não queria ser Soberano e que
Ela não o abençoaria como Soberano, e voltaram para a igreja.»
Quase conseguimos ouvir a fúria magnífica da mãe e os soluços
de confusão do rapaz. Em 1613, a coroa da Rússia não era uma
proposta tentadora.
Às 2h15, Alexei e a família continuavam à espera, envoltos
num silêncio sonolento, quando o camarada Yurovsky e dez mir‑
midões armados entraram na sala, que ficou apinhada. Um deles
reparou em Alexei, «adoentado e pálido», que os olhava «com
curiosidade, de olhos esbugalhados». Yurovsky mandou Alexei e a
família levantarem­‑se e, virando­‑se para Nicolau, declarou: «Tendo
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em conta que os vossos parentes prosseguem a sua ofensiva contra
a Rússia soviética, o Presidium do Conselho Regional dos Urales
decidiu condenar­‑vos à morte.»
«Senhor, meu Deus!», disse o czar. «Oh, meu Deus, o que é
isto?» Uma das raparigas gritou: «Oh, meu Deus, não!» Nicolau
insistiu: «Não estou a compreendê­‑lo. Leia outra vez, por favor.»
Os magnatas de Moscovo não se deixaram desencorajar pela
recusa de Miguel. A Assembleia tinha escrito as respostas específicas
que a delegação deveria dar a cada uma das objeções de Miguel.
Depois de muitas súplicas, os dignitários «quase imploraram» a
Miguel. «Beijaram a cruz e pediram humildemente» ao rapaz a que
chamavam «nosso soberano» que aceitasse ser czar. Os Romanov
estavam feridos por anos de perseguições e humilhações. Tinham
sorte em estarem vivos. Mais uma vez, Miguel «recusou com um
grito lamentoso e furioso».
Yurovsky releu a sentença de morte. Alexei e o resto da famí‑
lia benzeram­‑se, enquanto Nicolau não parava de dizer: «O quê?
O quê?»
«ISTO!», gritou Yurovsky, e disparou sobre o ex­‑czar. Os exe‑
cutores ergueram as armas, apontaram­‑nas à família e dispararam
à toa num pandemónio ensurdecedor de tiros, «gritos e gemidos de
mulheres», ordens gritadas de Yurovsky, pânico e fumo. «Ninguém
conseguia ouvir nada», recordaria Yurovsky. Mas quando os dispa‑
ros diminuíram de intensidade, deram­‑se conta de que o czarevich
Alexei e as mulheres estavam praticamente incólumes. Alexei, de
olhos esbugalhados, aterrorizado, estonteado e ainda sentado na
cadeira, olhou para eles por entre o fumo da pólvora e a poeira do
estuque que quase tinham extinguido a luz numa cena diabólica
de cadeiras viradas, pernas no ar, sangue e «gemidos, gritos e solu‑
ços abafados...».
Em Kostroma, depois de seis horas de discussão, os dignitários
ajoelharam­‑se, choraram e garantiram que, se Miguel não aceitasse
a coroa, Deus lançaria a ruína absoluta sobre a Rússia. Por fim,
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Miguel anuiu. Beijou a cruz e aceitou a haste com ponta de aço,
símbolo do czarismo. Os dignitários benzeram­‑se e correram a
prostrar­‑se e a beijar os pés do seu novo czar. No fim de uma viagem
perigosa até Moscovo, Miguel tinha à sua espera uma capital em
ruínas, um reino despedaçado e um povo desesperado.
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