A Filarmônica e eu Não tenho certeza se gostava de banda de

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A Filarmônica e eu
Não tenho certeza se gostava de banda de música, no nascimento da minha memória. Eu sei
que gostava da banda de Caetité. Várias ou poucas bandas foram escutadas e vistas, mas o que
me emocionava era a chamada “Banda do Padre Valter”, uma formação humilde e serena, que
dava conta do seu recado e evitava repertórios de moda, preferindo os longos e consagrados
dobrados do repertório bandístico brasileiro.
Como coloquei para a professora Diana Santiago, no caso da banda de Caetité e seus músicos
que me influenciaram, muitas dessas pessoas, ou parte do que fizeram, só estão vivas hoje em
minha memória. Umas poucas imagens, as memórias ensimesmadas de parentes, nada escrito
muito menos publicado.
No caso da Banda 21 de Abril, à parte o saxofonista Milton Santos Costa que faleceu na
condição de um ainda muito jovem pai de família, os outros integrantes podem falar sobre
esses tempos sim, mas desconheço se o fizeram, sabendo que somente eu mesmo segui a
profissão de músico. Muito do que fiz está na memória de cada um deles, do mesmo modo
que existem observações musicais que hoje pertencem só a mim. Os caboclos dizem “mimóra
é o que em mim mora”.
Enriqueço o presente relato com dois anexos, envolvendo mestres de filarmônica e “memória
do que a ti pertence” do mesmo modo do que falo no presente. O primeiro, um neto à
procura da memória de Jorge Dias de Abreu, o seu avô músico, e o outro, um neto divulgando
a memória muito bem construída do seu notável e reconhecido avô, Estevam Moura. A
diferença entre os dois casos pode estar em um artigo, em uma notícia de época, em um único
parente que toma a iniciativa, na memória de uma só pessoa.
A primeira imagem de uma banda de música ao que me lembro foi a da ‘banda do Véi
Macedo” (1), que vinha da cidade de Espinosa (MG) tendo o mestre clarinetista, um homem
branco de óculos, à frente. Seu neto, Deomídio Macedo, aprendiz de clarineta e residente em
Salvador, tem também procurado recuperar dados sobre sua memória e atuação.
Em seguida vem uma experiência muito mais consistente, que marcou minha escolha pela
música de filarmônica desde então; a banda de Caetité, tendo à frente o mestre Álvaro Villares
Neves, tocando flautim.
Caetité é uma cidade muito especial. Sede da primeira Escola Normal do Brasil, inaugurada por
d. Pedro II, terra do educador Anísio Teixeira e cidade merecedora de um relato diferenciado,
na penosa viagem feita por Theodoro Sampaio até as nascentes do Rio de São Francisco.
Caetité apresenta ao viajante um aspecto de corte do sertão. Há aqui uma boa e culta
sociedade, muita urbanidade e delicadeza na gente do logar. As Festas de Reis, muito
animadas, deram-nos ensejo para bem julgar das maneiras, dos hábitos hospitaleiros
deste povo tão amável e tão cheio de delicadas attenções (SAMPAIO 1905, p.113).
Ainda hoje posso ver na memória o semblante e comportamento de cada um dos integrantes
da Banda de Caetité, cujos primeiros acordes podiam ser ouvidos na Alvorada, seja da festa de
Santo Antônio quanto de Nossa Senhora, depois à noite no Leilão, onde sem os instrumentos
típicos da banda, tocavam trechos de música popular. No domingo, dia seguinte, tocavam na
procissão para depois fazerem um momento dançante em forma de “jaze”.
Cada um desses músicos correspondia ao perfil do seu instrumento, pelo que se encontraria
na vida daí por diante:
O mestre Álvaro com seu flautim, sua sabedoria vinda de uma educação musical com métodos
franceses nas Lavras Diamantinas. Capaz de tocar de cor vários chorinhos de Pixinguinha e
outros de sua própria autoria.
O clarinetista José Costa, com bigodinho aparado, cabelo penteado para trás, barriga saliente e
calças com suspensórios, tocando com ar sério, sem nunca sorrir ou se distrair.
O trompetista Zé Carlos, homem negro de bigodinho, magro, com postura de jazzman de New
Orleans, sorriso fácil, gosto pela bebida e capaz de tocar muita música popular além dos
dobrados.
O trombonista Tengo, atuante até hoje em dia, um olho cego, homem branco do sertão,
também especialista em mambos (“Amapola” me causou enorme impressão).
O tubista Frederico, um solista que fazia as partes obrigatórias (o forte) sozinho, com grande
sonoridade, uma marcação firme nos dobrados, um homem que bebia e discutia com a esposa
respondendo com a tuba.
Luis Bicudo, tocador de pratos.um negro raça-pura, que marcava o contratempo com
gesticulação.
Bié. Ou cara de diabo, como eu o chamava, tocando seu bombo com extrema atenção e
semblante muito sério.
Completando o pequeno grupo, vinha o acordeonista João de Deus, suprindo a falta de
trompas ao fazer as harmonizações de centro.
Como se pode ver, essa pequena banda, sem fardamento, sem bombardino, mas que
executava com esmero, afinação impecável os dobrados mais sólidos que conheço, como
saudades de minha terra, Dois corações e 220, me causou profunda impressão. A
responsabilidade musical de cada músico, a singularidade do repertório, a beleza do semblante
de cada um daqueles músicos veteranos, tudo foi decisivo para a minha vontade de tocar, e a
atuação de Tengo me conduziu ao trombone.
Então chega o tempo do prefeito Diógenes Baleeiro e sua disposição para criar uma banda
em Urandi, comprando o instrumental inicial marca Weril como era a única opção e mandando
vir da cidade de Condeúba, um grande criador de bandas de música chamado João Sacramento
Neto (1932-2010) conhecido como Mestre João. A turma inicial foi de jovens na faixa dos 15
anos de idade, mas essa turma, onde estava o meu irmão George, não foi à frente, pois esses
adolescentes já viviam outra realidade social – um dado a ser considerado – não tendo a
cabeça “mole” e descomprometida da infância.
Então com o fracasso dessa primeira iniciativa abriu-se caminho para a minha turma, de
meninos na faixa de 11 anos e foi essa, com pouquíssimas desistências, quem formou a turma
inicial da Banda 21 de Abril. Há notícias de uma banda de música em Urandi, por volta dos
anos 30 ou 40, mas nada restou dessa banda, a não ser o nome de um mestre que foi para a
cidade de Monte Santo. Na prática estava sendo fundada a primeira banda da cidade, que
estreou dia 7 de Setembro de 1972, com o seguinte repertório:
Dobrado n. 1 e Dobrado Os Músicos, do mestre João Sacramento.
Hino Nacional Brasileiro.
Nosso hino Nacional, uma peça de certa dificuldade envolvendo cromatismos e apojaturas, era
a encomenda e desafio principal para a data da Independência e saiu do nosso jeito, pelo
menos sendo identificado pela população.
No seguimento a banda acrescentou ao repertório o Dobrado Consórcio, do mestre João, o
dobrado Silvino Rodrigues, a valsa Branca, o maxixe Carinhoso (Pedro Salgado) e mais tarde o
dobrado 13 Listras, de nível um pouco mais avançado.
A banda funcionou de 1971 a 1975 com a regência do mestre. Quando ele foi criar uma nova
banda na cidade de Porteirinha, MG, com apenas 14 anos fiquei interinamente no comando.
Em um ano à frente da banda consegui manter funcionando uma escolinha e os ensaios
noturnos. Conseguir “fazer” três novos músicos leitores de partitura: os trombonistas Pia
(Jesuíno Araújo) e Nestor Monteiro e o clarinetista Silvano, que toca até hoje. Coloquei
algumas músicas novas no repertório e além das tocatas na cidade realizei pelo menos uma
viajem com a banda 21 de Abril, para a cidade vizinha de Licínio de Almeida.
A foto da Banda 21 de Abril foi retirada de um monóculo, por especial cortesia do fotógrafo e
trompetista Sérgio Benutti.
Paulo Lopes, prato. João Bitoni, caixa. Leobino, bombo. Tê, clarineta, Robson, trompa.
Francisco Eduardo, clarineta. Milton Santos Costa, sax alto. Fred Dantas, trombone.
Pontaria, tuba. Mário Públio Filho, trompete.
Esta tocata contratada pelo festeiro de nome José Nenas, envolveu contratação de carro,
hospedagem, alimentação e a realização musical em si. Eu tinha 14 anos e estive à frente na
resolução disso tudo, tendo inclusive assinado um contrato. Tocamos na alvorada, na entrega
da bandeira da festa, conduzindo o novo festeiro pelas ruas, no leilão, e na procissão. Partimos
exaustos de volta a Urandi e na travessia da serra do Saco da Onça, a grande altitude com
estrada pedregosa serpenteando por paredões rochosos e grotões dos quais não se enxerga o
fundo, paramos numa venda. Ali se realizou então um estranho baile de improviso, onde a
cerveja, por falta de energia elétrica, era gelada num buraco de cimento cheio de água.
Depois da minha vinda para Salvador a banda continuou suas atividades por certo tempo, com
o breve retorno do mestre João. Depois, com a eleição de novo prefeito, encerrou suas
atividades. Lembro que fui achar a campânula da tuba na casa do então prefeito, servindo de
ninho para uma galinha choca.
Uma nova gestão chamou de volta o mestre João e ele chegou a formar uma novíssima turma
que se apresentou diversas vezes, fardada e com instrumental renovado. Novamente por
questões salariais o mestre retornou para Minas, enquanto a banda procurava se manter, com
o nome Filarmônica João Sacramento Neto, dado pelos seus discípulos tendo a frente João de
Bitoni.
Enquanto o mestre fundava e mantinha em pleno funcionamento uma nova banda filarmônica
em Porteirinha, com a ajuda dos seus filhos músicos Jair e Samuel, surgindo ainda uma neta
musicista chamada Adriana Aguiar. Samuel vem sendo o seu continuador em Porteirinha,
enquanto a cidade de Urandi assistiu ao fim da sua banda de música.
Bem, ao completar 15 anos, concluída a 5ª série do curso fundamental, vim para Salvador,
estudar no colégio 2 de Julho. Passei uns 3 anos sem tocar o trombone. Foi quando fiz o
vestibular para medicina, passei a cursar a Faculdade de Medicina da Universidade Federal da
Bahia. Houve uma longa greve, tive a idéia de trazer o trombone do interior para Salvador. Fui
convidado para tocar na estréia do grupo Sexteto do Beco, no Teatro Castro Alves iniciando-se
aí, como numa forma sonata, um período de transição até o momento de desistir do curso e
fazer Composição na mesma UFBA.
Estando dentro da Escola, devido ao estilo, à grafia das notas, o professor Lindembergue
Cardoso perguntava: “já trouxe o dobrado?” em 1982 convidei alguns amigos, quase todos na
época ligados à Escola de Música da UFBA, para formar um grupo para receber o mestre João
no Festival de Música Instrumental, o que geraria a Oficina de Frevos e Dobrados.
Nunca havia sido feita uma pesquisa sistemática ou não sobre as bandas de música na Bahia e
seus mestres-compositores. Esse trabalho foi sendo feito na medida em que chegava à minha
mão material procedente das cidades e de arquivos de bandas de Salvador mesmo, como a
Sociedade Filarmônica Carlos Gomes, do bairro da Ribeira.
Para dar vazão aos resultados, criei nas oportunidades que tive de conseguir pauta na Reitoria
da UFBA, uma série de concertos homenagem, onde se tocava a obra desses mestres e se
expunha fotos e dados biográficos. Esse trabalho teve seguimento no Festival de Filarmônicas
do Recôncavo.
Entre os primeiros pesquisados estão o Mestre João Sacramento Neto, Tranquillino Bastos,
Álvaro Villares Neves, Júlio Cézar Souza e Isaías Gonçalves Amy. Depois, nas várias edições do
Festival, recuperamos memória e música de Estevam Moura, Amando Nobre, Heráclio
Guerreiro, Francisco Teixeira, Almiro Adeodato Oliveira e finalmente o mestre Vado, de
Muritiba.
A Oficina de Frevos e Dobrados gravou CDs, promoveu Festivais e criou um curso de
aperfeiçoamento para mestres e músicos líderes de filarmônicas.
Atualmente, cursando o Doutorado em Música pela Universidade Federal da Bahia, penso que
a tarefa de agora por diante é investigar a poética musical das bandas filarmônicas,
interagindo com o contexto social onde atuam. Esperamos assim desencadear um processo de
trabalho junto a seus mestres-compositores, que possa chegar a um modelo que seja
vanguarda e ao mesmo tempo capaz de assegurar que elas continuem a desempenhar seu
importante papel dentro do ambiente social que as originam e mantêm.
A estratégia tem como ponto central traçar uma linha contínua entre o repertório
representativo da tradição, passando por peças contemporâneas criadas por mim, mas ainda
funcionais, porquanto todas elas terem sido apresentadas publicamente por bandas de música
existentes, com uma ponte de composições de vanguarda já existentes e executadas,
chegando finalmente até uma composição atual e inédita.
Uma breve Bibliografia sobre bandas de música
BERTUNES, Carina da Silva. Estudo da influência das bandas na formação musical: dois estudos
de caso em Goiânia. Goiânia, 2005. 231 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade
Federal de Goiás, Escola de Música e Artes Cênicas, Goiás, 2005.
BRUSCKY, Paulo (org.) Marchas de procissão. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1998.
BANDA TEODORO DE FARIA. Músicas de Festividades de São João Del –Rei. Universidade de S.
João Del-Rei, 2003.
BENEDITO, Celso José Rodrigues. “Banda de música Teodoro de Faria. Perfil de uma banda civil
brasileira através de uma abordagem histórica, social e musical de seu papel na comunidade”.
São Paulo: Universidade de São Paulo, Escola de comunicação e Artes, 2005. Dissertação de
Mestrado.
CARDOSO, Lindembergue. Causos de músico. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia,
1994.
CISLAGHI, Mauro César. Concepções de educação Musical no Projeto de Bandas e Fanfarras
deSão José – SC. Três Estudos de Caso.
COSTA, Luiz Fernando Navarro. Transmissão de saberes musicais na banda 12 de dezembro.
Tese de Doutorado. J. Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2005.
DANTAS, Fred. Bandas de música, uma boa idéia. Salvador: Fundação Cultural do Estado da
Bahia, 1988.
---Exercícios diários com o instrumento e leituras complementares. Salvador, Casa das
Filarmônicas, 2005
DANTAS, Oscarlina. Salvador, 1984. “A vida musical em Itiúba”. Depoimento manuscrito em
mãos de Frederico Dantas.
DYRSON, George. The Composer and the Military Band . Music & Letters, Vol. 2, No. 1 (Jan.,
1921), pp. 58-66. London: Oxford University Press
GIARDINI, Mônica: “A Banda Sinfônica Jovem (Juvenil) do Estado de São Paulo, sua
organização, trajetória e importância na formação de instrumentistas de sopros e de
percussão”. USP, 2005. Dissertação sob a orientação do Prof. Dr. Sérgio Cascapera.
GROUT, Donald Jay and PALISCA, Claude. V. A History of Western Music. 4a. ed. New York:
Norton, 1988.
COSTA, Luiz Fernando Navarro. Transmissão de saberes musicais na banda 12 de dezembro.
Tese de Doutorado. J. Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2005.
HERDMAN, T.W. De Massi. “The Dearth of Music for Military Band”. The Musical Times,
vol 68 n. 1009 pag 256-7. JSTOR Arts & Sciences III collection, 1927
HIND, Harold C. and BAINES, Anthony. “Military Band” in Stanley Sadie, ed. The New Grove
Dictionary of Music and Musicians.V. 14. London: Macmillan, 1988.
MÔNICA, Laura Della. História da banda de música da Polícia Militar do Estado de São Paulo. 2.
ed. São Paulo: Ed. do Autor, 1975.
NÓBREGA, Turpim. A Música e eu. Paulo Afonso, Bahia. Galcom Comunicações, 2007.
PARANHOS, José (org.). Filarmônica Terpsícore Popular, sua vida, sua história. Maragogipe,
Bahia: [s.n.] 1975.
PEREIRA, José Antônio. A banda de música: retratos sonoros brasileiros. 1999. 220 f.
Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em Artes, Universidade Estadual de
Paulista, São Paulo,
1999.
REIS, Dalmo da Trindade. Bandas de Música, Fanfarras e Bandas Marciais. Rio de Janeiro:
Eulenstein Música, 1962.
SAMPAIO, Dr. Theodoro. O Rio de São Francisco e a Chapada Diamantina (1879-80). Salvador;
EGBA, 1998. Facsímile do original, Escolas Profissionais Salesianas, 1906
SCHWEBEL, Host Karl. Bandas, filarmônicas e mestres da Bahia. Salvador: Centro de Estudos
Baianos, 1987.
SOCIEDADE Filarmônica Minerva, 92 anos de história. Salvador: Secretaria da Industria e
Turismo, 1998.
Anexos
Anexo 1 – texto de Jorge Luís de Abreu, procurando recuperar memória do
compositor e regente de bandas Jorge Dias de Abreu:
Estimado Maestro Fred Dantas,
De acordo com o que combinamos em 31-05-2011 quando estive em sua residência a
fim de levantar informações possíveis sobre a vida musical do meu avô, o maestro de
filarmônica Jorge Dias de Abreu, que atuou por volta de 1900 – 1918 ou 1920 a frente
da Banda Filarmônica do vilarejo de Barracão, hoje Rio Real, aqui no Estado da Bahia,
informo-lhe o que vem a seguir para uma descrição que possa substituir, de alguma
maneira, dados relevantes que proporcionem a localização de alguma referência.
Não conheci o meu avô, pois o mesmo falecera em 1927, muito antes do meu
nascimento em 1955, contudo pelas conversas do meu pai aprendi a vê-lo e senti-lo
como presente. O meu pai, Milton Dias de Abreu também teve com o maestro um
curto convívio de mais ou menos sete anos, mas lembrava-se de fatos importantes que
presenciou e posteriormente às conversas citando os feitos do meu avô era constante
entre a sua mãe, (minha avó) e os seus seis irmãos mais velhos.
Desde pequeno eu tenho tendência para a música. Aprendi a executar alguns
instrumentos de maneira leiga (de ouvido) e sempre estive familiarizado com ela. Hoje
faço parte do Coro da ALBA –Associação Lírica da Bahia, sob o comando do maestro
Pino Onis, onde já conto no currículo óperas como La Traviata (Verdi), Nona Sinfonia
(Beethoven) e O Guarani (Carlos Gomes), esta última cujas récitas ocorreram em abril /
maio do corrente ano.O meu pai Milton ao ver-me tocando alguma coisa no violão
dizia: “Jorginho puxou a papai!”e daí descortinava as histórias, às vezes algumas que
sequer presenciou, contudo possuía o conhecimento pela transmissão da família, pelo
comentário dos irmãos.
Por exemplo, contava ele: “Papai regia a Banda Filarmônica e nas comemorações ele
era de tão grande importância que o meu irmão Flávio (Vivino) - o apelido eu deduzo
ser em função da Festa do Divino ocorrida naquela região e em Sergipe muito afamada
e o V de Vivino deve ser a maneira infantil que o meu tio chamava Divino-, ia sentado
em um carneiro alvo, desfilando até o coreto do vilarejo, na praça principal onde
ocorreria a festa musical, a disputa de bandas etc. Tratava-se do filho mais velho do
maestro entre os seis irmãos, Rosalvina, Almerinda Quininha, Abelardo e Osvaldo
(Vavá) os meus queridos tios.
Outro comentário que fazia constantemente o meu pai era o de que o maestro havia
deixado um baú cheio de músicas escritas por ele e que da maioria não teve mais
conhecimento e quer algumas foram usadas para fazer “periquitos” para brincar,
mesmo por ele que não entendia do que se tratava.
Meu pai falava dos dobrados, das marchas e das competições acirradas entre as
bandas filarmônicas e também falava do prestígio que gozava o maestro Jorge e a sua
família pelo seu desempenho na música.
Procurei fazer o resgate, contudo sabemos da dificuldade com relação à época. 1900, a
região era atrasado, interior brabo, tudo muito difícil.As fotografias não eram toa
simples e comuns como hoje; os registros em cartórios não eram para todos e as
informações se perdem ao longo do tempo.O material que procurei consultar era
muito pequeno e na verdade após a iniciativa de D..Pedro de instituir as bandas deve
ter havido uma quantidade muito grande de pessoas envolvidas nesta atividade o que
rendeu notícias somente dos mais afamados.Tentei o contato com a Filarmônica atual ,
mas não é a mesma daquela época.Trata-sede uma banda da contemporaneidade,
mais ou menos 1980; desconhecem a história.Intento consultar a Paróquia pois lá
deve haver algum registro, batismo, nascimento referente ao maestro. O meu pai, nos
anos 70 foi até lá e conseguiu uma foto do maestro, mas não sei do seu paradeiro e o
meu pai é falecido desde 2003.
Assim, apelo ao maestro Fred, conhecedor da história das filarmônicas (como já tive o
prazer de ler o seu documentário) a me ajudar com a sua experiência no sentido da
possibilidade de resgate desta passagem do meu avô Jorge e sua contribuição na
música através da filarmônica.
Certo de que poderemos direcionar esta pesquisa, espero conseguir este resgate que
para mim além de corresponder à música, a sua informação, a sua história, me toca o
coração pelo resgate familiar.
Agradeço ao amigo qualquer intervenção que possa ser feita e coloco-me ao inteiro
dispor para auxiliá-lo neste intento.
Cordialmente,
Jorge Luís de Abreu
Anexo 2 – texto do médico Carlos Estevam Moura Dórea sobre o seu avô, Estevam Moura,
um dos mais executados compositores de dobrados do Brasil.
ESTEVAM PEDREIRA DE MOURA
por Carlos Estevam Moura Dórea
Estevam Pedreira de Moura, que se tornou mais conhecido como Estevam Moura,
representou, ao seu tempo, uma importante referência na música de bandas filarmônicas na Bahia.
Isto o tornou, posteriormente, também bastante conhecido nacionalmente como assim atesta a
presença de suas composições ainda hoje interpretadas em todos os lugares do Brasil onde ainda
este tipo de grupo musical sobrevive, inclusive entre as bandas militares.
Indiscutível é também o respeito e os rasgados elogios que músicos e regentes destas
formações musicais fazem da qualidade e sofisticação do seu trabalho. Vale lembrar que em 1978,
por ocasião de um concurso nacional de bandas filarmônicas promovido pela Rede Globo de
Televisão, transmitido em rede para todo o Brasil, com a participação de grupos musicais de várias
regiões do país, a Bahia se fez presente com destaque através de brilhantes apresentações. Entre
elas esteve presente a Sociedade Filarmônica 25 de Março, de Feira de Santana, indiscutivelmente
a melhor do estado naquela época, interpretando composições de Estevam Moura, que veio a
obter o segundo lugar na classificação final.
Esta posição não agradou, assim como gerou protestos de muitos críticos e outros especialistas na
área, que consideraram as apresentações desta banda, assim como o repertório escolhido, a mais
capacitada para angariar o primeiro lugar. A mesa comentadora e julgadora foi composta de
renomados e respeitados maestros brasileiros, como Edino Krieger, Marlos Nobre, Isaac
Karabithevsky e Julio Medaglia. Ao final, num emocionado discurso, o maestro Marlos Nobre
comentou e elogiou as composições de Estevam, assim como lamentou a sua morte precoce e a
carência de um melhor conhecimento e valorização do seu trabalho.
Na ocasião foi lançado um LP com as bandas finalistas. De Estevam Moura, com a
filarmônica 25 de Março, foi gravado o dobrado Allah, um dos mais belos e bem elaborados do
compositor. Esta mesma banda já se apresentou no Rio de Janeiro, nos anos quarenta, inclusive na
Rádio Nacional e provavelmente na Rádio Ministério da Educação, regida por Estevam e
interpretando algumas de suas composições. Comenta-se inclusive, por aqueles que vivenciaram
aquele tempo, que Estevam foi convidado a se fixar naquela cidade onde ele teria melhores
oportunidades de fazer carreira, inclusive na música popular, o que ele não aceitou, não se sabe
exatamente o porquê.
É bom lembrar que Estevam Moura não compôs apenas dobrado, existindo no seu
acervo também música sacra, inclusive com muitas ave-marias, te deums, etc., assim como marchas
carnavalescas, sambas, foxes e fantasias, evidenciando assim o seu estilo eclético. Entretanto foi
nas marchas e dobrados que ele mais se destacou e por onde é mais conhecido.
Estevam Moura nasceu no dia 3 de agosto de 1907 no arraial de Santo Estevão do Jacuipe,
hoje o próspero município de Santo Estevão. Era o mais velho dos cinco filhos do comerciante João
Pedreira Moura e Maria Minervina Carvalho Moura, mais conhecida como Dona Vida, que exercia o
ofício de costureira com o qual sustentou e educou estes filhos, visto que o seu marido faleceu
precocemente.
Segundo testemunho dos seus irmãos ainda vivos, Estevam desde criança já demonstrava
forte inclinação para a música. Sua atividade lúdica mais comum era tentar (e conseguir) tocar
flautas, fossem estas rudimentares de bambu, taquara ou até mesmo de galhos de mamoeiro, por
ele mesmo fabricadas, inclusive as conhecidas e até hoje vendidas nas feira-livres das cidades do
sertão nordestino, ocarinas, feitas de cerâmica de barro, de provável origem indígena com
influência portuguesa. Experimentalismo musical nato, que lhe valeu no futuro, a sua forte
característica autodidata. Os zabumbeiros, como eram conhecidas as bandas de pífanos e os
barbeiros, bandinhas sem muita organização harmônica, quando desfilavam pelas ruas da vila,
contavam sempre com a sua presença, seguindo e acompanhando o ritmo. Aos sete anos ingressou
na escola pública local onde se destacou pela sua inteligência e perspicácia, além de uma notável
vocação para a carreira musical, sensibilizando a sua professora, D. Francisca Simões, que lhe
ensinou as primeiras notas musicais, obteve da sua mãe o consentimento para que este fosse
incluído na Filarmônica 26 de Dezembro que estava em formação e da qual ele veio futuramente a
ser o regente. Nesta ocasião ele compôs a sua primeira obra: Dobrado Alicio Teixeira. Sabe-se que,
na realidade, Estevam aprendeu música mais como autodidata do que através de lições regulares
de teoria musical.
Aos 18 anos Estevam deixava a sua terra natal transferindo-se para a florescente vila de
Bonfim de Feira, convidado pelo Sr. Godofredo Leite, importante pecuarista da região, e sob o
apoio do Vigário Lacerda, pároco e uma espécie de mecenas de atividades culturais e recreativas
desta vila, para reger a recém-formada Filarmônica Minerva. Em Bonfim, Estevam viveu durante
sete anos entremeados com bons e maus momentos, tentando heroicamente sobreviver da
música. Ali fez várias composições, dentre elas o dobrado Verde e Branco, numa fase de grande
inspiração e de decepções, pois foi obrigado a vender várias composições a fim de sobreviver.
Foi também em Bonfim que ele conheceu a bela e angelical Regina Bastos de Carvalho,
filha de tradicional família local, por quem se apaixonou. Regina se entregou a este amor,
enfrentando os seus pais e irmãos que radicalmente se opunham a este romance. Não admitiam
que ela fosse namorar um músico pobre e mulato. As coisas chegaram a tal nível, e diante da
insistência dos dois em manterem este romance, que foi necessário que o seu irmão mais velho e
quem praticamente ditava as regras na família, providenciasse para ela um exílio temporário numa
fazenda de cacau no sul da Bahia, pertencente à família de sua esposa, e quase que uma não-oficial
prisão domiciliar para Estevam, fato possível numa terra sem lei na época. Estevam ficou durante
algum tempo imobilizado, até que um dia um seu cunhado, num ato destemido, montado num
cavalo, resgatou-o desta incômoda situação, levando-o de volta a Sto. Estevão. Após
aproximadamente seis meses, Regina retorna para Bonfim e sua família estava certa de que o
romance tinha sido esquecido. Engano deles. Numa madrugada, montado a cavalo e num arroubo
próprio de romance folhetinesco, Estevam rapta a sua amada, conduzindo-a a um esconderijo num
sitio de um amigo. Lá permaneceram até que a desenfreada perseguição impetrada por seus
irmãos e mal-humorados auxiliares desistissem da empreitada. Após a poeira baixar, os fugitivos
casaram-se em Sto. Estevão em 1931 e as dificuldades ainda estavam começando.
No ano seguinte nascia a sua primeira filha, Olga, justamente na época da grande sêca
de 1932, talvez a maior e mais dolorosa que o nordeste já conheceu. Milhares de pessoas
pereceram de inanição. O campo de trabalho deixou de existir e Estevam, pela segunda e última
vez deixou sua terra, desta feita sobrecarregado pelos encargos de família. Regina tinha sido
deserdada pelos seus familiares e, posteriormente, através de manobras escusas, ficou destituída
dos direitos de herança. Em busca de zonas poupadas pelo rigor da longa estiagem, Estevam foi
reger, ainda insistindo em viver da música, a banda filarmônica da cidade de Afonso Pena, hoje
Conceição do Almeida, e lá permaneceram até que puderam se transferir para Feira de Santana
onde lá se estabeleceram em definitivo.
Estevam Moura, um mulato alto, magro, de finas maneiras, sempre elegante com seus
ternos de tropical inglês ou de linho branco, chapéu tipo Panamá, pó-de-arroz no rosto, se tornou
figura constante e popular nas ruas e pontos freqüentados pela sociedade feirense da época, como
o Bar e Café Sueto, na rua Direita, hoje rua Cons. Franco, vizinho ao armazém e casa de ferragens
de João Marinho Falcão. Na década de 30 Feira de Santana prosperava com a famosa feira livre que
originou o seu nome, a feira de gado e um comércio em ascensão, além do seu melhor período de
efervescência social e cultural. Os eventos se sucediam, tais como as festas juninas, a festa de Sra.
Sant’Anna padroeira da cidade e, a partir de 1937, a famosa Micareta, criada nesta cidade e
posteriormente imitada, ainda na época chamada de Micarème. Os bailes aconteciam
principalmente na Sociedade Filarmônica Vitória. Para todas estas efemérides Estevam compunha
músicas alusivas e se tornou presença essencial e contumaz. Fundou grêmios recreativos,
sociedades carnavalescas, ou melhor, “micaretescas” como As Melindrosas. Nesta época ele já era
regente da Sociedade Filarmônica 25 de Março e através desta atividade ele pôde solidificar muitas
amizades na cidade, inclusive com outros músicos e compositores locais como maestro Santos,
Heráclito de Carvalho, Gerson Simões este último o seu grande e fiel amigo. Não era dado a vícios.
Nunca bebeu, nunca fumou, entretanto era conhecido como sedutor e mulherengo.
Por conceituado que era socialmente e no meio musical, Estevam foi convidado a ser
professor de música e canto orfeônico no Colégio Santanópolis, do grande educador Áureo Filho, na
época a melhor escola da região. Obteve também um emprego na prefeitura da cidade, na Guarda
Municipal. Estas três atividades paralelas garantiram a sua sobrevivência, modesta, entretanto sem
sobressaltos, até quando a sua frágil saúde lhe permitiu. Era portador de leve gagueira, o que não o
impedia de ser afinado quando vez por outra arriscava cantar. Aprendeu a tocar vários
instrumentos, sendo bastante hábil no clarinete e saxofone, porém foi na flauta que ele se
especializou e sendo este o seu instrumento preferido.
Estevam era um perfeccionista em tudo a que se dedicava, desde as suas composições, no
trato com os liderados da banda que ele regia os quais tinham que ser rigorosamente pontuais aos
ensaios e cuidadosos nos uniformes de gala para as retretas e desfiles. Neste aspecto sabe-se que
ele próprio criava e desenhava estes uniformes que tinham que estar sempre impecáveis. Este
mesmo rigor ele impunha aos seus alunos no Colégio Santanópolis os quais estava sempre a
conclamar que valorizassem a música, e não admitia que desdenhassem de sua matéria. Hoje estes
mesmos alunos se recordam deste mestre com carinho.
Durante muitos anos, e até a sua morte, Estevam Moura trocou correspondência,
regularmente, com o respeitado e famoso maestro Heitor Villa-Lobos. Era motivo de orgulho para
Estevam o reconhecimento e elogios vindos daquele que foi o mais conhecido e importante
compositor erudito brasileiro. Trocavam idéias, aceitava sugestões, assim como durante muito
tempo acompanharam mutuamente a evolução de suas carreiras musicais. Por descuido, omissão
ou por não se valorizar adequadamente na época o valor histórico desta correspondência, hoje se
desconhece, infelizmente, o paradeiro destas cartas.
Numa época de pouco acesso a informações que vinham de fora, Estevam tinha o rádio
como aliado. Quase que diariamente sintonizava a Rádio Ministério da Educação, da então capital
federal Rio de Janeiro, quando então tinha a oportunidade de ouvir e aprender sobre música
erudita, sua grande paixão.
Um fato curioso marcou a carreira de Estevam Moura. Durante os anos quarenta, no
período da II Grande Guerra Mundial, havia grande deficiência de metal disponível para a
fabricação de instrumentos de sopro. Ilustrativo disto é o fato de que nos Estados Unidos da
América, conceituados músicos de jazz, como o saxofonista Charlie Parker, foram obrigados a
utilizar instrumentos de plástico. No interior da Bahia, entretanto, não se tinha acesso a estes
expedientes, sendo necessário, portanto, o cuidado e manutenção dos instrumentos de que se
dispunha. Mas como substituir as palhetas dos saxofones e clarinetes? Estevam com a sua
criatividade e capacidade de improvisação, idealizou fabricar, ele mesmo, de forma artesanal,
paletas de bambu envernizadas. De tão perfeitas e refinadas, cuidadosamente testadas uma a uma,
resultaram numa sonoridade tão preciosa, que foi necessário que ele mantivesse esta atividade
atendendo a pedidos que chegavam de todos os lugares do país. Daí surgiu as Palhetas Estevam
Moura, vendidas por encomenda e em lojas de instrumentos musicais, cuidadosamente embaladas
em pequenos envelopes timbrados. Mesmo após a sua morte as encomendas ainda chegavam.
Embora dominasse os instrumentos de sopro, Estevam não escondia o seu desejo de
aprender piano e, foi uma coincidência feliz que lhe proporcionou a realização daquele sonho.
Regente da 25 de Março, ele foi residir na antiga rua Direita, em frente à Filarmônica Vitória e
exatamente ao lado de sua casa morava a não menos talentosa Georgina Erisman, compositora e
pianista, inclusive foi quem compôs o hino de Feira de Santana, da qual tornou-se grande amigo e
aluno, chegando a compor em parceria com a mesma, o que lhe proporcionou a oportunidade de
ampliar seus conhecimentos musicais e sua cultura geral, embora como autodidata já possuía um
vasto cabedal de conhecimentos graças ao seu gosto pela boa leitura. Também da sua biblioteca
hoje pouco se sabe do paradeiro.
A primeira composição de Estevam Moura foi o Dobrado Alicio Cerqueira, cujo título
demonstra o carinho do maestro para com os seus amigos, comportamento este que jamais se
alterou durante toda a sua existência, pois em Feira de Santana ele viria a dedicar outras
composições a pessoas da sua amizade, a exemplo das peças: Dobrad Arnold Silva, Dobrado
Otaviano Teixeira, Dobrado Irene Silva esta última em homenagem à esposa do seu amigo Joaltino
Silva. O dobrado Tusca era dedicado ao seu filho Ernani que tinha este apelido (Estevam só teve
dois filhos, Olga e Ernani). Acredita-se que verdadeiro nome de Tusca tenha sido uma homenagem
ao professor e maestro modernista brasileiro, Ernani Braga.
Outras composições famosas do maestro, além das já mencionadas, foram a marcha
Constelação, os dobrados Magnata, Presidente João Almeida, Allah, Vida e Morte, além de foxes
instrumentais como Reveillon, bastante executado nas festas de ano-novo, Sonho Azul e outras.
Compôs ainda o Hino do Congresso Eucarístico e muitas ave-marias.
Estevam viveu muitas alegrias, festejado como artista e respeitado como cidadão.
Padeceu, entretanto, durante anos, de uma doença que veio a vitimá-lo. Faleceu muito cedo, aos
quarenta e três anos de idade, em maio de 1951, vítima de um tumor no estômago. No leito,
sentindo a proximidade da morte, ele compôs o seu último dobrado, O Final.
(Feira de Santana, data)
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