(Apostila Filojur 2017 1) 4. Jusnaturalismo

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70
III
O JUSNATURALISMO
71
O caráter do jusnaturalismo1
Embora a ideia do direito natural remonte à época
clássica, e não tenha cessado de viver durante a Idade Média, a
verdade é que quando se fala de “doutrina” ou de “escola” do
direito natural, sem outra qualificação, ou, mais brevemente,
com um termo mais recente e não ainda acolhido em todas as
línguas europeias, de “jusnaturalismo”, a intenção é referir-se
à revivescência, ao desenvolvimento e à difusão que a antiga e
recorrente ideia do direito natural teve durante a idade
moderna, no período que intercorre entre o início do século
XVII e o fim do XVIII. Segundo uma tradição já consolidada
na segunda metade do século XVII – mas que há algum tempo,
com fundamento, tem sido posta em discussão –, a escola do
direito natural teria tido uma precisa data de início com a obra
de Hugo Grócio (1588-1625), De iure belli ac pacis, publicada
em 1625 e anos antes do Discours de la méthode de Descartes.
Mas não tem uma data de encerramento igualmente clara,
ainda que não haja duvidas sobre os eventos que assinalaram o
seu fim: a criação das grandes codificações, especialmente a
napoleônica, que puseram as bases para o renascimento de
uma atitude de maior reverência em face das leis estabelecidas
e, por conseguinte, daquele modo de conceber o trabalho do
jurista e a função da ciência jurídica que toma o nome de
positivismo jurídico. Por outro lado, é bem conhecida também
a corrente de pensamento que decretou sua morte: o
historicismo, especialmente o historicismo jurídico, que se
manifesta muito em particular na Alemanha (onde, de resto, a
escola do direito natural encontrara sua pátria de adoção),
com a Escola histórica do direito. Ademais, se quiséssemos
indicar precisamente uma data emblemática desse ponto de
BOBBIO, Norberto. O modelo jusnaturalista. São Paulo, Brasiliense,
1979.
1
72
chegada, poderíamos escolher o ano da publicação do ensaio
juvenil
de
Hegel,
Ueber
die
wissenschaftlichen
Behandlungsarten des Naturrechts (Sobre os diversos modos
de tratar cientificamente o direito natural), publicado em
1802. Nessa obra, o filósofo – cujo pensamento representa a
dissolução definitiva do jusnaturalismo – submete a uma
crítica radical as filosofias do direito que o precederam, de
Grócio a Kant e Fichte.
Sob a velha etiqueta de “escola do direito natural”,
escondem-se autores e correntes muito diversos: grandes
filósofos como Hobbes, Leibniz, Locke, Kant, que se ocuparam
também, mas não precipuamente, de problemas jurídicos e
políticos, pertencentes a orientações diversas e por vezes
opostas de pensamento, como Locke e Leibniz, como Hobbes e
Kant; juristas-filósofos, como Pufendorf, Thomasius e Wolff,
também divididos quanto a pontos essenciais da doutrina
(Wolff, para darmos apenas um exemplo, é considerado como
o antiPufendorf); professores universitários, autores de
tratados escolásticos que, depois de seus discípulos, talvez
ninguém mais tenha lido; e finalmente, um dos maiores
escritores políticos de todos os tempos, o autor de O Contrato
Social.
Por outro lado, enquanto para os juristas-filósofos a
matéria do direito natural compreende tanto o direito privado
quanto o direito público (e muito mais o primeiro que o
segundo), para os outros, em especial para os três grandes, por
cuja obra se mede hoje a importância do jusnaturalismo, e em
função dos quais talvez valha ainda a pena falar de um “direito
natural moderno” contraposto ao medieval e ao antigo – estou
me referindo a Hobbes, Locke e Rousseau –, o tema de suas
obras é quase que exclusivamente o direito público, o
problema do fundamento e da natureza do Estado. Embora a
divisão entre uma e outra historiografia particular seja uma
convenção, que pode também ser deixada de lado e que, de
qualquer modo, é preciso evitar considerar como uma muralha
73
intransponível, não há dúvida de que uns pertencem
principalmente à história das doutrinas jurídicas, enquanto os
outros pertencem àquela das doutrinas políticas.
Contudo, apesar da disparidade dos autores
compreendidos sob as insígnias da mesma escola, ou, o que é
sinônimo, do mesmo “ismo”, e não obstante o que de artificial,
e por sua vez de “escolástico”, existe em proceder por escolas
ou por “ismos”, não se pode dizer que tenha sido um capricho
falar de uma escola do direito natural. Dela se falou, é verdade,
com duas perspectivas diversas: pelos próprios fundadores e
seus seguidores, com a finalidade de construir uma árvore
genealógica frondosa e, além do mais, com um ilustre
antecessor, de quem eles pudessem tirar vantagem e
argumento para se considerarem como inovadores que
deixaram para trás um passado de erros e de barbárie; pelos
adversários, para os quais, uma vez esgotado o impulso
criador da escola, o fato de pôr todos os seus componentes,
indistintamente, num único alinhamento tornava mais fácil
acertar no alvo, com a finalidade de desembaraçar-se de uma
vez para sempre de um erro funesto. Enquanto a primeira
perspectiva permite-nos captar aquilo contra o que os
criadores e os fiéis seguidores da escola se opuseram, a
segunda nos permite compreender o que a eles foi contraposto
por seus críticos: como se sabe, não há modo melhor para
compreender as linhas essenciais de um movimento de
pensamento que considerá-lo do ponto de vista das teses
alheias que ele negou e do ponto de vista das próprias teses
que foram negadas pelos outros.
Pois bem: tanto uma quanto outra perspectiva
convergem para trazer à luz um princípio de unificação
daquilo que ambas as partes convieram chamar de uma
“escola”. Esse princípio não reside nesse ou naquele conteúdo,
mas consiste certamente num modo de se aproximar do
estudo do direito e, em geral, da ética e da filosofia prática:
numa palavra, no “método”. O método que une autores tão
74
diversos é o método racional, ou seja, aquele método que deve
permitir a redução do direito e da moral (bem como da
política), pela primeira vez na história da reflexão sobre a
conduta humana, a uma ciência demonstrativa.
No campo das ciências morais, dominara por longo
tempo, incontrastadamente, a opinião de Aristóteles, segundo
a qual – no conhecimento do justo e do injusto – não é
possível atingir a mesma certeza a que chega o raciocínio
matemático, e que é preciso nos contentarmos com um
conhecimento provável: “Seria tão inconveniente – ele
afirmara – exigir demonstrações de um orador quanto
contentar-se com a probabilidade nos raciocínios de um
matemático”.2 É conhecido o peso dessa opinião no estudo do
direito.
Só se compreende a novidade do direito natural se este
for comparado com a situação do estudo do direito antes da
virada, ou seja, se não for dado um mínimo de atenção, como
dizíamos há pouco, a tudo isso de que ele é a negação.
Propondo a redução da ciência do direito à ciência
demonstrativa, os jusnaturalistas defendem, pela primeira vez
com tal ímpeto na história da jurisprudência, a ideia de que a
tarefa do jurista não é a de interpretar regras já dadas, que
enquanto tais não podem deixar de se ressentir das condições
históricas na qual foram emitidas, mas é aquela – bem mais
nobre – de descobrir as regras universais da conduta, através
do estudo da natureza do homem, não diversamente do que
faz o cientista da natureza, que finalmente deixou de ler
Aristóteles e se pôs a perscrutar o céu. Para o jusnaturalista, a
fonte do direito não é o Corpus iuris, mas a “natureza das
coisas”. Em suma: o que os jusnaturalistas eliminam do seu
horizonte é a interpretatio: mesmo que os juristas continuem a
comentar as leis, o jusnaturalista não é um intérprete, mas um
descobridor.
2
Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1094 b.
75
Thomas Hobbes
Trechos do Leviatã*
Da condição natural da humanidade relativamente à
sua felicidade e miséria
A natureza fez os homens tão iguais, quanto às
faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se
encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou
de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se
considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro
homem não é suficientemente considerável para que qualquer
um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que
outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto
à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o
mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com
outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.
Durante o tempo em que os homens vivem sem um
poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se
encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma
guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois
a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar,
mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de
travar batalha é suficientemente conhecida. Portanto a noção
de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza da
guerra, do mesmo modo que quanto à natureza do clima.
São Paulo: Nova Cultural, 1973. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria
Beatriz Nizza da Silva
*
76
Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em
dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que
dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra
não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para
tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário.
Todo o tempo restante é de paz.
Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de
guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o
mesmo é válido também para o tempo durante o qual os
homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser
oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Numa
tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é
incerto; consequentemente não há cultiva da terra, nem
navegação, nem uso das mercadorias que podem ser
importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem
instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de
grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem
cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e
o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de
morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida,
embrutecida e curta.
Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal
tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que
jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro; mas há
muitos lugares onde atualmente se vive assim. Porque os
povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção
do governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da
concupiscência natural, não possuem qualquer espécie de
governo, e vivem em nossos dias daquela maneira
embrutecida que acima referi. Seja como for, é fácil conceber
qual seria o gênero de vida quando não havia poder comum a
recear, através do gênero de vida em que os homens que
anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam
deixar-se cair, numa guerra civil.
77
Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em
que os indivíduos se encontrassem numa condição de guerra
de todos contra todos, de qualquer modo em todos os tempos
os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa
de sua independência vivem em constante rivalidade, e na
situação e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas,
cada um de olhos fixos no outro; isto é, seus fortes, guarnições
e canhões guardando as fronteiras de seus reinos, e
constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o
que constitui uma atitude de guerra. Mas como através disso
protegem a indústria de seus súditos, daí não vem como
consequência aquela miséria que acompanha a liberdade dos
indivíduos isolados.
Desta guerra de todos os homens contra todos os
homens também isto é consequência: que nada pode ser
injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não
podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e
onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude
são as duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem
parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fosse,
poderiam existir num homem que estivesse sozinho no
mundo, do mesmo modo que seus sentidos e paixões.
São qualidades que pertencem aos homens em
sociedade, não na solidão. Outra consequência da mesma
condição é que não há propriedade, nem domínio, nem
distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem
aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for
capaz de conservá-lo. É pois esta a miserável condição em que
o homem realmente se encontra, por obra da simples
natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela, que
em parte reside nas paixões, e em parte em sua razão.
Da primeira e Segunda leis naturais
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O direito de natureza, a que os autores geralmente
chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de
usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a
preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e
consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio
julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a
esse fim.
Por liberdade entende-se, conforme a significação
própria da palavra, a ausência de impedimentos externos,
impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada
um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que use o
poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe
ditarem.
Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou
regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe
a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou
privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir
aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la.
Porque embora os que têm tratado deste assunto costumem
confundir jus e lex, o direito e a lei, é necessário distingui-los
um do outro. Pois o direito consiste na liberdade de fazer ou de
omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas
duas coisas. De modo que a lei e o direito se distinguem tanto
como a obrigação e a liberdade, as quais são incompatíveis
quando se referem à mesma matéria.
É dado que a condição do homem (conforme foi
declarado no capítulo anterior) é uma condição de guerra de
todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por
sua própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar
mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de
sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal
condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo
os corpos dos outros. Portanto, enquanto perdurar este direito
de cada homem a todas as coisas, não poderá haver para
nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança
79
de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos
homens viver. Consequentemente é um preceito ou regra geral
da razão que todo homem deve esforçar-se pela paz, na
medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a
consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da
guerra. A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e
fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A
segunda encerra a suma do direito de natureza, isto é, por
todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos.
Desta lei fundamental de natureza, mediante a qual se
ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta
segunda lei: Que um homem concorde, quando outros
também o façam, e na medida em que tal considere necessário
para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu
direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos
outros homens, com a mesma liberdade que aos outros
homens permite em relação a si mesmo. Porque enquanto
cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira
todos os homens se encontrarão numa condição de guerra.
Mas se os outros homens não renunciarem a seu direito, assim
como ele próprio, nesse caso não há razão para que alguém se
prive do seu, pois isso equivaleria a oferecer-se como presa
(coisa a que ninguém é obrigado), e não a dispor-se para a paz.
Renunciar ao direito a alguma coisa é o mesmo que
privar-se da liberdade de negar ao outro o beneficio de seu
próprio direito à mesma coisa. Pois quem abandona ou
renuncia a seu direito não dá a qualquer outro homem um
direito que este já não tivesse antes, porque não há nada a que
um homem não tenha direito por natureza; mas apenas se
afasta do caminho do outro, para que ele possa gozar de seu
direito original, sem que haja obstáculos da sua parte, mas não
sem que haja obstáculos da parte dos outros. De modo que a
consequência que redunda para um homem da desistência de
outro a seu direito é simplesmente uma diminuição
80
equivalente dos impedimentos ao uso de seu próprio direito
original
Leis e Direitos Naturais
1º. Direito natural (jus naturale): liberdade que cada
homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que
quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de
sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu
próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios
adequados a esse fim.
1ª. Lei da natureza
Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou
regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe
a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou
privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir
aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la.
2º. Direito Natural
Todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo
os corpos dos outros.
Que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida
em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga
pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A
primeira parte desta regra encerra a lei primeira e
fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A
segunda encerra a suma do direito de natureza, isto é, por
todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos.
2ª. Lei natural
Que um homem concorde, quando outros também o
façam, renunciar a seu direito a todas as coisas. Porque
enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto
81
queira todos os homens se encontrarão numa condição de
guerra.
Há um direito que é impossível admitir que algum
homem possa abandonar ou transferir: o de renunciar ao
direito de resistir a quem o ataque pela força para tirar-lhe a
vida
3ª. Lei natural
Que os homens cumpram os pactos que celebrarem.
Sem esta lei os pactos seriam vãos, e não passariam de
palavras vazias; como o direito de todos os homens a todas as
coisas continuaria em vigor, permaneceríamos na condição de
guerra.
Nesta lei de natureza reside a fonte e a origem da
justiça. Porque sem um pacto anterior não há transferência de
direito, e todo homem tem direito a todas as coisas,
consequentemente nenhuma ação pode ser injusta. Mas,
depois de celebrado um pacto, rompê-lo é injusto. E a
definição da injustiça não é outra senão o não cumprimento de
um pacto. E tudo o que não é injusto é justo.
4ª. Lei natural
Tal como a justiça depende de um pacto antecedente,
assim também a gratidão depende de uma graça antecedente,
quer dizer, de uma dádiva antecedente. É esta a quarta lei de
natureza, que pode ser assim formulada: Que quem recebeu
benefício de outro homem, por simples graça, se esforce para
que o doador não venha a ter motivo razoável para
arrepender-se de sua boa vontade.
5ª. Lei natural
A quinta lei de natureza é a complacência, quer dizer:
Que cada um se esforce por acomodar-se com os outros. Para
compreender esta lei é preciso levar em conta que na aptidão
dos homens para a sociedade existe certa diversidade de
82
natureza, derivada da diversidade de suas afecções. Pois sendo
de esperar que cada homem, não apenas por direito mas
também pela necessidade de sua natureza, se esforce o mais
que possa por conseguir o que é necessário a sua conservação,
todo aquele que a tal se oponha, por causa de coisas
supérfluas, é culpado da guerra que daí venha a resultar, e
portanto age contrariamente à lei fundamental de natureza
que ordena procurar a paz.
6ª. Lei natural
A sexta lei de natureza é: Que como garantia do tempo
futuro se perdoem as ofensas passadas, àqueles que se
arrependam e o desejem. Porque o perdão não é mais do que
uma garantia de paz, a qual, embora quando dada aos que
perseveram em sua hostilidade não seja paz, mas medo,
quando recusada aos que oferecem garantia do tempo futuro é
sinal de aversão pela paz, o que é contrário à lei de natureza.
7ª. Lei natural
A sétima lei é: Que na vingança (isto é, a retribuição do
mal com o mal) os homens não olhem à importância do mal
passado, mas só à importância do bem futuro.
8ª. Lei natural
Desta lei depende uma outra: Que ao iniciarem-se as
condições de paz ninguém pretenda reservar para si qualquer
direito que não aceite seja também reservado para qualquer
dos outros.
9ª. Lei natural
Se a alguém for confiado servir de juiz entre dois
homens, é um preceito da lei de natureza que trate a ambos
equitativamente. Pois sem isso as controvérsias entre os
homens só podem ser decididas pela guerra.
83
10ª. Lei natural
Que as coisas que não podem ser divididas sejam
gozadas em comum, se assim puder ser; e, se a quantidade da
coisa
o
permitir,
sem
limite;
caso
contrário,
proporcionalmente ao número daqueles que a ela têm direito.
Caso contrário, a distribuição seria desigual, e contrária à
equidade.
11ª: Lei natural
Mas há algumas coisas que não podem ser divididas
nem gozadas em comum. Para esses casos, a lei de natureza
que prescreve a equidade exige Que o direito absoluto, ou
então (se o uso for alternado) a primeira posse, sejam
determinados por sorteio. Porque a distribuição equitativa faz
parte da lei de natureza, e é impossível imaginar outras
maneiras de fazer uma distribuição equitativa.
12ª. Lei natural
É também uma lei de natureza Que a todos aqueles
que servem de mediadores para a paz seja concedido
salvo-conduto. Porque a lei que ordena a paz, enquanto fim,
ordena a intercessão, como meio. E o meio para a intercessão é
o salvo-conduto.
As leis de natureza são imutáveis e eternas, pois a
injustiça, a ingratidão, a arrogância, o orgulho, a iniquidade, a
acepção de pessoas e os restantes jamais podem ser tornados
legítimos. Pois jamais poderá ocorrer que a guerra preserve a
vida, e a paz a destrua.
Essas leis, na medida em que obrigam apenas a um
desejo e a um esforço, isto é, um esforço não fingido e
constante, são fáceis de obedecer.
As leis de natureza (como a justiça, a equidade, a
modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que
queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do
temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são
84
contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem
tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas
semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de
palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém.
Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita
quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo
com segurança), se não for instituído um poder
suficientemente grande para nossa segurança, cada um
confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua
própria força e capacidade, como proteção contra todos os
outros.
Thomas Hobbes de Malmsbury
Hobbes é considerado o precursor do positivismo, do
materialismo e do mecanicismo. É ao mesmo tempo
naturalista e positivista, empirista e racionalista.
- Filosofar significa calcular, ou seja, somar e subtrair.
Tudo o que não pode ser composto ou decomposto não faz
parte do domínio da razão, e sim da fé.
- Para Hobbes, há uma ciência natural (física,
matemática, lógica, ontologia) e uma ciência civil (moral e
política).
- Hobbes caminha da física para a fisiologia, desta
para a psicologia, da psicologia para a filosofia moral e desta
para a política.
- Todo conhecimento se origina na experiência e
limita-se ao que é corpóreo.
- Tudo é matéria, até os pensamentos. Alma e espírito
não existem. Não há conhecimento de fato de coisas como
alma e espírito.
- A filosofia política deve ser revista. É inútil elaborar
utopias, como fez Platão. A filosofia política deve ser uma
construção teórica de aplicação prática. O objetivo é evitar a
85
discórdia e a guerra e esclarecer os homens da necessidade do
Estado.
- Os princípios da sociedade civil estão no homem, e
não no Estado. O que faz com que homens naturalmente
livres, iguais e independentes se unam sob um Estado? Para
responder, é preciso saber o que é o homem. Entender o
homem sob os aspectos fisiológicos e psicológicos é entender
como se forma o Estado, como ele se mantém e como pode
garantir a paz.
- O corpo humano é um mecanismo, tanto quanto o
Estado.
- O ser humano é em parte animal e em parte racional.
Por sua parte animal, o homem é desejo. O primeiro objeto de
desejo é o desejo de si, que aparece sob a forma de instinto de
autopreservação. Por isso, o egoísmo é natural. O altruísmo,
não.
- A ciência política consiste em tornar os homens
racionais pelo controle de um estado racional.
- Entre as paixões primitivas dos homens estão o
apetite e a aversão, o ódio e o amor, o prazer e a dor.
- A convivência com outros homens, em um estado de
guerra, gera insegurança. O medo de ser morto torna os
homens violentos, mas esse mesmo medo faz com que se
associem e escolham um governante para controlá-los, e que
também será controlado pelo povo.
- Os homens são, por natureza, iguais, o que significa
que ninguém pode reivindicar privilégios ou benefícios.
- Os homens são iguais em força e em espírito, são
governados por suas paixões e têm o direito de conquistar o
que lhes apetecer.
- Como todos os homens são dotados de força igual, e
como as aptidões intelectuais também se igualam, o recurso à
violência se generaliza.
- Sem Estado, há apenas a guerra de todos contra
todos.
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- No Estado de Guerra não há indústria, agricultura,
navegação, comércio, conforto, conhecimento, contagem do
tempo, arte, letras, sociedade, justiça e injustiça, lei,
propriedade. Só há risco de morte violenta.
- A vida do homem em Estado de Guerra é solitária,
pobre, sórdida, embrutecida e curta.
- A possibilidade de sair dessa situação se dá através
das paixões e da razão. As paixões são o medo de morrer, o
desejo de ter uma vida boa e a esperança de conseguir. O
instinto de conservação leva ao desejo de paz. A razão dita
normas de paz, ou leis de natureza.
- Lei natural: preceito ou regra geral estabelecido pela
razão, que proíbe um homem de fazer o que destrói sua vida,
de privá-lo dos meios necessários para mantê-la e de omitir
aquilo que pense poder contribuir para preservá-la.
- O direito natural garante ao homem a liberdade de
fazer o que estiver a seu alcance para preservar sua vida.
- O direito natural diz respeito à liberdade de fazer ou
omitir e a lei natural determina ou obriga a fazer ou omitir.
- A paz é o que há de mais compatível com o instinto
de autopreservação.
- Os homens estabelecem um contrato tácito, que
contêm os seus ânimos, como defesa interna, e que, reunidos,
formarão um povo, de modo a que a multidão dos associados
seja tão grande que possa garantir a defesa externa.
- As leis não são derivadas de um instinto natural, nem
de um consentimento universal, mas da razão que procura os
meios de conservação do homem. Isto significa dizer que a
obediência moral é meio para uma vida social pacífica e
confortável. No entanto, as leis precisam de algo mais que
garanta seu cumprimento: um governo que detenha a força, o
que só pode ser feito por um governo despótico.
- A democracia não é um regime aceitável, porque
sempre haverá pessoas que, acreditando saber mais do que as
outras, poderiam desencadear guerras civis a fim de
87
conquistar o poder só para elas. Apenas um Estado forte e
repressor pode garantir que isso não aconteça.
John Locke
Segundo Tratado Sobre o Governo Civil*
Do estado de natureza
4. Para compreender corretamente o poder político e
traçar o curso de sua primeira instituição, é preciso que
examinemos a condição natural dos homens, ou seja, um
estado em que eles sejam absolutamente livres para decidir
suas ações, dispor de seus bens e de suas pessoas como bem
entenderem, dentro dos limites do direito natural, sem pedir a
autorização de nenhum outro homem nem depender de sua
vontade. Um estado, também, de igualdade, onde a
reciprocidade determina todo o poder e toda a competência,
ninguém tendo mais que os outros; evidentemente, seres
criados da mesma espécie e da mesma condição, que, desde
seu nascimento, desfrutam juntos de todas as vantagens
comuns da natureza e do uso das mesmas faculdades, devem
ainda ser iguais entre si, sem subordinação ou sujeição, a
menos que seu senhor e amo de todos, por alguma declaração
manifesta de sua vontade, tivesse destacado um acima dos
outros e lhe houvesse conferido sem equívoco, por uma
designação evidente e clara, os direitos de um amo e de um
soberano.
*
São Paulo: Abril Cultural, 1973. Tradução de E. Jacy Monteiro.
88
7. Para que se possa impedir todos os homens de
violar os direitos do outro e de se prejudicar entre si, e para
fazer respeitar o direito natural que ordena a paz e a
“conservação da humanidade”, cabe a cada um, neste estado,
assegurar a “execução” da lei da natureza, o que implica que
cada um esteja habilitado a punir aqueles que a transgridem
com penas suficientes para punir as violações. Pois de nada
valeria a lei da natureza, assim como todas as outras leis que
dizem respeito aos homens neste mundo, se não houvesse
ninguém que, no estado de natureza, tivesse poder para
executar essa lei e assim preservar o inocente e refrear os
transgressores. E se qualquer um no estado de natureza pode
punir o outro por qualquer mal que ele tenha cometido, todos
podem fazer o mesmo. Pois nesse estado de perfeita igualdade,
onde naturalmente não há superioridade ou jurisdição de um
sobre o outro, o que um pode fazer para garantir essa lei, todos
devem ter o direito de fazê-lo.
8. Assim, no estado de natureza, um homem adquire
um poder sobre o outro; mas não um poder absoluto ou
arbitrário para tratar um criminoso segundo as exaltações
apaixonadas ou a extravagância ilimitada de sua própria
vontade quando está em seu poder; mas apenas para
infligir-lhe, na medida em que a tranquilidade e a consciência
o exigem, a pena proporcional a sua transgressão, que seja
bastante para assegurar a reparação e a prevenção. Pois estas
são as únicas duas razões por que um homem pode legalmente
ferir outro, o que chamamos de punição. Ao transgredir a lei
da natureza, o ofensor declara estar vivendo sob outra lei
diferente daquela da razão e equidade comuns, que é a medida
que Deus determinou para as ações dos homens, para sua
segurança mútua; e assim, tornando-se perigoso para a
humanidade, ele enfraqueceu e rompeu o elo que os protege
do dano e da violência. Tratando-se de uma violação dos
direitos de toda a espécie, de sua paz e de sua segurança,
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garantidas pela lei da natureza, todo homem pode reivindicar
seu direito de preservar a humanidade, punindo ou, se
necessário, destruindo as coisas que lhe são nocivas; dessa
maneira, pode reprimir qualquer um que tenha transgredido
essa lei, fazendo com que se arrependa de tê-lo feito e o
impedindo de continuar a fazê-lo, e através de seu exemplo,
evitando que outros cometam o mesmo erro. E neste caso e
por este motivo, todo homem tem o direito de punir o
transgressor e ser executor da lei da natureza.
14. Muitas vezes se pergunta, como uma poderosa
objeção: Há, ou algum dia houve, homens em tal estado de
natureza? A isto pode bastar responder, no momento, que
todos os príncipes e chefes de governos independentes, em
todo o mundo, encontram-se no estado de natureza, e que
assim, sobre a terra, jamais faltou ou jamais faltará uma
multidão de homens nesse estado. Citei todos os governantes
de comunidades independentes, estejam ou não vinculadas a
outras. Pois não é toda convenção que põe fim ao estado de
natureza entre os homens, mas apenas aquela pela qual todos
se obrigam juntos e mutuamente a formar uma comunidade
única e constituir um único corpo político; quanto às outras
promessas e convenções, os homens podem fazê-las entre eles
sem sair do estado de natureza. As promessas e os
intercâmbios etc., realizados entre dois homens numa ilha ou
entre um suíço e um índio, nas florestas da América, os obriga,
embora eles estejam entre eles em um perfeito estado de
natureza. Pois a verdade e o respeito à palavra dada pertencem
aos homens enquanto homens, e não como membros da
sociedade.
Do estado de guerra
16. O estado de guerra é um estado de inimizade e de
destruição; por isso, se alguém, explicitamente ou por seu
modo de agir, declara fomentar contra a vida de outro homem
90
projetos, não apaixonados e prematuros, mas calmos e firmes,
isto o coloca em um estado de guerra diante daquele a quem
ele declarou tal intenção, e assim expõe sua vida ao poder do
outro, que pode ele mesmo retirá-la, ou ao de qualquer outro
que se una a ele em sua defesa e abrace sua causa; é razoável e
justo que eu tenha o direito de destruir aquele que me ameaça
com a destruição. Segundo a lei fundamental da natureza, que
o ser humano deve ser preservado na medida do possível, se
nem todos podem ser preservados, deve-se dar preferência à
segurança do inocente; você pode destruir o homem que lhe
faz guerra ou que se revelou inimigo de sua existência, pela
mesma razão que se pode matar um lobo ou um leão: porque
homens deste tipo escapam aos laços da lei comum da razão,
não seguem outra lei senão aquela da força e da violência, e
assim podem ser tratados como animais selvagens, criaturas
perigosas e nocivas que certamente o destruirão sempre que o
tiverem em seu poder.
17. Por isso, aquele que tenta colocar outro homem sob
seu poder absoluto entra em um estado de guerra com ele; esta
atitude pode ser compreendida como a declaração de uma
intenção contra sua vida. Assim sendo, tenho razão em
concluir que aquele que me colocasse sob seu poder sem meu
consentimento me usaria como lhe aprouvesse quando me
visse naquela situação e prosseguiria até me destruir; pois
ninguém pode desejar ter-me em seu poder absoluto, a não ser
para me obrigar à força a algo que vem contra meu direito de
liberdade, ou seja, fazer de mim um escravo. Escapar de tal
violência é a única garantia de minha preservação; e a razão
me leva a encará-lo como um inimigo à minha preservação,
que me privaria daquela liberdade que a protege; de forma que
aquele que tenta me escravizar coloca-se por conseguinte em
um estado de guerra comigo. Aquele que no estado de
natureza retirasse a liberdade que pertence a qualquer um
naquele estado, necessariamente se supõe que tem intenção de
retirar tudo o mais, pois a liberdade é a base de todo o resto;
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assim como aquele que no estado de sociedade retirasse a
liberdade pertencente aos membros daquela sociedade ou da
comunidade política, seria suspeito de tencionar retirar deles
tudo o mais, e portanto seria tratado como em estado de
guerra.
18. Isso autoriza todo homem a matar um ladrão que
não lhe fez nenhum mal e não declarou outra intenção contra
sua vida, exceto a de mantê-lo sob seu poder pela força para
roubar-lhe seu dinheiro ou o que quiser dele; porque ao usar a
força onde não tem este direito, para me ter sob seu poder,
explicando sua atitude segundo sua vontade, não tenho razão
alguma para pensar que este indivíduo, tendo-me sob seu
poder e pronto a me privar de minha liberdade, renunciaria a
me privar de todo o resto. E por isso me é lícito tratá-lo como
alguém que se colocou em um estado de guerra para comigo,
ou seja, matá-lo, se eu puder; pois qualquer pessoa que se
introduz em um estado de guerra e se torna agressor, está
justamente se expondo a este risco.
19. E temos aqui a clara diferença entre o estado de
natureza e o estado de guerra, que, embora alguns homens
confundam, são tão distintos um do outro quanto um estado
de paz, boa-vontade, assistência mútua e preservação, de um
estado de inimizade, maldade, violência e destruição mútua.
Homens vivendo juntos segundo a razão, sem um superior
comum na terra com autoridade para julgar entre eles, eis
efetivamente o estado de natureza. Mas a força, ou uma
intenção declarada de força, sobre a pessoa de outro, onde não
há superior comum na terra para chamar por socorro, é estado
de guerra; e é a inexistência de um recurso deste gênero que dá
ao homem o direito de guerra ao agressor, mesmo que ele viva
em sociedade e se trate de um concidadão. Assim, este ladrão,
a quem não posso fazer nenhum mal, exceto apelar para a lei,
se ele me roubar tudo o que possuo, seja meu cavalo ou meu
casaco, eu posso matá-lo para me defender quando ele me
ataca à mão armada; porque a lei, estabelecida para garantir
92
minha preservação contra os atos de violência, quando não
pode agir de imediato para proteger minha vida, cuja perda é
irreparável, me dá o direito de me defender e assim o direito
de guerra, ou seja, a liberdade de matar o agressor; porque
este não me deixa tempo para apelar para nosso juiz comum e
torna impossível qualquer decisão que permita uma solução
legal para remediar um caso em que o mal pode ser
irreparável. A vontade de se ter um juiz comum com
autoridade coloca todos os homens em um estado de natureza;
o uso da força sem direito sobre a pessoa de um homem
provoca um estado de guerra, haja ou não um juiz comum.
20. Quando a força deixa de existir, cessa o estado de
guerra entre aqueles que vivem em sociedade, e ambos os
lados são igualmente submetidos à justa determinação da lei;
porque agora eles têm acesso a um recurso, tanto para reparar
o mal sofrido quanto para prevenir todo o mal futuro. Mas
onde não existe tal recurso, como no estado de natureza,
devido à inexistência de leis positivas e de juízes competentes
com autoridade para julgar, uma vez iniciado o estado de
guerra, ele continua, e a parte inocente tem o direito de
destruir a outra quando puder, até que o agressor proponha a
paz e deseje a reconciliação em tais termos que possa reparar
quaisquer erros que já tenha cometido e assegurar o futuro da
vítima. E mesmo onde exista um recurso legal e juízes
estabelecidos, se, por uma perversão manifesta da justiça ou
clara distorção das leis, sua solução é negada com a finalidade
de proteger ou de garantir a violência ou o dano de alguns
homens ou de um partido, é difícil imaginar outra situação
além de um estado de guerra. Pois onde entra em jogo a
violência e danos são causados, ainda que por mãos daqueles
que deveriam administrar a justiça, continua se tratando de
violência e danos, apesar do nome, das aparências ou das
formas de lei; pois a lei tem por finalidade proteger e reparar
os inocentes, através de sua aplicação justa a tudo o que está
sob sua tutela; quando isso não é realizado de boa-fé, é o
93
mesmo que entrar em guerra contra as vítimas, às quais, não
tendo ninguém a quem recorrer na terra, só resta apelar ao
céu.
Da propriedade
26. Deus, que deu o mundo aos homens em comum,
deu-lhes também a razão, para que se servissem dele para o
maior benefício de sua vida e de suas conveniências. A terra e
tudo o que ela contém foi dada aos homens para o sustento e o
conforto de sua existência. Todas as frutas que ela
naturalmente produz, assim como os animais selvagens que
alimenta, pertencem à humanidade em comum, pois são
produção espontânea da natureza; e ninguém possui
originalmente o domínio privado de uma parte qualquer,
excluindo o resto da humanidade, quando estes bens se
apresentam em seu estado natural; entretanto, como foram
dispostos para a utilização dos homens, é preciso
necessariamente que haja um meio qualquer de se apropriar
deles, antes que se tornem úteis ou de alguma forma
proveitosos para algum homem em particular. Os frutos ou a
caça que alimenta o índio selvagem, que não conhece as cercas
e é ainda proprietário em comum, devem lhe pertencer, e lhe
pertencer de tal forma, ou seja, fazer parte dele, que ninguém
mais possa ter direito sobre eles, antes que ele possa
usufruí-los para o sustento de sua vida.
27. Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores
pertençam em comum a todos os homens, cada um guarda a
propriedade de sua própria pessoa; sobre esta ninguém tem
qualquer direito, exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de
seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade
sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a
natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a
isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua
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propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que
a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo
que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este
trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador,
nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o
trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é
suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade.
28. Aquele que se alimentou com bolotas que colheu
sob um carvalho, ou das maçãs que retirou das árvores na
floresta, certamente se apropriou deles para si. Ninguém pode
negar que a alimentação é sua. Pergunto então: Quando
começaram a lhe pertencer? Quando os digeriu? Quando os
comeu? Quando os cozinhou? Quando os levou para casa? ou
Quando os apanhou? E é evidente que se o primeiro ato de
apanhar não os tornasse sua propriedade, nada mais poderia
fazê-lo. Aquele trabalho estabeleceu uma distinção entre eles e
o bem comum; ele lhes acrescentou algo além do que a
natureza, a mãe de tudo, havia feito, e assim eles se tornaram
seu direito privado. Será que alguém pode dizer que ele não
tem direito àquelas bolotas do carvalho ou àquelas maçãs de
que se apropriou porque não tinha o consentimento de toda a
humanidade para agir dessa forma? Poderia ser chamado de
roubo a apropriação de algo que pertencia a todos em comum?
30. Assim, esta lei da razão dá ao índio o veado que ele
matou; admite-se que a coisa pertence àquele que lhe
consagrou seu trabalho, mesmo que antes ela fosse direito
comum de todos. E entre aqueles que contam como a parte
civilizada da humanidade, que fizeram e multiplicaram leis
positivas para a determinação da propriedade, a lei original da
natureza, que autoriza o início da apropriação dos bens antes
comuns, permanece sempre em vigor; graças a ela, os peixes
que alguém pesca no oceano, esta grandeza comum a toda a
humanidade, ou aquele âmbar cinzento que se recolheu,
tornam-se propriedade daquele que lhes consagraram tantos
95
cuidados através do trabalho que os removeu daquele estado
comum em que a natureza os deixou. E mesmo entre nós, a
lebre que alguém está caçando pertence àquele que a persegue
durante a caça. Pois tratando-se de um animal considerado
sempre um bem comum, não pertencendo individualmente a
ninguém, quem consagrou tanto trabalho para encontrá-lo ou
persegui-lo e assim o removendo do estado de natureza em
que ele era um bem comum, criou sobre ele um direito de
propriedade.
44. Tudo isso evidencia que, embora as coisas da
natureza sejam dadas em comum, o homem, sendo senhor de
si mesmo e proprietário de sua própria pessoa e das ações de
seu trabalho, tem ainda em si a justificação principal da
propriedade; e aquilo que compôs a maior parte do que ele
aplicou para o sustento ou o conforto de sua existência, à
medida que as invenções e as artes aperfeiçoaram as condições
de vida, era absolutamente sua propriedade, não pertencendo
em comum aos outros.
John Locke
- Maior contribuição para a teoria política: a
naturalização da propriedade e sua legitimação pelo trabalho.
Estado de Natureza
- O homem é naturalmente moral (racional e
razoável). Logo, o estado de natureza é feliz, pacífico e
caracterizado pela tolerância.
- Os homens são naturalmente iguais e livres para
garantir a vida, a saúde, a liberdade e a propriedade. Estes
direitos são inalienáveis e de todos os homens, o que significa
que não há direito divino de alguns de governar.
- Ainda que sejam racionais, os homens podem
transgredir as leis da natureza e agir em prejuízo de seus
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semelhantes. Surge, então, o direito natural: como todos os
homens são responsáveis pela execução da lei natural, todos
têm o direito de responder na mesma medida à agressão
sofrida e de exigir reparação pelo dano causado.
- A desigualdade no estado natural é decorrência da
transgressão de alguns: aquele que transgride a lei natural
coloca-se sob outra lei e se torna passível de ser subjugado.
- Um homem no estado natural pode legalmente ferir
outro quando a manutenção da lei estiver sob ameaça e
quando for o caso de vingar-se de um mal sofrido.
Estado de guerra
- Um homem, ao desrespeitar o direito de outro à vida,
liberdade e propriedade, coloca-se em guerra contra ele. Um
governo, ao atuar contra os indivíduos e seus direitos naturais,
também se coloca em estado de guerra contra eles.
- Estado de guerra e estado de natureza são duas
coisas bastante distintas: o estado de guerra acontece em
qualquer lugar e em qualquer tempo, sempre que um homem
infringir o direito de outro e aquele que sofreu o dano agir
individualmente para obter reparação do dano sofrido. O
estado de natureza caracteriza os indivíduos sem um estado
para governá-los, ou seja, sem uma lei positiva.
Surgimento do Estado
- O Estado surge para evitar o estado de guerra. Ou
seja, para fazer cumprir a lei de natureza e evitar, em
contrapartida, a guerra de todos contra todos.
- Os homens são parciais quando julgam em causa
própria, o que gera confusão e desordem (pois todos têm o
direito de se defender, punir o agressor e exigir reparação). O
Estado existe primeiramente para conter a parcialidade, ou
seja, para evitar a inclinação dos homens em beneficiar a si
mesmos e aos amigos. Existindo o Estado e a lei positiva,
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ninguém pode fazer justiça com as próprias mãos, exceto para
defender a própria vida.
- O que justifica o surgimento do Estado é a ideia do
melhor: os homens estabelecem o contrato para obter seus fins
(garantia da vida, da liberdade e da propriedade) de modo
mais eficiente.
- Visando preservar seus direitos de vida, liberdade e
propriedade, os homens abdicam de todos os outros,
transferindo-os para o Estado de direito.
Trabalho e propriedade
- O corpo é a primeira propriedade, o que significa que
a propriedade não é concedida pela sociedade civil, mas sim é
natural.
- O direito à propriedade se origina da relação do
homem com a natureza, modificando-a pelo trabalho.
- As coisas sem o trabalho têm pouco valor. O trabalho
é o agente que modifica o mundo natural e lhe confere valor.
Estado constituído
- É permitida a rebelião sempre que o governo
subverter seus fins.
- O bem-estar público é a base do bom governo e o que
justifica a imposição de obrigações.
Limites do poder do Estado
- O Estado não pode ser arbitrário com respeito à vida
e ao destino das pessoas. É perigoso conceder poder absoluto a
um indivíduo ou grupo.
- Para evitar o poder absoluto do Estado, ele deve ser
dividido internamente.
- O governo tem o poder e o direito de cobrar
impostos. Quem deseja a proteção do Estado, que pague por
ela. Mas quanto e como deve ser decidido por consenso.
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- A sociedade civil deve ser dividida em poder
legislativo, que diz como se deve agir, e poder executivo, que
assegura a execução da lei. No primeiro caso, o parlamento
atua como representante da vontade popular. No segundo, o
rei faz cumprir a lei através do parlamento.
- O direito do governante a seu posto é determinado
pelo pacto social e passível de ser revogado.
Quadro comparativo
Hobbes
Natureza
humana
Teórico do
absolutismo
O homem é por
natureza solitário
Sociedade
Não pode existir sem
o poder do Estado
Estado de
Natureza
Hipotético, mas
verossímil
Como seria o
Estado de
Natureza
Não há sociedade;
apenas medo
constante e perigo de
morte violenta.
Conhecimento
no estado de
natureza
Os homens não
sabem o que é certo e
o que é errado (são
irracionais). Logo,
não são capazes de
resolver seus
Locke
Teórico do liberalismo
O homem é por
natureza um animal
político dotado de razão
Existe para garantir a
manutenção dos
direitos naturais
Parte da condição
humana (o que não
confere um caráter
histórico à hipótese)
Em estado de natureza
os homens mantém suas
promessas e honram
suas obrigações. Apesar
de não garantir a
segurança individual, é
uma condição de paz e
bem-estar (como ilustra
o caso dos índios)
Os homens sabem o que
é certo e o que é errado
(são racionais).
Portanto, são capazes de
resolver seus conflitos.
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Propriedade
no estado de
natureza
Propriedade
Conflito
Direitos
Naturais
Contrato
Social
Violação do
Contrato
Sociedade
Civil
conflitos.
Não há. As pessoas
não são capazes de
distinguir entre o que
lhes pertence e o que
não lhes pertence.
Então, se tudo é de
todos, ninguém
possui coisa alguma.
Só existe por vontade
do Estado Civil (ou
seja, artificialmente)
A guerra é a norma.
Nós alienamos todos
os nossos direitos
para o Estado, exceto
o direito à vida.
Obedeça e terá o
direito de não ser
morto.
Nenhum direito.
Meramente a
aplicação da força
pelo Estado, que
A propriedade é um
direito natural; o corpo
é a primeira
propriedade. Por isso,
os homens são capazes
de distinguir o que lhes
pertence do que não
lhes pertence. Ainda
assim, os homens nem
sempre agem de acordo
com este conhecimento.
Existe naturalmente
A paz é a norma.
Desistimos de nosso
direito à exata
retribuição por alguma
ofensa sofrida, mas
retemos o direito à vida,
à propriedade e à
liberdade.
Garante proteção à
propriedade.
Se um governante tentar
manter um governo
absoluto, se agir como
juiz e parte em uma
contenda, ele se coloca
em estado de guerra
com seus súditos. Neste
caso, tem-se o direito e a
obrigação de matá-lo.
A sociedade civil cria a
ordem e garante a
legitimidade do Estado.
100
Papel do
Estado
Uso da força
por parte do
Estado
representa o
contrato. A sociedade
civil é criação do
Estado.
Tem a finalidade e o
dever de suprimir
pela força os
conflitos.
O conceito de uso
ilegítimo da força,
por parte do Estado,
não faz sentido.
O único papel do Estado
é garantir que a justiça
seja feita.
Só se justifica se e
somente se for para
garantir a justiça.
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