PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Priscila Caneparo dos Anjos
Organizações Internacionais e Direitos Humanos Uma Análise dos Casos Brasileiros na Organização dos Estados Americanos
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2011
Priscila Caneparo dos Anjos
Organizações Internacionais e Direitos Humanos Uma Análise dos Casos Brasileiros na Organização dos Estados Americanos
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação
apresentada
à
Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial à obtenção do título de MESTRE
em Direito das Relações Econômicas
Internacionais, sob a orientação do Professor
Doutor Carlos Roberto Husek.
SÃO PAULO
2011
Banca Examinadora
_________________________________
_________________________________
_________________________________
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Carlos Roberto Husek, pela orientação precisa,
por sua consideração, paciência, amizade e permanente dinamismo na busca
pela consolidação do Direito Internacional.
Aos Prof. Vladmir Oliveira da Silveira, por compartilhar seu conhecimento
de maneira decisiva nessa etapa de minha vida e por me fazer crer na minha
capacidade.
Ao Prof. Wagner Menezes, por ter me introduzido a esse fascinante mundo
do Direito Internacional, pela amizade e por todo incentivo, concedido desde sempre.
À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialmente aos
colegas da Pós-Graduação de Direito das Relações Econômicas Internacionais,
pelo apoio e incentivo nessa importante etapa de aperfeiçoamento pessoal, teórico
e técnico.
Aos funcionários Rafael e Rui, pela paciência e prontidão para resolver
todos os meus problemas e sanar minhas dúvidas nessa etapa que aqui se encerra.
Aos colegas e professores do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu
em Direito Internacional, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pelas
constantes e proveitosas discussões para a consolidação e efetivação do Direito
Internacional.
Aos meus familiares – meus pais, minha avó e irmã –, que contribuem
diariamente, cada um a seu modo, para que eu aperfeiçoe todo o conhecimento
adquirido. Agradeço-lhes, também, pela bagagem cultural transmitida, por intermédio
do incentivo ao novo e ao diferente, fazendo-me crer que o estudo dignifica e
possibilita que cheguemos a lugares outrora considerados impossíveis.
Por fim, agradeço todos os demais que, gentilmente, contribuíram para
a realização deste trabalho.
[...] Tal vez sería deseable emprender un proceso
amplio de reflexión compartida, en el que
concurrieran --cada quien desde su propia
perspectiva-- los órganos de la OEA, la Corte y la
Comisión, los Estados, el Instituto Interamericano
de Derechos Humanos, instituciones y grupos de la
sociedad civil, observadores externos y
académicos. [...]
Sergio García Ramírez
RESUMO
ANJOS, Priscila Caneparo dos. Organizações internacionais e direitos humanos:
uma análise dos casos brasileiros na organização dos Estados Americanos.
O presente trabalho tem por objetivo o estudo dos principais casos de violações de
direitos humanos, envolvendo o Estado brasileiro, levados ao âmbito do sistema
interamericano de proteção de direitos humanos. Em última análise, destina-se esse
estudo à investigação das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos
nas referidas questões. Para a correta compreensão do tema, debateu-se sobre a
necessidade do exame de alguns institutos de Direito Internacional, especificamente
das organizações internacionais e dos direitos humanos. Nesse sentido, no que tange
às organizações internacionais, examinou-se seus principais pontos, englobando seu
desenrolar histórico, seu conceito, suas modificações de acordo com os reclames da
sociedade e, por fim, sua correlação para com a proteção e efetivação dos direitos
humanos. No que tange a esses últimos, viu-se a necessidade de discorrer sobre
suas exponenciais questões, envolvendo seu desenvolvimento histórico, suas
determinações conceituais, a necessidade de uma proteção a nível internacional e,
em concordância com essa, seus sistemas de proteção, tanto universais (presente
no quadro das Organizações das Nações Unidas), como regionais (sistema europeu,
africano, árabe e interamericano). Por ali se encontrarem as questões cruciais do
estudo, o sistema de proteção de maior valia fora o interamericano, consagrado na
Organização dos Estados Americanos, mais especificamente em sua Comissão e
Corte Interamericana de Direitos Humanos. A jurisdicionalização do referido sistema
encontra-se materializada em sua Corte, sendo que, para que um caso de violação
chegue ao seu conhecimento, necessário se faz o crivo anterior da Comissão.
Assim, de acordo com a pesquisa, entendeu-se ter o Brasil um papel crucial no
desenvolvimento do sistema interamericano, mas, paradoxalmente, constitui-se
como um grande violador dos direitos humanos. O Estado brasileiro, nesse sentido,
fora demandado por cinco vezes na Corte Interamericana – nos casos Damião
Ximenes Lopes (Caso 12.237); Gilson Nogueira de Carvalho (Caso 12.058); Arley
José Escher e Outros (Caso 12.353); Sétimo Garibaldi (Caso 12.478); e Julia Gomes
Lund e Outros (Caso 11.552) -, tendo sido condenado em todos eles, à exceção do
caso Gilson Nogueira de Carvalho. Chegou-se à conclusão que, na internalização e
cumprimento das referidas sentenças, o Brasil não se demonstrou um fervoroso
defensor e protetor dos direitos humanos, pois veio cumprir apenas parte dos
dispositivos das referidas sentenças. Finalmente, pôde-se concluir, com esse
trabalho, que o sistema interamericano, obstante seu caráter de extrema importância
na proteção dos direitos humanos, necessita aprimorar-se para que a efetivação se
torne uma realidade nos Estados que dele fazem parte e, no caso brasileiro, deverá
o Brasil tratar suas condenações com mais seriedade para que, de fato, venha a ser
um Estado comprometido não apenas ao sistema interamericano, mas igualmente à
proteção e efetivação dos direitos humanos de seus cidadãos.
Palavras-chave: Organizações internacionais. Direitos humanos. Sistema interamericano
de proteção dos direitos humanos. Casos brasileiros na Corte Interamericana de
Direitos Humanos.
ABSTRACT
ANJOS, Priscila Caneparo dos. International organizations and human rights: an
analysis of brazilian cases in the organization of American States.
This research aims to study the main cases of human rights violations involving the
Brazilian state, driven to within the American system of protection of human rights.
Ultimately, this study intended to investigate the decisions of the Inter-American
Court of Human Rights on these issues. For the correct understanding of the issue, it
was discussed the need to analyze some institutes of International Law, specifically
international organizations and human rights. Accordingly, with respect to international
organizations, the study examined its main points, covering its development history,
its concept, its modifications according to the claims of society and, finally, its
correlation to the protection and realization of human rights. Regarding the latter, the
research needed to elaborate on their exponential issues involving its historical
development, its conceptual determinations, the need for international protection and,
in agreement with this, their systems of protection, both universal (present within the
United Nations Organization) and regional (European, African, Arab and interAmerican). Because of the main points of the study, the protection system of greater
value was the inter-American system, enshrined in the Organization of American
States, specifically in their Commission and Inter-American Court of Human Rights.
The jurisdictionalization of this system is embodied in his Court, and, for a case of
violation come to its attention, the Commission needs to understand that the Court’s
decision is essential. Thus, according to the survey, it was considered Brazil has a
crucial role in the development of inter-American system, but, paradoxically, it is a
major violator of human rights. The Brazilian state, in this sense, was sued by five
times in the Inter-American Court - Damião Ximenes Lopes (Case 12237); Gilson
Nogueira de Carvalho (Case 12058); Arley Joseph Escher and others (Case 12353),
Garibaldi (Case 12478), and Julia Gomes Lund and others (Case 11552). Just in
case of Gilson Nogueira de Carvalho it has not demonstrated that Brazil violated
human rights.The conclusion was that Brazil was not a strong supporter and
protector of human rights in the internalization and enforcement of these sentences.
Brazil has only fulfilled part of the sentences. Finally, the study concluded that the
inter-American system needs to enhance, despite its character of extreme importance
in the protection of human rights. In the Brazilian case, it should treat their sentences
more seriously to become a committed state not only to inter-American system, but
also to the protection and realization of human rights of its citizens.
Keywords: International organizations. Human rights. Inter-american human rights
system. Brazilian cases in the Inter-American Court of Human Rights.
LISTA DE SIGLAS
CADH
- Pacto de São José da Costa Rica
CAT
- Comitê contra a Tortura
CCPR
- Comitê de Direitos Humanos
CDH
- Comissão de Direitos Humanos
CDI
- Comissão de Direito Internacional
CEDAW
- Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher
CEMDP
- Comissão Especial sobre Mortos de Desaparecidos Políticos
CERD
- Comitê para a Eliminação de Discriminação Racial
CESCR
- Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
CIDH
- Corte Interamericana de Direitos Humanos
CIJ
- Corte Internacional de Justiça
CJG
- Centro de Justiça Global
CMW
- Comitê sobre Trabalhadores Migrantes
COE
- Conselho da Europa
CPIJ
- Corte Permanente Internacional de Justiça
CPT
- Comissão Pastoral da Terra
CRC
- Comitê dos Direitos das Crianças
CRPD
- Comitê sobre os Direitos dos Deficientes
DAW
- Divisão para o Status da Mulher
DESA
- Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais
DUDH
- Declaração Universal dos Direitos Humanos
ECOSOC - Conselho Econômico e Social das Nações Únicas
FAO
- Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação
GRIC
- Grupo de Revisão da Implementação de Cúpulas
IASC
- Comitê Permanente entre Organismos
IEVE
- Instituto da Violência do Estado
INCRA
- Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MEM
- Mecanismo de Avaliação Multilateral
MESECVI - Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará
MESICIC - Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção
Interamericana Contra Corrupção
MST
- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
OAB
- Ordem dos Advogados do Brasil
OCHA
- Escritório das Nações Unidas de Assistência Humanitária
OEA
- Organização dos Estados Americanos
OI
- Organização Internacional
OIT
- Organização Internacional do Trabalho
OMS
- Organização Mundial da Saúde
ONG
- Organização não governamental
ONU
- Organização das Nações Unidas
OSAGI
- Escritório da Assessoria Especial em Questões de Gênero e Melhoria
da Mulher
OUA
- Organização da Unidade Africanos
PCB
- Partido Comunista Brasileiro
PCdoB
- Partido Comunista do Brasil
PMDs
- Países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos
RENAAP - Rede Nacional de Advogados Autônomos Populares
SISCA
- Sistema de Acompanhamento das Cúpulas das Américas
STF
- Supremo Tribunal Federal
STJ
- Superior Tribunal de Justiça
SUS
- Sistema Único de Saúde
TELEPAR - Empresa de Telecomunicações do Paraná
TPI
- Tribunal Penal Internacional
UA
- União Africana
UNAIDS - Programa conjunto das Nações Unidas para HIV/Aids
UNDP
- Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura
UNFPA
- Fundo de População das Nações Unidas
UNHCR
- Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
UNICEF
- Fundo das Nações Unidas para a Infância
UNIFEM - Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher
URSS
- União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .....................................................................................................
13
CAPÍTULO 1 - ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS ........................................
17
1
HISTÓRICO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS.............................
17
2
CONCEITO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS..............................
26
3
A CRIAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES
INTERNACIONAIS FRENTE À SOBERANIA ESTATAL .............................
35
3.1 AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS E A RESPONSABILIDADE
INTERNACIONAL........................................................................................
40
3.2 AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS INTERGOVERNAMENTAIS
E SUPRANACIONAIS .................................................................................
43
O PROCESSO DECISÓRIO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS ...
45
4.1 OS ÓRGÃOS JURISDICIONAIS INTERNACIONAIS ..................................
51
4.2 SENTENÇAS INTERNACIONAIS X SENTENÇAS ESTRANGEIRAS ........
52
CAPÍTULO 2 - DIREITOS HUMANOS ................................................................
57
1
CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS.........................................................
57
2
EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS .........................
62
4
2.1 OS DIREITOS HUMANOS NA ANTIGUIDADE - MOMENTOS PRÉAXIAL E AXIAL ............................................................................................
63
2.2 OS DIREITOS HUMANOS NA IDADE MÉDIA ............................................
66
2.3 OS DIREITOS HUMANOS NA IDADE MODERNA .....................................
69
2.4 OS DIREITOS HUMANOS NA IDADE CONTEMPORÂNEA.......................
74
2.5 O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS...................................................................................................
78
2.5.1 Primeiro momento do processo de internacionalização – da metade
do século XIX à 2.a Guerra Mundial...........................................................
78
2.5.2 O processo de internacionalização dos direitos humanos no pós-guerra......
80
2.5.3 Globalização e direitos humanos...............................................................
87
3
A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITO HUMANOS.....................
89
3.1 A PROTEÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS ..........................
97
3.1.1 Formação e evolução do sistema de proteção universal ...........................
98
3.1.2 Mecanismos convencionais de proteção dos direitos humanos ................ 102
3.1.3 Mecanismos não-convencionais de proteção dos direitos humanos ......... 104
3.1.3.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos ...................................... 104
3.1.3.2 A Comissão de Direitos Humanos .......................................................... 105
3.1.3.3 O Conselho de Direitos Humanos........................................................... 109
3.1.3.4 A Subcomissão para a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos ... 111
3.1.3.5 O Comitê Consultivo de Direitos Humanos............................................. 112
3.1.4 Outros institutos da Organização das Nações Unidas envolvidos na
proteção dos direitos humanos.................................................................. 112
3.1.4.1 A Assembleia Geral ................................................................................ 113
3.1.4.2 O Conselho Econômico e Social (ECOSOC).......................................... 114
3.1.4.3 A Corte Internacional de Justiça ............................................................. 115
3.1.4.4 Agências e parceiros .............................................................................. 116
3.2 A PROTEÇÃO REGIONAL DOS DIREITOS HUMANOS ............................ 116
3.2.1 O Sistema Regional Europeu .................................................................... 118
3.2.1.1 O Conselho da Europa ........................................................................... 118
3.2.1.2 A Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950....................... 120
3.2.1.3 O Tribunal Europeu de Direitos Humanos .............................................. 123
3.2.2 O Sistema Regional Africano..................................................................... 126
3.2.2.1 Formação e evolução ............................................................................. 127
3.2.2.2 Principais objetivos da União Africana.................................................... 129
3.2.2.3 Principais órgãos do Sistema Africano ................................................... 130
3.2.2.4 Principais problemas na efetividade dos direitos humanos na África ..... 131
3.2.3 O Sistema Regional Árabe ........................................................................ 132
4
O SISTEMA REGIONAL INTERAMERICANO.............................................. 133
4.1 FORMAÇÃO E EVOLUÇÃO ........................................................................ 134
4.2 A CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS (PACTO
DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA - CADH) E SEU PROTOCOLO
ADICIONAL (PROTOCOLO DE SÃO SALVADOR) .................................... 137
4.3 IMPORTÂNCIA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS....... 142
4.4 AS OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS DOS ESTADOS MEMBROS DA
OEA EM MATÉRIA DE DIREITOS HUMANOS ........................................... 143
4.5 PRINCIPAIS ÓRGÃOS DO SISTEMA INTERAMERICANO ....................... 144
4.5.1 Comissão Interamericana de Direitos Humanos........................................ 145
4.5.2 A Corte Interamericana de Direitos Humanos ........................................... 151
CAPÍTULO 3 - O BRASIL NA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS
AMERICANOS: PRINCIPAIS CASOS ENVOLVENDO OS
DIREITOS HUMANOS................................................................ 158
1
O BRASIL NO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS................................................................................... 158
2
CASO DAMIÃO XIMENES LOPES – CASO 12.237..................................... 162
2.1 HISTÓRICO DO CASO ............................................................................... 162
2.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS................................................................................................... 165
2.3 A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS................................................................................................... 167
2.4 O CUMPRIMENTO DA SENTENÇA INTERNACIONAL PELO BRASIL ..... 169
3
CASO GILSON NOGUEIRA DE CARVALHO – CASO 12.058 .................... 171
3.1 HISTÓRICO DO CASO ............................................................................... 171
3.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS................................................................................................... 175
3.3 O CASO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS ....... 177
3.4 REPERCUSSÃO DA DECISÃO NO BRASIL .............................................. 178
4
CASO ARLEY JOSÉ ESCHER E OUTROS – CASO 12.353 ....................... 179
4.1 HISTÓRICO DO CASO ............................................................................... 180
4.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS................................................................................................... 184
4.3 A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS................................................................................................... 187
4.4 O CUMPRIMENTO DA SENTENÇA INTERNACIONAL PELO BRASIL ..... 190
5
CASO SÉTIMO GARIBALDI – CASO 12.478............................................... 191
5.1 HISTÓRICO DO CASO ............................................................................... 192
5.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS................................................................................................... 195
5.3 A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS................................................................................................... 197
5.4 O CUMPRIMENTO DA SENTENÇA INTERNACIONAL PELO BRASIL ..... 200
6
CASO JULIA GOMES LUND E OUTROS (GUERRILHA DO
ARAGUAIA) – CASO 11.552 ........................................................................ 201
6.1 HISTÓRICO DO CASO ............................................................................... 202
6.1.1 A Lei de Anistia (Lei n.o 6.683/79) ............................................................. 208
6.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS................................................................................................... 212
6.3 O CASO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS ....... 218
6.4 REPERCUSSÕES DA SENTENÇA INTERNACIONAL EM SOLOS
BRASILEIROS ............................................................................................. 224
7
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 227
CONCLUSÃO ...................................................................................................... 232
REFERÊNCIAS.................................................................................................... 242
ANEXO A - INVESTIGAÇÃO IN LOCO – COMISSÃO INTERAMERICANA
DE DIREITOS HUMANOS - OUT 1961-JAN 2010........................... 252
ANEXO B - CARTOGRAMA DE LOCALIZAÇÃO DA GUERRILHA DO
ARAGUAIA....................................................................................... 255
13
INTRODUÇÃO
O Direito Internacional que hoje se conhece traduz a complexidade,
particularidade e interdependência que a sociedade apresenta, uma vez que seus
conceitos e delimitações amplificam-se de acordo com as necessidades humanas.
Nesse sentido, torna-se impossível, quando se pretende a investigação de uma
realidade social fática, o exame isolado de determinados temas de Direito Internacional,
necessitando-se considerar as interligações que da situação advém, sob um prisma
de multidisciplinaridade.
Debate-se, então, que esse trabalho – focando os casos de violações de direitos
humanos, envolvendo o Estado brasileiro, na Organização dos Estados Americanos –
debruçou-se na iminência do estudo de alguns institutos, para que o aporte da estrutura
conceitual possibilitasse o encontro de delimitações, conclusões e possíveis soluções à
realidade supramencionada. Dois deles demonstram-se essenciais na busca pelo
real entendimento dessa pesquisa, quais sejam: as organizações internacionais e os
direitos humanos.
Visando, em última análise, à posição brasileira nas violações de direitos
humanos, frente à Organização dos Estados Americanos e sua resposta definitiva
(por intermédio de sua Corte), imprescindível se julga a avaliação das organizações
internacionais. Em decorrência, esse estudo tende a discutir alguns pontos primordiais
relacionados às organizações internacionais, que permitam entender suas particularidades
e sua interligação para com o objetivo final desse estudo.
Além dessa, seleciona-se, igualmente, o tema de direitos humanos. Uma vez
que o cerne dessa pesquisa repousa em um tipo específico de violações, os direitos
humanos abarcam quase que a totalidade de entendimentos que aqui deverão ser
desenvolvidos. Acredita-se, igualmente, que quando um estudo versa sobre Direito
Internacional Público – tal como este –, torna-se impossível não vir a tratar, em um
dado momento, sobre os direitos humanos.
Com efeito, ainda prevê-se a necessidade de avaliar a interligação entre ambos
os institutos, valorizando, de modo especial, os sistemas de proteção dos direitos
humanos e as responsabilizações internacionais dos Estados, decorrentes de suas
violações dos direitos humanos, materializadas nas sentenças internacionais.
14
Adentrando à investigação final que se pretende, qual seja, dos casos
brasileiros de violações dos direitos humanos levados ao conhecimento da Corte
Interamericana, imprescindível se demonstra um levantamento dos dados constantes,
no sistema interamericano, sobre a questão e, igualmente, a posição brasileira no
que tange ao cumprimento das determinações da Corte em plano interno.
Delimitados os pontos a serem tratados nesse estudo, expõe-se, brevemente,
sua importância, sendo que a pretensão de analisar as supracitadas questões,
acerca do Brasil e suas condenações em âmbito interamericano, adquire contornos
essenciais no debate do referido Estado ser, de fato, um real defensor dos direitos
humanos, a partir de sua posição no cumprimento de suas condenações nesse sistema.
Investiga-se, ainda, a real exigência na implementação de métodos para o
cumprimento das condenações brasileiras em campo interamericano, tendo em vista
que, reconhecida a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo
Brasil desde 1998, o aludido cumprimento, em solos internos, torna-se, ao Estado,
obrigação internacional. Discute-se a necessidade do exame das questões brasileiras
levadas a conhecimento da Corte, com o consequente debate crítico se de fato,
hoje, o Brasil tem cumprido com suas obrigações internacionais e, mais ainda, se
tem feito valer sua titulação de Estado Democrático de Direito.
Na prática, as situações brasileiras que aqui pretendem serem julgadas,
apontam, sobremaneira, ao entendimento de como o Estado brasileiro, quando
condenado, tem cumprido as determinações em âmbito interno. Avalia-se, ainda, se
esse cumprimento tem se demonstrado eficaz, estabelecendo, de acordo com os
dados levantados, formas de como deveria o Brasil ter se posicionado em cada um
dos casos finalizados pela Corte e se seria o momento de alterar sua legislação para
fazer cumprir, mais facilmente e rapidamente, suas obrigações internacionais.
Para isso, utilizar-se-á do exame das cinco queixas de violações1, levadas
ao conhecimento da Corte, contra o Estado brasileiro, contando com o suporte dos
relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da decisão da Corte
Interamericana, das repercussões dessa última em solos nacionais e das atitudes do
governo para a efetivação de suas disposições. Identificam-se algumas dificuldades
1
São elas: Damião Ximenes Lopes (Caso 12.237); Gilson Nogueira de Carvalho (Caso 12.058);
Arley José Escher e Outros (Caso 12.353); Sétimo Garibaldi (Caso 12.478); e Julia Gomes Lund e
Outros (Caso 11.552).
15
no acesso às atitudes governamentais, especialmente pela falta de publicidade
elucidativa sobre tais.
Para ser possível a delimitação de algumas conclusões no sentido de aprimorar
as ações brasileiras no quadro acima exposto, mostra-se latente a exigência de uma
releitura, em conjunto com seu arcabouço jurídico, das realidades política e social em
que o Brasil se encontra, tendo em mente que, quando condenado, o Estado brasileiro
obriga-se em alterar sua realidade em termos gerais, e não apenas um de seus aspectos.
Adentrando à escolha da metodologia e da delimitação do tema, sublinha-se
a proposta de julgar a interligação entre as organizações internacionais e os direitos
humanos na proteção e efetivação desses últimos em solos nacionais. De encontro
com tais alusões, essa dissertação desenvolve-se mediante três pontos de estudos,
quais sejam: (i) as organizações internacionais e suas particularidades; (ii) os direitos
humanos e todo seu arcabouço teórico; e (iii) a influência Brasileira no sistema
interamericano de proteção dos direitos humanos, a posição em suas demandas no
âmbito interamericano e os esforços em internalizar e efetivar suas condenações
advindas da Corte Interamericana.
Aborda-se, ainda, a utilização tanto do método dedutivo, como do indutivo
(quando possível). O método dedutivo – cuja lógica caminha do particular para o
geral, pesquisando-se diversas vezes algum fato e percebendo a repetição do
mesmo resultado, podendo ser suspeitado como verdadeiro – será o de maior valia,
pois se desenvolverá um raciocínio base, partindo da proteção internacional dos direitos
humanos (especificamente, do caso brasileiro no sistema interamericano), para
serem relacionados todos os outros pontos conexos ao entendimento de tal cerne
conceitual. Quando se demonstrar possível a utilização de procedimentos de
generalização das situações, então, paralelamente, operar-se-á com o método
indutivo – caminhando do geral para o particular, considerando que se um fenômeno
ocorre tal como vários os outros que acarretaram num mesmo resultado, então esse
terá o mesmo resultado já descrito.
Ainda, para embasar o acervo teórico dos temas pertinentes às organizações
internacionais e aos direitos humanos, utilizar-se-á legislação e doutrinas brasileiras,
além de doutrinas estrangeiras que tratam sobre o tema. Busca-se, de fato, o aporte
teórico que dê suporte aos entendimentos clássicos e, também, doutrinas que
possibilitem o entendimento da evolução desses institutos, chegando até as questões
16
mais atuais de ambos. Infere-se, nesse sentido, a sustentação basilar ao conteúdo
central do estudo: violações de direitos humanos, cometidas pelo Estado brasileiro,
levadas ao sistema interamericano.
Pretende-se demonstrar que a correlação entre as organizações internacionais
e os direitos humanos materializa-se na proteção e efetivação desses referidos
direitos, abrindo uma via jurisdicional internacional subsidiária aos cidadãos, caso os
Estados, em plano interno, não respondam satisfatoriamente às violações de direitos
humanos. E, finalmente, considerando o interesse extremo ao caso brasileiro, estima-se
elencar as principais dificuldades e possíveis soluções no cumprimento das obrigações
internacionais (elencadas, aqui, nas sentenças internacionais, frutos do sistema
interamericano) do Brasil e, igualmente, identificar, em plano interno, quais as principais
barreiras que impossibilitam, hoje, que o Estado tenha capacidade e estrutura para
internalizar e efetivar os termos de suas condenações.
De fato, não se pretende desenvolver um trabalho idealista e pouco prático.
Planeja-se que os estudos aqui iniciados possam, realmente, ser continuados e
implementados para que, caso haja futuras condenações, o Brasil conte, ao menos,
com um suporte doutrinário suficiente para auxiliar, em solos nacionais, a efetivação
não apenas das condenações, mas sim dos próprios direitos humanos, não deixando
margens para sequer novas demandas internacionais.
17
CAPÍTULO 1
ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS
1
HISTÓRICO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS
O início da análise das organizações internacionais coincide com o seu histórico,
uma vez que é a partir deste que se pode adentrar ao seu conceito, âmbito de atuação
e papel atual de tais.
Assim sendo, faz-se relevante dizer que as organizações internacionais –
tais como hoje são conhecidas – surgem, basicamente, quando se amplia o âmbito
dos sujeitos de Direito Internacional Público.2 Em outras palavras, pode ser entendido
que a origem das organizações internacionais coincide com a abertura dos sujeitos
de direito internacional público para além dos Estados.
O que se pretende dizer é que, em um primeiro momento, apenas os Estados
possuíam personalidade jurídica internacional, sendo que, apenas após sua consolidação
e o alargamento do conceito de solidariedade é que as organizações internacionais
foram passíveis de serem criadas. No que tange aos sujeitos de direito internacional
público, diz Francisco Rezek:
Pessoas jurídicas de direito internacional público são os Estados soberanos
(aos quais se equipara, por razões singulares, a Santa Sé) e as organizações
internacionais em sentido estrito. Aí não vai uma verdade eterna, mas uma
dedução segura daquilo que nos mostra a cena internacional contemporânea.
Não faz muito tempo, essa qualidade era própria dos Estados, e de exclusiva.
Hoje é certo que outras entidades, carentes de base territorial e de dimensão
geográfica, ostentam também a personalidade jurídica de direito das gentes,
porque habilitadas à titularidade de direitos e deveres internacionais, numa
relação imediata e direta com aquele corpo de normas. A era das organizações
internacionais trouxe à mente dos operadores dessa disciplina uma reflexão
já experimentada noutras áreas: os sujeitos de direito, em determinado
sistema jurídico, não precisam ser idênticos quanto à natureza ou às
potencialidades.3
2
3
Entendem-se sujeitos de direito internacional público, neste trabalho, como sendo aqueles entes
capazes de possuírem direitos e obrigações no plano internacional, características, inequivocamente,
dos Estados e das organizações internacionais.
REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 10.ed. São Paulo: Saraiva,
2005. p.151.
18
Deduz-se que a história dos organismos internacionais acompanha, basicamente,
a história da própria cooperação e da solidariedade4 realizadas pelos grupos humanos
e, em última análise, pelos próprios Estados além de suas fronteiras nacionais. Essa
noção leva em conta que, na conjuntura atual, tais organismos só podem vir a ser
criados quando então essa for a vontade dos Estados, sendo que, para serem
efetivos, necessitam do apoio e da concordância de três ou mais Estados5 ou outras
organizações internacionais que criam e submetem-se, no plano internacional, às
regras previstas dessas organizações. A necessidade de três ou mais Estados faz
alusão, especialmente, à noção de multilateralismo6, quando então se leva em conta
a opinião e a vontade de três ou mais entes, sendo que:
[...] um patamar superior de cooperação internacional foi alcançado quando três
ou mais Estados decidiram trabalhar para atingir fins comuns. Passamos então
do bilateralismo para o multilateralismo. Este vem a ser o traço fundamental
da organização internacional contemporânea.7
Chega-se à conclusão, então, que os Estados necessitam de uma interação,
no plano internacional, para o alcance de objetivos comuns e para a própria regulação,
a partir do multilateralismo, da própria sociedade internacional, por intermédio do
direito internacional que busca, a partir da sua institucionalização, a criação de
regras de caráter universais, como bem ilustra Cançado Trindade:
4
5
6
7
Como bem pontua Menezes, há uma diferença entre solidariedade e cooperação, sendo que
"a solidariedade passa a fundamentar todo o sistema normativo internacional dentro de uma perspectiva
que vai além da que era praticada até então, de mera cooperação, e os Estados passam a agir
pautados por uma aliança mais profunda, com relações normativas mais vigorosas, o que desencadeia
a intensificação das relações internacionais em foros de participação política dos Estados, e a
construção de uma sociedade internacional, mais voltada ao multilateralismo". (MENEZES, Wagner.
Direito internacional na América Latina. Curitiba: Juruá, 2007. p.259).
As relações bilaterais não mais atendiam às necessidades contemporâneas dos Estados, como se refere
Cretella Neto: "Quando as relações bilaterais baseadas na existência de relações diplomáticas ou
missões se revelaram inadequadas para lidar com situações mais complexas, derivadas de problemas
que afetavam não apenas dois, mas muitos Estados, uma solução precisava ser encontrada para
representar, no mesmo foro, os interesses comuns de todos os Estados". (CRETELLA NETO,
José. Teoria geral das organizações internacionais. São Paulo: Saraiva, 2007. p.18).
Segundo Keohane, o multilateralismo é a "ação coletiva institucionalizada empreendida por um
conjunto de Estados independentes estabelecidos de maneira inclusiva". (KEOHANE, Robert;
MILNER, Helen (Eds.). Internationalization and Domestic Politics. Cambridge: Cambridge
University Presse, 1996. p.56).
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1997. p.23.
19
A atuação e o dinamismo das organizações internacionais têm contribuído
decisivamente para modificar a própria estrutura do ordenamento jurídico
internacional. As organizações internacionais, além de impulsionar o
multilateralismo, têm em muito contribuído à regulamentação internacional de
novas áreas da atividade humana, e, por conseguinte, a fortiori, à gradual
institucionalização e "constitucionalização" do ordenamento jurídico internacional.
As organizações internacionais têm se ocupado de temas e questões que
os Estados individualmente não teriam condições de tratar ou resolver
satisfatoriamente, e que dizem respeito à humanidade como um todo;
têm elas, por conseguinte, contribuído ademais à universalização do direito
internacional contemporâneo.8
Apesar de toda essa explanação sobre a presença da cooperação e da
solidariedade na sociedade moderna, entende-se que tais institutos, com altos e baixos,
acompanham a humanidade em toda a sua história9, como bem pontua Seitenfus:
Sinais de solidariedade entre grupos humanos já se manifestam desde a antiga
Grécia. Num primeiro momento, foram estabelecidas regras de arbitragem
entre as cidades. Em seguida, no século V, surge a aplicação do princípio
confederativo, segundo o qual cada cidade fazia-se representar no Conselho
segundo um peso ponderado calculado através da importância de cada um
de seus membros. Todavia as rivalidades entre as cidades, a predominância
de Atenas e as guerras com os Persas e Macedônicos demonstram os limites
da solidariedade no mundo helênico.
A Idade Média fez surgir, de fato, uma comunidade cristã. Mas não se trata
de organizar as relações dentro do mundo cristão. Ao contrário, impõe-se a
vontade de Roma. Neste sentido, não se busca uma organização internacional,
mas somente procura-se estender o imperialismo romano para dominar o
conjunto dos cristãos do Ocidente. A primazia do Papado é contestada e o
final da Idade Média assiste ao surgimento de monarquias nacionais e de
Estados laicos, colocando um ponto final às tentativas de cooperação.10
Argumenta-se que, mesmo estando presentes, a partir da Idade Média as
tentativas de cooperação e solidariedade entre os povos começaram a falhar e já
no século XVI, suas faltas colocaram em xeque a segurança e a possibilidade de
permanência da paz. Neste mesmo momento, muitos filósofos e teóricos, tais como
8
9
10
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito das organizações internacionais. 4.ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2009. p.534.
O primeiro organismo que pode ser comparado a uma organização internacional, na história humana,
fora a associação das cidades estados helênicas da Grécia Antiga, chamada de Anfictitiónias Gregas.
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.31.
20
Pierre Dubois, questionaram-se sobre projetos para a manutenção da paz11, mas,
ainda, os ideais eram pouco representativos e o Estado soberano, com suas concepções
nacionalistas e individualistas, ainda imperava.
Com o passar dos tempos e com a crescente necessidade dos Estados
formarem alianças para defesa de interesses comuns, então, fora se criando um terreno
favorável ao desenvolvimento dos organismos internacionais tais como hoje são
concebidos. Discute-se que fora no século XIX que essas organizações, baseadas
na cooperação e solidariedade entre os Estados, encontraram condições para seu
florescer, uma vez que "o sentimento de solidariedade dos países vencedores de
Napoleão fez surgir um processo de entendimento na Europa, baseado no princípio da
monarquia legitimado no direito divino e do equilíbrio de poder entre seus integrantes"12.
Assim, no contexto europeu, já no ano de 1804, há o surgimento da primeira
organização em moldes modernos, sendo ela a Administração Geral de Concessão
de Navegação do Reno. O contexto histórico que lhe possibilitou fora o seguinte:
A primeira entidade que pode ser enquadrada na noção contemporânea de
organização internacional de que se tem notícia foi a Administração Geral
de Concessão da Navegação do Reno, criada pelo tratado celebrado entre
a França e o Santo Império Romano-Germânico em 15.08.1804.
Portanto, na origem das organizações internacionais pode-se situar um
movimento histórico bastante preciso, constituído por um longo período de
(relativa) paz, que se seguiu à queda de Napoleão (1815-1914), bem como
de um progresso tecnológico e científico sem precedentes, além de avanços
incomparáveis nos meios de comunicação.13
Outro importante evento para o nascimento das organizações internacionais
aos moldes de hoje, na Europa, fora o Congresso de Viena, que ocorrera entre os
anos de 1814 e 1815, advindo da solidariedade dos países vencedores das guerras
napoleônicas. Mesmo não possuindo as características e nem o formato de uma
organização propriamente dita, fora essencial ao continente, uma vez que ali,
traçaram-se ideias sobre um Concerto Europeu, onde os Estados realizariam consultas
11
12
13
Entende-se que uma alternativa para a guerra seria a união dos Estados na forma de um Império
universal. Historicamente, a mais extensa e duradoura aproximação com esse Império fora o Império
Romano, que existiu durante alguns séculos. Dante Alighieri disse ter sido essa a "época do ouro",
considerando que a restauração de um Império aos moldes do Império Romano representaria a
mais esperançosa aproximação para com a paz universal.
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.34.
CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.20.
21
diplomáticas e esforços para dirimir seus conflitos de forma pacífica, não se
socorrendo da guerra para tal.
Do outro lado do Atlântico, nas Américas, o clima também propiciou ao
surgimento dos organismos internacionais, uma vez que os Estados, na iminência de
uma reconquista espanhola de suas colônias, objetivando resguardarem sua atual
independência, viram-se na necessidade de reunirem-se, em 1826, no Panamá. Em
outras palavras:
Nas Américas, alguns eventos são dignos de nota, embora algo diverso do
sistema europeu, como o sistema pan-americano, que organizou conferências
em nível regional já em 1826, apesar de somente ter alcançado resultados
mais significativos em 1885, com a Conferência de Washington. Essas
conferências passaram a ser dotadas de um caráter periódico após essa
data, e culminaram, muito mais tarde, com a criação da Organização dos
Estados Americanos – OEA.14
Demonstra-se, em um enquadramento mais didático, que essas organizações,
surgidas anteriormente aos movimentos consequentes da Primeira Guerra Mundial,
são consideradas como sendo organizações internacionais de primeira geração,
tendo as seguintes principais características:
a) sua criação resultou principalmente da necessidade lógica de superar
obstáculos materiais e/ou políticos que dificultavam a realização em
comum daquilo que Hauriou denominou "idéia de obra", projetada para o
futuro, de construção de uma comunidade internacional onde reinasse a
paz e a prosperidade socioeconômicas;
b) limitavam suas competências a compôs técnicos ou administrativos estreitos
por transposição, ao plano internacional, do conceito rígido do direito interno
de empresa pública;
c) não eram expressamente dotadas de personalidade jurídica internacional,
ou seja, não tinham capacidade postulatória reconhecida perante as ainda
embrionárias jurisdições internacionais;
d) dispunham de recursos financeiros e de pessoal bastante modestos,
limitados, em regra, a um diretos e a uma pequena equipe de funcionários,
que administravam um escritório central, realizando o que hoje seriam
tarefas próprias da secretaria de uma organização internacional.15
14
15
CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.20.
Ibid., p.25.
22
Percebe-se que, mesmo sendo um grande salto para o surgimento e
aprimoramento dos organismos internacionais, sua primeira geração guarda falhas
que impossibilitaram o real alcance dos objetivos de tais instituições. Mais do que
isso: critica-se que o atraso do desenvolvimento do internacionalismo, de modo geral,
presenciado pelos séculos anteriores ao XIX, fora resultado da falta de empenho dos
Estados em colaborarem entre si, objetivando, apenas, a consolidação de sua soberania.
Demonstra-se, nesse quadro, que as organizações internacionais – aqui
chamadas de organizações de primeira geração – enquadravam-se muito mais como
uniões administrativas que organismos internacionais propriamente ditos, como se
revela no seguinte trecho:
Surgidas a partir da primeira metade do século XIX, as primeiras organizações
internacionais tiveram como finalidade criar condições favoráveis para a
cooperação na solução de problemas comuns a mais de um Estado, como
assegurar a liberdade de navegação nos rios Reno e Danúbio. Eram, em
verdade, uniões administrativas, possuindo organização incipiente, em geral
restrita a uma secretaria, e não tinham objetivos políticos. O procedimento
decisório interno fundava-se no princípio da unanimidade, o que muitas
vezes levava à morosidade administrativa, limitando sua eficácia.16
Para a correção de tal quadro, fora necessário que a humanidade passasse
pela Primeira Guerra Mundial, onde se presenciou, mais do que nunca, o empenho
de toda a sociedade civil para com a solidariedade entre os povos para o fim das
atrocidades que ali se viveu.
Impulsionou-se, em outros termos, a criação de organismos internacionais
que pudessem, de maneira efetiva e imparcial, assegurar a solução de controvérsias
de maneira pacífica, sem a presença de uma nova guerra, mas, contando ainda, com o
nacionalismo exacerbado dos Estados. Surgiram, então, as organizações internacionais
de segunda geração. O maior exemplo fora a Liga das Nações que, mesmo tendo
falhado no alcance de seus objetivos, teve sua importância na consolidação das
organizações internacionais. Assim melhor explica-se esse período:
Antes da 2.a Guerra Mundial, portanto, pode-se falar dessas entidades então
estabelecidas como "organizações internacionais de segunda geração", as
quais surgiram em momento histórico pouco propício, caracterizado, de um
lado, pelo desenvolvimento de modos diplomáticos de solução de controvérsias
16
AMARAL JR., Alberto do. Introdução ao direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2008. p.167.
23
e por um renovado interesse na arbitragem interestatal, mas, de outro, pela
continuidade do domínio das relações internacionais por uma concepção de
soberania absoluta do Estado, repousando, em conseqüência, não em
normas jurídicas internacionais, mas no equilíbrio militar entre as potências.
Essa época foi cunhada como a do período do "nacionalismo do Direito
Internacional", no qual as soberanias estatais estavam hiperatrofiadas, não
deixando muito espaço para atividades de organizações internacionais, cujas
funções poderiam desbordar os limites estreitos de uma cooperação técnica
ou científica especializada.17
Com o advento da Segunda Guerra Mundial, presenciando-se as maiores
perdas humanas e a maior devastação já sentida pela sociedade, numa situação de
mais puro caos, a humanidade – e consequentemente os Estados – chegou ao
maior nível de cooperação e solidariedade que já se teve registros. Relativamente a
este quadro, desenvolveram-se, de forma mais complexa, sensata e definitiva, os
organismos internacionais, vindo a serem chamados, tais como hoje se conhecem,
de organizações internacionais de terceira geração.18
A principal característica dessa classe é a divisão, agora, das organizações
segundo suas especialidades, ou seja, segundo os interesses comuns e as imputações
dadas, pelos Estados, a tais organismos. De acordo com os ensinamentos de
Cretella Neto:
Depois de 1945, o insucesso político da Sociedade das Nações em evitar a
guerra fez brotar a consciência da absoluta necessidade de mais profunda
cooperação internacional, cujo teste de eficácia fosse prevenir a ocorrência
de novos conflitos em escala mundial, criando uma colaboração duradoura
entre os Estados. Do ponto de vista doutrinário, confirmou-se a necessidade
de uma evolução do princípio da especialidade das organizações
internacionais, pelo qual as competências dessas instituições deveriam ser
exercidas em detrimento da exclusividade das soberanias nacionais e, em
conseqüência, de uma revisão do conceito, ainda fortemente arraigado, da
soberania estatal absoluta. Parece claro que até a metade do século XIX os
Estados se mostravam relutantes em autorizar essa evolução.19
17
18
19
CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.30.
Aponta-se que, a partir do século XX, em decorrência da necessidade funcional, as organizações
internacionais multiplicaram-se. Os Estados reconheceram que, por si só, não suportariam a
obrigação de preservar as gerações futuras do flagelo das guerras, não podendo, ainda, exercerem
determinadas funções públicas individualmente.
CRETELLA NETO, José, op. cit., p.31.
24
Sublinha-se que, além da especialidade, as organizações internacionais
contam, hoje, com uma postura de maior comprometimento dos Estados para com a
suas normas e ditames, sendo que, tal caráter, só se demonstrou possível com a
flexibilização do conceito de soberania estatal, pautada, especialmente, na paz e na
soberania dos povos.20
Assim sendo, para concretizar seu papel no mundo contemporâneo,
transcrevem-se os ensinamentos de Jónatas Machado, que assim entende:
Paralelamente, as OI's têm contribuído para a edificação de uma "res publica"
internacional, por via da identificação de bens e interesses da comunidade
internacional, no seu estatuto de civitas máxima, oponíveis aos próprios
Estados, e da dinamização do diálogo e da deliberação à escala global, numa
perspectiva de "autogoverno mundial". Deste modo, as OI's deram um contributo
incontornável para a reconfiguração, alteração qualitativa e limitação quantitativa
das prerrogativas da soberania estadual na sua acepção tradicional. Não
obstante, as OI's revestem-se de uma importância fundamental para a vida
dos Estados. Com efeito, a já assinalada dimensão transfronteiriça e mesmo
planetária dos problemas humanos requer, mais do que nunca, a existência
de plataformas internacionais para a sua discussão e resolução concertada.
Além disso, as OI's, com particular relevo para aquelas que integram a vasta
família das Nações Unidas, contribuem para atenuar as consequências negativas
resultantes da impossibilidade fática, por parte da generalidade dos Estados, de
manter relações diplomáticas bilaterais com todos os demais Estados. Acresce
que as organizações internacionais asseguram uma consistência normativa
e decisória nos domínios político e jurídico internacional, favorecendo a
igualdade dos Estados, sendo que estes permanecem atores principais
mesmo num mundo caracterizado pela proliferação de OI's.21
Para finalizar o histórico acerca das organizações internacionais, cabe ressaltar
que muito de seu presente desenvolvimento guarda relações com a assinatura – e
consequente comprometimento dos Estados, no plano internacional – da Carta das
Nações Unidas, datada de 26 de junho de1945, em São Francisco, dando origem ao
maior e mais representativo organismo internacional, qual seja, a Organização das
Nações Unidas (ONU), a qual será tratada em um momento posterior desse estudo.
A partir de sua criação é que o desenvolvimento dos organismos internacionais se
20
21
Nos dizeres de Ferrajoli: "O paradigma, em todo caso, não pode ser senão aquele do Estado
constitucional de direito, que nos foi consignado pela experiência das democracias modernas: ou
seja, o da sujeição à lei dos organismos da ONU, de sua reforma em sentindo democrático e
representativo, enfim, da instauração de garantias idôneas que visem a tornar efetivos o princípio
da paz e os direitos fundamentais, tanto dos indivíduos quanto dos povos em seu relacionamento
com os Estados". (FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. p.52).
MACHADO, Jónatas E. M. Direito internacional do paradigma clássico ao pos 11 de setembro.
3.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.246.
25
efetivou e trouxe consigo vastas mudanças no próprio direito internacional, como
assim se analisa:
Em suma, as organizações internacionais, de índole e características as mais
diversas, têm efetivamente modificado a estrutura do direito internacional:
puseram fim ao monopólio estatal da personalidade jurídica internacional e
dos privilégios e imunidades, expandiram a capacidade de celebrar tratados,
alteraram as regras da sua própria composição, passaram a participar em
procedimentos judiciais internacionais, e ampliaram consideravelmente as
vias de cooperação internacional e da integração regional e sub-regional.
Este fenômeno, que já era notado nas décadas de sessenta e setenta, pode
ser hoje adequadamente apreciado, em perspectiva histórica, no âmbito do
direito das organizações internacionais.22
Não se pode perder de vista, numa análise inicial da representatividade da
ONU, que tal organismo internacional trouxe para seu âmbito de atuação algumas
responsabilidades que, somente os Estados, não estavam suportando – vise as duas
guerras –, tais como as questões envolvendo a paz e a segurança Internacional.
Segundo os ensinamentos de Wagner Menezes:
Este órgão avocou para si a responsabilidade de ser um foro conjunto de
discussão dos problemas mundiais, com o propósito de manter a paz e a
segurança internacionais, desenvolver relações amistosas entre as nações,
augariar a cooperação internacional para resolver os problemas internacionais
de caráter econômico, social, cultural ou humanitário e para promover e
estimular o respeito aos direitos humanos e ser um centro destinado a harmonizar
as ações dos Estados para a consecução desses objetivos comuns.23
Assim tendo sido estudado, diz-se, de maneira conclusiva, que por mais que as
organizações internacionais tenham pilares estruturais anteriores24, fora no século XIX
que seu desenvolvimento se dera de maneira mais efetiva e, mais tarde, no século XX,
que sua consolidação se demonstrou uma realidade na sociedade moderna. Hoje,
22
23
24
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito das organizações internacionais, p.536.
MENEZES, Wagner. Ordem global e transnormatividade. Ijuí: Editora Unijuí, 2005. p.44.
Os pilares estruturais aos quais se faz referência, podem ser exemplificados de tal modo: a diplomacia,
os tratados, as conferências, as regras de bem estar, o direito internacional, o comércio internacional, o
relacionamento entre culturas variadas, a comunicação global, o cosmopolitanismo, o universalismo,
os movimentos de paz, a formação de ligas e federações, a administração internacional, a segurança
coletiva e os movimentos para um governo global.
26
pode-se entender que elas são um fenômeno já corriqueiro e seu número, de acordo
com os interesses da sociedade – representados pelo comprometimento dos Estados
em um plano internacional – não pára de crescer, sendo que uma delimitação real seria
impossível, uma vez que o amanhã guarda necessidades distintas e, consequentemente,
uma nova organização internacional surgirá.
2
CONCEITO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS
Tendo sido analisado todo o seu desenrolar histórico, passa-se, nesse momento,
à análise do próprio conceito acerca das organizações internacionais.
O mais amplo e aceito conceito de organização internacional refere-se ao
fato de caracterizá-la como uma livre associação entre Estados, por intermédio de
um tratado internacional, em concordância com as normas de Direito Internacional.
Além disso, diz-se ser ela uma entidade de caráter estável, com personalidade
jurídica, ordenamento jurídico e órgãos próprios, com fins comuns aos seus membros,
conferindo-lhe, em seu pacto constitutivo, a realização de certas funções e
determinados exercícios.25
Entende-se, também, de acordo com os ensinamentos de Carlos Roberto
Husek, que os organismos internacionais "são criados por meio de tratados e passam
a ter personalidade internacional independentemente de seus membros"26.
Mas, para entender seu conceito e todas as suas variáveis, necessário se
demonstra que alguns aspectos sejam, previamente, abordados.
Dessa maneira, é importante pontuar que o sistema internacional, como um
todo, é composto, basicamente, de Estados nações – e das consequentes interações
entre esses –, das organizações internacionais e dos seus atores privados – hoje,
25
26
REUTER, Paul. Institutions Internationales. 8.ed. Paris: Thémis-Puf, 1975.
HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público. 3.ed. São Paulo: LTr, 2000. p.42.
27
com uma atenção especial voltada às organizações não governamentais (ONGs) e
às empresas transnacionais.27
Nessa gama de relações, exprimem, as organizações internacionais, uma
função primordial, uma vez que são elas quem proporcionam, de maneira mais
enérgica, a busca pela paz, preservação da segurança e estabilidade mundial.28
Argumenta-se, ainda, que as organizações são imprescindíveis para o
atendimento dos problemas mundiais em um mundo globalizado, os quais, de
maneira exemplificativa, podem ser assim descritos:
As organizações internacionais são imprescindíveis para resolver alguns
dos principais problemas que a humanidade enfrenta. A paz e a segurança,
a equidade nas relações comerciais, o auxílio financeiro às nações pobres,
a preservação do meio ambiente e a previsão de regimes internacionais que
promovam o desenvolvimento, distribuam a riqueza mundial e eliminem as
enormes desigualdades de poder estão entre os temas que demandam a
atuação das organizações internacionais. Numa época de enorme complexidade,
jamais vista em outro momento histórico, em que os destinos humanos
parecem estar indissoluvelmente entrelaçados, elas se tornaram essenciais
para manter a ordem, assegurar a paz e obter a justiça.29
Também, segundo a compreensão de Wagner Menezes, relatam-se as
seguintes características de tais organismos:
As organizações internacionais passam a desempenhar o papel de legisladoras
globais, propondo normas e regras que passam a ser adotadas pelos
Estados e, transcendendo a eles, a outros sujeitos do Direito Internacional e
até mesmo aos indivíduos.30
Apesar do desempenho primordial nas relações internacionais, não se pode
perder de vista que tais organizações são criadas a partir da vontade suprema dos
27
28
29
30
Investiga-se o conceito de empresas transnacionais por intermédio dos ensinamentos de Husek:
"inexistem definições sobre empresa transnacional. Apontam-se critérios – as capazes de influenciar
na economia de diversos países ou as sociedades comerciais cujo poder está disperso nas subsidiárias,
ou, ainda, aquelas que atuam no estrangeiro por meio de subsidiárias ou filiais –, bem como se apontam
características – grande empresa e enorme potencial financeiro ou administração internacionalizada,
ou, ainda, unidade econômica e diversidade jurídica. A ONU consagrou a expressão empresa
'transnacional': empresa que atua além das fronteiras – mas se entende que as expressões
'transnacional' e 'multinacional' se equivalem". (HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito
internacional público, p.227).
GAMA, Ricardo Rodrigues. Introdução ao direito internacional. Campinas: Bookseller, 2002.
AMARAL JR., Alberto do. Introdução ao direito internacional público, p.169.
MENEZES, Wagner. Ordem global e transnormatividade, p.53.
28
Estados em atingir objetivos conexos – daí porque serem chamadas, também, de
organizações intergovernamentais. Em outras palavras, as organizações internacionais
são vistas, de um lado, como a emergência de um governo global e, por outro, como
resultado do exercício de cooperação entre os Estados soberanos.31
Segundo entendimento doutrinário, a referência à terminologia "organização
internacional", em concordância com seu emprego após o século XIX, objetiva uma
alusão à situação de relações ordenadas entre as nações.
Deduz-se, então que, como sujeitos clássicos de Direito Internacional, os
Estados e as organizações internacionais diferem-se em muito em seu surgimento e,
consequentemente, em seus conceitos.
Primeiramente, no que condiz ao Estado, este depende apenas de certos
fatores para ser assim classificado – e não da vontade de outros sujeitos. Tais fatores,
primordialmente, abarcam seus elementos constitutivos, quais sejam: seu território,
sua esfera temporal de validade, seu povo, seu poder (traduzido em sua composição
governamental) e, por último, sua soberania.32
Além disso, como muito bem esclarece Carlos Roberto Husek, os Estados
não dependem de um tratado constitutivo para que surjam no cenário mundial,
sendo que sua criação é, de fato, um ato unilateral. Em suas palavras, traduz-se:
Os Estados são sujeitos primários da ordem internacional, sendo seu nascimento
um fato histórico. O reconhecimento do Estado é ato unilateral pelo qual um
Estado declara ter tomado conhecimento da existência do outro, como
membro da comunidade internacional. Assim, por ser, o nascimento do
Estado, um fato, o reconhecimento não passa de um simples ato de
constatação – teoria declarativa.33
Igualmente, diferentemente dos Estados, as organizações internacionais, para
serem criadas e possuíram capacidade jurídica internacional, necessitam, primordialmente,
da vontade dos Estados, segundo pilares de cooperação e solidariedade, em se
31
32
33
BENNETT, Alvin Leroy. International Organizations: principles and issues. 6th ed. New Jersey:
Prentice Hall, 1995. p.2.
Utiliza-se, aqui, a concepção desenvolvida por Hans Kelsen sobre o Estado. Outros autores podem
adicionar mais elementos para com o reconhecimento de um Estado como tal, mas a visão clássica
reduz-se a tais elementos aqui transcritos.
HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público, p.64.
29
unirem em torno de um instituto comum, sendo tal, a organização internacional.
Assim, esse organismo não depende apenas de fatores intrínsecos a sua estrutura,
mas também da vontade dos Estados para sua criação, como se confirma no
seguinte trecho:
Diferentemente dos Estados, cada um dos quais deve sua existência
apenas a si próprio, a organização internacional é uma "criatura", na medida
em que somente passa a existir quando Estados se reúnem com o propósito
de estabelecer uma entidade à qual são confiadas uma ou mais funções
específicas, descritas em seu ato constitutivo, ou "constituição". Desse
particular resulta que suas atividades são estabelecidas por forças exteriores,
sobre as quais não exercem controle.34
Para composição do conceito de organizações internacionais, então, deve
ser entendido que elas decorrem da vontade dos Estados, como muito bem exposto
acima. Precisa-se, então, que os Estados manifestam sua vontade na criação e no
desenvolvimento de uma organização internacional através da ratificação de um
tratado, que é, ao mesmo tempo, para uma organização internacional, seu motor de
criação e sua própria "constituição" por assim dizer.
Traça-se, dessa forma, que o tratado constitutivo de uma organização
internacional pretende expor quais são as delimitações, a especificidade e o papel
dessa e, ao mesmo tempo, comprometer, num misto de limitação e compartilhamento
de soberania, os Estados à submissão internacional, segundo o disposto em tal tratado.
Como bem escreve Seitenfus:
O tratado constitutivo de uma organização internacional objetiva estabelecer
os direitos e obrigações dos Estados membros com a organização internacional
e, muitas vezes, entre os Estados membros. Portanto, a criação e o
funcionamento de uma organização internacional depende do tratado constitutivo,
como dele também depende o respeito aos direitos e deveres dos Estados
membros em suas relações recíprocas.35
Outro ponto que merece ressalva é que, ao contrário dos Estados, sua criação
está sujeita à existência de um tratado, devendo respeitar aquilo que já fora acordado,
34
35
CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.39.
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.27.
30
em âmbito internacional, acerca de tais instrumentos. Em outros dizeres, o tratado
constitutivo de uma organização internacional deve submeter-se à Convenção de
Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969, sempre ressalvados os objetivos da
organização, sejam eles de caráter universal ou específico.
Demonstrado o papel relevante do Estado no surgimento de uma organização
internacional, julga-se esta última como sendo sujeito de direito internacional mediato,
secundário ou derivado.36
Estabelecida a criação de uma organização internacional através da conjunção
de Estados em torno de um tratado, vale, agora, discorrer sobre algumas de suas
características para delimitação de seu conceito. Em suma, do ponto de vista jurídico,
três são suas principais, quais sejam: institucionalização, permanência e multilateralidade.
Adentrando ao que condiz à institucionalização, pressupõe-se, por sua vez, a
existência de três elementos primordiais, sendo eles a jurisdicionalização das relações
internacionais (o que pressupõe um fórum para discussão e solução de controvérsias
dos Estados), dimensão coletiva de certos aspectos que, anteriormente, eram ligados
exclusivamente à soberania dos Estados (o que, aqui, caracteriza-se como sendo o
compartilhamento de soberanias) e a existência de um secretariado administrativo, o
qual pode vir a ser interestatal (prevalecendo, ainda, a rotatividade dos Estados
membros da organização) ou, ainda, em moldes mais recentes, supranacional
(impondo decisões aos Estados e monitorando o seu cumprimento).37
Esse processo decisório das organizações internacionais foi evoluindo ao
longo dos tempos e, cada vez mais os Estados percebem que sua submissão – ou
até mesmo a concordância – aos órgãos decisórios de tais organismos merecem ser
levados a sério, como bem explica Cretella Neto:
Uma característica marcante do desenvolvimento das organizações internacionais
desde 1945 foi a mudança do lócus dos processos de decisão relativos a
um amplo espectro de matérias, antes exclusivamente governamentais, de
governos nacionais para organizações internacionais. Essa mudança foi gradual
e pouco notada no início, pois as organizações agiam de forma cautelosa
no exercício de seus limitados poderes, e, quando adotavam decisões
que pudessem vincular os Estados-membros, procuravam primeiro obter
consentimento dos Estados para assumir as obrigações. Contudo, esse
panorama institucional está evoluindo bastante rapidamente, pois as organizações,
36
37
Para Cretella Neto, esse caráter transitório das organizações internacionais se traduz como sendo
elas uma solução transitória na busca de uma hipotética integração política entre os Estados.
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.25-26.
31
cada vez mais, interpretam seus poderes – inclusive de forma vinculante – e
os aumentam, fazendo com que o consentimento prévio e individual dos
Estados perca importância. O processo apresenta-se como uma via de mão
dupla: os Estados também, de forma crescente, vêm conferindo cada vez
mais amplos poderes de governança às organizações internacionais.38
No que concerne à permanência, diz-se que uma determinada organização é
criada com o objetivo de durar indefinidamente e, também, conta com um secretariado
permanente, com sede fixa e dotado de personalidade jurídica própria. Mais precisamente,
assim sintetiza-se o caráter permanente das organizações internacionais:
Estrutura organizada estável, sede fixa, serviços de apoio permanente (marcas
de estabilidade). Órgãos próprios no quadro de uma estrutura institucional
mais ou menos complexa, estabelecidas em sede permanente localizada no
território de um Estado (geralmente, mas não necessariamente, de um
Estado-membro) e dispondo dos meios de ação indispensáveis à prossecução,
numa base de continuidade, das respectivas finalidades estatutárias.39
Já o conceito de multilateralidade merece um pouco mais de atenção, uma vez
que delimita o âmbito de atuação de uma organização, podendo ser ela universal ou
regional. A especial diferença entre ambas é que enquanto as organizações de
âmbito regional guardam certas delimitações comuns em seus membros – sejam
elas físicas, geográficas, desenvolvimentistas, entre outras –, as universais não
estabelecem parâmetros para a adesão de um Estado. Nesse ponto, uma ressalva
merece ser feita:
os compromissos assumidos pelos Estados em âmbito regional não podem
ser incompatíveis com os firmados na organização universal. Portanto, esta
condiciona tanto os acordos regionais passados quanto os futuros à estrita
observância dos termos do tratado de âmbito universal.40
Ainda dentro do debate da multilateralidade, pode ser entendido o caráter de
especialidade dos organismos internacionais, quando sua criação debruça-se na busca
de um objetivo comum entre os países. Acontece que, nas organizações de caráter
universal, tal especialidade é mais difícil de ser observada, uma vez que – como a
38
39
40
CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.40.
CAMPOS, João Mota de. Organizações internacionais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1999. p.38.
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.24.
32
Organização das Nações Unidas – acaba por abarcar muitos assuntos, mas sempre
focada da manutenção da paz, segurança e estabilidade das relações internacionais.
Há diversas maneiras de se classificar as organizações internacionais, mas,
neste trabalho, elege-se a classificação proposta por Carlos Roberto Husek, que
delimita-as entre seu objeto, sua estrutura jurídica e seu âmbito territorial de ação ou
de participação, sendo da seguinte maneira explicadas:
As organizações internacionais podem ser classificadas da seguinte forma:
a) quanto ao seu objeto; b) quanto à sua estrutura jurídica; e c) quanto ao
seu âmbito territorial de ação ou de participação.
a) Quanto ao seu objeto – Atende ao objetivo social de cada organização e
está dividido em organizações de fins gerais e organizações de fins
especiais. [...]
b) Quanto à sua estrutura jurídica – Atende à estrutura jurídica das
organizações. Duas espécies devem ser consideradas: organizações
intergovernamentais e organizações supranacionais. [...]
c) Quanto ao âmbito de sua participação – Atende ao critério de maior ou menor
dimensão no âmbito de sua atuação e, assim, temos: as organizações
parauniversais e as organizações regionais, estas últimas segundo
critério geográfico e segundo critério ideológico ou geopolítico.41
Do ponto de vista político, o conceito de organização internacional fora
desenvolvido a partir de três blocos: o primeiro deles formado pelos países ocidentais
(mais Japão, Austrália e Nova Zelândia); o segundo composto pelos países que
compunham a antiga URSS; e o terceiro, pelos países em desenvolvimento ou menos
desenvolvidos (PMDs).42
O primeiro bloco tratou logo de conceituar e desenvolver as organizações de
cunho universalista, onde com a crescente onda de descolonização, os países mais
influentes modificaram o sistema de votação no interior de tais organismos, passando
da maioria absoluta para o sistema de consenso, garantindo seu direito de veto.
Com isso, também, desenvolveram-se organizações regionais entre esses Estados.
O segundo grupo, em sentido contrário, viram as organizações internacionais
com desconfiança e criaram um sistema intrabloco, vindo, após a desintegração da
URSS, abrir-se às organizações (como bem se observa, mais tardiamente que o
primeiro bloco de países).
41
42
HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público, p.111-113.
CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.45-47.
33
Finalmente, os Estados que compunham o terceiro grupo, logo aderiram às
organizações universais desenvolvidas por aqueles do primeiro bloco, numa tentativa
frustrada de mudança, do vertical para o horizontal43, dos poderes dos Estados na
sociedade internacional.
Em realidade, tal desenvolvimento político do conceito das organizações
internacionais serviu para consolidar seus principais componentes, quais sejam:
caráter de permanência, constituição por ato jurídico internacional próprio (tratado),
realização de objetivos comuns aos seus membros (especialidade), órgãos próprios
(especialmente seu secretariado permanente) e vontade, também, própria (por mais
que seja, em realidade, uma concepção teórica, a organização internacional possui
independência para com a vontade governamental interna de seus membros).
Entendidos tais aspectos conceituais das organizações internacionais, faz-se
de extrema relevância, também, diferenciá-las das organizações não governamentais
(ONGs).44 Em uma breve comparação, pode ser dito que enquanto as organizações
internacionais contam com estrutura e normas próprias, as ONGs se valem de regras
internas de um Estado, desempenhando um papel representativo na sociedade
internacional, não configurando – tal como os organismos internacionais – como sujeitos
de direito internacional.45 Confirma-se o contraste entre tais na seguinte passagem:
Distinguem-se, habitualmente, as organizações internacionais governamentais
das não governamentais – ONGs, estas últimas sujeitas às normas jurídicas
de um único Estado, segundo seu local de constituição ou funcionamento, e
que não se confundem com as primeiras, objeto de nosso estudo. Em regra,
as ONGs não possuem finalidade lucrativa, e exercem suas atividades tanto
no plano interno quanto no internacional.46
É relevante entender também, que ambas as organizações, tanto internacionais,
quanto não governamentais, guardam importantes papeis no desempenho de funções
43
44
45
46
Esclarece-se nesse ponto, que poderes verticais seriam aqueles encabeçados por um ente
superior, numa escala de hierarquia de poder, enquanto que poderes horizontais contariam com a
igualdade entre os poderes de determinados entes.
Como bem explica Husek, "as ONGs, de certa forma, cristalizam o novo paradigma centrado no ser
humano e no meio ambiente e são foros de realização da 'cidadania internacional'". (HUSEK, Carlos
Roberto. A nova (des)ordem Internacional ONU: uma vocação para a paz. Tese (Doutorado em
Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004. p.113).
Avalia-se que, classicamente, sujeitos de direito internacional são as organizações internacionais
e os Estados, ambos sendo destinatários de normas de direito internacional, com direitos e
obrigações em âmbito internacional.
CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.44.
34
no âmbito internacional. Acontece que, sendo um sujeito de direito internacional, a
organização internacional atua de forma mais enérgica e tende a possuir um papel
de relevância, talvez, tão acentuada quanto a de um Estado soberano, mas nunca
tomando o papel desse. Para confirmar tais afirmações, cita-se Cretella Neto:
O fenômeno da organização internacional representa um processo de
institucionalização da sociedade internacional, embora esse processo não
tenha tomado o lugar do Estado soberano, já que a sociedade internacional não
perdeu seus princípios constitutivos de liberdade, igualdade e independência
das entidades políticas autônomas que se situam na base, os Estados
soberanos, nem seu caráter predominantemente descentralizado e paritário.
Um amplo processo histórico de mais de cem anos trouxe consigo vasto
leque de organizações internacionais nas quais a soberania dos Estados
parece haver cedido em muitos campos não políticos; convém, no entanto,
não superestimar estes resultados, parciais e fragmentários, enquanto
permanece ausente, na vida internacional, uma instância de autoridade
política internacional, superior aos Estados. E na falta dessa autoridade
política internacional superior aos Estados, as organizações internacionais
colocam à disposição do Direito Internacional amplo leque de positividade e
de transformação, pois permitem maior efetividade das normas jurídicas.
Sua atuação provoca amplo processo de mudanças e de alcance de suas
funções e finalidades na ordem internacional.47
Estudadas todas as características estruturais do conceito das organizações
internacionais, diz-se que elas são segundo sua perspectiva jurídica, uma coletividade
de Estados, estabelecidas mediante tratados, dotadas de órgãos comuns e com
competências atribuídas para o alcance de seus objetivos e fins.48
Por fim, combinados todos os elementos terminológicos que compõem o
conceito das organizações internacionais, precisam-se as características primordiais de
tais organismos, sendo que, sem sua presença, está-se diante de outro fenômeno
que não o presente estudado. Assim, tais características são assim arroladas:
Destas definições depreendem-se características essenciais de uma organização
internacional, assim consideradas: 1) são associações livres entre Estados;
2) surgem a partir de uma convenção internacional; 3) dispõem de personalidade
jurídica internacional; 4) possuem um objeto de trabalho próprio de definido;
5) têm um ordenamento jurídico próprio que regula a sociedade de Estados;
6) possuem órgãos próprios para executar seus objetivos; 7) são dotadas de
uma estrutura que se distingue da estrutura dos Estados-membros.49
47
48
49
CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.51.
CARRIÓN, Alejandro J. Rodríguez. Lecciones de Derecho Internacional Público. 4.ed. Madrid:
Tecnos, 2002. p.103.
MENEZES, Wagner. Ordem global e transnormatividade, p.46.
35
Identificados tais elementos, prova-se a existência das organizações internacionais
como sujeitos autônomos de Direito Internacional Público.
3
A CRIAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS
FRENTE À SOBERANIA ESTATAL
Como já fora julgado anteriormente, os sujeitos clássicos de Direito Internacional
são os Estados soberanos – considerados como sendo sujeitos primários de Direito
Internacional – e as organizações internacionais – sujeitos secundários de Direito
Internacional.50
Mais uma vez, não se pode perder de vista que a principal característica,
quando então da criação de uma organização internacional, é a necessidade dos
Estados, mediante sua livre vontade, compartilharem parcela de sua soberania em
prol de um objetivo comum, materializado no tratado constitutivo de uma organização
internacional. Dessa forma, acaba por ser impossível desassociar a criação de uma
determinada organização internacional da soberania estatal, sendo essa última
assim conceituada:
A noção de soberania está intimamente ligada ao Estado, à plenitude do
Poder Público, ao exercício do mando. Vem do latim superomnia, ou superanus,
ou, ainda, de supremitas, caráter dos domínios que não dependem senão
de Deus [...].
[...] Intimamente ligada ao Estado, a soberania e este formam um binômio –
Estado/soberania – que está na origem dos grandes acontecimentos mundiais.51
O que se pode entender, em um primeiro momento, é que os Estados se
viram na necessidade de cooperarem e coordenarem-se entre si para atingirem fins
e objetivos comuns, não sendo mais possível a atitude individual de cada qual.
Nesse sentido, necessitou-se o compartilhamento de sua soberania para a criação
50
51
A distinção básica entre os sujeitos de Direito Internacional é que as organizações internacionais,
criadas por intermédio de tratados constitutivos, não são pessoas primárias de Direito Internacional,
enquanto que os Estados caracterizam-se justamente por serem pessoas primárias de Direito
Internacional.
HUSEK, Carlos Roberto. A nova (des)ordem Internacional ONU..., p.104-105.
36
de organismos internacionais, para que, de fato, os Estados venham a exercê-la,
conjuntamente, no plano internacional, como bem se refere Cançado Trindade:
O chamado "domínio reservado dos Estados" (ou "competência nacional
exclusiva"), particularização do velho dogma da soberania estatal, foi
superado pela prática das organizações internacionais, que desvendou sua
inadequação ao plano das relações internacionais. Aquele dogma havia
sido concebido em outra época, tendo em mente o Estado in abstracto
(e não em suas relações com outros Estados e organizações internacionais
e outros sujeitos de Direito Internacional), e como expressão de um poder
interno (tampouco absoluto), próprio de um ordenamento jurídico internacional,
de coordenação e cooperação, em que os Estados são, ademais de
independentes, juridicamente iguais.52
Antes da análise pontual sobre a criação e o desenvolvimento das organizações
internacionais, cabe mais uma consideração acerca da importância da soberania estatal
em sua criação: não se pode perder de vista que os Estados, voluntariamente,
compartilham parcela de sua soberania53, exercendo-a no plano das organizações
internacionais. Mas a parcela compartilhada acaba por ser apenas aquela que tange
ao objetivo central da organização internacional, sendo que nunca os Estados
compartilharão ou exercerão, conjuntamente, em um plano internacional, a totalidade
de sua soberania, pois se assim o fizer, estar-se-á diante de um novo arranjo global,
não mais com a existência de Estados – uma vez que a soberania, em ambos
aspectos, interno e externo54, acaba por ser característica essencial à própria existência
de um Estado como tal.
Sabe-se, então, que o que se pretende é um compartilhamento de soberanias
em prol de um exercício comum, entre os Estados, no âmbito de uma determinada
organização internacional, onde os Estados podem, de melhor maneira, encontrar
soluções e diretivas para todas as questões que lhes envolvam, seja em âmbito
interno, seja no campo internacional. Evocando os ensinamentos de Carlos Alberto
Husek, descreve-se:
52
53
54
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito das organizações internacionais, p.528-529.
Como bem determina Husek, "quanto mais os Estados abdicarem daquela concepção absolutista da
soberania, melhores condições terão de sobreviver na sociedade internacional, que exige cooperação
e solidariedade". (HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público, p.107).
Segundo a tese defendida por Hans Kelsen, a soberania estatal, no seu âmbito conceitual e prático,
pode ser entendida de duas maneiras: soberania externa e soberania interna. (KELSEN, Hans.
Teoria geral do direito e do estado. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998).
37
Contudo, é certo que, com o Direito Internacional, o Estado viu-se obrigado a
certas adaptações, uma vez que nem sempre pode dar, em todos os assuntos,
a última palavra, premido que está por necessidades políticas, econômicas
e sociais, compensadas pela ordem internacional, independentemente de
ser um Estado de pequeno território ou de imensa massa de terra.55
Adentrando ao primeiro ponto acerca da criação de uma organização
internacional, do seu ponto de vista externo, precisa-se que tal instituto é fruto da
vontade livre dos Estados soberanos, manifestada em um plano internacional, sendo
indispensável sua concordância para a criação, como estima a seguinte passagem:
Os Estados são criadores das organizações internacionais, cujo nascimento
expressa uma vontade estatal coletiva, portanto de caráter internacional.
Esta vontade representa o encontro de interesses e aspirações da comunidade
de Estados que compõem a organização. Ao longo de sua existência, as
organizações internacionais continuarão a depender estreitamente do
entusiasmo ou da apatia, do respeito ou da má-fé que seus membros lhe
dedicam. Em definitivo, a sua evolução e a eficácia de suas ações vinculamse a atitudes individuais ou de grupos de Estados.56
Investiga-se, então, que a criação de uma organização internacional depende
do desenvolvimento de seu tratado constitutivo, que será o marco inicial de seus
trabalhos, determinando seus objetivos, seu âmbito de atuação, seus órgãos internos
e mais todos os elementos necessários para a sua criação e desenvolvimento. Além
de todos esses enfoques, sua carta constitutiva irá delimitar, ainda, a relação da
organização internacional para com a ordem jurídica interna dos Estados que lhe
fazem parte. As delimitações e características de seu tratado constitutivo podem,
brevemente, serem assim descritas:
Tais Tratados, entre outras coisas, enunciam normalmente os grandes objectivos,
finalidades ou missões da OI: definem as competências ou poderes que a
OI pode exercer para alcançar tais objectivos; instituem os órgãos competentes
para formar e exprimir a vontade da OI, para a representar e agir em seu
nome; regulam as condições de admissão dos Estados-membros e, por
vezes, de exclusão daqueles que deixem de preencher os requisitos de
permanência na organização; estabelecem o sistema de financiamento das
55
56
HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público, p.107.
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.51.
38
actividades da Organização, fixando a contribuição de cada Estado-membro –
salvo se a OI for dotada de recursos próprios, o que só excepcionalmente
acontece (caso das Comunidades Européias); regulam em suma, com maior
ou menor pormenor, os mais relevantes aspectos da vida interna e do estatuto
internacional da OI internacional.57
Relatada a criação de uma organização internacional a partir da vontade livre
e soberana dos Estados em instituírem um tratado constitutivo de tais organismos,
propõe-se, ainda, a possibilidade de certas pessoas jurídicas de Direito Internacional
fazerem parte de sua órbita, sendo que, em tais casos, esses determinados entes,
reconhecidos no referido plano – tais como certos territórios além-mar, frações de
Estados, coletividades territoriais dependentes de Estados descentralizados,
coletividades locais58 –, além de outras organizações internacionais – desde que
possível sua participação59 – podem, tais como os Estados, integrarem o tratado
constitutivo de uma organização internacional.
Adentrando no campo de admissão de novos membros na organização
internacional, precisa-se que deverá ser analisado o tratado constitutivo da organização
para a admissão de tais, além da aceitação, pelos então membros da organização, dos
novos membros em questão, levando em conta sua discricionariedade e, também,
alguns elementos objetivos, advindos do próprio regulamento da organização internacional.
Apesar da admissão de novos membros na organização internacional ser
prática constante, no mundo presente, dois problemas vislumbram-se iminentes,
necessitando serem resolvidos para o bom funcionamento da admissão e da própria
instituição, quais sejam: a) estabelecimento da data do início da produção dos
efeitos jurídicos da entrada na organização, com a concordância e assimilação de
direitos e obrigações – já presentes aos membros anteriores – pelos novos membros; e
b) estabelecimento dos direitos e obrigações em relação ao que já fora realizado
pela organização, desde sua criação, ao novo membro.60
57
58
59
60
CAMPOS, João Mota de. Organizações internacionais, p.58.
CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.108.
Para que uma organização internacional possa ser membro de outra organização há de se ter
autorização por intermédio de seu próprio tratado constitutivo, seja daquela que pretende
ingressar ou daquela na qual se pretende o ingresso.
CRETELLA NETO, José, op. cit., p.119.
39
Contrasta-se que, apesar da constância na prática, existem organizações
internacionais que, pelas mais diversas razões, não estão abertas à entrada de novos
membros, ou, então, limitam a entrada a certas características, sejam elas regionais,
políticas, etc. Aponta-se, ainda, que há diversos mecanismos para a aceitação de
um novo membro, sendo que, dessa forma, uma nova classificação para tais surge,
segundo a sua disposição em aceitar novos membros, sendo assim esquematizada:
Pode-se, assim, agrupar as organizações internacionais em três categorias,
conforme sua disposição de aceitar novos membros: as completamente
fechadas, nas quais novos membros simplesmente não são aceitos; as
preponderantemente abertas, nas quais a entrada de novos membros está
sujeita a regras mais flexíveis, e não está sujeita a quorum de aprovação,
por parte dos Estados-membros, mas apenas uma declaração formal de
aceitação do estatuto por parte do candidato a novo membro; e, finalmente,
as relativamente fechadas, nas quais o procedimento para a adesão de
novos membros está sujeito a regras rígidas, como, por exemplo, a
unanimidade na votação, ou, ao menos, maioria qualificada significativa, às
vezes difícil de ser conseguida, dado que os votantes sofrem influências
políticas e desenvolvem análises mais subjetivas do que objetivas sobre a
entrada de novos associados.61
Tal como a vontade de um determinado ente de Direito Internacional em aderir
a uma organização internacional, sua retirada acaba por ser produto, igualmente, de sua
vontade, sendo que nenhum membro está adstrito, ad eternum, a uma organização
internacional, caso essa não seja sua vontade livre e soberana. Constata-se que,
apesar de muitas organizações não preverem, em seu tratado constitutivo, cláusula
expressa de retirada62, sempre se demonstra possível, se essa for a vontade de um
de seus membros.63
61
62
63
CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.120.
Em consonância com o entendimento da doutrina, expressamente sintetizado por Cretella Neto, as
organizações internacionais abstêm-se de prever cláusula expressa de retirada por entenderem
que essa seria causa de enfraquecimento da própria organização internacional.
Acontece que, como a retirada de um membro de uma determinada organização internacional é
um ato extremamente marcante e drástico, seja para o membro, ou para a própria organização,
em geral, os Estados acabam por tomarem uma postura de abster-se de praticar alguns atos no
seio da organização internacional, demonstrando-se sua insatisfação com alguma postura da
instituição por essa via, ao invés de retirar-se de tal.
40
Acontece que a retirada deve obedecer a certos trâmites, que, em geral,
assim se desenrolam:
O procedimento de retirada se desenvolve segundo algumas normas.
A primeira é que a retirada deverá ser precedida de um aviso prévio, dirigido
à organização, normalmente de dois anos antes da efetiva saída.
Outra condição de retirada é a de que o membro que deseja denunciar o
tratado deve cumprir certas obrigações vis-à-vis à organização, tais como a
de pagar as contribuições financeiras passadas e devidas, ou até o final do
prazo em que permanecerá na organização, bem como as obrigações
financeiras que tiver eventualmente contraído na qualidade de membro,
junto a determinadas organizações de caráter econômico.64
Por último, no ato de criação de uma organização internacional, prevê-se,
igualmente, a possibilidade de sanções a seus membros, em caráter gradual de
severidade, de acordo com a infração cometida, sendo a mais grave de todas elas a
possibilidade de expulsão65 de um de seus membros. Apesar de serem previstas, as
organizações internacionais sempre tendem a evitar as sanções e priorizam os canais
de comunicação para eliminação de eventuais problemas para com seus membros.
3.1
AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS E A RESPONSABILIDADE
INTERNACIONAL
Adentrando ao âmbito da responsabilidade internacional, pode ser deduzido
claramente que, sendo as organizações internacionais sujeitos secundários de Direito
Internacional, implicam-se a elas certos direitos e obrigações que, caso venham a
serem descumpridas, incorrem em responsabilidades internacionais de tais instituições.
Esquematiza-se que as organizações internacionais respondem pelo exercício
irregular de suas competências, tendo em vista sua personalidade jurídica internacional,
de tal forma que a expansão dessa personalidade além dos Estados resultou,
igualmente, na expansão da própria responsabilidade internacional, como bem se analisa:
64
65
CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.135.
A expulsão, de maneira geral, será necessária quando um dos membros da organização internacional
vier a violar normas fundamentais da própria organização ou infringir normas e princípios do
Direito Internacional geral.
41
A expansão da personalidade jurídica internacional, abarcando a das
organizações internacionais, faz-se hoje inelutavelmente acompanhar a expansão
da responsabilidade internacional, incluída igualmente a das organizações
internacionais. Enquanto o domínio do direito da responsabilidade internacional
concentrava-se, até recentemente, sobretudo na responsabilidade internacional
dos Estados, em nada surpreende que, em nossos dias, nesta primeira
década do século XXI, passe a voltar suas atenções também à responsabilidade
internacional das organizações internacionais. Estas últimas, ao superar, em
seu labor, a antiga objeção do "domínio reservado" do Estado (compétence
nationale exclusive), contribuíram, elas próprias, à notável expansão de
outros capítulos do Direito Internacional, como, e.g., os atinentes à jurisdição,
e à responsabilidade internacional.66
O principal instituto que cuidou de delimitar a responsabilidade internacional
das organizações internacionais fora a Comissão de Direito Internacional (CDI)67 das
Organizações das Nações Unidas que, em 2003, emitiu um primeiro relatório acerca
do tema, quando determinou que uma organização internacional estaria incorrendo
em um ilícito internacional quando, em face de sua ação ou omissão, descumprisse
uma obrigação internacional vinculante a ela.
Em seu segundo relatório, entendeu-se que a "conduta de um órgão ou
funcionário de uma organização internacional, no exercício das funções desta última,
deve ser considerado como ato da própria organização (para efeitos de configuração
de sua responsabilidade)"68.
Já no seu terceiro relatório, a Comissão entendeu que a própria organização,
em suas regras, pode vir a tratar das violações e, no quarto e quinto relatórios, fora
entendido que as normas de jus cogens de Direito Internacional que vinculam os
Estados, fazem-no, igualmente, às organizações internacionais, como bem analisa
Cançado Trindade:
Significativamente – e como não poderia deixar de ser – o quarto relatório
reconhece que as normas peremptórias do direito internacional (jus cogens)
vinculam as organizações internacionais da mesma forma que os Estados.
Segundo o projeto de artigo 23, nenhuma das circunstâncias eximentes de
responsabilidade aqui contempladas terá validade se o ilícito perpetrado
66
67
68
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Direito das organizações internacionais, p.612.
Examina-se que, já em 1980, quando então a CDI veio a emitir um Parecer, sobre a Interpretação
do Acordo de 1951 entre a OMS e o Egito, previu, de maneira indireta, a responsabilidade
internacional das organizações internacionais, determinando que "as organizações internacionais
são sujeitos de Direito Internacional e, como tais, estão vinculadas por quaisquer obrigações que
lhe imponham as regras gerais do Direito Internacional, suas cartas constitutivas ou os acordos
internacionais em que sejam partes".
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p.615.
42
violar uma norma peremptória do Direito Internacional. Em suma, o jus
cogens vincula todos os sujeitos do Direito Internacional, sejam eles os
Estados, ou as organizações internacionais, ou outros.69
Discute-se que, apesar de todos os esforços na busca de uma coesão e
regras eficazes e claras acerca da responsabilidade internacional, seja dos Estados –
quando então do contencioso em tribunais internacionais –, seja das organizações
internacionais, pode ser entendido que os trabalhos nesse âmbito encontram-se em
fases primárias, necessitando de mais estudos e empenhos, como assim transcreve-se:
Ademais, o contencioso diante dos tribunais internacionais contemporâneos
revela que ainda há muito o que avançar, por parte destes últimos, na
aplicação do direito da responsabilidade internacional dos Estados. Já no
Direito das Organizações Internacionais encontra-se ainda, neste particular,
em sua infância, com o trabalho em curso da CDI. Na medida em que os
trabalhos da CDI avancem, se estará buscando suprir uma lacuna no Direito das
Organizações Internacionais, e no Direito Internacional Público em geral.70
Apesar desse entendimento, deve-se deixar claro, desde logo, que a
responsabilidade internacional do Estado, no que tange aos direitos humanos, difere-se
de todas as suas outras responsabilidades internacionais advindas de outros
documentos legais, justamente pelo fato da valorização intrinsecamente ressaltada – já
consolidada e aceita – dos instrumentos que tratam sobre o tema dos direitos humanos.
Nessa linha de raciocínio, combina-se o entendimento de André de Carvalho Ramos:
[...] esses tratados de direitos humanos são diferentes dos tratados que
normatizam vantagens mútuas aos Estados contratantes. Com efeito, o objetivo
dos tratados de direitos humanos é a proteção de direitos de seres humanos
diante do Estado de origem ou diante de outro Estado contratante, sem levar
em consideração a nacionalidade do indivíduo-tema. Assim, um Estado,
frente a um tratado multilateral de direitos humanos, assume várias obrigações
para com os indivíduos sob sua jurisdição, independentemente da nacionalidade,
e não para com outro Estado contratante, criando o chamado regime objetivo
das normas de direitos humanos. Esse regime objetivo é o conjunto de
normas protelaras de um interesse coletivo dos Estados, em contraposição
aos regimes de reciprocidade, nos quais impera o caráter quid pró nas
relações entre os Estados. Logo, os tratados de direitos humanos estabelecem
obrigações objetivas, entendendo estas como obrigações cujo objeto e fim
são a proteção de direitos fundamentais da pessoa humana.71
69
70
71
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Direito das organizações internacionais, p.615.
Ibid., p.619.
RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p.27-32.
43
3.2
AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS INTERGOVERNAMENTAIS E
SUPRANACIONAIS
Para o entendimento do tópico em questão, necessário se faz ter em mente
que o poder de qualquer organização internacional decorre, necessariamente, da
outorga de competências, previstas em seu tratado constitutivo, pelos sujeitos de
Direito Internacional que a constituem.
Igualmente, exprime-se que não há uma classificação única sobre as
organizações internacionais, e, de tal maneira, seria desnecessário elencar um amplo
rol de classificações, uma vez que, para esse estudo em específico, utilizar-se-á
apenas a diferenciação entre organizações intergovernamentais e supranacionais.
Prova da situação em tela é o trecho elencado a seguir:
É de se advertir para o fato de que, pela sua diversidade e, ao mesmo tempo,
pelas semelhanças estruturais, certas organizações possuem características
múltiplas, podendo ser inseridas em uma classificação, e que a presente
ordenação leva em conta o objeto principal de cada organização internacional,
segundo a configuração jurídica dada por seu estatuto jurídico.72
Assim, as organizações internacionais intergovernamentais recorrem às
bases de cooperação e coordenação entre seus membros, sendo que suas decisões
dependem do aceite desses para que entrem em vigor, não possuindo qualquer
órgão ou poder que esteja acima dos órgãos internos de seus membros. Fala-se,
aqui, de uma situação horizontal entre os órgãos internos de seus membros e dos
órgãos das organizações internacionais.
Já no condizente às organizações internacionais supranacionais, pode ser
dito que estas atingiram graus elevadíssimos de cooperação e coordenação, com uma
outorga cada vez maior de poderes. Nesse sentido, de acordo com a necessidade
do mundo globalizado e com as pretensões dos sujeitos de Direito Internacional que
lhes integram, surgiram, então, as organizações internacionais supranacionais,
72
MENEZES, Wagner, Ordem global e transnormatividade, p.47.
44
materializando-se no próprio Direito Comunitário73 e tendo, como sua expressão
máxima, a União Europeia.
Brevemente, pode-se dizer que as organizações internacionais supranacionais
é que gozam de competências além da própria cooperação e coordenação entre os
Estados, vindo, em seus seios, desenvolverem regras cogentes para seus membros,
possuindo órgãos próprios, desvinculados dos interesses e poderes de seus membros.
Combinados a esses entendimentos, necessário se demonstra elencar,
brevemente, algumas das principais diferenças entre as organizações internacionais
supranacionais e as organizações internacionais intergovernamentais.
O primeiro grande ponto diferenciador diz respeito ao grau de capacidade
do exercício autônomo das competências recebidas pelas organizações, tendo
em vista que as organizações internacionais supranacionais, diferentemente das
intergovernamentais, possuem uma elevada efetividade para exercício autônomo de
tais competências, sendo que um exemplo exponencial de tal é que as decisões
judiciais de seus órgãos legislativos são aplicáveis de imediato no interior de seus
membros, não necessitando nem mesmo do exequatur.74
Além disso, as organizações internacionais supranacionais, ainda, diferem-se
por contar com órgãos, com poder de decisão, que representam a própria organização,
e não qualquer um de seus membros e, ainda, que suas decisões sejam adotadas
por maioria na maior parte das vezes.75
Por fim, discute-se que as organizações internacionais supranacionais contam
com uma flexibilidade muito maior da soberania de seus membros do que as
organizações internacionais intergovernamentais, uma vez que, nas primeiras, seus
membros cedem, de maneira efetiva, parcela de sua soberania, abrindo mão de seu
controle, no âmbito interno, de vários assuntos para vir, em um poder supranacional,
com interesses próprios e desvinculados de seus membros, delimitarem limites e
diretrizes comuns àqueles que dela fazem parte.
73
74
75
Não se pretende, nesse momento, enfocar de maneira precisa o Direito Comunitário, tendo em
vista todos os seus aspectos peculiares. Visa-se, apenas, elencar algumas das principais diferenças
entre as organizações internacionais supranacionais – fenômeno recentíssimo no mundo globalizado –
e as organizações internacionais intergovernamentais.
VASCONCELLOS, Ricardo Rocha de. O poder das organizações internacionais. Tese (Doutorado
em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. p.26
D'ARCY, François. União Européia: instituições políticas e desafios. Rio de Janeiro: Konrad
Adenauer Stifting, 2002.
45
4
O PROCESSO DECISÓRIO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS
Um ponto de extrema relevância no estudo e entendimento das organizações
internacionais é o aspecto de seu processo decisório, uma vez que é, através dele,
que as organizações internacionais materializam-se seus atos internacionais.
Assim sendo, cabe fazer algumas ressalvas antes de se adentrar ao processo
de tomada de decisão propriamente dito das organizações internacionais.
Um primeiro ponto de extrema relevância é a questão de que a tomada de
decisão no interior da organização internacional sobrepõe-se à questão puramente
técnica, alcançando o próprio jogo de poder, entre seus Estados-membros, presente
nas relações internacionais. Ou seja, apesar do ideal das organizações internacionais
ser, em tese, claramente diferenciado e independente dos presentes em seus membros,
é impossível não haver uma determinada influência, no processo decisório, daqueles
que detêm o poderio e a ideologia predominante num contexto internacional.
Como a imensa maioria das organizações internacionais encontra-se no
plano intergovernamental, acaba por ser indiscutível a presença de maior relevância
das opiniões e ideologias daqueles Estados que possuem maior influência no campo
internacional. Ou seja, o processo de tomada de decisão, apesar de querer ser
independente e neutro, insere-se na realidade ideológica dominante em seu momento.
Em outras palavras, pode-se dizer:
Torna-se imprescindível distinguir claramente a ideologia da organização
internacional como sujeito da decisão e a ideologia dos atores, particularmente
os Estados membros. Contudo esta distinção não pode afastar a organização
internacional do meio onde ela atua. Caso contrário, estaríamos admitindo a
existência de uma ideologia supranacional, dominadora do conjunto do sistema
das relações internacionais. Ora, mesmo a unidade ideológica que atualmente
impera em grande parte do sistema internacional é mais aparente do que
real; os conflitos interestatais prosseguem, somente se sustentando com
menos vigor no discurso ideológico, mas não afastando o seu conteúdo.
Portanto, para identificação dos contornos reais, além dos institucionais,
eles devem ser inseridos no âmbito das relações internacionais e dos embates
que aí ocorrem.76
76
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.43.
46
Precisa-se, ainda, que o processo decisório, no interior de uma organização
internacional, contou com a presença da influência desse jogo de forças entre os
seus membros, até mesmo, no processo de votação, quando interferiu na passagem do
princípio da unanimidade para a maioria, incluindo, aí, a passagem da importância
do bilateralismo para o multilateralismo no jogo internacional, como bem explica
Cançado Trindade:
O processo de tomada de decisões nos organismos internacionais está
longe de ser uma questão meramente técnica. Pode refletir ou influenciar o
próprio jogo de forçar prevalecente no sistema internacional ou regional.
Assim por exemplo a evolução do princípio da unanimidade da política dor
grandes poderes à regra da maioria – própria aos sistemas da ONU e da
OEA – realçou o papel também dos pequenos Estados nos procedimentos
de votação, contribuiu ao policentrismo e, de certo modo mitigou a importância
da bipolaridade; e, por sua vez, a emergência e fluidez de novos grupos de
votação, acentuaram a flexibilidade e o âmbito de interesses manifestados,
por exemplo, nos órgãos da ONU, "sem transformar drasticamente os
limites impostos pelo sistema internacional".77
Adentrando ao procedimento de tomada de decisões nas organizações
internacionais, pode-se dizer, em um primeiro momento, que tais decisões materializam-se
através de atos de naturezas diversificadas, podendo ser classificados como regulamentos,
recomendações, resoluções, decisões, pareceres ou quaisquer outros atos que estejam
determinados no seu pacto constitutivo.
Deve-se ter em mente que todos os atos produzidos, em caráter geral78,
através do processo decisório previsto na organização, tem caráter internacional e
obrigatório para seus membros – especialmente aos Estados – sendo que, alguns – no
que tange a temas pertinentes à paz e à segurança internacional – podem obrigar,
até mesmo, Estados não participantes da própria organização, tendo em vista a sua
indiscutível relevância no plano internacional.
Mas para que uma organização internacional tenha como legítimo seu processo
decisório, é necessária a votação de seus membros, sendo que, ao longo de seu
77
78
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Direito das organizações internacionais, p.235.
Segundo o entendimento doutrinário majoritário, diz-se que os atos de caráter geral de uma organização
internacional são aqueles que preveem a obrigatoriedade a todos os Estados-membros da própria
organização, uma vez que alguns dos atos tomados por esta última têm alcance individual, ou
seja, visam apenas um Estado ou uma categoria de Estados previamente identificados.
47
histórico, a forma de votação e adoção de decisões fora sofrendo alterações,
adequando-se à realidade em que se encontrava.
Observa-se que a primeira forma de votação fora instituída por unanimidade,
ou seja, todos os membros da organização internacional deveriam estar de acordo
com os termos do processo e da própria decisão.
Uma vez que, com o passar dos tempos, especialmente após 1945 – que
significou o surgimento das Organizações das Nações Unidas –, as organizações
internacionais vieram a se desenvolver de forma estrondosa, com a consequente
adesão de inúmeros Estados, o modo unânime de adoção de decisões se demonstrou
um entrave ao seu desenvolvimento e, então, adotou-se o modo de votação por
maioria, onde bastava que um número maior que a metade dos Estados-membros
estivesse de acordo com o processo de tomada de decisão para que essa se
demonstrasse legítima. Fica claro que alguns processos decisórios guardam resquícios
da adoção por unanimidade, como é o caso do Conselho de Segurança, que só
pode vir a adotar uma decisão caso os seus cinco membros permanentes – Estados
Unidos, China, Rússia, França e Reino Unido – concordem com seus termos.
Em um momento mais presente o que se observa é a adoção da decisão por
intermédio do consenso entre os Estados-membros, o que se traduz na busca por
uma maior flexibilidade e na aplicação da negociação no processo de tomada de
decisões no interior das organizações internacionais.
Não se pode perder de vista que o processo de tomada de decisões, no âmbito
das organizações internacionais, acompanhou o seu próprio histórico e, também, todos
os movimentos da sociedade internacional, visando, ultimamente, a maior efetividade
na tomada e efetividade das decisões, como bem se observa na seguinte passagem:
No desenvolvimento histórico das organizações internacionais, foi particularmente
significativa a passagem da regra da unanimidade à da maioria. A primeira,
vigente na Liga das Nações, foi abandonada pelas Nações Unidas em face
da paralisia que acarretara e por se ter mostrado inviável para foros
multilaterais amplos [...]. O sistema de veto, no Conselho de Segurança da
ONU, pode ser tido como um resquício da regra da unanimidade: reduzindo
esta unanimidade dos "cinco grandes" para garantir a ação coletiva do
Conselho, tornou-se nova fonte de paralisia institucional.
48
Em matéria de processo decisório, a evolução recente mais significativa, no
entanto, é a gradual utilização da técnica do consenso [...]. O que aqui se
busca é a solução global, negociada, não raro mediante acordos e acomodações
de posições de blocos, como parte de um processo flexível e sem excessivo
formalismo, levando à adoção de textos que refletem tão somente as soluções
que se lograram alcançar e não fórmulas ideais.79
Evoca-se no processo decisório de uma organização internacional o princípio
da máxima eficácia, o qual refere-se à questão que um Estado deverá, para fazer
parte de uma organização, necessariamente, ter o mínimo de influência em seu processo
decisório, não podendo, nesse ponto, ser discriminado.80
Acontece que, em alguns organizações internacionais, há a previsão da
adoção de certas decisões sem uma votação formal, sendo determinadas pelo
Secretário, Presidente ou Diretor Geral da organização, levando, sempre, em conta
os aspectos, a importância e as convicções dos Estados-membros.
Essas decisões sem votações decorrem de três fatores: formal, material e
funcional. No que condiz ao aspecto formal, observa-se a previsão de adoção de
decisões, sem votação, no próprio estatuto da organização. Já segundo o fator material,
leva-se em conta a assimetria das forças dos membros da organização, prevendo
que fica impossibilitada a adoção de determinadas decisões caso alguns membros –
considerados de relevância extrema no plano internacional – não concordem com
tal. Por fim, no que tange ao aspecto funcional, diz-se que as organizações, por
tomarem muitas decisões de cunho político, evitam sobremaneira o confronto entre
seus membros quando adotam decisões sem a necessidade de votação, priorizando,
então, o debate e a negociação sobre tais temas.81
Seja com ou sem votação, o processo decisório nas organizações internacionais
tende a percorrer, teoricamente, cinco etapas, sendo assim descritas: 1) o nascimento
propriamente dito da decisão, quando então os membros da organização acordam
em discutir um determinado tema e solucioná-lo; 2) o surgimento do consenso entre
esses mesmos membros; 3) a edição de um texto formal, respeitando o disposto na
carta constitutiva da organização; 4) a consequente aplicação do texto da decisão entre
os membros e, caso o tema seja de extrema importância – tangente, especialmente,
79
80
81
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Direito das organizações internacionais, p.236-237.
CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.234.
Ibid., p.237-238.
49
à paz e segurança internacional –, em toda a sociedade internacional; e 5) a eficácia
fática da decisão.82
Apesar de toda essa trajetória estipulada, pode ocorrer a supressão ou acréscimo
de alguma etapa, mas fica evidente que necessário se faz, respeitando os objetivos
da organização internacional, a implementação da decisão pelos membros dela.
Acontece que, muitas vezes, os membros de uma organização internacional –
nesse caso, especialmente, os Estados – acabam por não respeitarem os termos de
uma decisão e, dessa forma, ficam sujeitos às medidas previstas, para tal atitude, na
carta constitutiva da organização internacional. Argumenta-se que essa atitude dos
membros faz-se tornar possível, por parte dos órgãos da organização internacional,
a suspensão de certos direitos àqueles que não respeitarem a decisão em questão.
Tais suspensões podem materializar-se na suspensão do direito de voto, por
exemplo, na suspensão de certas vantagens de caráter financeiro, ou a suspensão
do direito de participação na organização e, até mesmo, a expulsão do membro que
não acolher a decisão.
O problema que se vislumbra, na comunidade internacional, é que, muitas
vezes, tais sanções previstas, quando do não acolhimento de uma decisão de uma
organização internacional por um de seus membros, tornam-se difíceis de serem
implementadas, sendo necessária, claramente, a participação e a pressão de todos
os outros membros para que a sanção cumpra a sua devida finalidade. Para melhor
esclarecer o tema, refere-se ao seguinte ponto descrito por Cançado Trindade:
As sanções no plano internacional têm sido examinadas à luz de distintos
métodos de classificação. Exemplo de sanção direta ou imediatamente aplicada
é fornecido pela suspensão geral de um Estado-membro de uma Organização
internacional. Têm-se distinguido as sanções econômicas seletivas e
globais, e, mais amplamente, as sanções voluntárias (recomendadas por
órgãos internacionais) e mandatórias (a exemplo das ditadas pelo Conselho
de Segurança da ONU sob o capítulo VII da Carta para lidar com uma
ameaça à paz). Quaisquer que sejam, porém a função e o grau de intensidade
de atuação de uma Organização internacional, as sanções não são selfexecuting, e sua aplicação ou implementação – como o demonstram
claramente, e.g., as sanções sob o capítulo VII da Carta da ONU – conta em
última análise com o indispensável concurso dos Estados; surgem aqui
82
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.47.
50
prontamente dificuldades práticas, dados os distintos graus de resposta ou
disposição em cumprir as sanções por parte dos Estados individualmente, a
possibilidade de tentarem evitar ou adiar decisões quanto à implementação
face aos riscos e custos envolvidos e possíveis desacordos quanto aos
próprios métodos de implementação das decisões.83
Apesar de não ser medida corrente, por conta da pressão internacional, o
Estado-membro que não concordar com a decisão, tomada de forma legal e prevista
pela organização, e não querer adotá-la poderá, como meio legítimo para descumpri-la,
retirar-se da organização internacional, como bem estima a seguinte passagem:
A única escapatória que resta a um Estado-membro que não queira
conformar-se com o carácter obrigatório do acto regulamentar adoptado por
maioria é a de se retirar da Organização. Mas esta escapatória é em geral
pouco praticável no caso da OI que como verdadeiros serviços públicos
internacionais asseguram a cooperação nos múltiplos domínios em que, na
época actual, um Estado não pode dispensar sob pena de se ver posto à
margem da convivência internacional.
Cada organização está em geral dotada dos meios de pressão indispensáveis
para impor o respeito das normas que dita, nomeadamente através de
sanções de natureza disciplinar (suspensão ou mesmo, eventualmente,
exclusão do Estado prevaricador da sua participação na Organização).84
Finalmente, o que se prevê, no processo decisório de uma organização
internacional, é a eficácia final de suas decisões, conformando-se com toda a sua
regulamentação e, especialmente, com os demandes de todo o contexto internacional.
Para que isso seja possível, indispensável se demonstra que seus membros – em
especial, os Estados – estejam aptos a entender a importância extrema de uma
organização internacional e, por consequência, de suas decisões, no contexto do
mundo globalizado que demanda, cada vez mais, a credibilidade de tais instituições
para a manutenção da ordem nos mais variados campos da vida em sociedade –
especialmente, da sociedade internacional.
83
84
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Direito das organizações internacionais, p.388-389.
CAMPOS, João Mota de. Organizações internacionais, p.141.
51
4.1
OS ÓRGÃOS JURISDICIONAIS INTERNACIONAIS
Pretende-se, aqui, discorrer, genericamente, sobre os órgãos jurisdicionais
internacionais, uma vez que são eles quem detêm a competência para obrigar os
Estados, mediante suas decisões, em um plano internacional e, igualmente, obrigarlhes a produzir a eficácia esperada em seu âmbito interno.
Nesse sentido, pode-se dizer que, quando do seu surgimento, pretendeu-se
instituir métodos do direito interno para os órgãos jurisdicionais internacionais.
Acontece que há diferenças incontornáveis entre a sociedade interna e a sociedade
internacional e, consequentemente, entre o direito interno e o próprio direito internacional,
o que acarreta na necessidade das jurisdições internacionais terem que trilhar
caminhos próprios para garantia da eficácia de suas decisões. Em tal aspecto,
ilustram-se os entendimentos de Cretella Neto:
Isso ocorre porque a fisionomia das jurisdições internacionais assume contornos
próprios, mas a maioria não chega a satisfazer os padrões ideais do Direito
interno. Além disso, as profundas e incontornáveis diferenças entre a
sociedade internacional e as sociedades internas dificultam a adoção de
critérios universais identificadores de uma "jurisdição internacional". Inegável
que o juiz deva ser alguém que represente um organismo que inspire
confiança nas partes, por atuar não de forma casuística, mas sistemática e
com razoável previsibilidade. Adicionalmente, identifica-se, na sociedade
internacional, uma quase onipresente ausência de hierarquia entre as
instâncias jurisdicionais, o que enfraquece a análise da matéria recursal
como indício seguro para classificar uma jurisdição como internacional [...].
De fato, parece incontestável que as jurisdições internacionais guardam
apenas pálida semelhança com as jurisdições nacionais.85
O problema que se vislumbra é que, até hoje, a doutrina majoritária não
conseguiu, ainda, instituir um conceito sobre os órgãos jurisdicionais internacionais.
Em outras palavras, pode ser dito que o conceito de tribunais internacionais encontra-se,
hoje, passível de complementação.
85
CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.171.
52
Avalia-se que essa lacuna no Direito Internacional torna-se um problema aos
Estados que são sentenciados em tais cortes internacionais, uma vez que a eficácia
da decisão acaba por encontrar-se comprometida por dois motivos: primeiro, por não
se saber exatamente a amplitude do conceito dos órgãos jurisdicionais internacionais;
segundo, os organismos internos da grande maioria dos Estados que compõem a
sociedade internacional encontram-se, ainda, em fase embrionária de como internalizar
e dar eficácia a tais decisões.
Especialmente no âmbito dos direitos humanos, quando um Estado é condenado
por um tribunal internacional acerca de uma violação ocorrida e não reparada em
seu interior, é necessária e urgente e automática a internalização e a consequente
eficácia da sentença advindas das cortes internacionais – chamadas, aqui, de
sentenças internacionais –, não devendo ser alegada a referida lacuna como escusa
para o seu não cumprimento, tendo em vista o caráter relevante e imprescindível da
decisão para a proteção do próprio direito.
4.2
SENTENÇAS INTERNACIONAIS X SENTENÇAS ESTRANGEIRAS
Há muito se tem debatido sobre sentenças internacionais e sentenças
estrangeiras, sendo que, em alguns casos, erroneamente, utilizam-se ambas as
nomenclaturas como sinônimos.
Primeiramente, não se deve confundir Direito Internacional com o direito
estrangeiro. Enquanto o primeiro trata da regulamentação jurídica da própria sociedade
internacional, o segundo trata das jurisdições e leis advindas do interior de um
determinado Estado. Valério Mazzuoli esclarece tal distinção no seguinte trecho:
Ora, sabe-se que o direito internacional não se confunde com o chamado
direito estrangeiro. Aquele diz respeito à regulamentação jurídica da sociedade
internacional, na maioria dos casos feita por normas internacionais. O direito
internacional disciplina, pois, a atuação dos Estados, das Organizações
Internacionais e também dos indivíduos no cenário internacional. Já o direito
estrangeiro é aquele afeto à jurisdição de determinado Estado, como o
direito italiano, o francês, o alemão e assim por diante.86
86
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O tribunal penal internacional e o direito brasileiro. 2.ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p.92.
53
Adentrando às sentenças estrangeiras, deve-se dizer que elas vêm a ser
prolatadas em um Estado diferente daquele que terá que produzir sua eficácia,
dependendo de homologação no Estado em que deverá produzir seus efeitos.
Também, atém-se ao fato de que as sentenças estrangeiras são prolatadas
pelo judiciário de um Estado, cabendo à cooperação horizontal87 determinar seu
cumprimento na jurisdição de outro Estado, por intermédio, como acima referida, da
homologação de sentenças estrangeiras. Elucida-se tal entendimento com as
palavras de Vladmir Silveira:
Cada Estado dispõe de poder jurisdicional nos limites de seu território,
competindo às autoridades judiciárias nacionais conhecerem das causas que
nele tenham seguido. Assim sendo, o julgamento proferido no estrangeiro,
via de regra, não tem eficácia em território diverso do que fora prolatado. No
entanto, em decorrência da necessidade de coexistência entre os Estados
soberanos, bem como para exigências de ordem prática, a maioria dos
sistemas de direito positivo confere eficácia, nos territórios dos Estados
quais emanam, às sentenças proferidas no exterior, seja pela extensão dos
efeitos da sentença ao território, seja pela atribuição à sentença de efeitos
idênticos aos quais teria uma decisão nacional de conteúdo igual.88
Nesse sentido, a referida homologação de sentença é uma aplicação indireta
da lei estrangeira, uma vez que a aplicação do direito estrangeiro se deu na própria
jurisdição do local, e não internamente, onde se pretende fazer executar a sentença –
lembra-se que a aplicação do direito estrangeiro pode ser empregada pelo juiz do
foro, na composição da lide de outro país (aplicação direta) ou pela execução de
sentença proferida pela justiça estrangeira, pendente de homologação no primeiro
(aplicação indireta).89
Assim sendo, deduz-se que as sentenças estrangeiras não guardam estrita
relação com qualquer órgão internacional, dependendo, apenas, do relacionamento
direto entre os órgãos jurisdicionais dos Estados em que foram prolatadas e
87
88
89
Diz-se ser a homologação de sentenças estrangeiras decorrente de uma cooperação horizontal
uma vez que, entre os judiciários dos Estados, não há uma sobreposição de poderes e/ou valores,
estando todos eles em um mesmo patamar.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da. O Tribunal Penal Internacional e a garantia dos direitos humanos.
Revista Diálogo & Debates da Escola Paulista da Magistratura (EPM), São Paulo, v.7, n.1,
p.20-21, 2006.
DEL'OLMO, Florisbal de Souza. Direito internacional privado. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.69.
54
daqueles que dependem para a sua eficácia. Segundo sua conceituação, avaliam-se
as sentenças estrangeiras90:
A sentença estrangeira é considerada apenas como fato perante sistemas
jurídicos que não lhe admitem qualquer efeito enquanto manifestação
jurisdicional, sendo, portanto, inútil um procedimento judicial destinado a sua
homologação. Por outro lado, em face daqueles sistemas jurídicos nacionais
em que a revisão de mérito é condição de validade para a sentença
estrangeira ou ainda quando sua aceitação e reconhecimento dependem de
reciprocidade, a decisão estrangeira é ato jurisdicional de eficácia reduzida,
na medida em que seus efeitos dependerão diretamente de uma nova
sentença a ser prolatada no foro nacional. Já naqueles sistemas jurídicos
em que a sentença está sujeita a uma revisão parcial ou a um mero
procedimento delibatório, a decisão estrangeira é ato jurisdicional, ou um
equivalente jurisdicional, como define Carneluti, pois atinge fim idêntico ao
objetivado pela função jurisdicional.91
Diz-se, ainda, que a homologação tende a solver e amparar as relações
privadas e respeitar a ordem pública, a soberania e os bons costumes do Estado em
que se requer essa primeira.
Diferentemente das sentenças estrangeiras, as sentenças internacionais advêm
de Cortes internacionais, cujas quais um Estado submete-se, em plano internacional,
materializando, de tal forma, uma cooperação vertical.92 De tal maneira, as sentenças
internacionais podem assim ser conceituadas:
Sentenças internacionais são atos judiciais emanados de organismos judiciários
internacionais de cuja formação o Estado participou com o produto de sua
vontade, seja porque aceitou a sua jurisdição obrigatória, como é o caso do
TPI, seja porque, mediante acordo especial, concordou em submeter a
solução de determinada controvérsia a um organismo internacional, como a
Corte Internacional de Justiça. O Estado tem a faculdade de aceitar ou não a
jurisdição de um tribunal internacional, mas se aceitou, mediante declaração
formal, como se verifica com o caso do TPI, o país está obrigado a dar
cumprimento à decisão que vier ser proferida, sob pena de responsabilidade
internacional.93
90
91
92
93
Outra conceituação é aquela proposta por José Carlos Barbosa Moreira, a qual diz que a sentença
estrangeira seria toda decisão, seja qual for sua natureza (declaratória, constitutiva, condenatória
ou outra porventura doutrinariamente admitida), que tenha conteúdo de julgamento.
HUCK, Hermes Marcelo. Sentenças estrangeiras e "lex mercatoria": horizontes do comércio
internacional. São Paulo: Saraiva, 1994. p.23.
A cooperação vertical é determinada segundo um quadro onde um Estado compartilha parte de
sua soberania e submete-se a um organismo internacional em prol de um bem comum, sendo
que, quase que na totalidade dos casos, em prol da proteção e efetivação dos direitos humanos.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira, O tribunal penal internacional e o direito brasileiro, p.92-93.
55
Nesse momento, importante vem a ser entendido que tais organismos
internacionais, capazes de condenarem os Estados no referido plano, propõem seus
entendimentos por intermédio de sentenças internacionais que, além de sua
denominação, não guardam qualquer semelhança com sentenças estrangeiras, a não
ser pelo fato de ambas serem o instrumento de uma decisão, ou seja, uma sentença.
No que tange ao comprometimento dos Estados em plano internacional,
precisa-se que:
Ressalta-se que o exercício desta jurisdição internacional baseia-se em ato
de liberdade do Estado aderente em relação a sua soberania, pois a
jurisdição é um atributo da soberania e o Estado aderente, manifestando-se
soberanamente no âmbito internacional, passa uma parcela dessa soberania
para a entidade supranacional, que passa a dispor de jurisdição sobre o
próprio Estado, mas não deixa de exercer sua vontade de aplicar a lei e de
julgar de acordo com o conjunto de leis acordadas.94
De acordo com o que se prevê sobre sentenças internacionais, cabe ressaltar
que o procedimento não depende de homologação95, uma vez que os organismos
internacionais detêm jurisdição sobre o próprio Estado – segundo a vontade expressa
deste –, sendo que, este último, deve vir a respeitar suas condenações, sob pena de
responsabilização internacional.
Cabe ressaltar, ainda, que em território nacional, o próprio Superior Tribunal de
Justiça já determinou, expressamente, que sentenças estrangeiras não se confundem com
sentenças internacionais, quando o então Ministro Francisco Falcão, especificou que:
A Corte Internacional não profere decisão que se subsuma ao conceito de
"sentença estrangeira", visto que é órgão supranacional. [...] A CPIJ, assim
como a Corte Internacional de Justiça, não são cortes ou tribunais estrangeiros,
cujos julgamentos não são decisões judiciais ou sentenças estrangeiras que
requeiram qualquer tipo de exequatur ou homologação.96
94
95
96
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da. O Tribunal Penal Internacional e a garantia dos direitos humanos, p.21.
Debate-se que, no caso brasileiro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), não possui compet^neica
para homologar sentenças proferidas por tribunais internacionais, uma vez que estes decidem
acima das instâncias soberanas estatais, tendo jurisdição sobre o próprio Estado, uma vez que
este reconheceu a por liberalidade própria, jurisdição daqueles tribunais internacionais.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. SEC 2707/NL, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, Corte
Especial, Julgado em 03/12/2008, DJe 19/02/2009.
56
Documenta-se, ainda, que no que tange a organismos que tendem a condenar
os Estados, em plano internacional, quando da violação de um determinado direito do
rol dos direitos humanos – caso, obviamente, os Estados tenham reconhecido suas
jurisdições –, então se está diante de uma sentença internacional. Especificamente a
este trabalho, pontua-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos produz,
para efeitos nacionais, sentença internacionais passíveis de responsabilização
internacional ao Brasil.
Nesse momento, passa-se à análise de alguns aspectos dos direitos humanos
para que seja possível o entendimento de seus sistemas de proteção e, para que se
compreenda, após, o caso específico brasileiro.
57
CAPÍTULO 2
DIREITOS HUMANOS
1
CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS
Inicialmente, para o melhor entendimento do presente capítulo, é de grande
valia o estudo dos principais acontecimentos que permitiram o desenvolvimento do
conceito de direitos humanos e, consequentemente, a alusão concreta ao seu conceito.
Pontua-se que não se pretende aqui esgotar todos os possíveis caminhos
que levam ao próprio conceito de direitos humanos e, muito menos, fazer com que
tal instituto consolide, de forma taxativa, um único conceito. Busca-se, sim, nesse
momento, algum embasamento que permita o desenrolar do presente estudo e,
também, venha a dar estrutura sólida e teórica para os próximos capítulos desta obra.
Assim sendo, para o início desta análise, é necessário levantar uma polêmica
doutrinária: para a investigação de seu conceito, primariamente, é importante saber
qual vem a ser a sua natureza, podendo ser ela a de direitos naturais, positivos,
históricos ou advinda do sistema moral, segundo o entendimento de Flavia Piovesan.97
Ocorre que os direitos humanos não podem ter, taxativamente, como uma única
natureza: são direitos complexos, que se encontram em constante mutação, dependendo
de diversos fatores, sendo que, por tal fato, facilmente podem ser encaixados como
detentores de diversas naturezas. Não é possível pensar em direitos humanos e não
entendê-los como sendo uma condição básica da existência do homem e, também, da
sua própria moral; ou, ainda, julgam-se ser os direitos humanos direitos propriamente
ditos, tendo uma natureza positivada e, também, histórica, uma vez que todos os
direitos acabam por serem influenciados por esta última. Por isso mesmo, neste estudo,
entende-se que a natureza dos direitos humanos não é única, sendo sim composição
de diversas delas, como bem estima o seguinte trecho:
97
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 8.ed. São Paulo:
Saraiva, 2007.
58
Defende este estudo a historicidade dos direitos humanos, na medida em
que estes não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em
constante processo de construção e reconstrução. Enquanto reivindicações
morais, os direitos humanos são fruto de um espaço simbólico de luta e
ação social, na busca por dignidade humana, o que compõe um construído
axiológico emancipatório. Como leciona Norberto Bobbio, os direitos humanos
nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos
positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de
Direitos) para finalmente encontrar a plena realização como direitos positivos
universais [...].98
Discute-se sobre a natureza dos direitos humanos em um momento mais
presente, quando então a consolidação deste instituto, em seus moldes mais ou menos
definidos por toda a sociedade ocidental, já fora reconhecida. Mas, diferentemente
do que se imagina a partir da análise de sua natureza, a noção de direitos humanos,
mesmo que de maneira primitiva, já viera a ser aludida em tempos remotos, tal como
na Grécia antiga, inspirando uma nova dignidade e dando margens ao florescimento
das teorias cristãs da lex aeterna e da lex naturalis, as quais vieram basilar o
desenvolvimento dos direitos humanos. Nas palavras de Celso Lafer:
Na vertente grega da tradição cabe mencionar o estoicismo, que na época
helenística, com o fim da democracia e das cidades-estado, atribuiu ao
indivíduo que tinha perdido a qualidade de cidadão, para se converter em
súdito das grandes monarquias, uma nova dignidade. Esta nova dignidade
resultou do significado filosófico conferido ao universalismo de Alexandre.
O mundo é uma única cidade – cosmo-polis – da qual todos participam como
amigos e iguais. À comunidade universal do gênero humano corresponde
também um direito universal, fundado num patrimônio racional comum, daí
derivando um dos precedentes da teoria crista da lex aeterna e da lex
naturalis, igualmente inspiradora dos direitos humanos.99
Com o decorrer dos tempos, as premissas para a construção dos direitos
humanos, tal como hoje se concebe, vieram a sofrer interferências. Já na época
medieval, buscou-se a verdade eterna e, mais à frente, os modernos, voltando-se ao
mundo interior do indivíduo, questionaram se era possível a verdade eterna, sendo que
tal dicotomia veio, de maneira incisiva influenciar a construção dos direitos humanos
como hoje se compreendem, uma vez que ambos os entendimentos basearam-se no
individualismo, o qual, hoje, baseia as noções de liberdade. Segundo a passagem:
98
99
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.109.
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. 6.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.119.
59
É neste contexto que importa realçar outra dimensão importante da tradição
que ensejou o tema dos direitos humanos, a saber o individualismo na sua
acepção mais ampla, ou seja, todas as tendências veem no indivíduo, na
sua subjetividade, o dado fundamental da realidade. O individualismo é
parte integrante da lógica da modernidade, que concebe a liberdade como a
faculdade de autodeterminação de todo ser humano. [...] Isto culminará na
elaboração do conceito de direito subjetivo – especificamente, nos poderes
de agir atribuídos ao indivíduo [...].100
Mais tarde, quando do surgimento do Estado e das angústias populares por
melhores condições de vida, vieram a ocorrer, de fato, as primeiras Declarações, cujas
quais, sem sombra de dúvidas, trouxeram importantes consequências ao desenrolar
dos direitos humanos, além de cristalizar sua natureza positivista e conferir a tais um
teor permanente, seguro e estável.101
Perfeitamente nítido, segundo os entendimentos acima mencionados, é que o
desenrolar histórico é indissociável da construção do conceito dos direitos humanos,
por mais dificultosa que essa possa parecer. Ainda, pode-se entender perfeitamente que
os principais valores – que vão ser tidos como basilares ao conceito – encontram-se
em um plano superior ao daquilo previsto na letra do ordenamento jurídico e que o
próprio desenrolar histórico permitiu que tais direitos viessem a abarcar um número
cada vez maior de indivíduos. É esse o entendimento de Vladmir da Silveira, cujo
qual este trabalho acompanha, traduzindo-se de tal maneira:
O fato é que a formulação dos direitos humanos obedece às nítidas linhas
históricas do pensamento, expressando valores que se encontram acima do
ordenamento jurídico. Com efeito, se a expressão "direitos humanos"
conforma uma ideologia que surgiu em dado momento histórico, vinculada
aos interesses de uma classe particular, isso não implica negar-lhe consenso
e validade, para que cada vez mais supere suas determinações históricas,
espraiando-se num universo cada vez mais amplo de pessoas e direitos.102
Avaliado este caráter, passa-se, então, ao estudo do conceito propriamente dito,
podendo ser concebido, num primeiro momento, o ponto que os direitos humanos,
tanto na sua prática, e, especialmente, em sua teoria – que aqui vem a ser analisada –
100
101
102
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos..., p.120.
Neste momento, cabe apenas ressaltar o papel das Declarações, em um aspecto geral, no
histórico dos direitos humanos, sendo que o papel primordial e específico das principais Declarações
será, no momento oportuno, melhor estudado.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos: conceitos,
significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010. p.205.
60
são indissociáveis da dignidade da pessoa humana. Em outras palavras, significa que
o instituto da dignidade da pessoa humana tem, necessariamente, que estar presente
e se fazer presente quando, então, se trabalha com o termo "direitos humanos".
O cerne principal da questão é que é ela, a dignidade da pessoa humana,
que, mesmo possuindo diversas significações, ainda assim, traduz a unidade e a
permanência dos direitos humanos. Ou seja, quando um determinado ordenamento
jurídico diz que suas leis devem ser interpretadas em acordo com a dignidade da
pessoa humana, entende-se que os direitos humanos estão inerentes, permanentes e
em congruência com o completo aparato de leis, em todas as diretivas que coordenam
esse direito, o que pode ser muito bem traduzido na seguinte esquematização:
Na busca de tal conceito, previamente devemos observar seu principal
fundamento – a dignidade da pessoa humana –, pois é a partir ele que se
dá a construção de um significado de direitos humanos válidos para todos.
Já antecipamos que a partir do fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, a
expressão "direitos humanos" vinculou-se definitivamente ao valor da dignidade
da pessoa humana, no viver, no conviver e no porvir dos indivíduos dentro
da comunidade. Essa é a ideia máxima dos direitos humanos, seu núcleo
valorativo e estável, que concede a estes um sentido de unidade e de
permanência.103
Nessa via de entendimento, cabe ressaltar que o conceito de direitos
humanos – tal como o conceito de dignidade humana104 – não possui apenas um
único condão, podendo, ao longo do tempo e dependendo dos interesses inerentes
à sociedade que pretende se analisar, ser flexibilizado ou, até mesmo, transformado.
Por isso mesmo, a dificuldade em se estabelecer um conceito único e finalizado para
os direitos humanos é infinita.
Mesmo assim, procura-se, de maneira coerente e levando em conta
aspectos coincidentes na maioria das sociedades e, também, adequando-se às suas
particularidades, certas características que possam vir não a definir o conceito de
direitos humanos, mas sim ajudar na construção de seu entendimento.
103
104
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.207.
Segundo Vladmir Oliveira da Silveira, apesar da dignidade da pessoa humana não ter um conceito
pronto e acabado, há alguns valores que não podem ser dissociados dela própria, quais sejam:
justiça, vida, liberdade, igualdade, segurança e solidariedade.
61
De tal maneira, podem ser elencadas algumas características essenciais aos
direitos humanos – considerando, sempre, peculiaridades históricas105 ao analisá-las –
quais sejam: inalienabilidade, irrenunciabilidade, intangibilidade, imutabilidade,
imprescritibilidade e inviolabilidade de tais.
Referindo-se à inalienabilidade e irrenunciabilidade, pode ser dito que "ambos
se voltam à pessoa humana à margem de seu consentimento ou até contrariamente
a ele"106. Ou seja, tais direitos não dependem da vontade do ser humano, sendo
inerentes à sua condição e incompatíveis com a livre disposição do ser para vender
ou renunciá-los.
Especificando as outras características supracitadas, combina-se o entendimento
de Vladmir Oliveira da Siqueira acerca do tema:
Outra característica é imutabilidade, que também se liga ao conteúdo essencial
dos direitos humanos no sentido de constituir um âmbito de intangibilidade
para o operador jurídico. Finalmente, junto com o caráter intangível – dignidade
humana –, a imprescritibilidade e a inviolabilidade são tradicionalmente
consideradas características dos direitos humanos, pois eles, respectivamente,
não se perdem por decurso do prazo nem podem ser desrespeitadas por
indivíduos ou autoridades públicas.107
Tais características, quando da busca de um conceito que englobe a maioria das
particularidades dos direitos humanos, acabam por ser indispensáveis. Juntamente com
estas, está o caráter dialético dos direitos humanos, traduzindo-se como uma "tensão
em todos os planos da realidade social delineada pela teoria desses direitos [...]"108.
Neste tópico, cabe apenas ressaltar que o caráter dialético toma conta de boa parte da
teoria e da prática dos direitos humanos, quando então pode haver um choque entre
dois deles, ou, até mesmo, na sua violação e garantias, previstas tanto em instrumentos
nacionais, como internacionais. Por mais paradoxal que soe, o entendimento do
caráter dialético acaba por ser imprescindível na busca pelo conceito de direitos
105
106
107
108
Quando se refere às peculiaridades históricas de alguns dos aspectos dos direitos humanos, está
se querendo levantar a questão das categorias delimitadas, segundo a doutrina, dos referidos
direitos, em determinados momentos históricos, que, usualmente, vêm a ser chamados de
gerações – noção que será analisada em momento posterior nesse estudo.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.229.
Ibid., p.231.
Ibid., p.237.
62
humanos, uma vez que coloca em choque a teoria do poder e a busca pela proteção
dos direitos humanos, quando então estes vêm a preponderar e limitar o próprio poder.
Finalmente, para que seja possível a passagem para outros tópicos acerca
do tema, é imprescindível se ter em mente que esses direitos estão em constante
movimento, sendo impossível a consolidação de um conceito que englobe todas as suas
particularidades109, mas que, na busca pela sua universalidade e no respeito pelas
particularidades culturais, há sempre pontos conexos que permitem não a consolidação
de um conceito, mas sim estruturas basilares que tornem possíveis identificá-los,
independentemente do período histórico ou da sociedade em que se encontrem.
2
EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Sintetizados alguns dos aspectos essenciais para a conceituação dos direitos
humanos, fica indispensável – uma vez que o elemento histórico se faz presente
quase que em toda a busca do conceito – determinadas considerações acerca da
própria evolução dos direitos humanos.
Importante é ter em mente que esboços dos direitos humanos – talvez não
como hoje se revelem – já se faziam presentes em um período remoto da história,
quando então a igualdade servia como base para a busca de tais direitos.
Ocorre que tal igualdade – cuja qual baseava-se no ponto em que todos os
homens deveriam ser respeitados, igualmente, pelo fato de sua humanidade em
comum – teve seu desenvolvimento atrelado ao nascimento da lei escrita, que
possibilitou a evolução de uma regra geral e uniforme, cabível de aplicação a todos,
sem quaisquer distinções, além da necessidade da vivência em uma sociedade
organizada, como bem aponta Fábio Comparato:
109
Ainda que seja impossível a estruturação de um único conceito, a Organização das Nações
Unidas conceitua direitos humanos como sendo "direitos inerentes a todos os seres humanos,
independentemente de sua nacionalidade, lugar de residência, sexo, nacionalidade ou etnia, cor,
religião, língua ou qualquer outro status". (Disponível em: <http://www.ohchr.org/EN/Issues/
Pages/WhatareHumanRights.aspx>. Acesso em: 02 mar. 2011).
63
Ora, essa convicção de que todos os seres humanos têm direito a ser
igualmente respeitados pelo simples fato de sua humanidade, nasce
vinculada a uma instituição social de capital importância: a lei escrita, como
regra geral e uniforme, igualmente aplicável a todos os indivíduos que vivem
numa sociedade organizada.110
Com o passar dos tempos, outras necessidades humanas, decorrentes de
lutas e conflitos, vieram a se fazer presente na vida em sociedade, influenciando, de
maneira definitiva e essencial, a evolução dos direitos humanos, tanto em sua teoria,
quanto em sua prática. Neste aspecto, descreve-se, como essencial a tal evolução,
a democracia e a dignidade humana.
Assim sendo, passa-se à análise da evolução dos direitos humanos, segundo
cada período da história até que se chegue ao momento atual, quando então da
internacionalização dos direitos humanos.
2.1
OS DIREITOS HUMANOS NA ANTIGUIDADE - MOMENTOS PRÉ-AXIAL E AXIAL
Antes de se adentrar, de maneira pontual, à evolução dos direitos humanos
em um momento bem anterior ao da história recente, importante se faz frisar as
considerações de Vladmir Oliveira da Silveira, quando afirma que "em que pese já
existir preocupações com tais direitos, eles não possuíam "garantia legal" e eram
bastante precários em sua estrutura política, já que respeitá-los dependia de
sabedoria dos governantes"111.
Documentada tal especificidade, passa-se à análise do momento pré-axial112
da história, identificando-se já na Civilização Egeia113 sinais claros de relativa
igualdade social, quando então a mulher cretense desfrutava de uma liberdade única
dentre os demais povos daquele momento histórico, registrando-se nesse período,
bases concretas, advindas da igualdade, para o desenvolvimento dos direitos humanos.
110
111
112
113
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo:
Saraiva, 1999. p.12.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.114.
Utiliza-se neste trabalho o mesmo entendimento e Vladmir Oliveira da Silveira, quando então
classifica o período anterior ao século VIII a. C. como período pré-axial.
A Civilização Egeia desenvolveu-se a partir da Ilha de Creta, tendo se alastrado por diversos lugares
do Mar Ageu, durante os anos de 3.000 a 1.000 a.C.
64
Mas pode-se constatar que o documento de maior importância, neste momento,
fora o Código de Hammurabi (1694 a.C.), o qual comportava 282 cláusulas e fora
aplicado, territorialmente, nas regiões da Assíria, Judeia e Grécia. Sublinha-se sua
importância no desenvolvimento da igualdade entre os seres humanos, mesmo que
ainda precária, e, também, ao prever o salário-mínimo em uma de suas cláusulas,
abrindo margens ao nascituro do entendimento acerca da dignidade humana.
Alguns séculos após, em XI e X a.C., há o surgimento do reino Unificado de
Israel, cujo qual influiu para o balizamento do poder do Estado por intermédio da lei,
sendo que os direitos, neste momento, são determinados aos cidadãos, e não aos
súditos, traduzindo-se em direitos de liberdade, estruturando, de maneira ainda
embrionária, a primeira fase dos direitos humanos.
Mais tarde, já no momento axial114 da história, em 539 a.C., com a evolução
do pensamento humano sobre este tema e uma decorrente mudança na compreensão
da condição humana, organizou-se a primeira declaração dos direitos humanos,
chamada de Cilindro de Ciro. Tal declaração fora proposta por Ciro II, então rei da
Pérsia, quando de sua conquista da Babilônia, no referido ano.
Tal documento é considerado como a primeira declaração dos direitos humanos
por conter a previsão de permitir o regresso às suas terras de origem dos povos
exilados da Babilônia, o que fora um grande avanço aos direitos humanos para
a época.
Há também que se documentar a importância do Budismo e Confucionismo,
nesta época, para o aprimoramento dos direitos humanos.
No que tange ao Budismo115 (fundado na Índia, no século V a.C.), as sementes
dos direitos humanos já aí se encontravam, quando então, numa sociedade de
castas, pregava-se a igualdade indispensável aos homens e a prevalência da virtude
nas ações humanas.
Além de tais, o Budismo veio a anunciar valores que, em um momento
posterior, viriam a incorporar, essencialmente, os direitos humanos, tais como: a
supremacia da justiça e do direito; a fraternidade e a generosidade; a equivalência
114
115
O período axial da história, segundo grande parte dos doutrinadores, tais como Fábio Konder
Comparato e Karl Jaspers, compreende o eixo de tempo entre os séculos VIII e II a.C.
Deve ser pontua que, desde as suas origens, o Budismo condenou veemente o sistema de castas
e, talvez por isso, sua influência na Índia, ao longo dos anos, tenha diminuído. Hoje, apenas 2%
da população indiana é adepta do Budismo.
65
de direitos e deveres entre homens e mulheres; o reconhecimento de direitos do
empregado; e a tentativa de uma organização equânime do corpo social116.
Sublinha-se que o Confucionismo, surgindo no mesmo momento histórico
que o Budismo, influiu no desenvolvimento dos direitos humanos por ter, em seus
preceitos básicos, ensinamentos sobre a fraternidade, o respeito entre as pessoas, o
humanismo, a solidariedade, a busca da virtude e da paz.
Outro pensamento de grande importância, neste linear histórico, fora o
estóico, quando então, a partir do pensamento de Zenão de Cítio, em Atenas, no
ano de 321 a.C., desenvolveram-se princípios fundamentais aos direitos humanos.
Segundo Fábio Comparato, a influência de tal pensamento na evolução dos direitos
humanos é de tal maneira sintetizada:
Muito embora não se trate de um pensamento sistemático, o estoicismo
organizou-se em torno de algumas ideias centrais, como a unidade moral do
ser humano e a dignidade do homem, considerado filho de Zeus e possuidor,
em consequência, de direitos inatos e iguais em todas as partes do mundo,
não obstante as inúmeras diferenças individuais e grupais.117
Ainda neste momento histórico, desenvolvia-se o Direito Romano, que muito
veio a contribuir para o direito de uma forma geral e, também, aos direitos humanos,
uma vez que incorporou o conceito de dignidade da pessoa humana ao mundo jurídico,
a partir das diginitas, podendo assumir tanto o sentido moral, como o sentido jurídico.
Tal conceito tem primordial relevância por sua definição ser "essencial para compreender
o conceito desses direitos e a luta constante por sua efetivação como forma de limitar
o exercício do poder"118.
Além desse caráter, fora no Direito Romano que se encontrou o desenvolvimento
de um complexo mecanismo de proteção dos direitos individuais em relação aos
árbitros do governo.
116
117
118
Informações disponíveis em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/herkenhoff/livro1/filos1/
budismo.html>. Acesso em: 17 jan. 2011.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.15.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.102.
66
O último aspecto, presente neste momento histórico que merece ser discorrido
é o cristianismo. Num primeiro momento, pode-se entender que o preceito básico do
cristianismo seria a igualdade, uma vez que todos seriam filhos do mesmo pai, Deus.
Acontece que, como bem pontua Fábio Konder Comparato:
essa igualdade universal dos filhos de Deus só valia, efetivamente, no plano
sobrenatural, pois o cristianismo continuou admitindo, durante muitos
séculos, a legitimidade da escravidão, a submissão doméstica da mulher ao
homem e a inferioridade natural dos indígenas americanos.119
Esta época, apesar de não guardar coincidências relevantes com os direitos
humanos que hoje se concebem, tem fundamental importância por terem sido, aí,
aprimorados diversos conceitos que virão, mais tarde, a se tornar basilares para a
própria evolução dos direitos humanos.
2.2
OS DIREITOS HUMANOS NA IDADE MÉDIA
A Idade Média120 fora marcada, de forma incisiva, pela dominação da religião
em todos os âmbitos da vida em sociedade – que, lá, desenvolvia-se em feudos –,
especialmente no pensamento da época.
Tal momento histórico pode ser dividido em três momentos: a Alta Idade
Média, Idade Média Clássica e a Baixa Idade Média.
No que se refere à Alta Idade Média121 e à Idade Média Clássica (período
entre 476 até 1300 d.C.), relata-se a fragmentação política, o poder dos senhores
feudais na vida em sociedade e a grande influência da Igreja em todos os aspectos
da sociedade, sem qualquer avanço significativo na evolução dos direitos humanos.
119
120
121
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.17.
Recorda-se que a análise que pretende ser estabelecida, neste trabalho, é sobre o mundo
ocidental, mesmo que, para tal, muitas vezes, recorra-se a alguns aspectos do pensamento e da
histórica oriental que vieram a marcar, indiscutivelmente, tais âmbitos ocidentais.
Apenas cabe ressaltar que fora na Alta Idade Média que surgiram condições para a formulação da
concepção de direito subjetivo natural, a partir do reconhecimento do direito subjetivo do indivíduo.
67
Já na Baixa Idade Média (após o ano 1300 até 1450 d.C.), pode-se localizar o
cerne embrionário dos direitos humanos na história ocidental, uma vez que ocorrera,
neste momento histórico, as primeiras reivindicações para que o poder dos governantes
fosse limitado em prol da igualdade de direitos entre os diversos estamentos da
sociedade da época. Sintetizando tal ideia, transcreve-se:
A proto-história dos direitos humanos começa na Baixa Idade Média, mais
exatamente na passagem do século XII ao século XIII. Não se trata, ainda,
de uma afirmação de direitos inerentes à própria condição humana, mas sim
do início do movimento para a instituição de limites ao poder dos
governantes, o que representou uma grande novidade histórica. Foi o
primeiro passo em direção ao acolhimento generalizado da ideia de que
havia direitos comuns a todos os indivíduos, qualquer que fosse o estamento
social – clero, nobreza e o povo – no qual eles se encontrassem.122
Documenta-se, ainda neste período, a existência de diversos documentos
que marcaram, de modo incisivo, o contexto de lutas e manifestações de rebeldia
contra o poder até então instaurado.
A primeira grande declaração fora a Declaração das Cortes de Leão, datada
de 1188, advinda do Reino da Espanha.
No ano de 1215, na Inglaterra, veio a surgir, talvez, o mais importante dos
documentos deste período: a Carta Magna. Considerada, por muitos doutrinadores,
o primeiro precedente teórico das declarações de direitos humanos, tal documento
veio a limitar o poder do soberano, além de ter servido como referência a alguns
direitos e liberdades civis clássicas, imposta por bispos e barões. Nesse sentido,
destacam-se os seguintes dispositivos da referida Carta:
1) reconhecimento da inviolabilidade dos "direitos e liberdades" da Igreja na
Inglaterra; 2) o compromisso de não lançar tributos sem o consentimento do
Conselho Geral do reino; 3) o estabelecimento da regra de proporcionalidade
entre as multas e a gravidade dos delitos; 4) a proibição do confisco de
bens por parte de xerifes e bailios; 5) a afirmação de que nenhum homem
livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado de seus bens, ou colocado
fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado senão mediante um
julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com as leis do país:
6) a admissão da liberdade de entrar e sair do reino, "em paz e segurança",
exceto em tempo de guerra.123
122
123
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.33.
HUSEK, Carlos Roberto, A nova (des)ordem Internacional ONU..., p.207.
68
Ambos os documentos acima citados são retratados como embrionários de
certos direitos, uma vez que na medida em que representam e valorizam o direito à
liberdade, um dos princípios orientadores do moderno conceito de direitos humanos,
esses dois documentos são considerados por alguns autores o embrião desses direitos.124
Uma década mais tarde, com os preceitos desenvolvidos por São Tomás de
Aquino, esquematizam-se os primeiros princípios que possibilitaram o desenvolvimento
do ius naturalis. Edgar Bodenheimer125 entende que as opiniões de São Tomás de
Aquino sobre questões jurídicas e políticas mostram especialmente a influência do
pensamento aristotélico adaptado às doutrinas do Evangelho e dos Padres da Igreja
integrado em um importante sistema de pensamento.
Fora com São Tomas de Aquino que se delimitou os alcances do direito
natural, desenvolvido na Idade Média, segundo os preceitos de direito e justiça que,
naquela época, imperavam. Dessa maneira, evoca-se tal passagem:
A Summa teologica de São Tomás de Aquino é peça essencial na definição
e alcance do direito natural medieval, que se estabelece como modelo da lei
humana. A partir daí Aquino desenvolveu a doutrina teórica e política que
fundamentaria a limitação do poder, sustentando que a submissão às
autoridades seculares implicava, por parte destas, o respeito às regras da
Justiça e a promoção do bem comum.126
Finalmente, pode-se julgar que fora neste período que surgiu o embrião dos
direitos humanos, na acepção do valor de liberdades específicas aos estamentos,
especialmente ao clero, à nobreza e algumas ao povo. Fora nesta época, também,
em que ocorrera "a primeira experiência histórica de sociedade de classes, onde a
desigualdade social já não é determinada pelo direito, mas resulta principalmente
das diferenças de situação patrimonial de famílias e indivíduos"127.
124
125
126
127
FICO, Carlos. Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. São
Paulo: FGV, 2008. p.18.
BODENHEIMER, Edgar. Teoria General de los Derechos Humanos. México: Fondo de Cultura
México, 1942. p.145.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.120.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.34.
69
2.3
OS DIREITOS HUMANOS NA IDADE MODERNA
A Idade Moderna, localizada entre os anos de 1453 e 1789, trouxe consigo
uma grande crise da consciência europeia, o que viera a resultar, em todas as áreas
do conhecimento humano, o Renascimento.
Como não poderia deixar de ser, o direito sofreu influências diretas deste
novo modo de pensar, sendo que os privilégios medievais vieram a ser superados e
os direitos humanos começaram a ser localizados acima do poder ou de qualquer
estrato social.
Indispensável para este processo foram as Declarações Inglesas deste período,
cujas quais eram verdadeiros textos legais, vindo a limitar o poder dos governantes e,
consequentemente, garantir mais direitos à população. Ainda, formaram, definitivamente,
o embrião da democracia, essencial para a construção e efetivação dos direitos
humanos. Segundo os dizeres de Vladmir Oliveira da Silveira:
Uma das novidades mais importantes das declarações inglesas é a ampliação
da titularidade dos direitos, consagrados agora aos homens livres e não
mais apenas à nobreza, como na Idade Média. Assim emergem na cena
política os primeiros vestígios de democracia, de poder representativo e de
garantias institucionais, no momento que o poder real e todos os demais
poderes se submetem à lei emanada pelo Parlamento.
As declarações insulares também se destacam por algumas características
peculiares, em grande medida relacionadas à origem e estrutura do seu
direito. Elas foram concebidas como textos legais – isto é, normas jurídicopositivas que podiam ser exigidas pelos cidadãos diante dos tribunais – e
não como meras declarações em sentido estrito.128
O primeiro dos documentos fora a Petição de Direitos (Petition of Right), de
1628, imposta pelo Parlamento, requerendo, de maneira expressa, o reconhecimento
de direitos e liberdades para os súditos do Rei.
Em 1688, então, prolatou-se o documento de maior importância para o período,
sendo ele a Declaração de Direitos (Bill of Rights). Esta Declaração definiu e fortaleceu
as atribuições legislativas do Parlamento, além de proclamar a liberdade de escolha
128
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.133.
70
de seus membros. Ainda, consagrou algumas garantias individuais ao povo e "a partir
do Bill of Rights britânico, a ideia de um governo representativo, ainda que não a
todo povo, mas pelo menos de suas camadas superiores, começa a firmar-se como
uma garantia institucional indispensável das liberdades civis"129.
Além de tais documentos, ainda houve outros instrumentos legais ingleses
que contribuíram para as limitações dos poderes soberanos e para a evolução dos
direitos humanos no âmbito inglês, sendo eles: Act of Settlement (1707) e Habeas
Corpus Amendment Act (1769).
Passando-se, neste momento, às declarações norte-americanas, datadas do
século XVIII – mais especificamente dos anos de 1776, 1787 e 1791 –, precisa-se que
fora neste período histórico que se deu, segundo o entendimento majoritário da doutrina,
a real delineação do conceito moderno de direitos humanos. Também se consolidaram,
de melhor maneira – e sem os vícios dos documentos europeus –, a democracia
essencial para a efetivação de tais direitos, como bem explica tal passagem:
Pode-se considerar as declarações anglo-americanas como as primeiras
formulações modernas dos direitos humanos, evidenciando um significativo
avanço teórico na concretização do Estado democrático. [...] Inspirados nas
declarações inglesas, esses documentos do Novo Mundo souberam, no
entanto, evitar antigos problemas europeus – um deles o que envolvia a
liberdade religiosa, expressão concreta do livre-arbítrio individual e uma das
liberdades mais importantes, ao lado da igualdade e da tolerância.
Em síntese, nas declarações norte-americanas se expressa o modelo liberal
no sentido moderno, influenciado pelo jusnaturalismo racionalista, o qual
pressupõe a afirmação da autonomia individual e dos direitos naturais, bem
como limites ao poder político do Estado – o que se justifica pela teoria**
contratualista do pacto entre governantes e governados.130
O primeiro grande documento norte-americano, de 1776, fora, a Declaração
de Direitos do Bom Povo da Virgínia, cujo qual, de fato, em seu artigo primeiro131,
constitui o registro do nascimento dos direitos humanos, como tal hoje se concebe,
na histórica da humanidade, reconhecendo, teoricamente, a condição de igualdade
entre os seres humanos.
129
130
131
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.37.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.135-136.
Segundo os preceitos do art. I da referida Declaração: "Todos os homens nascem igualmente
livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum
contrato, privar nem despojar sua posterioridade: tais são os direitos de gozar a vida e a liberdade
com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter felicidade e segurança".
71
Alguns anos mais tarde, em 1787, na Filadélfia, há a promulgação da
Constituição Americana que, na verdade, não continha uma declaração de direitos.
Só após uma votação, em 1789, pelos estados norte-americanos é que foi incorporada,
explicitamente, em 1791, uma declaração de direitos, formulada por James Madison,
trazendo as primeiras dez emendas à Constituição, vindo a formar, então, o Bill of
Rights norte-americano.
Nesta mesma época, do outro lado do Atlântico, emergiram, na França, diversas
declarações que vieram a tratar sobre os direitos humanos. Atina-se ao fato de que
tais declarações foram resultado de um processo revolucionário que lá estava a
ocorrer, entre os anos de 1789 e 1799: a revolução burguesa, a Primeira República
(Ditadura Jacobina), o Diretório e, em 1799, o golpe de Estado de Napoleão.
De tal forma, cabe apontar como o primeiro documento relevante aos
direitos humanos, resultante dessa época, a Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão. A Declaração fora resultado de toda a referida conjuntura, como bem
sintetiza a seguinte passagem:
Na primeira etapa, o Terceiro Estado – representado por grande parte da
sociedade, inclusiva a burguesia, sendo o Primeiro Estado a nobreza e o
Segundo Estado o clero – declarou-se em Assembléia Nacional Constituinte
e debateu sobre a oportunidade de elaborar uma declaração de direitos ou
uma Constituição. A Assembleia decidiu elaborar o documento, daí se
originando a célebre Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, que,
a exemplo da Declaração da Virgínia, destacou-se pela solenidade e pela
retórica em seus 17 artigos e preâmbulo [...].132
Como referido acima, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão,
promulgada em solos franceses, veio a sofrer influências do que fora emanado nos
Bill of Rights norte-americanos, servindo estes de modelo para tal Declaração. Além
disso, o documento francês guarda peculiaridades no que se refere ao direito
humano de liberdade. Para melhores entendimentos, transcreve-se:
Os Bills of Rights americanos serviram de modelo para a Declaração francesa
dos Direitos do Homem e do Cidadão. A Declaração francesa – promulgada
no dia 26 de agosto de 1789 e incluída como preâmbulo na Constituição de
1791 – baseia-se também na convicção de que a liberdade é uma qualidade
132
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.139.
72
pré-política do homem, uma liberdade que é inerente à natureza humana e
inalienável dela. Também na concepção francesa, os direitos de liberdade têm,
ao que parece, a função negativa de direitos de defesa contra o próprio Estado.133
Correlacionada, ainda, às Declarações norte-americanas, afirma-se que a
referida Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão traz à tona,
novamente, em seu artigo primeiro134, a igualdade entre os homens.
Advindo dos preceitos de tal Declaração francesa, surge o entendimento que o
Estado deve, primordialmente, respeitar e garantir os direitos humanos. De maneira
mais concreta, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é convertida, em
1791, no preâmbulo da Constituição francesa, tornando ainda mais intensas as
obrigações estatais frente aos direitos humanos.
Como se pode perceber, imperavam, nas Declarações até aqui estudadas, as
garantias de liberdades individuais dos seres humanos. Ou seja, haviam as chamadas
liberdades públicas, requerendo uma posição negativa do Estado, onde o indivíduo
desfruta de tais direitos sem a necessidade de uma ação estatal.
Tais direitos, até então, focavam o âmbito político e civil do indivíduo e, por
isso mesmo, são classificados, didaticamente, como direitos de primeira geração135.
Acontece que, já na referida Constituição francesa de 1791, tal situação é
alargada, quando outros direitos humanos, de cunho social, econômico e cultural,
são inseridos em seu âmbito. Tais direitos acabaram por serem classificados como
direitos de segunda geração e, desta forma,
a declaração de direitos da Constituição de 1791 destaca-se por seu
pioneirismo na identificação dos reclames sociais, abrindo porta – pode-se
dizer – para a segunda geração de direitos humanos, muito embora os
direitos civis e políticos continuassem a preponderar.136
133
134
135
136
MALUSCHKE, Günther. Desenvolvimento histórico dos direitos humanos. Themis: Revista da
ESMEC, Fortaleza, v.2, n.1, p.88, 1998.
De acordo com os termos do artigo I da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: "Os homens
nascem e permanecem livres e iguais em direitos".
Adota-se, neste estudo, o termo "gerações" para designar as diversas etapas de consolidação
dos direitos humanos. Para tanto, concorda e segue-se o entendimento de Vladmir Oliveira da
Silveira.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.140.
73
Por fim, em solos franceses, desenvolveram-se, ainda, duas outras declarações.
A primeira delas, em 1793, significou uma declaração mais elaborada que a de
1789, contando com 35 artigos; e a segunda, de 1795, prevendo os direitos sociais,
a soberania popular e a supressão do direito de resistência à opressão.
O que se pode perceber, neste momento histórico, tanto no contexto norteamericano, como no contexto europeu, é que a democracia alterou-se de sentindo,
vindo a privilegiar determinadas classes sociais. Mesmo que dessa forma, esse
regime demonstrava-se, ainda, o mais plausível para o desenvolvimento dos direitos
humanos e veio, numa época de reivindicações e revoltas, a reinventar-se para
tornar possível sua manutenção e a abertura e desenvolvimento da gama de direitos
humanos que a sociedade, no momento histórico, reivindicava. Nas palavras de
Fábio Konder Comparato:
Em sentindo contrário, a democracia moderna, reinventada quase ao mesmo
tempo na América do Norte e na França, foi a fórmula política encontrada
pela burguesia para extinguir os antigos privilégios dos dois principais
estamentos do ancien regime – o clero e a nobreza – e tornar o governo
responsável perante a classe burguesa. O espírito original da democracia
moderna não foi, portanto, a defesa do povo pobre contra a minoria rica,
mas sim a defesa dos proprietários ricos contra um regime de privilégios
estamentais e de governo irresponsável.
De qualquer modo, esse feito notável de geração dos primeiros direitos
humanos e de reinstituição da legitimidade democrática foi obra de duas
"revoluções", ocorridas no espaço de um lustro, em dois continentes.137
Conclusivamente, pode-se dizer que, ao final deste momento histórico, qual
seja, a Idade Moderna, constatou-se, a partir das Constituições norte-americana e
francesa, um movimento crescente de constitucionalização dos direitos humanos,
quando então deixam o seu aspecto universal e tornam-se direitos fundamentais138,
subjetivados de acordo com as normas estatais, além dos interesses e das
reivindicações da sociedade em que serão aplicados. Segundo os ensinamentos de
Vladmir Oliveira da Silveira:
137
138
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.39-40.
Consideram-se como direitos fundamentais os direitos humanos que, uma vez internalizados por
intermédio das constituições estatais, ganham nova nomenclatura – de direitos humanos, passam
a ser fundamentais – e novos contornos para sua efetivação, no interior de um Estado.
74
A história dos direitos fundamentais se liga de forma inequívoca ao
surgimento do constitucionalismo no final do século XVIII – o qual herdou da
Idade Média a ideia de contenção do poder do Estado em favor do cidadão
enquanto construção social e política resultante de lutas sociais.
Após a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão iniciou-se um
processo de concretização ou de positivação constitucional de direitos. Com
origem nos direitos naturais, os direitos humanos foram perdendo a
característica universal e genérica, passando a ser positivados como
direitos subjetivos estatais – e particularizados, portanto, sob a ótica de
cada Estado.139
Sintetizando o estudo da Idade Moderna, pode-se dizer que foi nela que os
direitos de primeira geração, quais sejam, os direitos civis e políticos, tornaram-se uma
realidade aos povos ocidentais, além de terem surgido as primeiras Declarações de
direitos humanos, considerando conceitos que até hoje são aplicados.
2.4
OS DIREITOS HUMANOS NA IDADE CONTEMPORÂNEA
A Idade Contemporânea, tal qual a sua antecessora, fora marcada pela
abertura da gama dos direitos humanos.
Já no século XIX, percebe-se que os Estados que contavam com o regime
democrático concretizavam, cada vez mais, os direitos civis e políticos, chamados de
direitos humanos de primeira geração.
Entende-se, também, que a referida democracia, nos moldes anteriormente
descritos, fora fruto do século passado e estava atrelada, quase que inquestionavelmente,
ao desenvolvimento dos direitos humanos.
Ocorre que os direitos humanos até então consolidados e existentes não se
demonstraram suficientes para o fim dos aclames da sociedade, uma vez que o
desenvolvimento da economia de mercado se demonstrava uma constante, trazendo
consigo novos problemas estruturais e novos reclames sociais, como se relata no
trecho a seguir:
139
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.147.
75
Assim, os primeiros setenta anos do século XIX marcaram a consolidação
do Estado Liberal e o fenomenal desenvolvimento da economia capitalista
urbano industrial. Por outro lado, a liberdade do mercado, a necessidade de
desenvolvimento no processo produtivo para fazer frente à competição, a
consolidação dos mercados nacionais nas sociedades da Europa Ocidental –
principalmente na Inglaterra, – a formação do proletariado urbano, a
progressiva concentração do capital, entre outras coisas, passaram a apresentar
os primeiros sinais de crise da nova sociedade capitalista.140
O que ocorreu, na verdade, foi o surgimento de um novo quadro do capitalismo,
advindo de uma época pós-Revolução Industrial, quando então a atitude negativa
do Estado não mais correspondia às necessidades populares. Ou seja, havia a
necessidade do Estado vir a agir, vir a ter uma atitude positiva perante a situação
que se desenhava, a qual se demonstrava intolerável perante os valores dos direitos
humanos, sendo de tal maneira descrita:
A Revolução Industrial, ao mesmo tempo que elevou a patamares nunca vistos
na história humana, a capacidade de produção e a produtividade do trabalho,
destruiu violentamente o modo de vida tradicional dos trabalhadores e
introduziu a rígida disciplina do sistema fabril. As condições da vida dos
trabalhadores eram deploráveis, com jornadas de trabalho – inclusive de
crianças e mulheres – de cerca de 15 horas diárias, sem leis sociais,
trabalhistas ou previdenciárias protetoras, sob condições de completa
insegurança. As condições de vida nas cidades também eram terríveis, no
que se refere à moradia, ao saneamento básico e à infra-estrutura necessárias
para a garantia de condições dignas de vida. O resultado era uma legião de
desempregados, miseráveis, e diversos problemas sociais como o alcoolismo,
a prostituição, o banditismo, a loucura, etc.141
Em um contexto caótico, onde o próprio ser humano se tornou uma mercadoria
quase que descartável para o capitalismo, surgiu a tese defendida por Karl Marx,
atacando diretamente o liberalismo capitalista e vindo a propor o socialismo, onde todos
seriam materialmente idênticos, sem qualquer distinção advinda do poder do capital.
Como fruto das críticas socialistas ao modelo capitalista e como resposta às
reivindicações populares, desenvolveram e consolidaram-se, especialmente nos
Estados ocidentais que já haviam superado a fase de reivindicações de liberdades
individuais, os direitos chamados de segunda geração, quais sejam, os direitos sociais,
140
141
DORNELLES, João Ricardo W. Sobre os direitos humanos, a cidadania e as práticas
democráticas no contexto dos movimentos contra-hegemônicos. Revista da Faculdade de
Direito de Campos, Rio de Janeiro, v.6, n.6, p.130, jun. 2005.
Ibid., p.131.
76
econômicos e culturais. Estima-se que o desenvolvimento de tais direitos se deu na
esteira dos reclames socialistas, como documenta Fábio Konder Comparato:
O reconhecimento dos direitos humanos de caráter econômico e social foi o
principal benefício que a humanidade recolheu do movimento socialista,
iniciado na primeira metade do século XIX. O titular desses direitos, com
efeito, não é o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu
maravilhosamente; é o conjunto dos grupos sociais esmagados pela miséria, a
doença, a fome e a marginalização. Os socialistas perceberam, desde logo,
que esses flagelos sociais não eram cataclismos da natureza nem efeitos
necessários da organização racional das atividades econômicas, mas sim
verdadeiros dejetos do sistema capitalista de produção, cuja lógica consiste
em atribuir aos bens de capital um valor muito superior ao das pessoas.142
Avalia-se, ainda, que tais direitos humanos abandonam o caráter individual,
característico dos direitos de primeira geração, para adotarem um caráter coletivo,
quase que totalmente estruturada na dimensão da igualdade material, onde o
Estado deve ter uma atitude positiva para eliminar quaisquer diferenças e tornar
possível a igualdade no plano prático, não mais apenas na teoria. Nas palavras de
Uadi Lâmmego Bulos:
[...] advinda logo após a Primeira Grande Guerra, compreende os direitos
sociais, econômicos e culturais, as quais visam assegurar o bem-estar e a
igualdade, impondo ao Estado uma prestação positiva, no sentido de fazer
algo de natureza social em favor do homem. Aqui encontramos os direitos
relacionados ao trabalho, ao seguro social, à subsistência digna do homem,
ao amparo à doença e à velhice.143
No momento em questão, do Constitucionalismo Social, ocorrera o surgimento
e a concretização da segunda geração dos direitos humanos, chamados de direitos
sociais, sendo que três documentos tiveram uma importância extrema, quais sejam:
a Constituição Mexicana de 1917, a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador
e Explorado e a Constituição de Weimar de 1919. Correlacionado a este tema,
documenta-se o seguinte trecho:
Os direitos humanos de segunda geração são aqueles agregados mais tarde à
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e elevados à condição de
direitos fundamentais. São os direitos econômicos e sociais, do indivíduo
142
143
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.42.
BULOS, Uadi Lâmmego. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p.403.
77
como membro da sociedade, no seu trabalhão, em seu lazer, saúde,
educação, à cultura e que o Estado tem a obrigação de garantir, pois são
"direitos de crédito". Esses direitos vieram consagrados na Constituição
alemã de 1919, (Constituição de Weimar), e foram incorporados pela
Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1948, nos
artigos 22 a 27.144
No que tange ao primeiro dos documentos, a Constituição Mexicana, promulgada
em cinco de fevereiro de 1917, teve uma importância primordial, uma vez que fora a
primeira Constituição a atribuir, aos direitos trabalhistas, a qualidade de direitos
fundamentais, juntamente com as liberdades individuais e os direitos políticos.
Estabeleceu, também, a desmercantilização do trabalho, o princípio da igualdade
substancial de posição jurídica entre trabalhadores e empresários, criando, em
suma, as bases para o moderno Estado Social de Direito.145
A Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, surgida no
momento da Revolução Russa, fora adotada em quatro de janeiro de 1918, anteriormente
ao término da 1.a Guerra Mundial. Em tal documento, são afirmadas algumas
medidas já presentes na Constituição Mexicana de 1917, mas, diferentemente deste
último, a Declaração reduz o povo russo à classe trabalhadora e oprimida, garantindo
apenas a estes os referidos diretos sociais.
Por último, a Constituição de Weimar, que entrou em vigor em 31 de julho de
1919, na Alemanha, contando com diversos aspectos positivos atinentes aos direitos
humanos de segunda geração: abolição das classes sociais, igualdade de direitos entre
homens e mulheres, liberdade de opinião e liberdade de comércio no Estado alemão.
Após, com o advento das duas Guerras Mundiais e com o maior flagelo e
destruição humana já registrados, os direitos humanos adquiriram uma nova amplitude
e concepção que, agora, passam-se à analise.
144
145
MENEZES, Wagner. Ordem global e transnormatividade, p.63.
COMPARATO, Fábio Konder. A constituição mexicana de 1917. Disponível
<http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/anthist/mex1917.htm>. Acesso em: 19 maio 2011.
em:
78
2.5
O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
O processo de internacionalização dos direitos humanos pode ser explicado
através da evolução histórica da própria humanidade, sendo esse "o segundo pilar
da estrutura de uma nova ordem jurídica internacional na comunidade internacional
contemporânea [...]"146,147
Tal processo pode ser dividido em dois momentos, quais sejam: da segunda
metade do século XIX até a 2.a Guerra Mundial e, um segundo momento, após a
2.a Guerra Mundial, quando então do nascimento das Nações Unidas.
2.5.1
Primeiro momento do processo de internacionalização – da metade do
século XIX à 2.a Guerra Mundial
Em um primeiro momento, chamado de primeira fase ou primeiros precedentes
do processo de internacionalização dos direitos humanos, há o desenvolvimento no
espaço de tempo entre a segunda metade do século XIX e a 2.a Guerra Mundial,
com o surgimento da Liga das Nações, do Direito Humanitário e da Organização
Internacional do Trabalho.
Pontua-se que, especialmente neste momento primário do processo de
internacionalização, fora necessário, de maneira jamais vista, a redefinição do conceito
de soberania estatal, já que os direitos humanos, para passarem de uma esfera de
controle interna para o interesse internacional, necessitavam de um entendimento
flexibilizado acerca dos contornos da soberania. Ou seja, os direitos humanos não
seriam mais apenas objetos de interesse estatal, mas sim algo além e até mesmo
maior que o próprio Estado e sua decorrente soberania.
146
147
MENEZES, Wagner. Ordem global e transnormatividade, p.55.
Segundo Wagner Menezes, o primeiro pilar de referida estrutura estaria pautado no surgimento e
desenvolvimento das organizações internacionais.
79
Assim entendido, argumenta-se, segundo os julgamentos de Flávia Piovesan,
a importância dos três institutos supracitados para o surgimento do processo de
internacionalização dos direitos humanos:
Nesse sentido, o Direito Humanitário foi a primeira expressão de que, no
plano internacional, há limites à liberdade e à autonomia dos Estados, ainda
que na hipótese de conflito armado.
A Liga das Nações, por sua vez, veio a reforçar essa mesma concepção,
apontando para a necessidade de relativizar a soberania dos Estados. Criada
após a Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações tinha como finalidade
promover a cooperação, paz e segurança internacional, condenando agressões
externas contra a integridade territorial e a independência política dos seus
membros. [...] Redefinia-se, desse modo, a noção de soberania absoluta do
Estado, que passava a incorporar em seu conceito compromissos e
obrigações de alcance internacional no que diz respeito aos direitos humanos.
Ao lado do Direito Humanitário e da Liga das Nações, a Organização
Internacional do Trabalho também contribuiu para o processo de
internacionalização dos direitos humanos. Criada após a Primeira Guerra
Mundial, a Organização Internacional do Trabalho tinha por finalidade promover
padrões internacionais de condições de trabalho e bem-estar.148
Apenas para reforçar ainda mais o papel de tais institutos, cita-se, no campo
do direito humanitário, o surgimento da Comissão Internacional da Cruz Vermelha,
em 1880, a partir da Comissão de Genebra, de 1864, e o Ato Geral da Conferência
de Bruxelas, de 1890, que trouxe à tona as primeiras regras estatais de supressão à
escravidão africana.
Lembra-se que esses institutos, como precursores do processo de
internacionalização dos direitos humanos e, mais, como limitadores do conceito tradicional
e rígido de soberania estatal, trouxeram grandes inovações, especialmente ao que
tange à proteção e efetivação dos direitos humanos e, também, ao próprio Direito
Internacional. Explica-se: os direitos humanos, que anteriormente eram tratados
apenas no âmbito da jurisdição estatal, deixam de ser vistos como meros direitos
disponibilizados pelos Estados, mas garantidos em um plano internacional, onde os
Estados, caso não os disponibilizem/efetivem, seus cidadãos podem vir a socorrerse na esfera internacional – que, hoje, ocorre segundo os sistemas de proteção
global ou regional, a serem estudados em momento posterior neste trabalho.
148
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.112-113.
80
No que tange ao Direito Internacional, este muda seu foco de atuação e sua
problemática, não mais lhe interessando apenas o relacionamento Estado – Estado,
mas visando agora, e de maneira ainda mais enérgica, a supervisão da efetivação
dos direitos humanos pelos Estados a seus cidadãos, passando da esfera que,
anteriormente, era tida como interna, para a esfera de atuação do próprio Direito
Internacional. Validando esta compreensão, transcreve-se:
Vale dizer, o advento da Organização Internacional do Trabalho, da Liga
das Nações e do Direito Humanitário registra o fim de uma época em que o
Direito Internacional era salvo raras exceções, confinado a regular relações
entre Estados, no âmbito estritamente governamental. Por meio desses
institutos, não mais se visava proteger arranjos e concessões recíprocas
entre os Estados, visava-se, sim, o alcance de obrigações internacionais a
serem garantidas ou implementadas coletivamente, que, por sua natureza,
transcendiam os interesses exclusivos dos Estados contratantes. Essas
obrigações internacionais voltavam-se à salvaguarda dos direitos do ser
humano e não das prerrogativas dos Estados. Tais institutos rompem,
assim, com o conceito tradicional que situava o Direito Internacional apenas
como lei da comunidade internacional dos Estados e que sustentava ser o
Estado o único sujeito de Direito Internacional, Rompem ainda com a noção
de soberania nacional absoluta, na medida em que admitem intervenções
no plano nacional, em prol da proteção dos direitos humanos.
Prenuncia-se o fim da era em que a fora pela qual o Estado tratava seus
nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, restrito
ao domínio reservado do Estado, decorrência de sua soberania, autonomia
e liberdade. Aos poucos, emerge a ideia de que o indivíduo é não apenas
objeto, mas também sujeito de Direito Internacional.149
2.5.2
O processo de internacionalização dos direitos humanos no pós-guerra
Fora no contexto histórico pós-2.a Guerra Mundial que, definitivamente, ocorrera
a internacionalização dos direitos humanos.
Lembra-se que ali ocorreram as maiores atrocidades contra a pessoa
humana, uma vez que milhões de indivíduos foram assassinados de forma cruel,
configurando, de maneira explícita, o desrespeito ao direito mais primordial de todos
os direitos, o direito à vida.
149
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.114-116.
81
Deparando-se com esta situação caótica, e não possuindo, de fato, meios
eficazes de proteção aos direitos humanos, viu-se necessário o desenvolvimento, no
plano internacional, de uma ação que fosse capaz de assegurar tais direitos,
avaliando-se como indispensável todo o processo de internacionalização dos direitos
humanos, tendo já sido demonstrados ineficazes os métodos de proteção nacional,
como bem propõe a seguinte passagem:
A internacionalização dos direitos humanos constitui, assim, um movimento
extremamente recente na história, que surgiu a partir do pós-guerra, como
resposta às atrocidades e horrores cometidos durante o nazismo. Apresentado
o Estado como grande violador de direitos humanos, a Era Hitler foi marcada
pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, o que
resultou no extermínio de onze milhões de pessoas.
[...] Nesse contexto, desenha-se o esforço de reconstrução dos direitos
humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional
contemporânea. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos
humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução.
A necessidade de uma ação internacional mais eficaz para a proteção dos
direitos humanos impulsionou o processo de internacionalização desses
direitos, culminando na criação da sistemática normativa de proteção
internacional, que faz possível a responsabilização do Estado no domínio
internacional quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas
na tarefa de proteger os direitos humanos.150
Nesse mesmo contexto, por se demonstrar incabível, para a continuidade da
espécie humana, uma nova guerra, nos parâmetros da que acabara de ocorrer,
surgiu, também nesta época, a Organização das Nações Unidas (ONU), vindo a
delimitar, definitivamente, uma nova ordem internacional, com um novo modelo nas
relações internacionais, pautado na manutenção da paz e na segurança internacional,
além de socorrer-se da cooperação internacional em todos os âmbitos que afetem o
desenrolar da humanidade.
A Carta das Nações Unidas, datada de 1945, consolida não apenas o próprio
movimento de internacionalização dos direitos humanos, mas, também, uma nova
geração de tais direitos, pautados, especificamente, na cooperação e na solidariedade
entre os povos. Esses novos direitos, surgidos no contexto pós-guerra, ficariam
conhecidos como direitos humanos de terceira geração.151
150
151
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.117-119.
Com a ascensão dos direitos humanos de terceira geração, conclui-se a associação dos direitos
humanos aos ideais da Revolução Francesa, completando o tríplice ideal revolucionário, qual
seja: liberdade, igualdade e fraternidade/solidariedade.
82
Os direitos humanos de terceira geração consolidam, ainda mais, aqueles de
primeira e segunda geração, além de se fundarem numa nova ordem internacional,
surgida a partir do advento da ONU, tal como explica Vladmir Oliveira da Silveira:
Mais do que isso, a terceira geração sintetiza os direitos de primeira e da
segunda geração sob o viés de solidariedade, adensando-os numa
perspectiva de equilíbrio de poder – inclusive ideológico – em favor do ser
humano [...].
O fundamento dos direitos de solidariedade está numa nova concepção de
Estado, de ordem internacional e de relacionamento entre os povos, mas
também – e principalmente – na realização efetiva dos direitos anteriores, a
que se somam novos direitos não mais individuais ou coletivos, mas difusos.
Nesta ótica, o respeito à soberania de um Estado deve compatibilizar-se
com seu dever de cooperar com os demais, o que implica admitir como
válidos direitos reconhecidos pela comunidade internacional – leia-se, pela
consciência humana.152
Precisa-se, também, que esses direitos caracterizam-se, especialmente, por
três fatores, quais sejam: são reclamáveis frente ao Estado, mas, igualmente, a
titularidade de tais pode ser estatal; tais direitos requerem prestações positivas e
negativas de toda a comunidade internacional, tendo em vista seu principal aspecto,
qual seja, a solidariedade; e são direitos que reclamam à paz não somente como
ausência da guerra, mas sim como a possibilidade de uma paz integral ao ser
humano, que possibilite o seu pleno desenvolvimento.153
Somada a esses novos direitos, a ONU contribui de maneira única para
o desenvolvimento dos direitos humanos, quando então veio a criar, como órgão
subsidiário à Assembleia Geral, o Conselho de Direitos Humanos154, visando dar
prioridade máxima ao tema de direitos humanos no interior da organização.
152
153
154
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.177.
PICADO, Sonia. Apuntes sobre los fundamentos filosóficos de los derechos humanos:
antologia básica. Costa Rica: IIDH-CAPEL, 1990. p.45.
Segundo Flávia Piovesan, cabe a este órgão, exemplificativamente: responder a violações de direitos
humanos, incluindo violações graves e sistemáticas, bem como elaborar recomendações; promover a
efetiva coordenação das atividades de direitos humanos na ONU e a incorporação da perspectiva
dos direitos humanos em todas as atividades da ONU (mainstreaming of human rights within the
UN system); estabelecer um diálogo transparente e construtivo com as organizações nãogovernamentais para a promoção e proteção dos direitos humanos; entre outras diversas atribuições.
83
Após três anos do surgimento da ONU, viu-se a necessidade do estabelecimento
de uma Declaração que englobasse todos os direitos conquistados ao longo da
história recente, além de poder vir a servir como um código moral a ser seguido e
internalizado pelas constituições dos Estados integrantes de tais organizações.
Então, de tal forma, viera a surgir, no contexto da ONU, a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, contando com uma universalidade
e afirmação ética, uma vez que inexiste qualquer reserva, feita pelos Estados, a
seus princípios e nem sequer qualquer voto contrário às suas disposições, levando
em conta, de maneira única, as diversidades culturais. Empregando o entendimento
de Flávia Piovesan:
A Declaração Universal de 1948 objetiva uma ordem pública mundial fundada
no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos universais.
Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana,
titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Universal
a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de
direitos. A universalidade dos direitos humanos traduz a absoluta ruptura
com o legado nazista, que condicionava a titularidade de direitos à pertinência
à determinada raça (a raça pura ariana). A dignidade humana como fundamento
dos direitos humanos e valor intrínseco à condição humana é a concepção
que, posteriormente, viria ser incorporada por todos os tratados e declarações
de direitos humanos, que passaram a integrar o chamado Direito Internacional
dos Direitos Humanos.
Além da universalidade dos direitos humanos, a Declaração de 1948 ainda
introduz a indivisibilidade desses direitos, ao ineditamente conjugar o catálogo
de direitos civis e políticos com o dos direitos econômicos, sociais e culturais.155
Ainda, no tocante à Declaração, pode-se dizer que ela impõe, aos Estados,
definitivamente, uma conduta ativa na proteção e efetivação dos direitos humanos,
devendo sê-la, internamente, traduzida em preceitos constitucionais e podendo,
internacionalmente, influir no surgimento e na elaboração de instrumentos que
supervisionem e fiscalizem a conduta dos Estados para com os direitos humanos de
seus nacionais. Como detalha Cançado Trindade:
Ademais, a Declaração Universal também se projetou no direito interno dos
Estados. Suas normas encontraram expressão nas Constituições nacionais
de numerosos Estados, e serviram de modelo a disposições das legislações
nacionais visando a proteção dos direitos humanos. A Declaração Universal
passou a ser invocada ante os tribunais nacionais de numerosos países de
modo a interpretar o direito convencional ou interno atinente aos direitos
155
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.137.
84
humanos e a obter decisões. A Declaração Universal, em suma, tem assim
contribuído decisivamente para a incidência da dimensão dos direitos
humanos no direito tanto internacional como interno. Os direitos humanos
fazem abstração da compartimentalização tradicional entre os ordenamentos
jurídicos internacional e interno; no presente domínio de proteção, o direito
internacional e o direito interno encontram-se em constante interação, em
benefício de todos os seres humanos.156
Nesse sentido, pontua-se que apenas os Estados não mais seriam suficientes
para a promoção e proteção dos direitos humanos, sendo necessária, de igual maneira,
uma ação internacional ainda mais efetiva, podendo, até mesmo, vir a responsabilizá-los
neste mesmo nível internacional, quando suas instituições se demonstrarem falhas
ou omissas na proteção e efetivação dos direitos humanos para com seus cidadãos.
Especifica-se, ainda, que fora tal Declaração que possibilitou o conceito
contemporâneo de direitos humanos, quando então atribui a tais direitos as características
da universalidade, da indivisibilidade e da interdependência. Nos termos de Joaquín
Herrera Flores, os redatores do referido documento objetivavam, de maneira resumida,
dois pontos:
1) a descolonização dos países e regiões submetidos ao poder e ao
saqueio imperialista das grandes metrópoles; e 2) a consolidação de um
regime internacional ajustado à nova configuração de poder surgida depois
da terrível experiência das duas guerras mundiais [...].157
Ressalta-se, ainda, que os direitos humanos – incorporados ao constitucionalismo
contemporâneo – baseiam-se, sempre, no valor da dignidade humana, chamada, de
tal forma, como superprincípio158.
Outro ponto bastante importante a ser discorrido é sobre o mundo bipolar
que se encontrava na época, onde a Guerra Fria concentrava as duas ideologias
dominantes, quais sejam, o capitalismo e o socialismo.
156
157
158
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O direito internacional em um mundo em transformação.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.641.
HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2009. p.71.
Como elencado por boa parte da doutrina nesse tema, a dignidade da pessoa humana possui um
valor primordial, sendo, por isso, justamente chamada de superprincípio constitucional.
85
Desta maneira, dois Pactos de direitos humanos, surgiram, em 1966, pela
Resolução 2200A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, quais sejam: o
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (assinado pelos países capitalistas)
e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (assinado pelos
países socialistas). Nas palavras de Vladmir Oliveira da Silveira:
Nos anos seguintes, com o desenrolar da Guerra Fria, esta tentativa de consenso
sobre os direitos humanos se revelou crescentemente inócua devido à cada
vez mais acirrada disputa entre os dois blocos. Sendo assim, quando se
decidiu transformar os princípios declarados em normas jurídicas, a ONU
formulou dois pactos distintos. Com efeito, parte dos países socialistas não
assinou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, enquanto parte
das nações capitalistas não assinou o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais – dentre elas destacamos os EUA, que até
hoje não reconhecem estes direitos como tais.159
Apesar dos esforços para a manutenção de um único documento que venha
a abranger todos os direitos humanos, fora impossível evitar tal divisão entre os dois
Pactos. Mesmo assim sendo, o caráter de indivisibilidade e unidade dos direitos
humanos continua existindo e sendo característica básica de tais.
Investigando o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, pode-se dizer que este
teve sua vigência iniciada em 23 de março de 1976, determinando que os Estados
signatários têm o dever de "respeitar e assegurar a todos os indivíduos dentro do
seu território e sujeitos a sua jurisdição os direitos" que tal instrumento previa,
segundo os termos de seu artigo 1.o, parágrafo 1.o.
Além disso, o Pacto vislumbra um Comitê de Direitos Humanos, cujo qual é,
de fato, o mecanismo de implementação de tal documento, por intermédio da análise
de relatórios advindos dos seus Estados signatários e da direta comunicação com
Conselho Econômico e Social das Nações Únicas (ECOSOC). Visando a melhor
compreensão, transcreve-se:
O mecanismo de implementação do Pacto de Direitos Civis e Políticos é o
Comitê dos Direitos Humanos, composto por 18 membros eleitos a título pessoal.
Os Estados-partes dos Pactos se obrigam a "apresentar relatórios sobre as
medidas adotadas para dar efeito aos direitos reconhecidos" no documento
159
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.154.
86
e "sobre os progressos realizados no gozo desses direitos" (Artigo 40,
parágrafo 2). O Comitê é incumbido de estudar os relatórios, transmití-los
aos Estados-partes com os comentários gerais que considerar apropriados,
e de reportar, por sua vez, ao ECOSOC (Artigo 40, parágrafo 4).160
No que concerne ao segundo documento, o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, sublinha-se que este entrara em vigor em 3 de
janeiro de 1976, apontando as diretrizes aos seus Estados signatários segundo os
termos de seu artigo 2.o, parágrafo 1.o: "individualmente e através da assistência e
cooperação internacionais, especialmente econômicas e técnicas, até o máximo de
seus recursos disponíveis, com vistas a alcançarem progressivamente a completa
realização dos direitos".
Inicialmente, o Pacto previu que a apresentação de relatórios, advindos de
seus Estados signatários, sobre os direitos nele previstos, deveria se dar no Conselho
Econômico e Social das Nações Únicas (ECOSOC). Mais tarde em 1987, o ECOSOC
desenvolveu e atribui tal função ao Comitê para os Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais.
Finalizando este ponto, debate-se que a Declaração de Viena de 1993 veio
comprovar tal conceituação contemporânea dos direitos humanos, quando consagra,
em seus preceitos, o alcance universal e o parâmetro indivisível e correlato desses
direitos. A Declaração de Viena pode assim ser melhor compreendida:
Com um preâmbulo de 17 parágrafos, uma parte operativa conceitual de 39
artigos e um programa de ação com 100 parágrafos recomendatórios, a
Declaração de Viena é o documento mais abrangente adotado consensualmente
pela comunidade internacional sobre o tema. E, tendo-se em conta que a
Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 foi adotada por votação
(48 a zero com 8 abstenções), quando a Assembleia Geral da ONU contava
com apenas 56 membros (a maioria dos Estados atuais tinha ainda status
de colônia), é possível dizer que foi a Declaração de Viena que conferiu
caráter efetivamente universal aos direitos definidos no primeiro documento.161
Assim, afirma-se, com precisão, que a Declaração de Viena veio, de forma
ainda mais necessária, reafirmar os valores universais dos direitos humanos para
160
161
ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. 2.ed. São Paulo:
Perspectiva, 2003. p.53.
Ibid., p.27.
87
todos os povos da humanidade, independentemente de crença, religião, etnia, credo,
cultura, ideologia, sexo ou qualquer outra distinção possível.
2.5.3
Globalização e direitos humanos
Outro movimento da história recente da humanidade que vem afetar,
diretamente, os direitos humanos, é a globalização, a qual veio a se desenvolver, de
maneira mais efetiva, no final do século XX, mais especificamente ao final da década
de 80, quando então a Guerra Fria chegou ao fim e, juntamente com ela, a
finalização do mundo dividido entre a ideologia, apenas, das duas grandes potências
da época (Estados Unidos e a antiga União Soviética).
Deve-se deixar claro que o movimento chamado globalização surgiu,
especialmente em seu início, com um viés econômico, mas devido à sua complexidade
e abrangência – além de outros diversos fatores, tais como geopolítica, cultura,
meios econômicos – acabou por vir a atingir todas as esferas da sociedade, tanto
local, como internacional. Explica-se:
Já nos anos noventa do século XX, a História Mundial apresenta um conjunto
de factos que revelam a raiz e o cariz econômico, que motivou e permitiu o
desenvolvimento de um conjunto de fenômenos que efectivaram a
globalização e que desencadearam uma mudança profunda na vida do Ser
Humano na Terra. Ainda que complexo, e de uma certa dificuldade de curta
explicação, poder-se-á indicar um conjunto de elementos que funcionaram
como "motores" e apoios a toda a sua implementação. Desta forma,
entende-se que, a grandeza do fenômeno, deveu-se ao impulso dado por
agentes econômicos, meios e geopolíticos, agentes sociais, culturais, ideológicos,
à escala nacional, regional e internacional.162
Nesse sentido, entende-se que a globalização veio a afetar a vida de todos os
indivíduos, sendo considerada um fenômeno incontornável e irreversível. Acontece
que, nos seus primeiros sinais de surgimento, acreditou-se que esta viria, de fato,
162
OLIVAS CABANILLAS, Enrique; ORTÍZ-ARCE de la FUENTE, Antonio; TORRADO, Jesús Lima.
Globalización y Derecho: una aproximación desde Europa y América Latina. Madrid: Editorial
DILEX, S. L., 2007. p.128.
88
contribuir para o surgimento da "aldeia global"163, onde o ser humano seria colocado
em um lugar central e, também, seria considerado o agente primordial.
Diferentemente do que se previu, a globalização não trouxe essa unidade
almejada, nem possibilitou um maior respeito e efetividade dos direitos humanos,
como bem se precisa:
E se numa fase inicial se entendeu que a globalização seria uma forma fácil
de adaptação a todos os Homens, a todos os regimes, a todas as situações,
a todos os sistemas, numa visão baseada na lógica econômica, gerando um
"espaço" de respeito dos Direitos do Homem, certo é que essa não foi a
consequência que parecia lógica. A abertura de espaços nas mais diferentes
áreas é sem dúvida realidade que pode é evidentemente complexa, mas
que poderá ser tão positiva como negativa para o desenvolvimento da vida
do Homem e dos seus Direitos, sobretudo, os direitos fundamentais.164
O que deve ser levado em consideração, na verdade, é a faceta cruel da
globalização, trazendo consequências negativas aos direitos humanos, especialmente
quando uma cultura é imposta à outra, ou ainda, de maneira mais radical, quando o
poderio econômico, materializado nas empresas transnacionais, volta a tratar o ser
humano como uma mercadoria, suprimindo-lhe todos os seus direitos.
Ocorre que a globalização não aprimorou apenas o seu lado perverso, vindo,
por outro lado, desenvolver novos atores165 no âmbito internacional que iniciaram
uma luta constante pelo fim da violação dos direitos humanos. O primeiro deles, as
Organizações Não-Governamentais (ONGs), surgiram para a defesa dos direitos
humanos e já se tornaram uma constante no plano internacional. Remetendo a questão
à análise de Wagner Menezes:
As ONGs surgiram no âmbito da defesa dos direitos humanos, como um
agente de pressão ou intervenção e concentração sobre regras internacionais
assumidas e não cumpridas por seus governos, que representam um
instrumento de cidadania mundial à medida que cada vez mais se ocupam
163
164
165
A chamada "aldeia global" seria a integração de todos os seres humanos em apenas uma só
realidade, sendo um produto concreto e real do movimento de globalização.
OLIVAS CABANILLAS, Enrique; ORTÍZ-ARCE de la FUENTE, Antonio; TORRADO, Jesús Lima.
Globalización y Derecho..., p.129.
Esclarece-se que atores internacionais diferem-se de sujeitos de Direito Internacional, uma vez
que, apesar de atuarem de forma determinante no contexto internacional, os referidos atores não
podem, como os sujeitos, adquirirem direitos e obrigações no plano internacional. Ou seja, os
atores internacionais não podem firmar tratados.
89
de temas relativos ao futuro da humanidade, como o meio ambiente, direitos
humanos, combate à violência de todas as formas, exploração econômica,
miséria, epidemias, violação aos direitos humanitários, contra os efeitos da
globalização, etc.166
Diferencia-se, então, seu aspecto positivo aos direitos humanos, uma vez
que, materializando-se no próprio Direito Internacional e, consequentemente, nas
organizações internacionais ou, até mesmo, em suas possibilidades correlatas (como
as ONGs), tal instituto pode se tornar um instrumento de respeito aos melhoramentos
para integração, defesa, proteção e evolução dos direitos humanos.
3
A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITO HUMANOS
Tendo sido analisado todo o processo de internacionalização dos direitos
humanos, faz-se pertinente, neste momento, o estudo das suas decorrentes
consequências, com especial enfoque à concretização de tal internacionalização.
Primeiramente, determina-se que a proteção internacional dos direitos
humanos é, de fato, o principal instrumento para transpor, à realidade, a própria
internacionalização dos direitos humanos, devendo, necessariamente, estruturar o
respeito ao próprio ser humano per se em todas as atividades que visem ao
desenvolvimento dos instrumentos de proteção.
De tal forma, para que a referida configuração acerca dos direitos humanos
seja passível de implementação, imprescindível se demonstrou uma nova releitura
sobre a soberania estatal, impossibilitando, em outros termos, o arcabouço impenetrável
do conceito de soberania quando então do surgimento dos Estados modernos167.
A soberania que se apresenta, nos Estados contemporâneos, é fruto de uma
continuidade, de uma "evolução semântica", onde se fizera presente, sempre, na
relação entre teoria jurídica e teoria do poder.
166
167
MENEZES, Wagner, Ordem global e transnormatividade, p.69-70.
Segundo Luigi Ferrajoli, o nascimento dos grandes Estados Nacionais europeus, juntamente com
a ideia de um ordenamento jurídico universal, é que veio a motivar o entendimento da soberania.
90
A proteção internacional dos direitos humanos materializa-se, essencialmente
de três maneiras principais: pelo sistema de petições (reclamações individuais ou de
Estados às jurisdições internacionais), pelo sistema de relatórios (instrumento
ex officio, sendo uma supervisão internacional em um determinado Estado, instituído
por um tratado), e pelos procedimentos de investigações (são visitas in loco para a
coleta de dados, podendo ser permanentes ou ad hoc).
Uma vez que a proteção internacional dos direitos humanos necessita,
efetivamente, que os Estados venham – caso não possuam instrumentos ou caso a
sua demora cause ainda mais danos aos direitos já violados, resultando na não
salvaguarda dos direitos mais essenciais de seus cidadãos – a se submeter, em
plano internacional, a organismos que lidem com a referida proteção168, mostra-se
nítido que o conceito de soberania deva ser flexibilizado ante a importância primordial
da proteção dos direitos humanos.
Então, com a devida concordância dos Estados, possibilitados por uma
soberania que acompanhara as necessidades da sociedade, a proteção internacional
dos direitos humanos viera a evocar três categorias de ações, sendo elas: promoção,
controle e garantia169.
Investigando alguns aspectos do que vem a ser a promoção da proteção
internacional dos direitos humanos, diz-se que esta visa, especialmente, fazer com
que aqueles Estados que ainda não possuam um sistema jurídico-legal interno à
tutela dos direitos humanos venham a desenvolvê-la e, caso já tenha, aperfeiçoá-la
ainda mais.
Já no que concerne ao controle, tal proteção vem a cobrar dos Estados, que se
obrigaram internacionalmente por intermédio de tratados ou aderiram a uma organização
internacional que verse sobre direitos humanos, a observância às obrigações contratadas.
O sistema atual de proteção dos direitos humanos, encontra-se, ainda, nessa fase,
uma vez que há a obrigatoriedade da concordância dos Estados para a implementação
de tais instrumentos de proteção dos direitos humanos em plano internacional.
168
169
Na direção do entendimento de Cançado Trindade, os mecanismos de proteção dos direitos
humanos podem ser provocados, tal como ocorre no sistema de petições, e podem, igualmente,
desenrolarem-se de modo ex officio – tendo, como exemplo clássico, o sistema de relatórios.
ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global, p.20.
91
E, finalmente, por garantia entende-se o que se chama de verdadeira tutela
internacional, sendo que seria alocada em um plano superior à tutela estatal, quando
esta última não seria, por si só, suficiente à proteção dos direitos humanos de seus
cidadãos. Esta seria, teoricamente, a maneira mais completa de proteção, pelo fato
de não estar submetida ao aceite dos Estados. Infelizmente, o sistema internacional
dos direitos humanos ainda não chegou nesta fase.
Julga-se que a responsabilidade primária no quesito proteção dos direitos
humanos é, sem dúvida, dos Estados, tanto que os próprios tratados que versam
sobre o tema referem-se a órgãos estatais no exercício primário da proteção.170
Mas como se deve desenvolver esta proteção vem a ser o cerne da
problemática. Primeiro, sublinha-se ser essencial que, após a ratificação de um tratado
sobre direitos humanos, as leis nacionais venham a ser compatibilizadas com
as obrigações e com os dizeres de tal documento, mesmo que, para isso, seja
imprescindível a sua decorrente alteração ou o preenchimento de lacunas.
Também, é obrigatório que os Estados, mediante dizeres legais nacionais,
possibilitem a proteção em âmbito interno dos direitos assegurados internacionalmente,
podendo seus cidadãos evocar tais direitos nos órgãos nacionais.171
Sobre o tema, ainda, é importante registrar que o universalismo172 dos
direitos humanos induz a obrigação aos Estados de respeitarem e promoverem os
referidos direitos a todos os seus cidadãos, independentemente de credo, religião,
etnia, cultura ou de qualquer outra distinção, não sendo aplicada a ideia, nem no
plano nacional, nem no plano internacional, de reciprocidade173 para a proteção dos
direitos humanos.
170
171
172
173
O sistema de proteção internacional dos direitos humanos é complementar e subsidiário em
relação ao sistema de proteção nacional, o qual tem, de fato, a incumbência de proteger os direitos
humanos de seus cidadãos.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Consolidação da capacidade processual dos indivíduos
na evolução da proteção internacional dos direitos humanos: quadro atual e perspectivas na
passagem do século. In: GUIMARÃES, Samuel Pinheiro; PINHEIRO, Paulo Sérgio (Orgs.). Direitos
humanos no século XXI (Parte I). Brasília: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais –
Fundação Alexandre Gusmão, 2002. p.19-49.
O universalismo a que se refere leva em conta todas as particularidades dos relativismos
culturais, entendendo que universalismo vem a ser a ampla dimensão de aplicação e incidência
dos direitos humanos, considerando os indivíduos como cidadãos globais, sendo todos eles
sujeitos de direitos humanos.
A reciprocidade aqui referida é aquela que leva em conta que um Estado ou qualquer indivíduo só
possui deveres e/ou direitos a partir do momento que um terceiro, seja outro Estado ou outro
indivíduo, possua, igualmente, deveres e/ou direitos.
92
Infelizmente, a teoria não se traduz tão facilmente na prática, uma vez que
os Estados nem sempre concordam, facilmente, com todos os dizeres e com as
necessidades advindas da proteção internacional dos direitos humanos. E mais: há
Estados que nem sequer chegaram na democracia – considerado o regime político
ideal para a implementação dos direitos humanos –, o que tende a impossibilitar
quase que totalmente o processo de proteção, tanto nacional, quanto internacional
dos direitos humanos. Nessa linha de raciocínio, transcreve-se a passagem de
Emerson Garcia:
Apesar da disseminação da concepção de que os direitos humanos devem
ser imperativamente observados por todos os Estados sua transposição à
realidade fenomênica, longe de ser direcionada pela estabilidade e pela
universalidade indissociáveis da perspectiva idealístico-formal, tem sido
caracterizada por momentos de ruptura e por uma inegável limitação de
ordem espacial. Nos Estados de reduzida tradição democrática ou naqueles
assolados por constantes conflitos armados, a instabilidade política e
a ausência de uma sólida ideologia participativa em muito contribuem para
a não-sedimentação do respeito ao ser humano como um valor
verdadeiramente fundamental.174
Mesmo que ainda com muitos entraves, não se pode perder de vista que a
proteção internacional dos direitos humanos vem avançando, cada vez mais, em seus
planos de ação e de modificação das próprias estruturas sociais. A primeira prova de tal
argumentação é a multiplicação de instrumentos, organismos e cortes internacionais
que visam proteger os direitos humanos em um nível além dos Estados. Cada vez
mais, há a existência de um maior número de organismos a que se pode recorrer,
caso a proteção nacional não se demonstre eficaz, ou mais perigosamente, ainda
não exista.
Mas a maior contribuição de tal proteção é, sem dúvidas, o incremento do
acesso à justiça internacional, quando, pelo sistema de petições, não mais apenas
os Estados possuem tal direito, passando também aos indivíduos, proporcionando
uma mudança das próprias estruturas do Direito Internacional, quando então se vê
com novos sujeitos além dos Estados e das organizações internacionais – quais
sejam, os cidadãos, que ganham lugar no campo internacional, não se limitando
mais apenas a sua cidadania nacional.
174
GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos: breves reflexões sobre os
sistemas convencional e não-convencional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.48.
93
Decorrência mais do que lógica da proteção internacional dos direitos
humanos é a posição do ser humano como sujeito de direitos e obrigações no plano
internacional, uma vez que, como bem afirma Cançado Trindade:
[...] com o acesso dos indivíduos à justiça em nível internacional, por meio
do exercício do direito de petição individual, deu-se enfim expressão
concreta ao reconhecimento de que os direitos humanos a ser protegidos
são inerentes à pessoa humana e não derivam do Estado.175
Mais do que isso, pode ser dito que a vitória maior dessa referida proteção é
a capacidade processual internacional dos indivíduos, por intermédio do seu acesso
às instâncias internacionais de proteção, proporcionando, de fato, os dois níveis
necessários à proteção dos seus direitos por sua condição humana: um nível
primário nacional e um nível não menos importante, mas necessário quando o
primeiro não der conta de atender às necessidades, o internacional.
Há algumas justificativas para a referida capacidade internacional dos indivíduos,
podendo, brevemente, serem assim discorridas: a) não há lógica em apenas dispor,
aos indivíduos, direitos humanos em nível internacional, devendo, de igual maneira,
capacitá-los, processualmente, para vindicá-los também em nível internacional;
b) o princípio da igualdade processual das partes, conclamado quase que na totalidade
dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, faz-se indispensável no sistema de
proteção internacional dos direitos humanos; c) as vítimas de violações de direitos
humanos – e no termo vítimas, entenda-se, também, seus parentes – podem
apresentar-se, em um procedimento internacional, no início e no final do procedimento,
não tendo cabimento negar-lhes sua participação no curso do processo, uma vez
que serão elas próprias quem virão a serem reparadas e indenizadas.176
Além disso, há muitas contradições sobre a posição dos Estados frente à
possibilidade dos indivíduos em demandarem tais organismos internacionais e virem
a requerer tais direitos, posteriormente, no plano interno. Por mais cristalino que
pareça ser o entendimento que os direitos humanos encontram-se, mesmo que ainda
teoricamente, em um plano superior aos interesses estatais, há ainda muito que se
175
176
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Consolidação da capacidade processual dos indivíduos
na evolução da proteção internacional dos direitos humanos: quadro atual e perspectivas na
passagem do século, p.30.
Ibid., p.40.
94
fazer e, especialmente, muito que se consolidar para que esta seja a realidade
prática nos sistema de proteção internacional dos direitos humanos. Mas, com certeza,
um ponto já se demonstra em vias de concordância:
Na atual conjuntura, o desenvolvimento progressivo se vê tolhido pela atitude
de Estados que julgam conveniente escapar a suas responsabilidades alegando
que as decisões dos órgãos não têm valor obrigatório, mesmo em casos
nos quais o Estado participou ativamente do procedimento. Tais alegações
são impossíveis quando o órgão emitindo a decisão foi criado por um
tratado multilateral e cuja competência para emitir tal decisão foi livremente
acordada pelo Estado. Isto não assegura o cumprimento da decisão, mas
certamente elimina o argumento ilusório para justificar o não cumprimento.177
O principal problema que se vislumbra, na prática, é que os mecanismos
existentes que visam o acesso dos indivíduos às instâncias internacionais dependem
da própria vontade do Estado, uma vez que é apenas ele próprio quem decide se tal
mecanismo vai ou não fazer parte da realidade de seus cidadãos, tendo em vista
que é só após a adesão do Estado ao respectivo instrumento internacional que seus
cidadãos poderão gozar do direito de petição internacional.
Mas a partir do momento que um Estado se obriga internacionalmente e
proporciona aos seus cidadãos tal acesso às instâncias internacionais, então, a
liberalidade dos Estados demonstra-se diminuta em relação aos casos tradicionais
sobre solução pacífica de controvérsias internacionais, justamente pelo fato do
sistema de petições abarcarem direitos humanos, diferentemente de outros sistemas
de soluções de controvérsias. Cançado Trindade178 valoriza esta linha de raciocínio,
quando então diz:
[...] Enquanto, por um lado, o capítulo tradicional sobre solução pacífica de
controvérsias internacionais tem-se marcado pela ambivalência entre o
dever geral de solução pacífica e a liberdade das partes litigantes de escolha
dos meios, e tem-se assim mostrado particularmente vulnerável a manifestações
do voluntarismo estatal, por outro lado parece claro que não se pode
razoavelmente esperar que os Estados reivindiquem, ou contem com o mesmo
grau de liberdade de ação na solução de "casos de direitos humanos".
177
178
MENDEZ, Juan E. Proteção internacional dos direitos humanos. In: GUIMARÃES, Samuel
Pinheiro; PINHEIRO, Paulo Sérgio (Orgs.). Direitos humanos no século XXI (Parte I). Brasília:
Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – Fundação Alexandre Gusmão, 2002. p.242-243.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos:
fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. p.44.
95
Constitui traço próprio ou específico do rationale dos tratados e instrumentos
sobre direitos humanos o fato de se dirigirem eles à proteção dos seres
humanos e o de a solução de petições ou reclamações neste domínio dever
assim ser guiada pelo respeito aos direitos humanos, e neste basear-se.179
O sistema de proteção internacional dos direitos humanos possibilita o maior
alcance do clamor público para que a defesa e promoção dos direitos humanos
se dê de maneira efetiva, uma vez que "quando um governo fere, ou não protege
adequadamente, direitos de seus cidadãos, estabelecidos nos instrumentos internacionais
de direitos humanos é, em geral, condenado pela opinião pública, tanto externa
quanto interna"180.
Neste quadro, precisa-se, ainda, que a compatibilização entre a jurisdição
nacional e a internacional é realizável, uma vez que se consagrou, nesse último modo
de proteção dos direitos humanos, o princípio do prévio esgotamento dos recursos
do direito interno, trazendo à tona a questão de ser primária a responsabilidade
estatal nessa proteção e, também, de ser a jurisdição internacional subsidiária neste
contexto. Ainda aqui, não se pode perder de vista que, dado o caráter supremo dos
direitos humanos, até mesmo tal princípio pode vir a ser flexibilizado em prol da
proteção adequada e efetiva de tais direitos.181
A proteção dos direitos humanos encontra-se, além de presente nos principais
documentos legais dos Estados, materializada em diversos documentos internacionais
sobre o assunto – especialmente em declarações e tratados. Há, ainda, que se
considerar que existem aqueles que tratam dos direitos humanos de maneira generalizada
e aqueles que se concentram em alguns ou em um único direito humano,
especializando-se em conceitos e meios de promoção e proteção de tal. Pontua-se
que a maior disseminação desses instrumentos ocorrera em um momento posterior
à criação das Nações Unidas.182
179
180
181
182
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos..., p.44.
ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global, p.44.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit.
VELTEN, Paulo. Introdução aos fundamentos dos direitos humanos nas cortes internacionais.
Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, RJ, v.3, n.3,
out. 2008. Disponível em: <http://www.fdc.br/Arquivos/Revista/8/02.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2011.
96
Para que seja realizável a maior efetividade e para que os devidos alcances
regionais sejam alcançados, as atividades de promoção de proteção internacional dos
direitos humanos abarcam organismos supranacionais e, também, intergovernamentais,
contando com três níveis, quais sejam: universal, regional e sub-regional. Obviamente,
há ainda um quarto nível de proteção, sendo o primordial em um sistema escalonado183,
qual seja, o nível nacional ou doméstico.
Especificando o sistema universal de proteção dos direitos humanos, pode-se
dizer, em breves palavras, que este é realizável por intermédio do sistema da Organização
das Nações Unidas, contando com instrumentos, agências, fundos, programas,
comitês, mecanismos e órgãos próprios. Os mecanismos universais podem, ainda,
não ter base em tratados, ou, também, contarem com tratados específicos para a
sua implementação.
Já os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos encontram-se
em número de quatro, sendo eles: o sistema europeu, o interamericano, o africano e o
árabe, lembrando que este último ainda não se encontra em fase plena de operação.
Cada um desses sistemas – a serem analisados em momento posterior – conta com
suas particularidades próprias, atendendo aos reclames e ao desenvolvimento
característico da sociedade em que se encontram.
Por fim, os sistemas sub-regionais são justificados por finalidades econômicas,
mas podem, dependendo das circunstâncias, operarem como sistemas de proteção
dos direitos humanos, quando então, indiretamente, proporcionam a mais fácil realização
dos direitos humanos em um determinado local – por exemplo, quando, por
intermédio da integração econômica, o imposto sobre os alimentos vem a diminuir e o
acesso à comida demonstra-se uma realidade a um maior contingente populacional.
Realidade impossível de não ser percebida é o ponto que urge quando da
análise de todos esses sistemas: não seria, então, possível a ocorrência de dualidade
de processos sob uma mesma questão, envolvendo um mesmo ser humano e um
mesmo direito humano?
Para responder à questão, utilizam-se os ensinamentos de Cançado Trindade,
quando precisa que tem ocorrido "a aplicação do critério da primazia da norma mais
183
Utiliza-se tal terminologia uma vez que, para que seja possível a utilização dos sistemas de
proteção internacional dos direitos humanos, há a necessidade de se ter esgotados os recursos
da jurisdição interna do Estado ou provar que estes não existem.
97
favorável às supostas vítimas", além de evidenciar o caráter complementar dos
sistemas de proteção dos direitos humanos. Em suas palavras:
Dada a possível interpretação concomitante de dispositivos correspondentes
ou equivalentes (um servindo de orientação a outro) de distintos tratados
sobre direitos humanos, tem havido espaço para a aplicação do critério da
primazia da norma mais favorável às supostas vítimas, critério este que tem
encontrado apoio expresso em determinados dispositivos de tratados sobre
direitos humanos. A escolha ou primazia do dispositivo mais favorável às
supostas vítimas tem relação direta com a questão da coexistência de
procedimentos distintos de petições ou reclamações de proteção dos
direitos humanos, pois significativamente pode reduzir ou minimizar as
possibilidades de conflito normativo; encontra-se, com efeito, em clara
consonância com a tendência hodierna a nível internacional de ampliar, ao
invés de restringir, a proteção dos direitos humanos. Ademais, evidencia a
natureza complementar – do ângulo das supostas vítimas dos mecanismos
de proteção dos direitos humanos a níveis global e regional, fenômeno
este que, por seu turno, reflete a especificidade do domínio da proteção
internacional dos direitos humanos.184
Dado esse panorama geral da proteção internacional dos direitos humanos,
importante se apresenta, nesse momento, passar-se à análise dos sistemas de
proteção universal e regionais dos direitos humanos, com especial enfoque ao sistema
interamericano de proteção dos direitos humanos.
3.1
A PROTEÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
A proteção universal dos direitos humanos é operacionada, especialmente,
no âmbito da Organização das Nações Unidas185 e seu desenrolar relaciona-se,
diretamente, com a própria formação e evolução de tal organização.
184
185
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos..., p.50.
O sistema global não se limita, exclusivamente, ao sistema ONU, podendo, ainda, serem citadas
outras organizações internacionais, tais como a Organização Mundial do Trabalho e a Organização
Mundial da Saúde. Acontece que, para este estudo, o sistema ONU de proteção dos direitos
humanos é que o interessa.
98
Além disso, a referida proteção divide-se em dois grandes ramos, quais
sejam186: a proteção por intermédio de mecanismos convencionais de proteção dos
direitos humanos, criados por convenções específicas, independentes, mas que se
encontram no seio da ONU; e a proteção pelos mecanismos não-convencionais de
proteção dos direitos humanos, decorrentes de resoluções elaboradas por órgãos
das Nações Unidas (com especial enfoque aos dois órgãos especializados na proteção
dos direitos humanos: Conselho de Direitos Humanos187 e Alto Comissariado em
Direitos Humanos188, sendo o primeiro subsidiário da Assembleia Geral e o segundo,
do Secretariado da ONU).
Nesse sentido, passa-se à análise da formação, evolução e implementação
do sistema de proteção universal dos direitos humanos.
3.1.1
Formação e evolução do sistema de proteção universal
Para se entender o desenrolar de todo o sistema de proteção universal
é indispensável, também, o entendimento do que representa a Organização das
Nações Unidas.
A ONU é um órgão basilar do próprio Direito Internacional, uma vez que vem
a ser ela o organismo mais influente e com maior número de adesões que até hoje
já existiu.
Surgida em um contexto pós-2.a Guerra Mundial, a ONU formou-se, inicialmente,
por países capitalistas e socialistas, baseando-se em uma democracia internacional,
tendo como marco a assinatura da Carta das Nações Unidas, em 26 de junho de
1945, em São Francisco, Estados Unidos.
A Organização propriamente dita nasceu, oficialmente, em 24 outubro de 1945
(data da promulgação da Carta das Nações Unidas), sendo, desde seus primórdios,
186
187
188
ALSTON, P. The United Nations and human rights: a critical appraisal. Oxford: Clarendon, 1992.
O Conselho de Direitos Humanos viera a substituir o que outrora era a Comissão de Direitos
Humanos das Nações Unidas, a partir de 16 de junho de 2006.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Proteção e a Promoção dos Direitos Humanos fora
aprovado pela Resolução n.o 48/141, da Assembleia Geral, em 20 de dezembro de 1993.
99
uma organização internacional de vocação universal, multilateral, de caráter
intergovernamental189, cujo objetivo é preservar a paz no mundo. Em síntese:
A Organização das Nações Unidas – ONU é um organismo intergovernamental,
criado por intermédio de uma associação de Estados, com personalidade
jurídica internacional, como se depreende de seus artigos 104 e 105,
embora não haja dispositivo especifico, atribuindo-lhe tal personalidade. Na
época, evitou-se a idéia de um "super-Estado". Os poderes expressos da
ONU estão explícitos e implícitos na Carta. Estes últimos, necessários para
a consecução de seus objetivos, como o reconheceu a Corte Internacional
de Justiça em um acórdão de 1949, em um processo de "reparação de
danos sofridos ao serviço das Nações Unidas" [...].190
Além da manutenção da paz, a ONU tem como seus propósitos, também, o
alcance da segurança internacional, o desenvolvimento de relações amistosas entre as
nações, a busca por uma cooperação internacional para a resolução de problemas
econômicos, sociais, culturais e humanitários, a harmonização da ação das nações
para a consecução de objetivos comuns e, ainda, serve como foro aberto para o
debate entre os Estados.191
Interessante é observar que a proteção dos direitos humanos não ocupa os
objetivos basilares das Nações Unidas, uma vez que a própria Carta não se refere
à "proteção" ou "salvaguarda" dos direitos humanos. Apesar disso, é impensável
a evolução da proteção dos direitos humanos e, até mesmo, do próprio Direito
Internacional, sem contar com a análise dessa organização.192
Assim sendo, pode-se dizer que a ONU, indiscutivelmente, vem criando, desde
sua formação, um aparato universal para a proteção dos direitos humanos, baseado
em sua Carta, nas Declarações, tratados e além de outras ações voltadas ao
desenvolvimento dos direitos humanos.193
189
190
191
192
193
Seu caráter intergovernamental decorre de ser uma organização pautada nas vontades estatais,
não tendo poder ou autoridade suficientes para determinar o que os Estados devem ou não fazer,
sem o consentimento desses.
HUSEK, Carlos Roberto. A nova (des)ordem Internacional ONU..., p.321-322.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br>.
Acesso em: 02 fev. 2011.
GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos...
HUMAN RIGHTS EDUCATION ASSOCIATES. Disponível em: <http://www.hrea.org/index.
php?doc_id=439>. Acesso em: 10 mar. 2011.
100
Decorrente de tal comprometimento, já em 1946, apenas um ano após a sua
criação, a ONU, por intermédio de seu Conselho Econômico e Social (ECOSOC)194,
pela Resolução 5 (I), veio a desenvolver a Comissão de Direitos Humanos (CDH).
A primeira grande missão de tal Comissão fora o desenvolvimento do que
viera, posteriormente, a ser a Declaração Universal dos Direitos do Homem, cuja
qual fora adotada, em 1948, pela Assembleia Geral.
Além disso, a Comissão influenciou, definitivamente, os parâmetros internacionais
dos direitos humanos para sua decorrente efetivação e proteção.
Mais tarde, a Comissão veio centralizar seus esforços para a elaboração de um
rol de direitos vinculantes, no intuito de tornar obrigatórios os termos da Declaração
de 1948. Nesse sentido, em 1966, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou os
dois principais Pactos, no âmbito da ONU, com força obrigatória: Pacto Internacional
sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais.
Recorda-se, mais uma vez, que fora necessária a existência de dois Pactos195
para sua devida adoção, uma vez que muitos países ocidentais contrapunham-se ao
desenvolvimento de um único pacto, que abarcasse todos os direitos existentes na
Declaração de 1948. No contexto da Guerra Fria, estando o mundo dividido entre
ideologias distintas – o capitalismo e o socialismo –, não se sustentou a tese de que
os direitos deveriam estar localizados apenas em único Pacto.
Assim sendo, com a combinação da Declaração Universal de 1948 e os dois
Pactos supracitados, formou-se a Carta Internacional dos Direitos Humanos196
(International Bill of Rights), inaugurando o sistema universal de proteção dos
direitos humanos.
No desenrolar do próprio Direito Internacional, muitos outros documentos
internacionais vieram a integrar, como órgãos autônomos, o sistema das Organizações
das Nações Unidas, contendo, cada um deles, um determinado sistema de proteção
dos direitos humanos (mecanismo convencional de proteção dos direitos humanos).
194
195
196
O Conselho Econômico e Social tem por dever fazer recomendações à Assembleia Geral sobre
questões de direitos humanos, além de revisar relatórios apresentados pela Comissão de Direitos
Humanos e submeter as versões com emendas à Assembleia Geral.
Não obstante a existência de dois Pactos de direitos humanos, tais direitos continuam indivisíveis,
tanto do ponto de vista teórico, quanto do prático.
OFFICE OF THE UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS. Disponível em:
<http://www2.ohchr.org/english/law/>. Acesso em: 05 abr. 2011.
101
Além disso, a tutela de tais direitos, na estrutura da ONU, encontra respaldo –
como já anteriormente dito –, em dois órgãos especializados na proteção dos
direitos humanos (Conselho de Direitos Humanos e o Alto Comissariado em Direitos
Humanos), além de contar com a atuação de três dos seus seis principais órgãos197:
(I) Assembleia Geral;
(II) Conselho Econômico e Social (ECOSOC);
(III) Tribunal Internacional de Justiça.
O sistema ONU conta, ainda, com diversos outros órgãos, agências e fundos198
que englobam o tema da proteção e efetivação dos direitos humanos, podendo
ser citados:
(I)
Escritório das Nações Unidas de Assistência Humanitária (OCHA);
(II)
Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais (DESA) e sua Divisão
para o Status da Mulher (DAW);
(III) Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (UNHCR);
(IV) Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura
(UNESCO);
(V)
Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO);
(VI) Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF);
(VII) Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM);
(VIII) Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).199
Discorrido, brevemente, sobre os principais aspectos da evolução das
Nações Unidas e, consequentemente, do próprio sistema universal de proteção dos
direitos humanos, passa-se, nesse momento, à análise dos mecanismos de proteção
convencionais e não-convencionais no seio da referida organização.
197
198
199
FEFERBAUM, Marina. Proteção internacional dos direitos humanos: um estudo da África. 144 f.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2009. p.38.
Estima Husek que "os traços fundamentais do sistema das Nações Unidas são: a autonomia, a
complementaridade e a coordenação: Autonomia – Cada organização da ONU tem origem num
tratado específico e independente, podendo as instituições especializadas, por exemplo, ter
membros que não pertençam a ONU. Tais instituições não estão, a ela, atreladas politicamente.
Complementaridade – Consiste na reserva, para a instituição ou organismo, de uma esfera de
atividade própria, privilegiando-se a especialização. Coordenação – Significa a possibilidade de a
ONU estabelecer acordo com uma organização especializada, reconhecendo-se à Organização a
coordenação, embora não imponha a sua vontade". (HUSEK, Carlos Roberto. A nova (des)ordem
Internacional ONU..., p.326).
FEFERBAUM, Marina, op. cit., p.38-39.
102
3.1.2
Mecanismos convencionais de proteção dos direitos humanos
Os mecanismos convencionais, como já outrora foram citados, são aqueles
previstos em documentos internacionais específicos e autônomos, localizados no
seio da Organização das Nações Unidas.
Importante vem a ser diferenciá-los, uma vez que, decorrentes de tratados
sobre direitos humanos, possuem uma força vinculante aos Estados que aderiram a
tais documentos.
Tais instrumentos contam, cada um, com uma maneira de proteção específica
dos direitos humanos e, quase sempre, contam com a presença de Comitês que irão:
(a) receber petições individuais, relatórios e comunicações interestatais; (b) proferir
decisões a petições individuais, declarando a violação ou determinando que o
Estado repare a violação configurada; (c) requerer informações aos Estados sobre a
sua realidade no condizente aos direitos no documento assegurados.
Estima-se que a competência dos Comitês restringe-se às comunicações
que disponham sobre violações aos direitos presentes nas Convenções que os criaram.
Além disso, para o recebimento de petições individuais, há a necessidade de existir,
separadamente, uma declaração do Estado, autorizando tal situação ou, ainda, a
presença da ratificação de um Protocolo Facultativo que ilustre a anterior questão.200
Não se pode perder de vista que os referidos Comitês, formados por peritos
independentes – os quais irão analisar os relatórios enviados pelos Estados
signatários do tratado principal – funcionam como órgãos autônomos dentro do
sistema ONU, mas localizam-se fora de sua estrutura.
Para melhor visualização dos mecanismos convencionais de proteção dos
direitos humanos no sistema das Nações Unidas, citam-se os Comitês201:
200
201
O ponto em questão demonstra a principal diferença entre os mecanismos convencionais e os
não-convencionais de proteção de direitos humanos, uma vez que, nestes últimos, não há a
necessidade de ratificação de protocolos adicionais e nem mesmo de declarações estatais para
existir a possibilidade de apresentação de denúncias por indivíduos ou grupos de indivíduos, por
intermédio do sistema de petições.
FEFERBAUM, Marina. Proteção internacional dos direitos humanos..., p.37.
103
(I)
Comitê de Direitos Humanos (CCPR), criado pelo Pacto de Direitos Civis e
Políticos. É tido como um Comitê modelo a ser seguido pelos outros e
suas funções repousam na análise de relatórios para implementação de
seus direitos, enviados por seus Estados-membros; estudo das denúncias
de um Estado sobre outro, suposto violador dos direitos elencados no
tratado; avaliação de denúncias individuais sobre violações por parte
de um Estado; revisar os relatórios elaborados pelas organizações nãogovernamentais (ONGs); e escrever e enviar "Observações Gerais".
(II)
Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CESCR), criado
pela Resolução ECOSOC 1985/17;
(III) Comitê para a Eliminação de Discriminação Racial (CERD), criado
pela Convenção Internacional para Eliminação de Toda Forma de
Discriminação Racial;
(IV) Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW),
criado pela Convenção para a Eliminação de Toda Forma de Discriminação
contra a Mulher;
(V)
Comitê contra a Tortura (CAT), criado pela Convenção contra a Tortura e
outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes;
(VI) Comitê dos Direitos das Crianças (CRC), criado pela Convenção dos
Direitos da Criança. Dada a importância dessa Convenção – e considerando,
também, a falta de mecanismos para o tratamento de denúncias individuais
no Comitê –, é possível que o Comitê examine os relatórios apresentados
pelos Estados e venha fazer recomendações à Assembleia Geral sobre
tais para o devido cumprimento da Convenção.
(VII) Comitê sobre Trabalhadores Migrantes (CMW), criado pela Convenção
Internacional para a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores
Migrantes e seus Familiares;
(VIII) Comitê sobre os Direitos dos Deficientes (CRPD), criado pela Convenção
dos Direitos dos Deficientes.
Assim descrito, passa-se, agora, ao estudo dos mecanismos não-convencionais
do sistema de proteção dos direitos humanos no âmbito da ONU.
104
3.1.3
Mecanismos não-convencionais de proteção dos direitos humanos
Os mecanismos não-convencionais da proteção dos direitos humanos, no
âmbito das Nações Unidas, são aqueles decorrentes de sua própria Carta e de
resoluções elaboradas por órgãos da própria instituição, sendo que, para melhor
entendimento do ponto, devem ser analisados os seguintes institutos:
(I) Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH);
(II) Comissão de Direitos Humanos (CDH);
(III) Conselho de Direitos Humanos;
(IV) Subcomissão para a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos;
(V) Comitê Consultivo de Direitos Humanos.
A seguir, passa-se ao estudo de cada um desses institutos.
3.1.3.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, como já anteriormente
discorrido neste trabalho, foi de importância primordial na proteção e na proteção
dos direitos humanos a todos os seres humanos, sem, necessariamente, conter um
tom obrigacional.
Pode-se dizer que logo nos primórdios do desenvolvimento da ONU, esta
tratou, de plano, de desenvolver um documento que expressasse seus valores em
relação aos direitos humanos e, de maneira conexa, desenvolveu-se, então, em sua
Comissão de Direitos Humanos, a referida Declaração.
A adoção da Declaração Universal representou o forte desejo da paz no
período pós-Guerra e, além disso, conseguiu unir, em torno de si mesma, objetivos
comuns entre os tão distintos Estados-membros da Organização.
Como mecanismo não-convencional de proteção dos direitos humanos, a
Declaração objetivou, desde seus esboços, o respeito por direitos e liberdades
fundamentais, além de propor, como princípios, a não discriminação, direitos civis,
políticos, sociais e econômicos, tendo, como especial, um caráter universal.
105
Assim sendo, em 10 de dezembro de 1948, no Palácio de Chaillot, em Paris,
58 Estados-membros da Assembleia Geral da ONU adotaram os 30 artigos da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, contando com 48 Estados a favor e oito
abstenções (dois Estados não se fizeram representar no momento da votação)202.
Apesar da Declaração não ser um documento obrigacional aos Estadosmembros da Organização, ela, sem sombra de dúvidas, funcionou e continua a
funcionar como um mecanismo não-convencional de proteção dos direitos humanos,
tendo já inspirado mais de 60 instrumentos acerca dos direitos humanos, os quais,
conjuntamente, constituem o standard internacional dos direitos humanos.
3.1.3.2 A Comissão de Direitos Humanos
Apesar de hoje não mais existir (uma vez que fora substituída pelo Conselho
de Direitos Humanos), a Comissão de Direitos Humanos (CDH) desempenhou um
papel primordial, tanto dentro, como fora da Organização das Nações Unidas no
papel da proteção dos direitos humanos.
Desde sua criação, em 1946, no interior do Conselho Econômico e Social, a
Comissão foi, então, o principal órgão da ONU com objetivos específicos de promoção e
proteção dos direitos humanos, contando com a elaboração de um programa mínimo
que os Estados, então membros da organização, deveriam obedecer.203
A CDH tem, nos artigos 55, alínea c, e 56 da Carta das Nações Unidas, sua
base jurídica, comprometendo seus Estados-membros à cooperação internacional
para a implementação da promoção dos direitos humanos mundo afora.204
Composta, inicialmente, por 53 Estados, fora auxiliada pela Subcomissão de
Promoção e Proteção aos Direitos Humanos, por experts na área, representantes e
relatores especiais. Reunia-se uma vez por ano, por seis semanas, em Genebra,
podendo contar, ainda, com "Sessões Especiais", mediante solicitação.
202
203
204
THE UNIVERSAL DECLARATION OF HUMAN RIGHTS. Disponível em: <http://www.un.org/
rights/50/carta.htm>. Acesso em: 10 jan. 2011.
Este seria, de fato, o mecanismo não-convencional de proteção dos direitos humanos da Comissão
de Direitos Humanos.
ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global, p.74.
106
Seus objetivos eram, essencialmente, em número de três, quais sejam:
elaborar e redigir ao Conselho Econômico e Social proposições, recomendações e
relatórios sobre a proteção dos direitos humanos, por intermédio da composição de
grupos de trabalho; prestar assistência ao ECOSOC na coordenação das atividades
de proteção dos direitos humanos, criando o serviço de consultas por especialistas;
exercer, diretamente, a proteção dos direitos do homem, recebendo declarações de
vítimas ou de seus familiares.205
Deve sempre ser observado o fato da CDH não ter tido competência judicial
e, muito menos, capacidade de ação compensatória quando do recebimento das
declarações individuais. De tal maneira, para o desenvolvimento de seus trabalhos e
o alcance de seus objetivos, a Comissão contava com três métodos: o sistema de
petições, de relatórios e o de investigações.
O sistema de petições206, como anteriormente citado, era o recurso de que se
valiam as vítimas – ou seus familiares – para comunicar as violações de um Estado à
Comissão. Ainda, o sistema de petições poderia valer, além de um sistema individual,
aos próprios Estados denunciarem violações de terceiros, mas, infelizmente, por
questões políticas e diplomáticas, tal recurso não era recorrentemente utilizado.
No que tange ao sistema de relatórios, a Comissão viera a determinar, em
1956, a periodicidade de tais, quando então os Estados-membros da ONU deveriam
informar os progressos implementados em relação aos direitos humanos em seu
próprio território. Com sua sistemática reformulada já no ano de 1965207, os relatórios
deveriam se valer de três fases: primeiro ano, deveriam versar sobre direitos civis e
políticos; no segundo, sobre os direitos econômicos, sociais e culturais; no terceiro,
sobre as liberdades fundamentais.
O sistema de investigações poderia decorrer por intermédio de irregularidades
apontadas pelo sistema de petições ou pela verificação dos relatórios apresentados
205
206
207
GODINHO, Fabiana de Oliveira. A proteção internacional dos direitos humanos. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006. p.25.
O sistema de petições deveria obedecer ao previsto na Resolução n.o 728F, de 1959 (ONU).
O exame direto de violações de direitos humanos pelas Nações Unidas inicia-se em 1965 e é
produto da atuação do Terceiro Mundo diante do apartheid da África do Sul, uma vez que, ao ser
advertido pelo Comitê de Descolonização sobre comunicações de torturas e maus tratos aos
prisioneiros sul-africanos, o ECOSOC decidiu, na data, recomendar à CDH a consideração
urgente sobre o assunto.
107
pelos Estados. Nesses casos, poder-se-ia formar-se comissões ad hoc para verificarem
as situações in loco.
Além de tais objetivos, a Comissão monitorava a implementação de seus
parâmetros estabelecidos, tendo tido, como instrumentos, uma série de procedimentos
especiais e permanentes. Os procedimentos especiais foram missões de investigações,
mecanismos temáticos e serviços consultivos, enquanto que seus procedimentos
permanentes repousavam em dois: Procedimento 1503 e Procedimento 1235.
O Procedimento 1503 fora aprovado em 27 de maio de 1970, pelo ECOSOC,
intitulado como Procedimento para lidar com comunicações relativas a violações de
direitos humanos e liberdades fundamentais, ficando conhecido como "procedimento
confidencial".
Como bem dito, é um procedimento confidencial, contando com todo cuidado
para não infringir a soberania dos Estados, uma vez que não requer a anuência do
Estado onde irá atuar. É utilizado quando a Comissão recebe comunicação sobre
violações sistemáticas e graves dos direitos humanos208 e tem, por excelência,
tal funcionamento:
Aplicado pela primeira vez em 1972, o procedimento estabelecido pela
Resolução 1503 é extremamente cauteloso com as soberanias nacionais.
Funciona através de diversos estágios de filtragem das comunicações
recebidas na ONU e de consultas aos Estados envolvidos, executados por
grupos de trabalho, que devem decidir se as alegações tendem a revelar um
padrão sistemático de violações. Uma vez que se identifique tal tendência,
a situação é examinada primeiro pela Subcomissão de Prevenção da
Discriminação e Proteção das Minorias e, se nesta confirmado o entendimento
sobre a gravidade do caso, pela própria Comissão. As deliberações são
mantidas em sessões fechadas, sem acesso ao público ou a observadores
de qualquer espécie, limitando-se o Presidente da Comissão a anunciar em
sessão aberta os países objeto de consideração. A não ser, naturalmente,
que se tenha decidido, nas sessões fechadas, "punir" o governo recalcitrante,
passando o caso à consideração em sessão ostensiva.209
Acontece que, a partir do momento que o Procedimento 1503 não consegue,
de fato, colocar fim à violação de direitos humanos investigada, a Comissão poderia
invocar a aplicação do Procedimento 1235.
208
209
Como exemplo, pode citar-se o genocídio, o apartheid, a discriminação étnica e racial, a tortura, a
migração em massa forçada, a prisão em massa sem julgamento, entre outras.
ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global, p.63.
108
O Procedimento 1235, adotada em 1967, flexibilizou os requerimentos de
confidencialidade, tornando possível a realização de um debate público anual sobre
as graves violações de direitos humanos. O referido Procedimento trouxe muitos
avanços no embate ao fim das violações de direitos humanos, mas, ainda, guarda
muitos problemas, especialmente quando "permite aos diplomatas jogar com as
palavras com o que podem ser violações maciças dos direitos humanos, mas não
'um padrão', ou um padrão de violações maciças, mas não realmente 'constantes'".210
Mesmo assim, caso ambos os Procedimentos não tragam efeitos à finalização
das violações, seria cabível, ainda, a solicitação da Comissão ao ECOSOC para
aprovar alguma resolução que condene os infratores, sendo uma condenação
pública que poderia por em risco a reputação, tanto nacional, quanto internacional,
dos líderes do Estado condenado.
Esquematizando os procedimentos especiais211, as missões de investigação,
que só poderiam ocorrer com o devido consentimento do Estado a ser analisado,
contam com um expert ou grupo de experts para a análise dos direitos humanos,
procurando as violações e reunindo informações para os Procedimentos supracitados.
Um segundo procedimento especial é o mecanismo temático, composto por
relatores e/ou grupos de trabalhos, os quais investigam como violações de direitos
humanos podem vir a produzir problemas globais.
Igualmente importante era o serviço de consultoria prestado pela Comissão
aos Estados-membros que o solicitava.
Ainda que com diversos problemas e pontos, especialmente no que condiz à
excessiva politização e influências diplomáticas, indubitável foi a relevância da
Comissão de Direitos Humanos no desenrolar da proteção dos direitos humanos.
210
211
MENDEZ, Juan E. Proteção internacional dos direitos humanos, p.233.
HUMAN RIGHTS EDUCATION ASSOCIATES. Disponível em: <http://www.hrea.org/index.
php?doc_id=439>. Acesso em: 10 mar. 2011.
109
3.1.3.3 O Conselho de Direitos Humanos
O Conselho de Direitos Humanos é um órgão intergovernamental das Nações
Unidas, contando com a contribuição e o empenho de 47 Estados para a promoção e
a proteção dos direitos humanos no mundo. O Conselho fora criado pela Assembleia
Geral da ONU, em 15 de maio de 2006, no intuito de substituir a Comissão de Direitos
Humanos212, tendo entrado em vigor, efetivamente, em 16 de junho de 2006.213
A resolução do Conselho de Direitos Humanos fora aprovada por 170 votos
a favor e, apenas, 4 contras (Estados Unidos, Israel, Ilhas Marshall e Palau).
Indiscutivelmente, o Conselho trouxe grandes avanços já impossíveis de serem
vislumbrados pela antiga Comissão de Direitos Humanos, tais como: status mais
importante que o da Comissão na proteção dos direitos humanos (uma vez que será
subordinado diretamente à Assembleia Geral); maior número de reuniões para
discussão de seus temas214; constituição por representação geográfica.
O Conselho será composto por 47 membros, a serem escolhidos pela
Assembleia Geral da ONU, e tem, como objetivos primordiais, a localização das
principais situações de violações de direitos humanos e fazer recomendações para tais.
Um ano após o início de seus trabalhos, em 2007, o Conselho veio a adotar o
Institution – building package, cujo qual proveu elementos para guiar os seus futuros
trabalhos. Entre os elementos, está o Universal Periodic Review215, mecanismo cujo
qual irá proporcionar o acesso à situação dos direitos humanos em todos os 192
Estados-membros da ONU. Outra ferramenta é o novo Advisory Committee, servindo
o Conselho de excelência, por intermédio de conhecimentos especializados, na
temática acerca dos direitos humanos. Por fim, ainda, prevê o Complaints Procedure,
212
213
214
215
THE HUMAN RIGHTS COUNCIL. Disponível em: <http://www2.ohchr.org/english/bodies/
hrcouncil/index.htm>. Acesso em: 23 fev. 2011.
Já em 2005, o então Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Anan, propôs a criação de um
novo órgão, visando um mandato mais forte e eficaz que o da então Comissão de Direitos Humanos.
O Conselho deverá se reunir não menos que três vezes por ano, por um período total de pelo
menos dez semanas, em sua sede em Genebra, Suíça.
Com esse mecanismo, o Conselho tentava acabar com a prática de "um peso, duas medidas" no
que tange às violações de direitos humanos, fato que tanto viera a prejudicar a Comissão de
Direitos Humanos.
110
um mecanismo que permite a submissão de reclamações individuais ou organizacionais
sobre violações de direitos humanos ao Conselho.216
Imprescindível é ser descrito o fato do Conselho continuar a empregar, em
seus trabalhos, os procedimentos especiais, estabelecidos pela já extinta Comissão
de Direitos Humanos. Aqui, os procedimentos especiais poderão ser realizados por
intermédio de especialistas (special rapporteur ou independent expert) ou grupos de
trabalho, compostos, cada um, por cinco membros.
O Conselho ainda pode contar no desenvolvimento de seus trabalhos, tal
como existia na Comissão de Direitos Humanos, com os Procedimentos 1503 e 1235.
Até o final de 2011, são os seguintes Estados, de acordo com seus grupos
regionais, que se encontram formando o Conselho:
(I) ESTADOS AFRICANOS: Angola, Burkina Faso, Camarões, Gabão, Gana,
Djibouti, Líbia217, Mauritânia, Ilhas Maurícius, Nigéria, Senegal, Uganda
e Zâmbia.
(II) ESTADOS AMERICANOS: Argentina, Brasil, Chile, Cuba, Equador, Estados
Unidos, Guatemala, México e Uruguai.
(III) ESTADOS ASIÁTICOS: Bahrem, Bangladesh, China, Japão, Jordânia,
Quirguistão, Malásia, Maldivas, Paquistão, Qatar, Coreia do Sul, Arábia
Saudita e Tailândia.
(IV) ESTADOS EUROPEUS: Bélgica, Eslováquia, Espanha, França, Hungria,
Moldova, Noruega, Polônia, Suíça, Reino Unido, Rússia e Ucrânia.
Mesmo que conte, ainda, com diversas imperfeições, o Conselho tem se
mostrado um ótimo instrumento na promoção e na proteção dos direitos humanos,
contando, ainda, com reconhecimento internacional. A suspensão ou expulsão de
um Estado do Conselho de Direitos Humanos pode trazer inúmeras consequências
negativas, tendo em vista o amplo poder e reconhecimento de tal instituição.
216
217
THE HUMAN RIGHTS COUNCIL. Disponível em: <http://www2.ohchr.org/english/bodies/
hrcouncil/index.htm>. Acesso em: 23 fev. 2011.
Em decorrência dos conflitos civis no interior do país, a ONU suspendeu, em 01 de março de
2011, a participação da Líbia no Conselho de Direitos Humanos.
111
3.1.3.4 A Subcomissão para a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos
A Subcomissão desenvolveu-se em 1947, como principal órgão subsidiário
da então extinta Comissão de Direitos Humanos. Já em sua primeira reunião,
nomeou-a como Subcomissão Para a Prevenção da Discriminação e Proteção às
Minorias quando então em 1999, por votação, alterou-se para o nome atual.218
Inicialmente, fora composta por 26 membros especialistas, eleitos pela
Comissão, respeitando, em sua proporção, a distribuição geográfica. Cada membro
possui um suplente e todos eles atuam de maneira independente aos ideais de seus
Estados de origem. Reúne-se a cada ano, durante três semanas, em Genebra, contando
com a participação, além dos membros especialistas, com representantes de governos,
funcionários das agências especializadas da ONU e observadores de ONGs.
A tarefa basilar da Subcomissão seria dar assistência à Comissão de Direitos
Humanos – hoje, substituída pelo Conselho de Direitos Humanos –, desenvolvendo
estudos, com base nos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
e fazendo recomendações a tal órgão no que concerne à prevenção de qualquer
discriminação relativa aos direitos humanos e às liberdades. Também realiza trabalhos
solicitados por outros organismos da ONU, possuindo, para tais, seis grupos de
trabalho: Grupo de Trabalho sobre Comunicações (responsável pelo exame de
denúncias de violações de direitos humanos), Grupo de Trabalho sobre formas
Contemporâneas de Escravidão, Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas,
Grupo de Trabalho sobre Minorias, Grupo de Trabalho sobre Administração da
Justiça e Grupo de Trabalho sobre Corporações Transnacionais.
Com a decorrente substituição da Comissão pelo Conselho de Direitos
Humanos ocorrera, também, a substituição da Subcomissão para a Promoção e
Proteção dos Direitos Humanos pelo Comitê Consultivo de Direitos Humanos, a ser
estudado no ponto a seguir.
218
HUMAN RIGHTS EDUCATION ASSOCIATES. Disponível em: <http://www.hrea.org/index.
php?doc_id=439>. Acesso em: 10 mar. 2011.
112
3.1.3.5 O Comitê Consultivo de Direitos Humanos
Conjugada à extinção da Comissão dos Direitos Humanos, julgou-se necessária
a extinção de seu maior órgão subsidiário, qual seja, a Subcomissão para a Promoção
e Proteção dos Direitos Humanos.
Acontece que o órgão que viera a substituir à Comissão, o Conselho,
necessitava, igualmente, de um instrumento, tal como a extinta Comissão, para o
desempenho de suas atividades e funções.
Assim sendo, logo que ocorrera a substituição da Comissão pelo Conselho,
recomendou-se a criação de um Comitê Consultivo de Direitos Humanos.
Logo, em 2007, deu-se a criação, pelo Conselho, do referido Comitê, visando
à prestação de aconselhamento especializado. O Comitê conta, hoje, com 18 membros,
geograficamente localizados: cinco da África, três da América Latina e Caribe, cinco
da Ásia, dois do Leste Europeu e três da Europa Ocidental e outros Estados.
3.1.4
Outros institutos da Organização das Nações Unidas envolvidos na proteção
dos direitos humanos
Além dos mecanismos não-convencionais mencionados, existem alguns órgãos
na estrutura da ONU que, apesar de não terem sido criados especificamente para a
proteção dos direitos humanos, desenvolvem trabalhos relevantes nesse ramo.
De tal forma, podem ser citados: Assembleia Geral, o Conselho Econômico
e Social, a Corte Internacional de Justiça e determinadas Agências/Parceiros.
113
3.1.4.1 A Assembleia Geral
A Assembleia Geral219, um dos principais órgãos do sistema das Nações
Unidas, guarda variadas funções. Para justificar sua participação na promoção e
proteção dos direitos humanos, recorre-se aos termos do parágrafo 3.o, do artigo 1.o
da Carta das Nações Unidas, o qual diz ser um dos propósitos da Organização
conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas
internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para
promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades
fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
Além desse dispositivo, a Carta, em seu artigo 62, refere-se expressamente
à atuação da Assembleia Geral no condizente à proteção dos direitos humanos,
quando diz que
o Conselho Econômico e Social fará ou iniciará estudos e relatórios a respeito
de assuntos internacionais de caráter econômico, social, cultural, educacional,
sanitário e conexos e poderá fazer recomendações a respeito de tais assuntos
à Assembleia Geral, aos Membros das Nações Unidas e às entidades
especializadas interessadas.
Para que fosse possível o alcance de tais proposições, especialmente no que
diz respeito à promoção e proteção dos direitos humanos, a Assembleia Geral, em
1993, por intermédio da Resolução 48/141, criou o Escritório do Alto Comissariado
para os Direitos Humanos, sediado em Genebra, Suíça.
219
Estima-se, segundo Husek, que "a Assembleia é constituída por todos os membros das Nações
Unidas (art. 9.o), podendo discutir quaisquer questões ou assuntos que estiverem dentro das
finalidades da Carta, e fazer recomendações aos membros do Conselho de Segurança (art. 10),
bem como solicitar a atenção do Conselho para situações que ameacem a paz e a segurança
internacionais (art. 11), tendo o dever de fazer estudos e recomendações para promover os
objetivos da ONU (art. 13), decidindo, em questões importantes, por maioria de 2/3 dos membros
presentes e votantes e outras questões por maioria dos membros presentes (art. 18)". (HUSEK,
Carlos Roberto. A nova (des)ordem Internacional ONU..., p.353).
114
Tal organismo tem a função primordial de promover a proteção dos direitos
humanos, além de prevenir suas violações, garantindo o respeito a tais direitos. Ainda,
opera no condão da cooperação internacional, mantendo o diálogo entre todos os
Estados-membros da ONU.
Suas principais funções podem assim ser descritas220: prevenção e alerta de
abusos; assistência aos Estados quando ocorrer transições políticas; resolução de
conflitos; promoção de direitos substantivos aos Estados; cooperação, coordenação
e racionalizada de programas voltados aos direitos humanos; oferecer suporte aos
órgãos convencionais e não convencionais da ONU; e buscar a ampla efetivação das
normas internacionais.
Com a criação de tal órgão, também fora desenvolvido o posto do Alto
Comissário para os Direitos Humanos221, cujo qual vem a ocupar a posição de SubSecretário Geral das Nações Unidas, sendo a principal autoridade da ONU nas
atividades relativas aos direitos humanos.
Além do desenvolvimento de tal Escritório, no exercício de suas funções, a
Assembleia Geral conta com o poder para criar missões de observações para a
promoção e garantia dos direitos humanos.
3.1.4.2 O Conselho Econômico e Social (ECOSOC)
O Conselho Econômico e Social, apesar de ter suas atividades voltadas ao
âmbito econômico e social, como o seu próprio nome já revela, pode, em relação
aos direitos humanos, fazer recomendações à Assembleia Geral.
No âmbito dos direitos humanos, sua maior contribuição foi o desenvolvimento
da já extinta Comissão de Direitos Humanos, quando então atribuiu ao ECOSOC a
tarefa de revisão de seus relatórios e sua decorrente submissão à Assembleia Geral.
220
221
HUMAN RIGHTS EDUCATION ASSOCIATES. Disponível em: <http://www.hrea.org/index.
php?doc_id=439>. Acesso em: 10 mar. 2011.
Hoje, o posto em questão é ocupado por Navanethem Pillay, da África do Sul.
115
Com e extinção de tal Comissão, hoje a principal tarefa do ECOSOC, no
campo dos direitos humanos, é a supervisão de comitês, comissões e agências que
lidam e trabalham com o tema.
3.1.4.3 A Corte Internacional de Justiça
A Corte Internacional de Justiça (CIJ), instituída já em 1945 pela Carta das
Nações Unidas222, representa o judiciário da ONU. Tem sua sede em Haia, na Holanda
e é formada por quinze magistrados independentes, eleitos pela Assembleia Geral e
pelo Conselho e Segurança, por um período de nove anos (com possível reeleição).
Segundo o artigo 38 do Estatuto constitutivo da Corte, existe a possibilidade
jurisdicional de solução de controvérsias internacionais, sendo ela a mais alta da
escala evolutiva das cortes internacionais. Por conta de tal questão, muitos tratados
acerca dos direitos humanos outorgam competência à Corte para que seja esta
a responsável pela emissão de pareceres quando então da controvérsia entre
dois ou mais Estados223 sobre a interpretação ou aplicação de disposições dos
referidos tratados.224
Conjugada a esta função, a Corte também pode emitir pareceres consultivos
sobre qualquer questão jurídica – inclusive sobre direitos humanos – por solicitação
da Assembleia Geral, do Conselho de Segurança ou de qualquer outro órgão do
sistema ONU.
222
223
224
Deve ser pontuado que todos os Estados signatários da Carta das Nações Unidas são, sem
exceção, membros da Corte Internacional de Justiça.
Não se pode perder de vista que apenas os Estados podem ser partes, segundo a jurisdição da Corte.
GODINHO, Fabiana de Oliveira. A proteção internacional dos direitos humanos, p.41.
116
3.1.4.4 Agências e parceiros
Algumas agências e parceiros, criados no interior das Nações Unidas, podem
ter, por algumas de suas finalidades, o objetivo de concretizar a promoção e a proteção
dos direitos humanos. Sendo assim, destacam-se225:
-
Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (UNHCR);
-
Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA);
-
Organização Internacional do Trabalho (OIT);
-
Organização Mundial da Saúde (OMS);
-
Organização para a Educação, Ciência e Cultura das Nações Unidas
(UNESCO);
-
Programa conjunto das Nações Unidas para HIV/Aids (UNAIDS);
-
Comitê Permanente entre Organismos (IASC);
-
Comissão sobre a Condição da Mulher (CSW);
-
Escritório da Assessoria Especial em Questões de Gênero e Melhoria da
Mulher (OSAGI);
3.2
-
Divisão para a Melhoria da Mulher (DAW);
-
Fundo da População das Nações Unidas (UNFPA);
-
Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF);
-
Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para as Mulheres (UNIFEM);
-
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP);
-
Organização de Alimento e da Agricultura das Nações Unidas (FAO);
-
Ação das Nações Unidas Contra as Minas.
A PROTEÇÃO REGIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
A proteção regional dos direitos humanos, como outrora já discorrido, opera-se
em quatro sistemas: o sistema europeu, o sistema interamericano, o africano e o árabe.
225
GODINHO, Fabiana de Oliveira. A proteção internacional dos direitos humanos, p.43-44.
117
Embora, inicialmente, tenha havido incerteza, especialmente por parte das
Nações Unidas, na instauração de sistemas regionais, é indiscutível o seu valor na
proteção dos direitos humanos, especialmente quando abre a possibilidade para a
atenção a certas particularidades culturais da região.226
Sem qualquer possibilidade de contestação, o sistema europeu227 é o que se
encontra com um maior grau de desenvolvimento, sendo que, nesse sistema, o
indivíduo é sujeito de Direito Internacional, tendo capacidade postulatória individual
para requerer seus direitos nos instrumentos adequados de tal sistema.
Já no que tange ao sistema interamericano – com especial enfoque nesse
trabalho –, precisa-se que, apesar de não possuir todo o amadurecimento do sistema
europeu, conta com uma Corte de Direitos Humanos que possibilita ao cidadão,
mesmo que não diretamente228, que reivindique seu direito humano violado, desde
que atendidos os requisitos.
O sistema africano, por sua vez, foi o terceiro a ser desenvolvido, em termos
cronológicos. Encontra-se, ainda, muito prematuro na proteção dos direitos humanos
naquele continente, mas já conta com a Comissão Africana de Direitos Humanos e
Direitos dos Povos.
Por fim, há o sistema árabe, cujo qual vem a ser o mais recente desses
sistemas, possuindo um valor muito restrito na proteção dos direitos humanos e uma
influência enorme da religião.
Descritos tais aspectos, especifica-se, nesse momento, as características
primordiais de cada um desses sistemas.229
226
227
228
229
HEYNS, Christof; PADILLA, David; PADILLA, Leo. Comparação esquemática dos sistemas
regionais de direitos humanos: uma atualização. Revista Internacional de Direitos Humanos,
São Paulo, v.3, n.4, p.162, 1.o sem. 2006.
O sistema europeu de proteção de direitos humanos é o mais antigo de todos os sistemas.
Para que seja possível a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é imprescindível
uma prévia análise da Comissão Interamericana de Direitos Humanos do caso.
Deixar-se-á a análise do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos para o final, uma
vez que facilitará a compreensão do próximo estudo e ajudará no desenrolar lógico desse trabalho.
118
3.2.1
O Sistema Regional Europeu
O sistema regional europeu é, sem dúvidas, o sistema que alcançou o maior
desenvolvimento e efetividade na promoção e proteção dos direitos humanos.
É, igualmente, o mais antigo e mais consolidado dentre todos eles, tendo, por base,
a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, assinada em 1950 e vigente a partir
do ano de 1953.
Fruto desse desenvolvimento é o grau de integração regional em que a Europa
se encontra, outrora jamais vista, materializada na União Europeia, a qual, como um
de seus preceitos, visa a promoção e a proteção dos direitos humanos.
Pontua-se que a referida promoção e proteção são, de fato, ocorridas no
âmbito do Conselho Europeu – a mais antiga organização internacional do continente.
Diferentemente do sistema das Nações Unidas, o sistema europeu é de
natureza jurídica, convencional, estabelecendo o vínculo direto entre a proteção
internacional e os indivíduos.
Sua importância reside, essencialmente, no fato de contar com o Tribunal
Europeu de Direitos Humanos, sendo esse o órgão jurisdicional do sistema europeu
de direitos humanos.
O sistema europeu atingiu, indiscutivelmente, patamares jamais realizados
anteriormente na proteção dos direitos humanos, uma vez que os indivíduos
podem, diretamente, demandarem suas questões, contra os Estados-membros, não
necessitando do prévio crivo de um órgão que compõe o sistema – tal como ocorre
no sistema interamericano.
Assim dito, passa-se ao estudo dos mais relevantes institutos que o sistema
europeu de direitos humanos abriga.
3.2.1.1 O Conselho da Europa
Contextualmente, quando do surgimento de um sistema de proteção no
continente, a Europa encontrava-se às margens das devastações advindas da Segunda
119
Guerra Mundial. Assim, para renovar esforços de manutenção da paz e, especialmente,
de cooperação entre os Estados, os líderes de todos os cantos do continente
fundaram três organizações: o Conselho da Europa (responsável pela proteção e
promoção dos direitos humanos e da democracia), a União Europeia (promoção do
comércio e da estabilidade econômica entre seus membros) e, posteriormente, a
Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (manutenção da paz e da
segurança no continente europeu).230
Avalia-se que, nesse trabalho, o interesse repousa no estudo do Conselho
da Europa (COE), uma vez que ali encontra-se, de fato, o sistema de proteção de
direitos humanos europeu.
Assim, adentrando ao Conselho da Europa, pode-se dizer que este surgiu a
partir do que viera a ser acordado no seio do Congresso Europeu, em 5 de maio de
1949, por intermédio do Tratado de Londres, tendo como marco inicial a aprovação
de seu estatuto231. No preâmbulo do referido documento, afirma-se que "a devoção
a valores espirituais e morais que constituem o patrimônio comum dos seus povos e
a verdadeira fonte da liberdade individual, da liberdade política e do Estado de
direito são os princípios que baseiam a democracia"232.
Para um Estado participar do COE, deverá demonstrar que configura um
Estado de Direito e desenvolve ações para a proteção dos direitos humanos, em
conformidade com as preocupações do referido organismo, quais sejam: promoção
da cultura e da diversidade, consolidação e manutenção da estabilidade democrática,
promoção da força econômica do continente europeu, entre outras.
230
231
232
HUMAN RIGHTS EDUCATION ASSOCIATES. Disponível em: <http://www.hrea.org/index.
php?doc_id=439>. Acesso em: 10 mar. 2011.
No momento inicial, dez países aprovaram o estatuto do Conselho da Europa, sendo eles:
Bélgica, Dinamarca, França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Noruega, Suécia e Reino
Unido. Grécia e Turquia adentraram em 1949, Islândia e Alemanha no ano seguinte. A Áustria
tornou-se membro em 1956, Chipre em 1961, Suíça em 1963, Malta em 1965, Portugal em 1976,
Espanha em 1977, Liechtenstein em 1978, San Marino, dez anos depois, em 1988, Finlândia em
1989, e, finalmente, Andorra em 1994. Após a queda dos regimes comunistas, em 1989, vários
Estados da Europa Central e Oriental tornaram-se membros do Conselho da Europa
HART, James W. The European Human Rights System. Law Library Journal, Ohio, v.102, p.537, 2010.
120
O Conselho é regulado pelo Comitê de Ministros (ministros das Relações
Exteriores de seus Estados contratantes), o qual possui autoridade para desenvolver
acordos e fazer recomendações aos governos, podendo, ainda, tomar decisões
relativas à organização interna do próprio Conselho. De acordo com o previsto em
seu art. 14, cada um dos Estados tem direito a um voto e é o próprio órgão executivo
do sistema europeu.
Outro órgão do organismo é a Assembleia Parlamentar, cuja qual vem a ser
um órgão deliberativo, debatendo problemas e fazendo recomendações ao Comitê de
Ministros. Pode, ainda, representar a opinião dos cidadãos dos Estados contratantes.
É composta por 313 membros e 313 suplentes, indicados entre legisladores nacionais,
sendo que o número de representações concedidas aos Estados é determinado por
uma fórmula baseada em sua população.233
Há, ainda, outros dois entes: o Congresso dos Poderes Locais e Regionais
da Europa (órgão consultivo, com representantes locais e regionais, composto por
uma Câmara dos Poderes Locais e uma Câmara das Regiões) e o Secretário-Geral
(dirige e coordena as atividades da organização, com um mandato de cinco anos).234
3.2.1.2 A Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950
A Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais foi elaborada no âmbito do Conselho da Europa. Aberta a assinaturas
em 4 de novembro de 1950, em Roma, veio a entrar em vigor apenas em setembro
de 1953.
Valoriza-se o fato de que fora essa Convenção o primeiro tratado, propriamente
dito, de direitos humanos, uma vez que a Declaração Universal de Direitos do Homem e
do Cidadão, da ONU, de 1948, não contava com a coercitividade e obrigatoriedade
próprias de um tratado, sendo ela, apenas, uma declaração sobre os direitos humanos.
233
234
HART, James W. The European Human Rights System, p.538.
HUMAN RIGHTS EDUCATION ASSOCIATES. Disponível em: <http://www.hrea.org/index.
php?doc_id=439>. Acesso em: 10 mar. 2011.
121
A Convenção veio a consagrar uma série de direitos e liberdades civis e políticas
e, também, um sistema que visava garantir o respeito das obrigações assumidas
pelos Estados contratantes, por intermédio de três instituições: a Comissão Europeia
dos Direitos do Homem (criada em 1954), o Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem (instituído em 1959) e o Comitê de Ministros do Conselho da Europa.
Em seu preâmbulo, previa-se, claramente, que seu objetivo na região repousava
em dar "os primeiros passos para a garantia coletiva de certo número de direitos
enunciados na Declaração Universal".
Esquematicamente, a primeira seção da Convenção versa sobre os direitos
humanos individuais e sobre as liberdades fundamentais que devem ser protegidas,
impedindo que os governos oprimam seus povos235. Na sequência, previu-se a
possibilidade de recurso individual de queixas contra os Estados, por violação dos
direitos garantidos pela Convenção, à Comissão.
Nesse sentido, a estrutura jurisdicional prevista na Convenção, ao longo dos
tempos, teve duas significativas mudanças desde sua criação.236
Em um primeiro momento, entres os anos de 1953 a 1998, a Comissão,
prevista pela Convenção como obrigatória a todos os seus Estados contratantes,
poderia receber queixas de quaisquer pessoas, organizações não-governamentais ou
grupos de indivíduos, de acordo com o art. 25 da Convenção. Este contexto trouxe
uma grande inovação ao sistema internacional, uma vez que, até o final da Segunda
Guerra Mundial, o direito internacional não restringia o modo que um Estado soberano
poderia tratar seus cidadãos.237
Ainda de acordo com o art. 25 da Convenção, cada um de seus Estados
membros teria que redigir uma declaração de concordância com o sistema previsto
no referido diploma legal.
235
236
237
No que tange aos direitos civis e às liberdades fundamentais, a Convenção Europeia prevê:
direito à vida; proibição da tortura e tratamento desumano ou degradante; liberdade da escravidão
ou servidão; direito à liberdade e à segurança; direito ao respeito à vida familiar e privada;
liberdade de pensamento, consciência e religião; liberdade de expressão; direito à educação;
liberdade da prisão por dívida; abolição da pena capital em tempos de paz; direito ao devido
processo legal quando da expulsão do estrangeiro; igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.
HART, James W. The European Human Rights System, p.539.
Id.
122
Segundo o referido sistema de queixas à Comissão, determinados requisitos,
previstos no art. 27 da Convenção, deveriam ser preenchidos e, em concordância
com o art. 35, as queixas seriam inadmissíveis quando: fossem anônimas; os assuntos
já tivessem sido examinados pela Comissão ou por outra corte ou, ainda, por outra
organização internacional; temas que não tivessem esgotados todos os recursos
internos e que teriam sido arquivados por seis meses após a última decisão em
instituições nacionais; fossem incompatíveis com a extensão da Convenção.
Caso a queixa fosse admitida pela Comissão, ocorreria tentativas de conciliação
e, restando infrutíferas, o referido órgão redigiria um relatório que seria encaminhado
ao Conselho de Ministros. Se o Estado aceitasse a jurisdição obrigatória do Tribunal
Europeu, a Comissão e/ou qualquer outro Estado contratante, dispunha de três meses,
a contar da transmissão do relatório ao Comitê de Ministros, para o envio do caso ao
Tribunal. Cabe ressaltar que, nesse momento, os particulares não poderiam solicitar,
diretamente, a intervenção do Tribunal na questão.
Se a situação não fosse levada ao conhecimento do Tribunal, a incumbência
de decidir se existia ou não uma violação da Convenção era do próprio Comitê de
Ministros, cujo qual era igualmente responsável pela vigilância da execução dos
acórdãos do Tribunal.
Com o passar dos tempos, a Convenção viu-se na necessidade de mudar,
especialmente por conta do aumento imenso do número de queixas individuais e
pela demora na sua solução. A referida situação foi resultado da mudança cultural
da Comissão e da dissolução da União Soviética
Nesse cenário, vários Protocolos vieram entrar em vigor, sendo necessária uma
atenção especial do Protocolo n.o 11, de primeiro de novembro de 1998. Permanecendo
em vigor até primeiro de julho de 2010 (data em que o Protocolo n.o 14 entrou em
vigor), o referido documento previu algumas mudanças: o fim da Comissão; transformou
o Tribunal Europeu de Direitos Humanos permanente; proporcionou ao Tribunal a
responsabilidade de propor conciliações; aboliu a possibilidade do Comitê de
Ministros julgar casos individuais; tornou a decisão da Corte como decisão final nos
casos à ela apresentados; reestruturou a Corte entre comitês e câmaras, incluindo
uma câmara superior; e estabeleceu um sistema de registros para a Corte.238
238
HART, James W. The European Human Rights System, p.545-546.
123
Valoriza-se que, nesse momento, ocorrera, no sistema europeu, uma alteração
jamais vista nos sistemas de proteção dos direitos humanos: a possibilidade do
próprio indivíduo reclamar, em uma corte internacional de direitos humanos, seus
direitos violados pelo Estado.
Após, no ano de 2010, a entrada em vigor do Protocolo n.o 14 objetivou
trazer soluções ao fato da apresentação de um número estrondoso de casos à Corte.
Em números, o seu relatório anual de 2003 estimou que 27.281 casos foram
admitidos, 16.724 inadmitidos e 548 casos foram levados ao julgamento de mérito
naquele ano.
Por conta dessa situação caótica, o Protocolo n.o 14 previu algumas situações
para que se realizasse um crivo ao caso, anteriormente à demanda na Corte. Ocorre
que, até hoje, o Protocolo não fora satisfatoriamente implementado e, por conta de
tal situação, um dos principais desafios do sistema de proteção dos direitos humanos
europeu é lidar com o irrestrito acesso e o consequente elevado número de petições
em seu sistema que faz com que, muitas vezes, direitos humanos realmente violados
não sejam reparados em tempo hábil.
De tal forma, nesse ponto, tendo em vista toda a evolução do poder jurisdicional
referente aos direitos humanos na Europa, valem ser feitas algumas considerações
acerca do Tribunal Europeu de Direitos Humanos.
3.2.1.3 O Tribunal Europeu de Direitos Humanos
Especialmente para garantir a eficácia da proteção dos diretos humanos
reconhecidos pela Convenção, criou-se o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
Previsto no título II da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o
Tribunal iniciou seus trabalhos no ano de 1991, atuando de forma permanente, na
cidade de Estrasburgo, na França, compondo-se de juízes dos Estados partes.
Frisa-se que, diferentemente do que ocorre no sistema interamericano – onde a
assinatura da Convenção não necessariamente reflete na aceitação da jurisdição de
sua Corte –, quando o Estado ratifica a Convenção Europeia dos Direitos Humanos,
necessariamente está, também, reconhecendo a jurisdição do referido Tribunal.
124
Adentrando à história, antes do ano de 1998, existia uma Comissão no
âmbito europeu, que analisava previamente as demandas, dependendo de seu crivo
a atuação da Corte. Após, com a implementação do Protocolo n.o 11, o Tribunal
começou a receber demandas de violações dos direitos humanos diretamente dos
cidadãos dos Estados partes.
Assim, avalia-se que a nova estrutura do Tribunal Europeu de Direitos Humanos
iniciou seus trabalhos em primeiro de novembro de 1998 e, de acordo com a sua
organização, é composto por um número de juízes igual ao dos Estados contratantes,
sendo eleitos por um período de nove anos, renováveis por mais nove.239
Documenta-se que os referidos juízes são eleitos pela Assembleia Parlamentar
de cada Estado, por maioria dos votos expressos, recaindo numa lista de três
candidatos por Estado. Tais juízes têm o dever de exercerem suas funções a título
individual e não podem realizar qualquer atividade incompatível com o dever de
independência e imparcialidade exigida para desempenho da função.
Entre esses juízes, o Tribunal, em assembleia plenária, elege seu presidente,
dois vice-presidentes e dois presidentes da câmara, todos por um período de três anos.
As formações do Tribunal podem ser: juízes singulares; comitês de três juízes,
seções de sete juízes; e grande câmara de dezessete juízes.
Adentrando à possibilidade de apresentação de petições, traça-se que
qualquer Estado contratante ou qualquer particular (pessoa singular, organização
não governamental ou grupo de particulares) que se considere vítima de violação de
um dos direitos previstos na Convenção, poderá dirigir, diretamente ao Tribunal, uma
queixa, alegando que a violação se deu por intermédio de um ato ou inação de um
outro Estado igualmente contratante.240
Sublinha-se que o Tribunal é competente para conhecer de todas as questões
relativas à interpretação e à aplicação da Convenção Europeia e dos seus respectivos
protocolos. Ademais, o órgão só poderá conhecer uma causa caso ocorra o esgotamento
dos recursos internos. Pode, igualmente, emitir pareceres sobre questões jurídicas,
239
240
DIRECÇÃO-GERAL DA POLÍTICA DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA DE PORTUGAL.
Disponível em: <http://www.dgpj.mj.pt/sections/relacoes-internacionais/copy_of_anexos/tribunaleuropeu-dos_1/>. Acesso em: 30 maio 2011.
GABINETE DE DOCUMENTAÇÃO E DIREITO COMPARADO DE PORTUGAL. Disponível em:
<http://www.gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-dh/cons-europa-tedh.html>. Acesso em: 30
maio 2011.
125
levantadas pelo Comitê de Ministros, relativamente à interpretação da Convenção e
seus protocolos.
O processamento no Tribunal é público, exceto se a seção ou o tribunal
pleno decidir de maneira diferente, levando em consideração excepcionalidades.
Também, os requerentes individuais, após terem sua queixa admitida, devem ser
representados por advogados.
Quanto às queixas, essas podem ser apresentadas não apenas no inglês e
no francês – que são as línguas oficiais do Tribunal –, mas também em uma das
línguas oficiais dos Estados contratantes.
Quanto à admissibilidade, um único juiz do órgão pode declarar a petição
inadmissível ou arquivá-la, sendo a decisão definitiva. Caso entenda passível de
julgamento, então esta será transmitida a um comitê ou seção para exame complementar
que fará, novamente, uma análise e poderá declará-la inadmissível. Se admiti-la – e
tratando-se de um caso simples, com jurisprudência anterior –, poderá proferir, de
plano, sentença acerca da admissibilidade. Por fim, caso a questão verse sobre
delicados pontos de interpretação da Convenção, será remetida à grande câmara.241
No que tange ao mérito, as partes têm a liberalidade de apresentarem provas
e observações suplementares, podendo ser autorizada, também, a apresentação de
observações por parte de terceiros, inclusive de outros Estados contratantes. Há
a possibilidade de serem desenvolvidas negociações confidenciais por intermédio
do secretário.
Por fim, o acórdão será decidido por maioria, sendo que, até três meses
após a data de sua prolação, as partes podem requerer que a questão seja enviada
ao tribunal pleno – apenas casos que envolvam graves interpretações ou violações
da Convenção. Caso as partes não requeiram o envio da questão ao tribunal pleno,
o acórdão torna-se definitivo em três meses após sua prolação, tornando-se
vinculante ao Estado demandado.242
Esquematiza-se que caberá ao Comitê de Ministros do Conselho da Europa
a verificação da execução dos acórdãos.
241
242
GABINETE DE DOCUMENTAÇÃO E DIREITO COMPARADO DE PORTUGAL. Disponível em:
<http://www.gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-dh/cons-europa-tedh.html>. Acesso em: 30
maio 2011.
Id.
126
Investiga-se que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos possui uma
estrutura muito avançada em comparação aos outros sistemas regionais de proteção
dos referidos direitos, uma vez que prevê o sistema de petições diretamente ao
indivíduo, não necessitando da passagem por qualquer outro órgão que faça uma
análise prévia de sua admissibilidade.
Sem questionamentos plausíveis, a Europa desenvolveu sobremaneira o
seu sistema de proteção com a referida previsão, mas, infelizmente, todo esse
desenvolvimento trouxe prejuízos à eficácia e à celeridade das decisões, uma vez
que os cidadãos dos Estados contratantes da Convenção acabam por demandar o
Tribunal antes mesmo de refletirem se realmente incorreram em uma violação de
seus direitos previstos na Convenção.
De tal forma, pode-se dizer que a alta demanda no Tribunal Europeu é um
desafio que, hoje, vislumbra o sistema europeu de proteção dos direitos humanos.
3.2.2
O Sistema Regional Africano
O sistema regional de proteção dos direitos humanos no continente africano
é extremamente recente, desenvolvendo-se a partir de meados dos anos 80.
O continente africano apresenta uma história de proteção dos direitos
humanos marcada por circunstâncias históricas, influência basilar da tradição local e
dos valores da civilização africana, com suas decorrentes diversidades culturais,
além de questões ligadas ao sofrido processo de descolonização e da luta pela
sua autodeterminação.
O principal sistema de proteção dos direitos humanos neste âmbito encontra-se
materializado na União Africana (UA), então substituta da Organização da Unidade
Africana (OUA), contando com 53 Estados membros.243
A base desse sistema de proteção encontra-se na Carta Africana de Direitos
Humanos e dos Povos, também conhecida como Carta de Banjul, a qual fora
firmada em 1981 e em vigência desde 1986.
243
AFRICAN UNION. Disponível em: <http://www.au.int>. Acesso em: 11 mar. 2011.
127
Mas mesmo antes da adoção dessa Carta, o sistema africano já contava
com outro tratado que previa os direitos humanos. Assim sendo, passa-se à análise
do desenrolar histórico do sistema regional africano de proteção dos direitos humanos.
3.2.2.1 Formação e evolução
Precisa-se que o sistema regional africano já se inicia no ano de 1963, com
a criação da Organização da Unidade Africana (OUA). Acontece que, diferentemente
daquilo que se imagina, o cerne de tal organização não estava pautado na busca pela
consolidação dos direitos humanos no continente, mas sim por sua descolonização e
pelo combate do apartheid.
Acontece que, por mais que a Carta de criação da OUA previsse o respeito à
Declaração Universal, os Estados africanos não aceitavam qualquer interferência
externa quanto a um sólido sistema de proteção de direitos humanos, uma vez que,
nesta época, muitos deles acabavam de conquistar suas soberanias e não queriam
compartilhá-las, nem mesmo em prol dos direitos humanos.244
Nesse quadro, a OUA acreditava que seu desenrolar dependia da não
intervenção nos assuntos internos de cada Estado, nem mesmo nas questões
atinentes aos direitos humanos245, sendo que o primeiro avanço relatado, no que
tange a tais direitos nessa organização, fora a adoção da Convenção da OUA sobre
Governança dos Aspectos Específicos dos Refugiados de 1969.
Mais tarde, em 26 de junho de 1981, no Quênia, devido ao emprego de
maiores esforços por parte da OUA, proclamou-se a Carta de Direitos Humanos no
âmbito africano, cuja qual ficara conhecida, também, como Carta de Banjul.
244
245
FEFERBAUM, Marina. Proteção internacional dos direitos humanos...
Segundo o art. III da Carta da OUA, "Os Estados membros, na persecução dos propósitos dispostos
no art. II, afirmam e declaram, solenemente, os seguintes princípios: 2. Não interferência nos
assuntos internos de cada Estado".
128
A referida Carta, sem dúvidas, é uma resposta da África aos abusos de
direitos humanos durante a década de 1970, afirmando o direito dos povos, tanto
interna, como internacionalmente e foi o primeiro documento internacional a afirmar
o direito dos povos à preservação do equilíbrio ecológico (art. 24).
A referida Carta fora adotada pela XVIII Conferência dos Chefes de Estado e
de Governo dos países africanos, no âmbito da OUA. Este documento viera a
preencher uma lacuna de proteção dos direitos humanos no âmbito africano, com
um especial enfoque relacional entre direitos e deveres ante o Direito Internacional
dos Direitos do Homem.246
Ainda, a Carta está dividida em três partes – direitos e deveres, medidas de
salvaguarda, disposições diversas – e criou a Comissão Africana de Direitos
Humanos e Direitos dos Povos (art. 30), objetivando a promoção e asseguração dos
direitos humanos e dos povos do continente.
Mais tarde, em 1998, a OUA criou o Protocolo à Carta Africana de Direitos
Humanos e Direitos dos Povos, que entrou em vigor em 2004, cujo qual veio a criar o
Tribunal Africano de Direitos Humanos e Direitos dos Povos (estabelecido em 2006).
Nesse cenário, com condições concretas para a integração africana, a OUA se
viu insuficiente para a busca de tais objetivos. Assim sendo, necessário se demonstrou
a sua reestruturação, cujo resultado desembocou na criação da União Africana.
A União Africana teve seu Ato Constitutivo aprovado em 11 de julho de 2000,
pela Assembleia Geral da OUA, tendo entrado em vigor em 26 de maio de 2001.
Diz-se, ainda, que os contornos da União Africana não foram apenas delimitados
pela OUA, mas também pelo Tratado para o Estabelecimento da Comunidade Econômica
Africana, aberto a ratificações em 30 de junho de 1991.247
Hoje, a União Africana conta com 53 Estados membros e representa,
sem dúvidas, a principal representação do sistema de proteção dos direitos humanos
na África.
246
247
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos...
FEFERBAUM, Marina. Proteção internacional dos direitos humanos...
129
3.2.2.2 Principais objetivos da União Africana
A visão da União Africana repousa em uma "África integrada, próspera e
pacífica, dirigida por seus próprios cidadão e representando uma força dinâmica na
arena global".248
Além disso, a referida organização determinou alguns objetivos específicos a
serem seguidos, cujos quais são assim descritos:
-
alcançar uma maior unidade e solidariedade entre os Estados africanos e
os povos da África;
-
defender a soberania, a integridade territorial e a independência de
seus membros;
-
acelerar as integrações política e sócio-econômicas no continente;
-
promover e defender as posições africanas nos casos de interesse do
continente e de seus povos;
-
encorajar a cooperação internacional;
-
promover a paz, a segurança e a estabilidade do continente;
-
promover os princípios democráticos e suas instituições, a participação
popular e a boa governança;
-
promover e proteger os direitos humanos e os direitos humanos, de
acordo com a Carta Africana dos Direitos Humanos e outros instrumentos
relevantes de direitos humanos;
-
promover condições necessárias para o desenvolvimento e a participação
do continente na economia global e nas negociações internacionais;
-
promover o desenvolvimento sustentável no plano econômico, social e
cultural e também a integração das economias africanas;
-
promover a cooperação em todos os campos da atividade humana para
se alcançar melhores condições de vida na África;
-
coordenar e harmonizar as políticas existentes e as futuras das comunidades
econômicas regionais;
248
AFRICAN UNION. Disponível em: <http://www.au.int>. Acesso em: 11 mar. 2011.
130
-
avançar no desenvolvimento do continente, promovendo pesquisas em
todas as áreas, particularmente em ciência e tecnologia;
-
trabalhar com relevantes parceiros globais na erradicação e na prevenção
de doenças, além de promover bons níveis de saúde no continente.249
3.2.2.3 Principais órgãos do Sistema Africano
Os principais órgãos que compõem o sistema africano podem ser descritos
como sento a Comissão Africana de Direitos Humanos e Direitos dos Povos, o
Tribunal (Corte) Africano de Direitos Humanos e Direitos dos Povos e o Comitê dos
Direitos do Bem Estar da Criança.
Adentrando à Comissão Africana de Direitos Humanos e Direitos dos Povos250,
pode-se dizer que ela vem a ser um órgão convencional e autônomo – apesar de
manter um estreito vínculo com a Assembleia da União Africana –, composta por
11 membros (art. 31), de nacionalidades diferentes (art. 32), tendo como função a
promoção e efetivação dos direitos humanos e dos direitos dos povos, além de
capacitar a interpretação dos dispositivos da Carta Africana.
No que concerne à Corte Africana de Direitos Humanos e Direitos dos Povos,
é composta por 11 juízes, nomeados pelos Estados partes (art. 11), não podendo
ser de mesma nacionalidade e com representação das cinco regiões da África,
escolhidos pela Assembleia (art. 14). Obedecendo ao princípio da não influência, os
juízes estão impedidos de participarem de casos que envolvam os Estados de que
são nacionais.
A Corte, ainda, conta com uma competência consultiva sobre quaisquer
questões de direto relacionadas à Carta Africana ou outros instrumentos de direitos
humanos. A legitimidade para tais consultas se dá aos Estados membros da União
Africana, à própria União Africana (quaisquer de seus órgãos) e a qualquer organização
internacional, no âmbito da África, que seja reconhecida pela UA.
249
250
AFRICAN UNION. Disponível em: <http://www.au.int>. Acesso em: 11 mar. 2011.
A referida Comissão possui sede em Gâmbia.
131
Já no que tange a sua competência contenciosa, a jurisdição da Corte
deverá ser expressamente aceita pelos Estados251, sendo que seu acesso, segundo
o art. 5.o, 1 da Carta Africana é restrito a determinados institutos, sendo eles:
a) a Comissão; b) o Estado-parte que submeteu caso perante à Comissão;
c) o Estado-parte contra o qual o caso na Comissão foi submetido; d) o Estadoparte cujo cidadão é vítima de violação de direitos humanos; e) as organizações
africanas intergovernamentais.
Por fim, atinente ao Comitê dos Direitos e do Bem Estar da Criança, diz-se
ser este o único órgão convencional sobre temas específicos no sistema africano.
É formado por 11 peritos de diferentes nacionalidades, com mandato de cinco anos,
objetivando a promoção e a proteção dos direitos humanos, além do monitoramento
e da implementação da Carta sobre o Bem Estar da Criança252. Fora criado pela
Carta Africana dos Direitos e do Bem Estar da Criança (adotada em 1991) e fora
estabelecido na 37.a Sessão Ordinária, em 10 de julho de 2001.
3.2.2.4 Principais problemas na efetividade dos direitos humanos na África
É de conhecimento geral que os direitos humanos na África representam um
grave problema, uma vez que nunca foram tratados da maneira que realmente necessitam.
Desde a história moderna, a África demonstrou-se um celeiro de violações dos
direitos humanos, das mais variadas formas, sendo que, com a sua divisão política,
advinda de sua decorrente descolonização, o problema tomou contornos inimagináveis.
Assim sendo, os principais pontos que merecem destaque, para que os africanos
possam desfrutar, de fato, dos direitos humanos e desenvolver de maneira concreta
um sistema de proteção em seu continente são: a superação dos entraves da divisão
imposta pela descolonização; a superação da barreira política à efetividade dos direitos
humanos, decorrentes do princípio da não interferência nos assuntos internos dos
251
252
Até o ano de 2009, dos 53 Estados membros da União Africana, 24 haviam aceitado a jurisdição
da Corte.
FEFERBAUM, Marina. Proteção internacional dos direitos humanos...
132
Estados; e, especialmente, o desenvolvimento de proteção aos direitos humanos em
nível doméstico.
3.2.3
O Sistema Regional Árabe
O sistema regional árabe de proteção aos direitos humanos é tido, historicamente,
como o mais recente dos sistemas regionais. Geograficamente, é o único que possui
Estados membros em mais de uma região do globo, uma vez que há Estados do
norte e nordeste da África, além de outros localizados na Ásia ocidental.
O sistema árabe está previsto na Liga dos Estados Árabes, criada em 5 de
maio de 1945, mas, ainda assim, só no ano de 1994 ocorrera a adoção de uma carta
de direitos humanos – Carta Árabe de Direitos Humanos. Apesar da existência de
tal, há uma crítica tremenda no que tange ao disposto neste instrumento, como bem
afirma Louise Arbour, Alta Comissária da ONU para os direitos humanos:
Ao longo do desenvolvimento da Carta Árabe, meu escritório expressou
preocupações aos elaboradores sobre incompatibilidade de algumas de suas
disposições com normas e padrões internacionais. Essas preocupações
incluíram a possibilidade de pena de morte para crianças e os direitos das
mulheres e não cidadãos. Além disso, ao que concerne à equiparação do
sionismo com o racismo, nós reiteramos que a Carta Árabe não está em
conformidade com a Resolução da Assembléia Geral 46/86, que rejeita que
o sionismo seja uma forma de racismo e de discriminação racial.253
Por fim, não há, até o momento, qualquer órgão que trate, especificamente,
no sistema árabe, sobre os direitos humanos, apesar de haver disposição expressa
na Carta Árabe (art. 45) sobre o estabelecimento de um Comitê Árabe de Direitos
Humanos, com composição de sete membros.
253
Disponível em: <http://www.unhchr.ch/hurricane/hurricane.nsf/view01/6C211162E43235FAC12573
E00056E19D?opendocument>. Acesso em: 10 mar. 2011.
133
4
O SISTEMA REGIONAL INTERAMERICANO
O sistema regional interamericano é traduzido, basicamente, pelas estruturas
da Organização dos Estados Americanos254 (OEA), uma vez que é esta organização
que possibilita a disseminação, a proteção e a eficácia, em plano internacional, dos
direitos humanos no âmbito interamericano.
Como bem indica o Artigo 1.o da Carta da OEA255, de 1948, a organização
tende a obter, entre seus Estados-membros, "uma ordem de paz e de justiça, para
promover sua solidariedade, intensificar sua colaboração e defender sua soberania,
sua integridade territorial e sua independência".
Hoje, a Organização conta com 35 Estados e constitui, sem dúvidas, o principal
fórum político, jurídico e social nas Américas. Também, concedeu o status de observador
permanente a 65 Estados e à União Europeia.
Na proteção dos direitos humanos, a Organização conta, especialmente,
com dois órgãos, quais sejam: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a
Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Além de ser a mais antiga organização regional do mundo, pode-se dizer
que o próprio sistema interamericano é igualmente tido como o sistema institucional
internacional mais antigo do mundo.
Imprescindível se demonstra, nesse momento, a análise dos principais pontos
para a compreensão da Organização dos Estados Americanos e do próprio sistema
interamericano de proteção dos direitos humanos.
254
255
Mesmo que o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos tenha surgido em um
momento anterior ao da Organização dos Estados Americanos, fora esta última que inaugurou a
manifestação política do sistema regional, além de ter possibilitado a sua própria evolução.
CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Disponível em: <http://www.oas.org/
juridico/portuguese/carta.htm>. Acesso em: 13 mar. 2011.
134
4.1
FORMAÇÃO E EVOLUÇÃO
As origens do sistema interamericano retrocedem-se ao ano de 1826, na
realização do Congresso do Panamá, quando Simon Bolívar propôs a realização de
conferências de Estados Americanos. Tal proposta trouxe resultados e precedeu uma
séria de reuniões regionais que visaram formas de cooperação entre os Estados da
região em questão.256
Acontece que, antes de 1890, tais reuniões eram convocadas apenas para a
solução a problemas ou necessidades específicas, sendo que fora entre os anos de
1889 e 1890 que ocorrera a institucionalização desses encontros, objetivando a
criação de um sistema compartilhado de normas e instituições.
Assim sendo, a Primeira Conferência Internacional Americana257 contou com
a presença de 18 Estados e veio a realizar-se em Washington D.C., entre os meses
de outubro de 1889 e abril de 1890, segundo os termos da própria Conferência.258
com o objetivo de discutir e recomendar para adoção dos respectivos governos
um plano de arbitragem para a solução de controvérsias e disputas que
possam surgir entre eles, para considerar questões relativas ao
melhoramento do intercâmbio comercial e dos meios de comunicação direta
entre esses países, e incentivar relações comerciais recíprocas que sejam
benéficas para todos e assegurem mercados mais amplos para os produtos
de cada um desses países.
Além disso, fora neste momento que ocorrera a aprovação do estabelecimento
da União Internacional das Repúblicas Americanas, que, mais tarde, veio a
transformar-se na União Pan-Americana e, devido à expansão de suas funções,
tornou-se a Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos.
Acontece que não fora apenas a referida União Pan-Americana, em seu
momento histórico, que facilitou a cooperação entre os Estados Americanos. Houve
muitas instituições que colaboraram ao desenvolvimento do sistema interamericano até
256
257
258
BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las
Americas. Costa Rica: Editorial Juricentro, 1983. p.27.
Segundo os termos da própria OEA, fora esta Conferência que assentou as bases do que depois
se tornaria o Sistema Interamericano.
HISTÓRIA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Disponível em:
<http://www.oas.org/pt/sobre/nossa_historia.asp>. Acesso em: 11 abr. 2011.
135
se chegar como hoje se concebe, podendo ser citadas: Organização Pan-Americana
da Saúde (1902); Comissão Jurídica Interamericana (1906); Instituto Interamericano da
Criança (1927); Comissão Interamericana da Mulher (1928); Instituto Pan-Americano
de Geografia e História (1928); Instituto Indigenista Interamericano (1940); Instituto
Interamericano de Cooperação para a Agricultura (1942); e a Junta Interamericana
de Defesa (1942).
Acontece que nenhum desses esforços trouxe, efetivamente, uma perspectiva
completa acerca dos direitos humanos nesse âmbito territorial. Só apenas no ano de
1948, em Bogotá, em razão da Nona Conferência Internacional Americana, contando
com a participação de 21 Estados, é que os direitos humanos contaram com uma
maior representatividade, uma vez que, neste momento, foram adotados: a Carta da
Organização dos Estados Americanos, o Tratado Americano sobre Soluções Pacíficas
(Pacto de Bogotá) e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.259
Importante lembrar que o Pacto de Bogotá impõe aos Estados que venham
a resolver suas controvérsias por intermédio de meios pacíficos, indicando certos
procedimentos: mediação, conciliação, arbitragem, investigação, bons ofícios e a
possibilidade de recursos à Corte Internacional de Justiça (Haia).260
Como bem se deduz, a cláusula pétrea do sistema interamericano de proteção
dos direitos humanos261 materializou-se na Declaração Americana dos Direitos
e Deveres do Homem262, lembrando que esta viera a anteceder em sete meses
a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ainda, deve ser dito que tal
Declaração263 tornou possível a adoção, mais tarde (1969, entrando em vigor
em 1978), da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da
Costa Rica).
259
260
261
262
263
BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las
Americas, p.27.
HISTÓRIA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Disponível em:
<http://www.oas.org/pt/sobre/nossa_historia.asp>. Acesso em: 11 abr. 2011.
A referida Declaração vem a proteger, especialmente, o direito à vida, à segurança, à liberdade, à
integridade, à igualdade, ao sufrágio, à participação no Governo, à justiça, à proteção contra
prisão arbitrária e a livre associação e reunião.
Não se deve perder de vista que, neste momento, a Declaração era uma simples resolução.
A referida Declaração teve seu projeto preparado pela Comissão Jurídica Interamericana.
136
Adentrando à Carta da Organização dos Estados Americanos, pode-se entender,
como a própria Organização sublinha, que "foi o resultado de um longo processo de
negociação iniciado em 1945" e trouxe, consigo, uma série de disposições sobre
direitos humanos, inclusive aquela que consta em seu artigo 3.o, "l", que diz que "os
Estados americanos proclamam os direitos fundamentais da pessoa humana, sem
fazer distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo"264.
Acontece que, apesar dos esforços na promoção e proteção dos direitos
humanos no âmbito da Organização, estes se mostraram infrutíferos até 1959, quando
então, em decorrência da Quinta Reunião de Consultas de Ministros de Relações
Exteriores, ocorrida em Santiago, no Chile, adotou-se uma Comissão Interamericana
de Direitos Humanos. Tal Comissão seria composta por sete membros eleitos, a
título individual, pelo Conselho da OEA.
Ainda, este Conselho, já em 1960, veio a promulgar o Estatuto da Comissão,
descrevendo este órgão como uma entidade autônoma da OEA265, com função de
promover o respeito aos direitos humanos (art. 1.o do Estatuto).
Acontece que, mesmo com um arcabouço já estabelecido, a OEA carecia, de
fato, de uma autoridade codificada e de uma base constitucional sólida, uma vez que
seu sistema era articulado, especialmente, segundo termos de declarações,
resoluções e pronunciamentos, sem uma força vinculante fática. Além, o órgão que
tratava especificamente sobre os direitos humanos era considerado como entidade
autônoma de sua estrutura.
Nesse quadro caótico, já em 1967, imprescindível se demonstrou a reforma da
própria Carta da OEA de 1948. A reforma em questão veio a tornar-se realidade no
ano de 1970, com a entrada em vigor do Protocolo de Reforma de Buenos Aires.266
264
265
266
CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Disponível em: <http://www.oas.org/
juridico/portuguese/carta.htm>. Acesso em: 13 mar. 2011.
Como bem se refere Thomas Buergenthal sobre este fato, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos era definida como entidade autônoma da OEA uma vez que não estava prevista nem
na Carta da OEA de 1948 e nem qualquer outro tratado, tendo sido estabelecida por uma simples
resolução da Conferência, sem qualquer semelhança com os órgãos do Conselho da OEA e nem
com os seus organismos especializados.
PROTOCOLO DE BUENOS AIRES. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/ treaties_B31_Protocol_of_Buenos_Aires.htm>. Acesso em: 21 fev. 2011.
137
Este documento tratou, em seu artigo 51, de transpor a Comissão de
Direitos Humanos à qualidade de um dos órgãos principais da Organização, tendo
suas funções descritas no artigo 112267 do referido Protocolo.
Além disso, como consequência da transposição do status legal da Comissão e
de seu Estatuto, a Carta Reformadora de 1970 também fortaleceu, significativamente, o
caráter normativo da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem.268
A Carta da OEA ainda veio a sofrer mais três modificações, mediante
Protocolos de Reforma, sendo eles: Cartagena das Índias (1985), Washington (1992)
e Manágua (1993).
4.2
A CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS (PACTO DE
SÃO JOSÉ DA COSTA RICA - CADH) E SEU PROTOCOLO ADICIONAL
(PROTOCOLO DE SÃO SALVADOR)
Sem dúvidas, o documento mais importante do sistema interamericano de
direitos humanos é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – também
conhecida como Pacto de São José da Costa Rica.269
Tal Convenção foi fruto da Conferência Interamericana Especializada sobre
Direitos Humanos, celebrada em São José, Costa rica, entre os dias 7 a 22 de
novembro de 1969. Primordialmente, veio a tratar sobre a observância e a proteção dos
direitos humanos entre os Estados membros da Organização dos Estados Americanos.270
Acontece que, sendo um tratado, dependeria da ratificação dos Estados
para a sua entrada em vigor e, também, para a sua obrigatoriedade. Assim sendo,
viera a entrar em vigor apenas em 18 de julho de 1978, quando atingiu o número de
11 depósitos de ratificações dos Estados membros da OEA.
267
268
269
270
Em seus termos: "Haverá uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos que terá como
função principal a de promover a observância e a defesa dos direitos humanos e servir como
órgão consultivo da Organização nesta matéria. Uma convenção interamericana sobre direitos
humanos determinará a estrutura, competência e procedimentos dessa Comissão, assim como a
dos outros órgãos encarregados dessa matéria".
BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las
Americas, p.40.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.167.
BUERGENTHAL, Thomas, op. cit., p.49.
138
Pode-se dizer que a Convenção teve sua origem em 1945, quando então da
Conferência Interamericana da Cidade do México. Acontece que somente em 1959,
na Quinta Reunião de Consulta de Ministros de Relações Exteriores, em Santiago,
Chile, é que fora tomada a decisão de redigir uma Convenção acerca dos direitos
humanos nas Américas271 – desembocando na redação da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos.
No condizente às suas características, aponta ser a Convenção um tratado
internacional para a proteção regional dos direitos humanos, sendo que todos os
Estados membros da OEA podem converter-se em partes da Convenção Americana.
Este é um ponto primordial a ser entendido: os Estados que fazem parte da
Organização dos Estados Americanos não necessariamente fazem parte da
Convenção Americana de Direitos Humanos, uma vez que, para fazerem parte da
OEA, necessitam ratificar e depositar sua Carta constitutiva, enquanto que a referida
Convenção é um documento autônomo.
De tal forma, pode-se ter Estados membros da OEA que não aceitam os
termos da Convenção, não tendo que se obrigar aos seus termos. Como bem se
refere Vladmir Oliveira da Silveira:
Para afirmar a responsabilização dos Estados que integram este sistema é
preciso considerar que nem todos os Estados da OEA estão vinculados à
Convenção Americana de Direitos Humanos. Os que aderiram apenas a
OEA aceitaram a Carta dessa organização e a Declaração Americana de
Direitos e Deveres do Homem, mas não se encontram obrigados pela
Convenção.272
Fala-se em dois subsistemas normativos em matéria de direitos humanos no
âmbito do sistema interamericano de proteção, como elucida a seguinte passagem:
Dada a diversidade de fontes jurídicas, no continente americano há dois
subsistemas normativos em matéria de direitos humanos, que não são
incompatíveis entre si, mas se reforçam mutuamente. O primeiro subsistema
deriva-se da Carta da OEA e atinge todos os Estados Membros desta
Organização. Tem a Comissão Interamericana de Direitos Humanos como
órgão de implementação dos preceitos primários proclamados em seu bojo.
271
272
BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las
Americas, p.49.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.167.
139
O segundo advém da entrada em vigor da CADH e dos outros instrumentos
a ela conexos. Através dela foi criado o segundo órgão supervisor do
sistema interamericano de direitos humanos: a Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Ressalte-se que a CIDH faz parte, como órgão comum,
de ambos os subsistemas.273
Argumenta-se que as obrigações da Carta da OEA e da Convenção Americana
de Direitos Humanos são justapostas em muitos casos e, além disso, aqueles
Estados que aderiram a ambos os documentos legais, estão submetidos a um regime
obrigacional, em território americano, similar aquele previsto pelo sistema de
proteção europeu.
Precisa-se que sua estrutura está dividida entre seu preâmbulo e três partes274,
com onze capítulos, totalizando 82 artigos.
Além disso, pode-se dizer que, essencialmente, trata-se de um instrumento
de proteção de direitos civis e políticos275, com o estabelecimento de dispositivos
voltados ao controle de suas obrigações. Representou, sem qualquer questionamento,
o ápice do processo de codificação dos direitos humanos no continente americano.
Seu propósito, descrito no 1.o parágrafo de seu preâmbulo, é o de "consolidar
neste Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade
pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do homem".
Ainda, a Convenção esclarece quais são os dois órgãos com competência
"para conhecer dos assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos
assumidos pelos Estados Membros nesta Convenção", sendo eles: a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Nesse ponto, a Convenção veio reorganizar a Comissão, prevendo novas funções,
competências e procedimentos, cujos quais serão analisados em momento posterior.
273
274
275
SANTOS, Janara Pereira César. Sistema interamericano de proteção dos direitos humanos: um
sistema jurídico pouco conhecido. Revista da Esmese, Sergipe, n.9, p.192, 2006.
Em termos gerais, a primeira parte é caracterizada como porção substantiva da Convenção e as
duas últimas de porções processuais.
Segundo os termos da própria Convenção, no que tange aos direitos econômicos, sociais e culturais,
os Estados devem "adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação
internacional,especialmente econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes
da Carta da Organização dos Estados Americanos [...], na medida dos recursos disponíveis, por
via legislativa ou por outros meios apropriados".
140
Além disso, também em decorrência da Convenção, a Comissão de Direitos
Humanos encontrou-se nos ditames de um novo Estatuto, cujo qual veio a lhe
fortalecer, dando-lhe maior capacidade para atuar ante denúncias, além de prever uma
intercomunicação necessária e efetiva entre esse organismo e a Corte Interamericana
de Direitos Humanos.276
Também, pela primeira vez se previu a necessidade de uma autorização
específica para possibilitar investigações in loco e, ainda, a possibilidade da Comissão
solicitar opiniões consultivas em relação à interpretação da Convenção.
Na realidade, a Comissão fortaleceu-se em sua posição, autoridade e
capacidade no trabalho de proteger os direitos humanos, mas, infelizmente, ainda
reside um problema no âmbito de tal sistema: nem todos os Estados membros da
OEA tornaram-se partes constitutivas da Convenção, uma vez que há a necessidade
da expressa ratificação e depósito pelos Estados para que os termos obrigacionais
desta venham a valer de maneira efetiva e eficaz na interface do sistema americano.
Além disso, identificou-se outro quadro a ser solucionado: a Convenção
Americana de Direitos Humanos, como outrora já fora dito, tratava, especificamente,
dos direitos civis e políticos, enquanto deixava à parte e a cargo dos Estados os
direitos econômicos, sociais e culturais.
Prevendo ser o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos um
sistema completo, imprescindível faria se ter um documento – já que a Convenção
não viera a tratar – sobre os direitos referidos, neste estudo tratados como direitos
de segunda geração.
Assim sendo, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos,
em seu 18.o Período Ordinário de Sessões, em 1988, baseando-se nos trabalhos
da Comissão, propôs o Protocolo Adicional à Convenção Americana Sobre Direitos
Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de
São Salvador).
276
BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las
Americas, p.57.
141
Já em seu preâmbulo, nota-se claramente a aproximação entre ambos os
grupos de direitos, quando se diz que "porquanto as diferentes categorias de direitos
constituem um todo indissolúvel que encontra sua base no reconhecimento da dignidade
da pessoa humana, pelo qual exigem uma tutela e promoção permanente [...]".
Assim sendo, ao aderirem ao Protocolo, os Estados
se comprometem a adotar as medidas necessárias até o máximo dos
recursos disponíveis e levando em conta o seu grau de desenvolvimento, a
fim de conseguir, progressivamente, e de acordo com a legislação interna, a
plena efetividade dos direitos reconhecidos neste Protocolo.277
O sistema americano, em termos genéricos, pode ter natureza múltipla, jurídica
convencional ou semi-jurídica, dependendo do grau de comprometimento dos Estados,
como se prevê na seguinte passagem:
O sistema interamericano de proteção aos direitos humanos tem, em resumo,
natureza múltipla: jurídica e convencional, para os Estados-partes do "Pacto
de São José"; semijurídica, para os demais membros da OEA; judicial, para
os que reconhecem a competência contenciosa da Corte Interamericana, e
política, por sua capacidade de ação sobre situações nacionais que extrapolam
casos individuais.278
De tal forma, pode-se reconhecer a existência de documentos obrigatórios
aos Estados279, no âmbito do sistema interamericano, na proteção e efetivação dos
direitos humanos.
Finalmente, apenas a título exemplificativo, cita-se a existência de outros
instrumentos no sistema interamericano, tais como: a) Convenção Interamericana para
Prevenir e Punir a Tortura (1985); b) Protocolo Adicional à Convenção Americana de
Direitos Humanos, relativo à Abolição da Pena de Morte (1990); c) Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994);
d) Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas (1994);
277
278
279
Os direitos a que se refere são: direito às condições dignas de trabalho, à previdência social, à
saúde, ao meio ambiente sadio, à alimentação, à educação, aos benefícios da cultura, à família e
aos direitos das crianças, deficientes e idosos.
ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global, p.83.
Lembra-se, mais uma vez, que tal obrigatoriedade decorre da vontade dos Estados membros da
Organização dos Estados Americanos em aderirem à Convenção Americana de Direitos Humanos
e seu Protocolo Adicional.
142
e) Convenção Interamericana sobre Prevenção, Punição e Erradicação da Violência
Contra a Mulher (1995).
4.3
IMPORTÂNCIA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS
A Organização dos Estados Americanos é, sem dúvidas, a principal – se não
for a única eficaz – organização regional no âmbito da defesa dos direitos humanos
nas Américas.
Nesse sentido, a organização tem, como pilares elementares, a democracia, os
direitos humanos, a segurança e o desenvolvimento, estando todos eles interligados
por uma estrutura que inclui o diálogo político, cooperação, instrumentos jurídicos e
mecanismos de acompanhamento.280
No que tange ao diálogo político, pode-se dizer que a OEA atua como principal
fórum neutro das Américas, onde os Estados se reúnem para superar diferenças e
definir metas comuns.
Além disso, adentrando à cooperação, elucida-se que a Organização dispõe
de apoio aos Estados membros visando fortalecer suas capacidades institucionais,
promovendo treinamentos e bolsas a funcionários do governo em áreas distintas.
Outra tarefa essencial da OEA é a implementação de mecanismos de
acompanhamento, onde seus Estados membros devem, de tempos em tempos,
prestar contas sobre um determinado assunto. Para o desenvolvimento de tal campo,
a organização criou alguns instrumentos, tais como: Mecanismo de Avaliação
Multilateral (MEM); Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção
Interamericana Contra Corrupção (MESICIC); Mecanismo de Seguimento da Convenção
de Belém do Pará (MESECVI); Grupo de Revisão da Implementação de Cúpulas
(GRIC); e Sistema de Acompanhamento das Cúpulas das Américas (SISCA).
Investigando sua estrutura, examina ser ela formada pelos seguintes órgãos:
Assembleia Geral; Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores;
Conselho Permanente; Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral; Comissão
280
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/sobre/
que_fazemos.asp>. Acesso em: 09 abr. 2011.
143
Jurídica Interamericana; Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Secretaria
Geral; Conferências Especializadas; Organismos Especializados; além de outras
entidades, estabelecidas pela Assembleia Geral, que se demonstrarem necessárias
no desenrolar dos trabalhos da organização.
Acredita-se que, no desempenho de todas as suas funções, por intermédio
de seus variados órgãos e com a cooperação de seus Estados membros, a OEA
venha a atingir seus objetivos elementares, quais sejam: a promoção da democracia,
a defesa dos direitos humanos, a garantia de uma abordagem multidimensional para
a segurança, a promoção do desenvolvimento integral e da prosperidade e o apoio à
cooperação jurídica interamericana.
De tal forma, exprime-se o valor inenarrável da OEA não apenas na defesa dos
direitos humanos, mas sim no desenvolvimento de todos os âmbitos que influenciam a
vida daqueles que se demonstram como sujeitos – sejam os Estados, as organizações
internacionais ou, até mesmo, os indivíduos – do sistema interamericano.
4.4
AS OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS DOS ESTADOS MEMBROS DA OEA
EM MATÉRIA DE DIREITOS HUMANOS
Primeiramente, deve ser entendido que os Estados membros da Organização
dos Estados Americanos estão sujeitos à obrigação legal internacional de não violar
os direitos humanos de seus próprios nacionais, mesmo que só tenham ratificado e
depositado a Carta da OEA.
Pontua-se que, desde sua criação, um dos pilares fundamentais da OEA é a
defesa dos direitos humanos e, apenas por serem membros da Organização, os
Estados já estão comprometidos à obrigação de proteção dos direitos humanos de
seus nacionais.
Precisa-se que as obrigações internacionais dos Estados membros da OEA
sobre direitos humanos se regem pela Carta das Nações Unidas e pela própria Carta
da OEA. Caso exista algum conflito entre as obrigações contidas em ambas as Cartas
ou de qualquer outro instrumento que trate, igualmente, sobre direitos humanos, a
144
Carta da ONU deverá prevalecer, como bem demonstra o art. 103 da Carta da ONU
e, também, o art. 137 da Carta da OEA.281
Assim sendo, decorrente de tal entendimento, a primeira questão que surge é
a seguinte: os Estados membros da OEA podem vir a firmarem tratados internacionais
que possuam, como objeto, uma proteção dos direitos humanos maior que aquela
prevista na Carta da ONU282, mas não podem, em nenhum momento, apoiar-se nem
na Carta da OEA, nem em qualquer outro instrumento internacional para violarem um
direito reconhecido pela Carta da ONU.
Também decorre de tal entendimento a questão dos Estados membros da
OEA terem o dever de não intervenção nos assuntos internos de outro Estado, com
especial exceção quando o Estado em pauta estiver violando os direitos humanos – aí,
então, poderá o primeiro Estado, por intermédio dos instrumentos legais internacionais,
intervir nos assuntos internos do Estado violador.
Reunidos tais entendimentos, deve ser deduzido, ainda, que algumas
disposições previstas na própria Carta da OEA deixam explícitas as obrigações, em
matéria de direitos humanos, dos seus Estados membros, sendo que é seu art. 3.o, j,
que melhor traduz a questão quando diz que "os Estados americanos proclamam os
direitos fundamentais da pessoa humana, sem fazer distinção de raça, nacionalidade,
credo ou sexo".
4.5
PRINCIPAIS ÓRGÃOS DO SISTEMA INTERAMERICANO
Essencialmente, os dois principais órgãos do sistema interamericano de
proteção dos direitos humanos são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
281
282
BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las
Americas, p.65.
Nesse sentido, a Carta da ONU acaba por ser um referencial do mínimo dos direitos humanos
que devem ser protegidos e efetivados.
145
4.5.1
Comissão Interamericana de Direitos Humanos
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é, sem dúvidas, o
principal e mais antigo órgão intergovernamental do sistema interamericano, sendo
responsável, essencialmente, pela promoção e proteção dos direitos humanos.
Hoje, a Comissão tem sua sede em Washington, D.C., sendo integrada por
sete membros independentes283, eleitos pela Assembleia Geral284, atuando de forma
pessoal, não vindo a representarem seus Estados membros. Reúne-se em Períodos
Ordinários e Extraordinários de sessões várias vezes ao ano.285
A Comissão foi criada por resolução na Quinta Reunião de Consulta dos
Ministros das Relações Exteriores em Santiago, Chile, em 1959, tendo sido formalmente
instalada em 1960, quando então o Conselho da OEA aprovou o seu Estatuto.
O surgimento da Comissão foi de extrema importância na edificação de um
sistema mais sério de proteção dos direitos humanos, tanto no âmbito do sistema
interamericano, quanto no âmbito da própria OEA, quando então, como já afirmado
anteriormente, faltava-lhe um órgão específico para a promoção e proteção dos
direitos humanos286. Apesar de tal importância, deve-se deixar bem claro que, no
início de seus trabalhos, a Comissão era determinada como um órgão autônomo da
própria OEA.
Segundo os termos da própria Comissão, entende-se que, já em 1961,
iniciaram-se as visitas in loco287 nos Estados membros da OEA para a observância
da situação geral dos direitos humanos, sendo que, desde então, suas observações
geram relatórios especiais acerca da situação dos direitos humanos em cada Estado.
283
284
285
286
287
Exalta-se que seus membros são pessoas de alta autoridade moral e notório saber na área dos
direitos humanos, não podendo haver dois nacionais do mesmo Estado.
São eleitos por um período de quatro anos, podendo ser reeleitos uma única vez.
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/
que.port.htm>. Acesso em: 12 mar. 2011.
Apesar de sua indiscutível importância, a Comissão, em seus primórdios, era uma entidade
autônoma da OEA, de caráter não convencional e seu mandato estava limitado à promoção e ao
respeito dos direitos humanos, mas sem competência para assegurá-los de maneira efetiva que
não fosse a teórica.
Anexo A.
146
Imprescindível é a referência à II Conferência Interamericana Extraordinária,
realizada no Rio de Janeiro, em 1965, quando da modificação do Estatuto da
Comissão, ampliando suas funções e faculdades. Nesse momento, o mandato da
Comissão se tornou efetivo, transformando a CIDH
em verdadeiro órgão de controle, com autorização para receber e examinar
petições individuais sobre alegadas violações de direitos humanos, dirigir-se
aos Estados para solicitar informações e formular recomendações que se
fizessem necessárias [...].288
Mas, ainda assim, a base jurídica da Comissão não estava totalmente
consolidada, sendo que tal dificuldade fora superada apenas no ano de 1967, com a
adesão do chamado Protocolo de Buenos Aires, que veio emendar a Carta da OEA,
transformando, segundo seu art. 51, a Comissão em órgão principal da OEA, como
parte da estrutura permanente da organização.
A partir de 1978, com a entrada em vigor da Convenção Americana de Direitos
Humanos, a Comissão acumulou mais duas funções: 1.a) atribuições unicamente
políticas e diplomáticas para os Estados membros da OEA que não se tornaram
partes da Convenção; e 2.a) atribuições políticas, diplomáticas e "quase judicial" para
aqueles Estados membros da OEA que se tornaram partes da Convenção, uma vez
que funciona como órgão supervisão do cumprimento da Convenção, além de suas
citadas competências.
Além disso, a Convenção permitiu, à Comissão, uma maior facilidade no
desenvolvimento de seus trabalhos que permeiam os direitos humanos, além de ter
fortalecido sua posição, autoridade e capacidade para protegê-los.
Em termos mais recentes, a Comissão é composta289 por um brasileiro
(Paulo Sérgio Pinheiro), um colombiano (Rodrigo Escobar Gil), um chileno (Felipe
González), uma salvadorenha (María Silvia Guíllen), uma norte americana (Dinah
Shelton), um mexicano (José de Jesús Orozco Henríquez) e um venezuelano (Luiz
Patrícia Mejía Guerrero).
288
289
BRANDÃO, Marco Antônio Diniz; BELLI, Benoni. O sistema interamericano de proteção dos
direitos humanos e seu aperfeiçoamento no limiar do século XXI. In: GUIMARÃES, Samuel
Pinheiro; PINHEIRO, Paulo Sérgio (Orgs.). Direitos humanos no século XXI (Parte I). Brasília:
Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – Fundação Alexandre Gusmão, 2002. p 278.
Até o final do ano de 2011.
147
Julga ser a Comissão um órgão que desempenha variadas funções, incluindo
as funções de investigações, busca de soluções a dissídios que envolvam direitos
humanos, emissão de opiniões consultivas, interpretações de tratados acerca dos
direitos humanos e sobre formas de adequação dos ordenamentos internos a tais,
entre outras.
Apesar de não possuir, de fato, uma autoridade capaz de erradicar e punir
as violações dos direitos humanos, valoriza-se o fato de que
a aludida Comissão realizou uma frutífera e notável atividade de proteção dos
direitos humanos, incluindo a admissão e investigação de reclamações de
indivíduos e de organizações não governamentais, inspeção nos territórios
dos Estados membros, solicitação de informes, com o que logrou um
paulatino reconhecimento.290
Atualmente, as funções da Comissão residem, ainda, essencialmente, na
promoção e na defesa dos direitos humanos, sendo que, para que tal situação se
demonstre plausível, desempenha as seguintes atividades291:
1) receber, analisar e investigar petições individuais acerca de violações
dos direitos humanos (artigos 44 a 51 da Convenção);
2) estudar o cumprimento dos direitos humanos nos Estados membros,
podendo dispor de publicações sobre a situação num Estado específico;
3) realizar visitas in loco nos Estados membros, tendo como objetivo a
investigação de um caso em particular ou para vistas gerais, podendo
gerar um relatório que será publicado e enviado à Assembleia Geral292;
4) valorizar o desenvolvimento dos direitos humanos nos Estados americanos,
podendo desenvolver estudos sobre determinados temas;
5) desenvolver e incentivar conferências e reuniões entre a população e
aqueles envolvidos na proteção dos direitos humanos, objetivando o
aprimoramento de temas relacionas aos direitos humanos na América;
290
291
292
FIX-ZAMUDIO, Héctor. Protección Jurídica de los Derechos Humanos. México: Comisión
Nacional de Derechos Humanos, 1991. p.164, apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o
direito constitucional internacional, p.91.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.165-166.
Deve-se sempre ter em mente que, para o desempenho de tal função, a Comissão depende da
anuência dos respectivos governos, mesmo que membros da Convenção.
148
6) recomendar certas medidas que garantam a promoção e proteção dos
direitos humanos nos Estados da Organização;
7) propor a adoção de medidas cautelares aos Estados membros para que
se evitem danos graves e irreparáveis aos direitos humanos, podendo,
nesse caso, solicitar que a Corte Interamericana requeira "medidas
provisionais" dos governos;
8) enviar os casos, que julgar necessários, à jurisdição da Corte Interamericana,
podendo atuar em alguns litígios;
9) consultar a Corte Interamericana para que emita opinião acerca da
interpretação da Convenção Americana.
Importante é pontuar, no que concebe ao acesso à Comissão, que um
Estado293, qualquer pessoa, grupo de pessoas ou órgãos não-governamentais,
reconhecidos em, pelo menos, um dos Estados membros da organização, podem
encaminhar petições que versem sobre a violação dos direitos humanos por um
Estado parte.294
Em termos gerais, pode-se entender que a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos é única, entre outros órgãos intergovernamentais de proteção, em
sua capacidade de reação frente a situações que envolvam violações de direitos
humanos295, especialmente pela existência do sistema de petições.
O sistema de petições trouxe um grande avanço ao sistema interamericano
de proteção aos direitos humanos, guardando algumas peculiaridades que devem
ser analisadas.
Primeiramente, lembra-se que, para que a petição seja admitida pela Comissão,
algumas condições devem estar preenchidas, sendo elas296:
1) exaustão das vias internas, a partir da demonstração da inexistência de
meios de tutela na ordem interna, ou a ausência de permissão ao lesado
na utilização dos meios existentes, ou ainda, a demora injustificada na
solução do problema;
293
294
295
296
Taxa-se que o exame da petição de um Estado sobre a violação dos direitos humanos por parte de
outro Estado depende do prévio reconhecimento da competência da Comissão por ambos os Estados.
GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos...
BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las
Americas, p.229.
GARCIA, Emerson, op. cit., p.84.
149
2) cumprimento do prazo decadencial de seis meses, iniciados na data que
o possível lesado for notificado da decisão definitiva;
3) inexistência de outro processo internacional, sobre a mesma violação,
em andamento.
Estando presentes tais requisitos, o interessado em apresentar uma petição
sobre determinada violação à Corte deverá, de igual maneira, observar as exigências
do art. 28 do Regulamento da Comissão, cujo qual prevê que deve constar na petição:
-
nome, nacionalidade e assinatura do denunciante ou, no caso do peticionário
ser uma entidade não-governamental, o nome e a assinatura de seu
representante ou seus representantes legais;
-
se o peticionário deseja que sua identidade seja mantida em reserva frente
ao Estado;
-
o endereço para o recebimento de correspondência da Comissão, qualquer
que seja o meio;
-
relação do fato ou situação denunciada, com especificação do lugar e
data das violações alegadas;
-
se possível, o nome da vítima, bem como de qualquer autoridade pública
que tenha tomado conhecimento do fato ou situação denunciada;
-
indicação do Estado que o peticionário considera responsável, por ação
ou omissão, pela violação de algum dos direitos humanos consagrados
na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros instrumentos
aplicáveis;
-
o cumprimento do prazo previsto no art. 32 desse Regulamento;
-
as providências tomadas para esgotar os recursos da jurisdição interna ou
a impossibilidade de fazê-lo de acordo com o art. 31 desse Regulamento;
-
a indicação se a denúncia foi submetida a outro procedimento internacional
de conciliação, de acordo com o art. 33 desse Regulamento.
Se atendidos todos esses requisitos, passa-se, então, à fase de instauração
do processo na Comissão, sendo essa quase que judicial. Primeiramente, tal órgão
irá solicitar informações ao Estado que está sendo demandado, podendo, ainda, vir
150
a realizar, com o prévio consentimento do Estado, uma investigação mais consistente,
caso o fato alegado seja grave e urgente.297
Neste momento do processo, há dois caminhos possíveis. O primeiro deles
vem a ser o alcance de uma solução amistosa entre o Estado violador e o indivíduo
e/ou grupo de indivíduos que teve seu direito violado. Nesse caso, a Comissão irá
redigir um relatório sobre o caso e sua solução, sendo publicado, posteriormente,
pelo Secretário-Geral da OEA.
Caso não seja possível, então a outra forma procedimental é a redação, pela
Comissão, de um relatório, cujo qual elucidará os fatos, suas conclusões e suas
recomendações, sendo encaminhado aos Estados interessados.
Então, nesse momento, haverá o lapso temporal de três meses para a solução
da questão. Caso não ocorra, a Comissão poderá, a partir do voto da maioria
absoluta de seus membros, delimitar um prazo para que o Estado adote as medidas
necessárias para a solução da situação.
Se o Estado vier, mais uma vez, a não respeitar o prazo fixado pela Comissão,
esta poderá declarar ter o Estado descumprido suas obrigações internacionais e,
caso seja parte da Comissão e reconhecido a competência da Corte Interamericana
de Direitos Humanos, então a Comissão poderá submeter o quadro em tela à
apreciação da Corte.298
Em resumo, o procedimento de um caso perante o sistema de petições
da Comissão, possui, essencialmente, três fases: a apresentação da denúncia à
Comissão; a admissibilidade pela Comissão; a solução pela Comissão, definindo ou
não se um Estado é responsável pelas violações alegadas e de que maneira o caso
será solucionado.
Finalmente, pode-se dizer que o sistema de petições da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos atua determinantemente nas situações que serão apresentadas
à Corte e naquelas que se encerrarão na própria Comissão.
297
298
GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos...
O sistema interamericano difere-se sobremaneira do sistema europeu nesse ponto, uma vez que,
diferentemente deste último, o indivíduo não tem acesso direto à Corte de Direitos Humanos.
151
4.5.2
A Corte Interamericana de Direitos Humanos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos é um órgão judicial internacional
autônomo do sistema da OEA, criado e definido, como já referido anteriormente, pela
Convenção Interamericana de Direitos Humanos, de 1969 – lembrando que, hoje,
encontra-se sediada na Costa Rica e vinte e cinco Estados americanos ratificaram
ou adotaram a Convenção.299
Em respeito à soberania dos Estados, para que o Estado possa ser julgado
pela Corte há, necessariamente, segundo os termos do art. 62 da Convenção, que
ter sido reconhecida "como obrigatória de pleno direito e sem convenção especial, a
competência do Tribunal" para qualquer caso, podendo tal reconhecimento se dar
"incondicionalmente ou sob condição de reciprocidade, por prazo determinado ou
para casos específicos".
Nos termos ainda do art. 62, entende-se ter a Corte competência contenciosa –
determinante aos Estados partes da Convenção e que a reconheçam expressamente,
uma vez que a aceitação de sua jurisdição não é automática – e, ainda, consultiva
(art. 64) – possível a todos o membros da OEA, membros ou não da Convenção.
Segundo tais competências, insere-se o seguinte entendimento:
A competência consultiva é ampla, permitindo a todos os membros da OEA –
partes ou não do "Pacto de São José" – e a todos "os órgãos enumerados no
Cap. 10 da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo
Protocolo de Buenos Aires" (a Assembleia Geral, o Conselho Permanente
da CIDH etc.) consultá-la sobre a interpretação da Convenção Americana
ou de outros tratados sobre a proteção dos direitos humanos nos Estados
americanos, sobre a compatibilidade entre as leis nacionais e esses instrumentos
jurídicos regionais. A competência contenciosa, para o julgamento de casos
a ela submetidos, é, por sua vez, limitada aos Estados-partes da Convenção
que a reconheçam expressamente. Nessas condições, a maior atividade da
Corte tem se concentrado na jurisdição consultiva, sendo poucas as
sentenças judiciais já proferidas.300
299
300
São eles: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Chile, Dominica, Equador,
El Salvador, Granada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai,
Peru, República Dominicana, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela.
ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global, p.80.
152
Examina-se, ainda, ser a Corte composta por sete membros: um presidente,
um vice-presidente e mais cinco juízes.
Inicialmente, documenta-se que a Corte não entrou em funcionamento até
que o Pacto de São José da Costa Rica301 tivesse entrado realmente em vigor – fato
que se desenrolou no ano de 1978.
Já em julho de 1978, a Assembleia Geral recomendou a aprovação, pelo
governo da Costa Rica, para que a Corte fosse ali estabelecida. A decisão foi ratificada
pelos Estados membros da Comissão durante a Sexta Sessão Especial da Assembleia
Geral da OEA, em novembro de 1978.302
Então, em 22 de maio de 1979, os Estados partes da Convenção elegeram,
na Sétima Sessão Especial da Assembleia Geral da OEA, os primeiros juízes a
integrarem a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Logo após a eleição, já nos dias 29 e 30 de junho, de 1979, desenvolveu-se,
em Washington D.C., a primeira audiência da Corte e em 3 de setembro de 1979,
ocorrera a cerimônia de abertura da Corte em São José, Costa Rica.
Durante a Nona Sessão Regular da Assembleia Geral da OEA, houve a aprovação
do Estatuto da Corte e em agosto de 1980, a aprovação de suas regras procedimentais.
Importante é discorrer sobre a questão de que, em setembro de 1981, o
governo da Costa Rica e a Corte assinaram um acordo, determinando privilégios e
imunidades à Corte, aos seus juízes e às pessoas que ali vierem a desenvolver suas
atividades laborais. Tal acordo demonstra ser de extrema valia, uma vez que facilita
as atividades da Corte, dando proteção para todas as pessoas intervenientes dos
processos. Além disso, em 1993, o governo da Costa Rica doou, à Corte, a casa
onde, hoje, está localizada.
Mais tarde, em 2001, a Corte veio a aprovar o regulamento que permitiria os
indivíduos e seus devidos representantes, de participarem das fases processuais,
juntamente com a Comissão e com o Estado demandado, o que possibilitou, sem
301
302
O Brasil aderiu ao referido Pacto em setembro de 1992, tendo aceitado a jurisdição da Corte
apenas no ano de 1998, "por tempo indeterminado, como obrigatória e de pleno direito, a
competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relacionados à
interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos, em conformidade com
o seu art. 62, sob condição de reciprocidade e para fatos posteriores a esta declaração".
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr>.
Acesso em: 22 jan. 2011.
153
qualquer questionamento viável, uma mais fácil defesa e argumentação para
aqueles que tiveram seus direitos violados.
Em 25 de novembro de 2003, então, aprovaram-se as novas Regras
Procedimentais para a Corte, podendo ser aplicadas para todos os casos trazidos
anteriormente a esta data à Corte.
De tal forma, entende-se ser a Corte o principal órgão do sistema interamericano
para a efetiva proteção dos direitos humanos, uma vez que apenas ela, no âmbito
americano, tem poder de fato para condenar os Estados internacionalmente.
Inquestionavelmente, a Corte atua no âmbito jurisdicional e consultivo, estando
ambos voltados à matéria referente aos direitos humanos.
Além disso, o Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em
seu art. 1.o, dispõe que esta vem a ser uma instituição judicial e autônoma303, tendo
sua sede em São José da Costa Rica, com o propósito de aplicar e interpretar, além
Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos304, todos os compromissos
firmados, por seus Estados membros, que versem sobre direitos humanos.305
No estudo sobre sua função consultiva, pode-se dizer que, apesar dos
reconhecidos esforços da Corte em garantir a primazia de sua interpretação, há
muito de ser evoluído, especialmente no alcance de suas interpretações. Nesse
sentido, determina Nádia de Araújo:
A partir de sua criação, em 1979, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
tem se destacado no cenário internacional por suas decisões, especialmente
aquelas referentes à sua função consultiva, quando promove a interpretação da
Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto
de San Jose.
No entanto, suas decisões não têm o espectro desejável, porque dependem
da aceitação de sua jurisdição por um maior número de Estados, já que esta
deve ser expressa.306
303
304
305
306
Segundo Héctor Espiel, a denominação "autônoma" é pertinente, uma vez que a Corte exerce
suas funções, contenciosa e consultiva, de maneira independente e autônoma. (ESPIEL, Héctor.
El Procedimento Contencioso ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos In: NIKKEN,
Pedro (Org.). La Corte Interamericana de Derechos Humanos: estudios y documentos. 2.ed.
San José, CR: Corte IDH, 1999).
BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las
Americas, p.59.
No âmbito do sistema interamericano, há a existência de diversos tratados que versam sobre
direitos humanos. Sua lista completa é possível de ser encontrada em: RAMOS, André de
Carvalho. Direitos humanos em juízo. São Paulo: Max Limonad, 2001. p.62.
ARAÚJO, Nádia de. A influência das opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos
Humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos,
Campos dos Goytacazes, RJ, v.6, n.6, p.228, jun. 2005.
154
Referentemente a sua função consultiva (art. 64), a Corte pode exercê-la a
todos os Estados membros da OEA, sendo eles partes ou não do Pacto de São José,
além de poder desempenhar perante todos os órgãos referidamente enumerados no
Capítulo 10, da Carta da Organização dos Estados Americanos.
A descrita função consultiva pode ser de natureza dupla, qual seja: de
"controle da interpretação das normas americanas de direitos humanos" (fixando a
orientação da Corte para operadores do direito interno) e de "controle de leis ou
projetos com relação às disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos"
(incompatibilidade entre o primeiro citado e a Convenção).307
Especificamente a sua função contenciosa, a Corte só aceitará a submissão
de casos que envolvam Estados308 e que, necessariamente, tenham aceitado,
expressamente, a jurisdição do referido órgão.309
Lembra-se que será a Comissão Interamericana de Direitos Humanos que
virá a submeter um caso à apreciação da Corte, sendo que, nesse caso, a Comissão
analisará as demandas e aquelas que julgar necessárias, encaminhará à Corte.
Para que a Corte esteja apta a analisar casos em que seus Estados membros
tenham violado direitos ou liberdades protegidos pela Convenção, o requisito da
exaustão das vias internas deverá, sem exceção, estar obedecido.
Pontua-se ainda que, diferentemente do sistema europeu, não há lugar para
o acesso direto dos indivíduos à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mas
deve-se esclarecer que, desde 2001, quando então da adoção do novo regulamento
da Corte, é possível a participação do indivíduo em todo o seu procedimento
contencioso (art. 23).
Além de decisões de mérito, a Corte poderá, igualmente, ordenar medidas
provisórias de proteção, quando avistar uma situação de gravidade excessiva e/ou
urgência. Pode-se dizer, em outros termos, que há, na verdade, a possibilidade de
adoção de medidas cautelares.
307
308
309
ARAÚJO, Nádia de. A influência das opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos
Humanos no ordenamento jurídico brasileiro, p.232.
De acordo com o art. 61 da Convenção Americana de Direitos Humanos: somente os Estados
partes e a Comissão têm o direito de submeter um caso à decisão da Corte.
Alude-se ao fato de que a atuação da Corte pressupõe o reconhecimento, por parte do Estado, de sua
competência para conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e à aplicação da Convenção.
O referido conhecimento se faz por uma declaração, que pode ser "incondicionalmente ou sob
condição de reciprocidade, por prazo determinado ou para casos específicos" (art. 62).
155
Ao final do processo, caso haja a verificação da violação de um direito
assegurado em um instrumento legal do sistema interamericano de proteção, a
Corte determinará uma reparação em decorrência da violação, que se dará por
intermédio do pagamento de uma indenização justa, permitindo à vítima que o direito
violado possa ser, a partir de então, desfrutado.310
Ainda, a decisão da Corte é definitiva e inapelável (art. 67), sendo um Tribunal
de última instância. Apesar de ser impossível recurso da decisão da Corte, caso
ocorra uma divergência sobre o sentido e/ou o alcance da sentença por alguma das
partes, caberá um recurso de interpretação (art. 67), assemelhado aos embargos de
declaração, para elucidar o ponto questionável, no prazo de noventa dias. Decorrido
o prazo, caso haja o referido recurso de interpretação, deverão os Estados cumprir
as sentenças e executá-las em sua ordem interna.
Ainda nesse ponto, deve-se fazer claro que a aceitação da competência
contenciosa da Corte traduz-se em cláusula pétrea, ou seja, não aceita limitações
que não aquelas previstas em seu artigo 62. É nesse entendimento que se prevê o
alcance da competência jurisdicional da Corte, como lembra Fernando Jayme:
Uma vez acionada a jurisdição da Corte, esta se torna intangível: não é –
não pode ser – afetada de modo algum pela conduta ou pelas atuações
posteriores das partes (em matéria contenciosa), ou do Estado ou órgão
solicitante (em mate consultiva), ou da Comissão como solicitante de medidas
provisórias de proteção. [...] A Corte é, em quaisquer circunstâncias, maestra
de jurisdicción: a Corte, como todo órgão possuidor de competências
jurisdicionais, tem o poder inerente de determinar o alcance de sua própria
competência – seja em matéria contenciosa, seja em relação a medidas
provisórias de proteção.311
Para desempenho de suas funções, a Corte conta com sete juízes312, nacionais
dos Estados membros da OEA, atuantes a título pessoal, sendo eleitos, segundo o
art. 52 da Convenção, "entre juristas da mais alta autoridade moral, e reconhecida
competência em matéria de direitos humanos que reúnam as condições requeridas
310
311
312
GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos...
JAYME, Fernando G. Direitos humanos e sua efetivação pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p.79.
Apenas a título de curiosidade, os primeiro sete juízes foram: Thomas Buergenthal (Estados Unidos),
Máximo Cisneros Sánchez (Peru), Huntley Eugene Munroe (Jamaica), César Ordóñez Quintero
(Colômbia), Rodolfo Piza Escalante (Costa Rica), Carlos Roberto Reina (Honduras), M. Rafael
Urquía (El Salvador).
156
para o exercício das mais elevadas funções judiciais, conforma a lei do país da qual
são nacionais".
O mandato destes juízes é fixado por seis anos, sendo permitida uma
recondução. A eleição é realizada pela Assembleia Geral da OEA.
Também, acaba por ser indiscutível a grande problemática que advém
das Cortes de Direitos Humanos que tendem a produzir sentenças internacionais,
condenando os Estados em plano internacional e coagindo-os a cumprirem tais sentenças
e âmbito interno, qual seja, a questão da soberania estatal versus tal condenação.
Não fugindo à regra, muitas são as questões que se levantam quando da
condenação de um Estado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, estando
comprovada a violação de um determinado direito por parte deste citado.
Acontece que justamente por conta da dependência da Corte de um
reconhecimento expresso dos Estados para que sua jurisdição seja aplicável, faz-se,
ao menos aos olhos daqueles que defendem e acreditam no Direito Internacional,
incabível a imposição da noção de soberania para o não cumprimento de uma decisão
de tal órgão.
O que se tem, em realidade, é uma delegação, por parte dos Estados que
aceitaram, expressamente, a jurisdição da Corte, de poderes para que a Corte,
quando estes se mostrarem omissos ou violarem algum dos direitos previstos no
sistema interamericano, possa vir a julgá-los em um plano internacional.
Mais do que isso: estes Estados estão comprometidos com o próprio Direito
Internacional dos Direitos Humanos, possibilitando a segurança de seus cidadãos,
em casos de violações ou omissões, e a previsibilidade de ações que possam ser
buscadas em tais situações.
Como bem lembra Luigi Ferrajoli, não é que o compartilhamento da soberania
em um ente internacional e/ou a condenação de um Estado, em um plano internacional,
que irá aprofundar a crise do Estado nesse momento histórico. Inversamente, são
justamente tais entes, tais como as Cortes Internacionais de Direitos Humanos, que
possibilitarão a crescente superação da referida crise. Em suas palavras:
[...] essa ligação entre Estado, constituição e garantia dos direitos fundamentais
é totalmente contingente e não reflete nenhuma necessidade do tipo teórico.
O modelo garantista do Estado constitucional de direito, como sistema
hierarquizado de normas inferiores à coerência com as normas superiores e
com os princípios axiológicos nelas estabelecidos, pelo contrário, tem validade
157
seja qual for o ordenamento. A crise dos Estados pode ser, portanto,
superada em sentido progressivo, mas somente se for aceita sua crescente
despotencialização e o deslocamento (também) para o plano internacional
das sedes do constitucionalismo tradicionalmente ligadas aos Estados.313
Assim sendo, em um mundo onde a crescente busca pela proteção e
efetividade dos direitos humanos é uma constante, é impossível sobrepor a tal
situação a soberania, em seus termos arcaicos, onde a expressa declaração dos
Estados, comprometendo-se a determinadas jurisdições, acaba por ter menos valor
que um conceito terminológico, criado em função de necessidades anteriores.
Finalmente, diz-se que, caso um Estado tenha expressamente reconhecido
a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, este veio ceder
parcela de sua soberania em prol de uma segurança aos seus cidadãos e, caso
demandado e condenado perante a Corte, não poderá valer do conceito de sua
soberania para escusar-se de suas obrigações internacionais, decorrentes de
decisões do referido órgão.
313
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno, p.53.
158
CAPÍTULO 3
O BRASIL NA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS:
PRINCIPAIS CASOS ENVOLVENDO OS DIREITOS HUMANOS
1
O BRASIL NO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS
Apesar do cenário interno configurar vários paradoxos, o Brasil é, sem dúvidas,
uma potência regional em todos os âmbitos, especialmente no quadro da América
Latina. Não fugindo à regra, no caso do sistema interamericano de proteção dos direitos
humanos, o Brasil atua de maneira determinante e enérgica ao desenvolvimento
desse próprio sistema.
Primeiramente, deve-se lembrar que, ao final da Segunda Guerra Mundial, o
Estado brasileiro adotou, desde logo, a Declaração Americana de Direitos e Deveres
do Homem e a Declaração Universal de Direitos Humanos (ambas de 1948). Pouco
mais tarde, veio a participar de uma série de acordos de proteção dos direitos
humanos, tais como: Convenção sobre Genocídio (1948); as quatro Convenções de
Genebra e seus dois Protocolos Adicionais (1949); a Convenção sobre Refugiados
(1951), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional
sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); a I Convenção Mundial
sobre Direitos Humanos de Teerã (1968); e a II Convenção Mundial sobre Direitos
Humanos de Viena (1993).314
Sem dúvidas, todo o empenho brasileiro mostrou-se determinante no
desenvolvimento do sistema de proteção dos direitos humanos interamericano. Prova
disso é que, após longos períodos de negociações, o Brasil, já na Nona Conferência
Internacional Americana, em 1948, desenvolveu – juntamente com o auxílio de mais
vinte países – e adotou a Carta da Organização dos Estados Americanos315, a qual
314
315
Em âmbito regional, o Brasil ainda ratificou o Protocolo Relativo à Abolição da Pena de Morte, de
1986; a Convenção Interamericana para prevenir e sancionar a tortura, de 1987; e a Convenção
Interamericana para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher (Convenção de
Belém do Pará), de 1985.
O Brasil aprovou a Carta da OEA pelo Decreto Legislativo 64, de sete de dez. de 1949.
159
entrou em vigor em 13 de dezembro de 1951 e, no ordenamento jurídico pátrio, fora
introduzida pelo Decreto n.o 30.544, de 14 de fevereiro de 1952.
Acontece que, ainda nesse momento, o sistema interamericano não contava
com uma proteção efetiva dos direitos humanos, só tendo sido realizável quando
então da adoção da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São
José da Costa Rica - CADH), de 1969, e seu Protocolo Adicional (Protocolo de São
Salvador), de 1988.
No que tange ao Pacto de São José da Costa Rica, o Brasil aprovou-o pelo
Decreto Legislativo 27, de 25 de outubro de 1992, tendo sido promulgado no mesmo
ano, pelo Decreto 678, de 06 de novembro. Igualmente, o país aprovou o Protocolo
de São Salvador pelo Decreto Legislativo 56, de 19 de abril de 1995 e promulgo-o
pelo Decreto 3.321, de 30 de dezembro de 1999.
A partir de então, o Brasil encontra-se submetido às condições da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, devendo obediência aos princípios desse órgão
na busca pela promoção e defesa dos direitos humanos. Determinante a este estudo
é relatar que, a partir de então, o Brasil estará submetido a todos os meios passíveis
de proteção dos direitos humanos previstos por esse órgão.
Ainda, o sistema interamericano, como bem já se discorreu, conta com uma
Corte, cujo Estatuto viera a ser aprovado pela Resolução AG/Res. 448 (IX-O/79) e
adotado pela Assembleia Geral da OEA, em 1979, sendo necessário o reconhecimento
de cada Estado de sua competência jurisdicional.
O Brasil o fez em dezembro de 1998, por meio do Decreto Legislativo n.o 89,
garantindo a jurisdição, em plano internacional regional, dos direitos humanos aos
indivíduos sob sua jurisdição, quando as instâncias nacionais se demonstrarem
insuficientes em sua proteção.316
Tendo demonstrado o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, o Brasil poderá vir a ser demandado, respeitadas as determinações
do instituto em questão, e não poderá se valer da escusa da incompatibilidade da
norma convencional com o direito interno, uma vez que, como já se disse, tal
316
Ainda, o reconhecimento da jurisdição internacional dos direitos humanos, em solos nacionais,
ocorrera por intermédio do art. 7.o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
160
reconhecimento vem a ser cláusula pétrea e demanda uma devida adequação do
direito interno para com a responsabilidade assumida em plano internacional.
Ademais, o Brasil também poderá vir a ser condenado em âmbito
internacional – como já bem ocorrera e será detalhado mais adiante – e, nesse caso,
deverá, de maneira efetiva, processar a materialização de sua condenação, no palco
internacional, em âmbito interno, para que tal venha a produzir sua devida eficácia,
uma vez que, conjuntamente ao reconhecimento da Corte, vê-se o dever de cumprimento
de suas decisões no plano interno. Há, segundo a doutrina, duas regras sobre execução
das sentenças da Corte Interamericana, que podem muito bem assim serem descritas:
A primeira regra, tradicional em termos de execução de sentença internacional,
estipula que a execução das sentenças da Corte depende da normatividade
interna. Assim, cabe a cada Estado escolher a melhor forma, de acordo com
seu Direito, de executar os comandos da Corte Interamericana de Direitos
Humanos.
A segunda regra firmada no artigo 68.2 da Convenção Americana de Direitos
Humanos é inovação do sistema interamericano. Consiste na menção da
utilização das regras internas de execução de sentenças nacionais contra o
Estado para a execução da parte indenizatória da sentença da Corte.317
Acontece que ainda hoje, treze anos após o reconhecimento da competência
e jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não se determinou, de
forma legal, clara e objetiva, a maneira que se desenvolverá a internalização da
sentença internacional, advinda de tal órgão, e nem sequer se tem uma ideia segura de
implementação, em âmbito interno. Em outras palavras, o Brasil ainda não adotou,
nesse tema, a chamada enabling legislation, como explica André de Carvalho Ramos:
Para facilitar o cumprimento interno das decisões da Corte, alguns países
aprovaram as chamadas "enabling legislations" ou legislações nacionais de
implementação das decisões de instâncias internacionais de proteção dos direitos
humanos. Cita-se o caso colombiano, com a Lei n.o 288 de 1996. Na Colômbia,
a Lei n.o 288/96 estabeleceu os instrumentos para a indenização de prejuízos
às vítimas de violações de direitos humanos, após a constatação das violações
por instâncias internacionais. No caso da Costa Rica, estabeleceu-se, já no
tratado de sede entre o Governo daquele país e a Corte Interamericana de
Direitos Humanos, que as decisões da Corte possuem a mesma força
executiva das dos tribunais do país.318
317
318
RAMOS, André de Carvalho. A execução das sentenças da Corte Interamericana de Direitos
Humanos no Brasil. In: SOARES, Guido Fernando Silva; CASELLA, Paulo Borba; CELLI JUNIOR,
Umberto; MEIRELLES, Elizabeth de Almeida; Polido, Fabrício Bertini Pasquot Polido (Orgs.).
Direito internacional, humanismo e globalidade. São Paulo: Atlas, 2008. p.459.
ibid., p.463.
161
O que se observa claramente neste cenário é que, no caso brasileiro, apesar da
igual importância dada à proteção – já determinada pela existência de instrumentos
internos e pela existência de uma Corte, caso os primeiros se demonstrarem, de
alguma forma, falhos – e à eficácia dos direitos humanos, esta última não vislumbra
instrumentos legais nacionais para que haja a previsibilidade e a segurança da
eficácia das sentenças internacionais.
É neste momento que se vislumbra o livre arbítrio do Estado brasileiro em
cumprir e, consequentemente, vir a proporcionar eficácia à sentença internacional.319
Julga-se que esse livre arbítrio é uma incoerência generalizada, uma vez que, como
já dito inúmeras vezes nesse estudo, o Brasil veio a se obrigar internacionalmente
na proteção e, igualmente, na eficácia dos direitos humanos, devendo vir a proporcionar
meios que permitam o alcance e o cumprimento de suas obrigações internacionais,
independentemente de sua posterior vontade.
É indiscutível a necessidade de implementação do ordenamento jurídico interno
no âmbito do cumprimento das sentenças internacionais e, também, no comprometimento
do Estado brasileiro com as resoluções e recomendações advindas de ambos os
órgãos do sistema interamericano de direitos humanos, quais sejam: a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Nesse sentido, far-se-á a análise, em termos recentes, dos cinco casos
brasileiros320 de maior relevância, sobre violações dos direitos humanos, e serão
planejadas e discorridas algumas tentativas de melhor implementação e efetivação
das decisões e recomendações dos órgãos supracitados.
319
320
A arbitrariedade é tanta que, em dezembro de 2010, em decorrência da condenação do Brasil
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da Guerrilha do Araguaia, o Ministro da
Defesa, Nelson Jobim, afirmou, erroneamente, que "naquilo que a Corte (OEA) refere que o Brasil
teria que processar os militares envolvidos no incidente, essa matéria é absolutamente ineficaz.
Nós não temos, no nosso sistema legal, algo que se sobreponha ao Supremo Tribunal Federal.
Inclusive o Poder Executivo não pode tomar nenhuma providência, porque essa matéria é exclusiva
de um poder autônomo, que é o STF. Em termos internos, a decisão é completamente anódina".
São eles: Damião Ximenes Lopes (Caso 12.237); Gilson Nogueira de Carvalho (Caso 12.058);
Arley José Escher e Outros (Caso 12.353); Sétimo Garibaldi (Caso 12.478); e Julia Gomes Lund e
Outros (Caso 11.552).
162
2
CASO DAMIÃO XIMENES LOPES – CASO 12.237
O caso Damião Ximenes Lopes é, sem dúvidas, um marco na proteção dos
direitos humanos em nível interamericano, uma vez que decorreu na condenação do
Estado brasileiro por violação direta e indireta dos direitos humanos. Direta uma vez
que Damião Ximenes Lopes veio a falecer devido à inobservância de seus direitos
fundamentais, e indireta por conta da justiça brasileira não ter encontrado uma
solução, em tempo hábil, para as possíveis condenações e reparações de danos à
família da vítima.
O Brasil veio a ser condenado, em 2006, na Corte Interamericana de Direitos
Humanos por conta de tal caso e, em 2010, cumpriu – parcialmente, de acordo com
os entendimentos desse estudo – os termos da sentença em âmbito interno.
Passa-se, nesse momento, à análise dos principais pontos dessa questão.
2.1
HISTÓRICO DO CASO
O Caso 12.237 trata sobre a morte do senhor Damião Ximenes Lopes, nascido
em 25 de junho de 1969 e vítima de deficiência mental de origem orgânica, proveniente
de alterações no funcionamento do cérebro, apresentando necessidades específicas.
Vivia com sua mãe na cidade de Varjota, situada a uma hora da cidade de
Sobral, onde encontrava-se a Casa de Repouso Guararapes, centro de saúde do
Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.321
Já em 1995, Damião Ximenes Lopes veio a ser internado no referido centro,
por um período de dois meses, sendo que, quando regressou a sua casa,
apresentou feridas nos joelhos, nos tornozelos, alegando que tinha sido vítima de
321
Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Damião Ximenes Lopes – Sentença de 4 de jul.
de 2006.
163
violência na Casa de Repouso Guararapes322. Acontece que, nesse momento, seus
familiares acreditaram na versão dos funcionários da instituição, que relataram que o
próprio paciente tinha se machucado quando tentara fugir.
Mais tarde, em 1.o outubro de 1999, em decorrência dos problemas nervosos
que estava apresentando, Damião Ximenes Lopes foi, mais uma vez, internado em
tal centro, como paciente do SUS. Apresentava perfeitas condições físicas quando
da sua entrada.
Dois dias após a sua chegada na clínica, o paciente desenvolveu uma crise
de agressividade e estava desorientado, tendo sido, até mesmo, retirado à força por
um técnico de enfermagem do banheiro, tendo, nesse episódio, sofrido uma lesão
no rosto, na altura do supercílio. Ainda nesse dia, Damião Ximenes Lopes teve um
novo quadro de agressividade e fora, novamente, submetido à contenção física,
quando então o médico da instituição veio a determinar que lhe fosse aplicada uma
medicação intramuscular.
Já no dia 4 de outubro de 1999, a mãe da vítima, pelo período da manhã,
chegou à Casa de Repouso Guararapes para visitá-lo e encontrou-o em uma situação
lastimável: estava sangrando, com hematomas pelo corpo, roupas rasgadas, sujo,
cheirando a excremento, com as mãos amarradas, com dificuldades para respirar,
agoniado e pedindo socorro à polícia.
A mãe da vítima, a senhora Albertina Ximenes Lopes, requereu que banhassem
seu filho e quis entrar em contato com o médico e também diretor da clínica, Francisco
Ivo de Vasconcelos, que havia receitado remédios a seu filho, sem a realização de
exames. Não o encontrou e seu filho veio, mais tarde, duas horas após ter sido
medicado, às 11 horas e 30 minutos, a falecer.
322
Segundo os termos da própria Sentença da Corte Interamericana, "as condições de confinamento
na Casa de Repouso Guararapes eram desumanas e degradantes, a atenção médica aos
pacientes era freqüentemente prestada na recepção, inclusive em presença de visitantes, já que
por muito tempo o hospital não dispôs de um consultório médico, e freqüentemente faltava a
medicação adequada aos pacientes. O hospital não oferecia as condições necessárias e era
incompatível com o exercício ético-profissional da medicina. No contexto de violência contra os
pacientes, e anteriormente à morte do senhor Damião Ximenes Lopes, ocorreram na Casa de
Repouso Guararapes pelo menos duas mortes em circunstâncias violentas, que teriam incluído
golpes na cabeça com objetos contundentes e em que os pacientes ingressavam na Casa de
Repouso em boas condições físicas e faleciam durante o período de internação".
164
Nota-se que o senhor Damião Ximenes Lopes não recebeu a assistência
adequada e faltavam-lhe cuidados específicos, tanto físicos, como psiquiátricos, o
que acabou por causar, de maneira determinante, a sua morte.
Posteriormente à morte da vítima, o médico Francisco Ivo de Vasconcelos
retornou à Casa de Repouso e, examinado o corpo, declarou, falsamente, que o
cadáver não apresentava lesões externas e que a causa da morte seria uma parada
cardio-respiratória, não tendo sequer ordenado a realização da necropsia do corpo.
Os familiares da vítima, então, solicitaram a realização da necropsia, transferindo
o corpo para a cidade de Fortaleza, sendo que, no Instituto Médico Legal desse
município, constatou-se que:
Trata-se de um corpo do sexo masculino, cor parda, cabelos negros, bigode
cultivado, barba por fazer, envolto em lençol branco. Apresenta rigidez
cadavérica generalizada, pupilas dilatadas, hipóstases de decúbito dorsal e
ausência de quaisquer manifestações vitais. Exame externo: escoriações
localizadas na região nasal, ombro direito, face anterior dos joelhos e pé
esquerdo, equimoses localizadas na região orbitário esquerda, ombro
homolateral e punhos (compatível com contenção). Exame interno: não
observamos sinais de lesões de natureza traumática internamente;
apresenta tem pulmonar e congestão, sem outras alterações macroscópicas
de interesse médico legal nos demais órgãos dessas cavidades. Enviamos
fragmentos de pulmão, coração, estômago, fígado e rim para o exame
histopatológico, que concluiu [que se tratava de] edema e congestão pulmonar
moderado, hemorragia pulmonar e discreta esteatose hepática moderada.
CONCLUSÃO: […] inferimos tratar-se de morte real de causa indeterminada.323
Já em 13 de outubro de 1999, a mãe da vítima apresentou denúncia à
Coordenação Municipal de Controle e Avaliação da Secretaria da Saúde e Assistência
Social sobre a morte de seu filho, enquanto que a irmã da vítima apresentou denúncia
à Comissão de Cidadania do Estado do Ceará.
Já em 8 de novembro de 1999, o Ministério Público solicitou a instauração
de uma investigação policial para esclarecer a morte de Damião Ximenes Lopes,
sendo que três dias após, a própria Comissão de Cidadania veio a solicitar celeridade
no caso.
323
Laudo de exame de corpo de delito – cadavérico – realizado em Damião Ximenes Lopes, no
Instituto Médico Legal de Fortaleza, pelo Dr. Walter Porto, em 4 de outubro de 1999.
165
Com provas suficientes, em 27 de março de 2000, o Ministério Público veio
apresentar acusação criminal à Terceira Vara da Comarca de Sobral, contra aqueles
que incidiram nos maus-tratos seguidos de morte de Damião Ximenes Lopes.
Acontece que, infelizmente, a partir de 24 de maio de 2000, a Terceira Vara
da Comarca de Sobral obstruiu a justiça do processo, uma vez que, pelo período de
dois anos, limitou-se à realização de audiências – as quais, ainda, vieram a ocorrer
em momentos posteriores aos anteriormente agendados.
Alguns anos após, com a realização dos interrogatórios, dos devidos aditamentos
e diligências processuais, um dos acusados solicitou a suspensão da apresentação
das alegações finais, fato que, até a data da sentença da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, em 2006, não havia sido julgado e, consequentemente, obstruiu a
emissão de uma sentença em primeira instância.
Ocorre, ainda, que em 6 de julho de 2000, a mãe da vítima instaurou uma
ação de reparação de danos, por conta da "dor, tristeza, sofrimento e humilhação que
[...] passou e passará pelo resto de sua vida", em decorrência da morte de seu filho.
Como já havia uma anterior ação penal, compreendeu-se que se devia esperar
a sentença desse processo para julgar a referente ação cível, suspendendo-a pelo
prazo máximo de um ano. Como se sabe, até 2006, não houve sentença penal e,
consequentemente, não se decidiu a ação de reparação de danos na esfera cível.
Ilustra-se, nesse breve histórico, que a justiça brasileira não ofereceu, de forma
alguma, a proteção e a efetivação dos direitos humanos do senhor Damião Ximenes
Lopes, motivando seus representantes legais a procurarem auxílio do sistema
interamericano de proteção dos direitos humanos.
2.2
O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos tomou conhecimento
do caso já em 22 de novembro de 1999, quando a irmã da vítima, Irene Ximenes
Lopes Miranda, apresentou uma petição contra a República Federativa do Brasil,
166
enunciando os fatos que acabaram por determinar a morte de seu irmão, Damião
Ximenes Lopes.324
Nesse sentido, em 14 de dezembro de 1999, a Comissão iniciou a tramitação
da petição, que adquiriu o número 12.237, remetendo ao Estado brasileiro, com
prazo de noventa dias, para apresentação de informações pertinentes à questão.
Não apresentadas quaisquer informações por parte do Estado brasileiro, a
Comissão admitiu a petição, ressaltando que se tratava sobre o respeito ao direito à
vida, à integridade física, à proteção da honra e da dignidade, ao recurso judicial e à
obrigação do Estado em respeitar os direitos contidos na Convenção Interamericana
de Direitos Humanos.
Ocorre que apenas em 21 de março de 2001, o Brasil, pela primeira vez,
veio a apresentar uma contestação sobre o caso. De tal forma, em 20 de junho do
mesmo ano, a Comissão determinou a espera por uma proposta de conciliação pelo
Estado brasileiro, o qual não apresentou qualquer resposta e, muito menos, uma
proposta conciliatória.
Com o levantamento e a apuração de dados sobre o caso, sobre o sistema
de saúde brasileiro e a situação dos doentes mentais na localidade, a Comissão
deu-se por convencida que
o Estado brasileiro é responsável pela violação de direito da integridade da
pessoa, da vida, da proteção judicial e das garantias judicias, consagrados
nos artigos 5, 4, 25 e 8, respectivamente, da Convenção Americana, devido
à hospitalização de Damião Ximenes Lopes, em condições desumanas e
degradantes, com violações a sua integridade pessoal, seu assassinato e,
também, violações da obrigação de investigar os feitos. Igualmente, o
Estado violou seu dever genérico de respeitar e garantir os direitos consagrados
na Convenção Interamericana, recomendando: 1. a realização de uma
investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos relacionados à morte de
Damião Ximenis Lopes [...]; 2. reparar, adequadamente, os familiares da
vítima pela violações de direitos humanos determinadas e o pagamento
efetivo de uma indenização; 3. adoção das medidas necessárias para evitar
novas vítimas.325
324
325
Demanda do Caso Damião Ximenes Lopes contra o Estado brasileiro (caso 12.237), na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos.
Id.
167
Em 31 de dezembro de 2003, a Comissão determinou um prazo de
dois meses para que o Brasil adote e informe as medidas para cumprir com as
recomendações formuladas.
Diferentemente das outras situações, o Brasil viera a dar uma resposta
rápida à solicitação da Comissão, requerendo que o caso fosse incluso nas audiências
e sessões de trabalhos da 119.o Período de Sessões da Comissão Interamericana,
fato que viera a se desenvolver.
Acontece que, em 8 de março de 2004, os peticionários consideraram de suma
importância o envio do caso à Corte Interamericana, em razão de que o Estado não
havia cumprido com as recomendações formuladas, especialmente no sentido de
realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva, nem reparou adequadamente
os familiares de Damião e nem procurou meios para evitar novas vítimas.
Em 16 de março de 2004, o Estado brasileiro solicitou à Comissão a prorrogação,
por três meses, para prestar suas observações e cumprir as observações. Mais uma
vez, três meses após, o Estado requereu uma nova prorrogação.
Somente em 23 e 29 de setembro de 2004 é que o Brasil apresentou informes
parciais sobre a implementação das recomendações da Comissão. Mesmo assim,
configurou-se a falta de cumprimento satisfatório das recomendações da Comissão
e, em 30 de setembro de 2004, decidiu-se por submeter o presente caso à Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
2.3
A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Logo em 1.o de outubro de 2004, a Comissão apresentou a demanda à
Corte e veio a notificar sobre o caso, um mês após, o Centro de Justiça Global,
designado, neste caso, como representante da suposta vítima e de seus familiares.
Estes dispunham de dois meses para apresentar seu escrito de solicitações, argumentos
e provas.
Em suma, os representantes salientaram que o Estado não cumpria as
obrigações relativas à garantia dos direitos tutelados nos artigos 4 (direitos à vida) e
5 (direito à integridade pessoal), além de ter violado os artigos 8 (garantias judiciais)
168
e 25 (proteção judicial) da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Além, solicitaram que a Corte ordenasse o pagamento, pelo Estado, de danos
materiais e morais, além de medidas de não repetição e o reembolso das custas e
gastos processuais.
Documenta-se que a Corte, segundo tais alegações e analisando as
contraposições estatais, admitiu o reconhecimento parcial da responsabilidade
internacional efetuada pelo Estado, quando então violou, em detrimento de Damião
Ximenes Lopes, em seu âmbito interno, o direito à vida e à integridade pessoal,
consagrados nos artigos 4.1, 5.1 e 5.2 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Ainda, reconheceu que o Estado também violou, em relação à família da
vítima – seus representantes legais –, o direito à integridade pessoal, consagrado no
art. 5 da Convenção Interamericana e, igualmente, o direito às garantias judiciais e à
proteção judicial (artigos 8.1 e 25.1, respectivamente).
De tal forma, dispôs, por unanimidade, que o Estado brasileiro deverá garantir,
por intermédio do processo interno, a investigação e a sanção, em prazo razoável326,
dos supostos responsáveis pelos ilícitos.
Ainda, condenou o Brasil no desenvolvimento de um programa de formação
e capacitação para o pessoal médico, psiquiátrico e psicológico, além de outro voltado
aos técnicos e auxiliares de enfermagem (e todas as outras pessoas vinculadas ao
atendimento de saúde mental), no trato das pessoas portadoras de deficiência
mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria.
Deverá o Estado, também, pagar em dinheiro, para a família da vítima, no
prazo de um ano: indenização por dano material, no valor de $51.850 (cinquenta e
um mil e oitocentos e cinquenta dólares americanos); dano moral, na quantia de
$125.000,00 (cento e vinte e cinco mil dólares americanos); custas e gastos processuais,
no valor de $10.000.00 (dez mil dólares dos Estados Unidos da América).
Por fim, o Brasil deverá cumprir a sentença na íntegra, além de apresentar, à
Corte Interamericana de Direitos Humanos, relatórios sobre as medidas adotadas
para o seu devido cumprimento.
326
Não há menção expressa sobre o que poderá vir a ser prazo razoável: fato que pode, ainda mais,
obstruir a efetivação dos direitos humanos em solos brasileiros.
169
2.4
O CUMPRIMENTO DA SENTENÇA INTERNACIONAL PELO BRASIL
Primeiramente, cabe ser dito que a referida sentença internacional, no caso
Damião Ximenes Lopes, foi reconhecida pelo Estado Brasileiro e, desde logo, tratou
o Estado de achar formas eficazes de implementação no âmbito interno.
Prova disso é que um dia após a promulgação da sentença pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, o Ministério das Relações Exteriores, em nota
de n.o 512, veio a declarar que:
O Estado brasileiro já está estudando as formas necessárias para dar pleno
cumprimento a todos os itens da sentença da Corte. No que diz respeito,
especificamente, à garantia de maior celeridade à ação penal, está sendo
constituído grupo, que deverá ser integrado pela Secretaria Especial dos
Direitos Humanos da Presidência da República, Conselho Nacional de
Justiça, Ministério das Relações Exteriores e Advocacia-Geral da União,
para agilizar este e outros processos judiciais internos cujos objetos estão
sob consideração dos órgãos internacionais de proteção e promoção dos
direitos humanos.327
Deve-se pontuar que o cumprimento da sentença iniciou-se em 17 de agosto
de 2007, quando então a União veio a pagar a indenização devida à família da vítima.
Um ano após, a Corte emitiu uma resolução sobre o cumprimento da sentença
em solos brasileiros, alertando o país que o seu cumprimento não repousa apenas no
pagamento da indenização, requerendo que o Brasil também remetesse informações
atualizadas e detalhadas sobre o estado da investigação penal e sobre os avanços
no tratamento de doentes mentais.
Assim sendo, em 27 de junho de 2008, finalmente, houve a prolação da
sentença no âmbito da ação cível, proposta pela família da vítima para a devida
reparação material.
Mais tarde, em 29 de junho de 2009, prolatou-se a sentença em âmbito
penal, pelo juiz da 3.a Vara da Comarca de Sobral, condenando os envolvidos na
327
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/>.
Acesso em: 23 fev. 2011.
170
morte de Damião Ximenes Lopes328, pelo crime de maus-tratos que resultaram na
morte da vítima.
Com essas duas condenações, seria possível dizer que houve o cumprimento
de mais uma determinação da sentença da Corte? Teriam sido elas prolatadas em
prazo razoável?
Esse vem a ser um problema não apenas do cumprimento da sentença
internacional, mas sim de todo o judiciário brasileiro: a demora na prolação das
sentenças e na finalização de um caso.
Logicamente, existem diversas razões para que se justifique a demora
processual na justiça brasileira (excesso de ritos no conhecimento da causa, protelação
por intermédio de recursos, ineficácia no cumprimento da decisão, excesso de
demandas, entre inúmeras outras), mas o que é necessário ser entendido é que, no
que tange aos direitos humanos, não cabe qualquer atraso na demanda processual,
sendo que, nesse limiar, qualquer justificativa acaba por ser esmagada pelo
interesse e necessidade de proteção e efetividade desses direitos.
Assim sendo, deve ser dito que o caso Damião Ximenes Lopes iniciou-se
com a ineficácia e demora injustificada da justiça no âmbito interno, configurou o
descaso do governo brasileiro – e seus representantes – quando da apresentação
da questão à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e findou-se com a
alarmante demora do Brasil em fazer cumprir, em âmbito interno, o teor integral da
sentença internacional.
Sem dúvidas, o esforço em reconhecer a referida sentença, nesse caso, foi
realizado de forma efetiva pelo Brasil, mas faltou-lhe muito o empenho em cumpri-la
em prazo razoável, o qual, quando se encontra na esfera dos direitos humanos,
deve ser realizável em urgência máxima e absoluta.
O Brasil deveria, nesse caso, ter dado mais atenção logo quando a situação
chegou ao conhecimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Como
não acontecera, deveria, ao menos, ter proporcionado, em vias internas, o cumprimento
do teor integral da sentença em tempo menor que os quase quatro anos da demora.
328
São eles: Sérgio Antunes Ferreira Gomes (proprietário da casa de repouso), Carlos Alberto
Rodrigues dos Santos (auxiliar de enfermagem), André Tavares do Nascimento (auxiliar de
enfermagem), Maria Salete Moraes Melo de Mesquita (enfermeira-chefe), Francisco Ivo de
Vasconcelos (médico) e Elias Gomes (auxiliar de enfermagem).
171
Finalmente, cabe uma última ressalva: o Brasil fora condenado, também, no
desenvolvimento de programas de capacitação dos agentes que lidam com doentes
mentais. Até hoje, ano de 2011, não se desenvolveu qualquer programa eficaz
nesse âmbito, decorrendo, então, a seguinte indagação: até que ponto se deu o
cumprimento da sentença do Caso 12.237 e quantas, ainda hoje, não serão as
vítimas em situações análogas às de Damião Ximenes Lopes?
3
CASO GILSON NOGUEIRA DE CARVALHO – CASO 12.058
Juntamente com o caso Damião Ximenes Lopes, interessa discorrer algumas
peculiaridades do caso Gilson Nogueira de Carvalho. Pontuam-se ambos os casos
como os primeiros, contra o Estado brasileiro, perante o sistema interamericano de
proteção aos direitos humanos.
Apesar do Brasil ter sido, nesta situação, absolvido, é de importância suprema
o entendimento da questão, até mesmo para se compreender que há sim a possibilidade
do Estado não ser condenado, em um tribunal internacional, quando uma questão é
levada a seu conhecimento.
3.1
HISTÓRICO DO CASO
Gilson Nogueira de Carvalho, com 32 anos no momento de sua morte, era um
advogado ativista dos direitos humanos, tendo dedicado boa parte de seu trabalho
na denúncia dos crimes cometidos pelos Policiais Meninos de Ouro e no impulso às
causas penais já iniciadas.329
Trabalhava para a organização não-governamental de promoção e defesa
dos direitos humanos, Centro de Direitos Humanos e Memória Popular – filiada ao
Movimento Nacional de Direitos Humanos –, cuja missão era lutar, de maneira
329
Demanda do Caso Gilson Nogueira de Carvalho contra o Estado brasileiro (caso 12.058), na
Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
172
frontal, contra a impunidade no estado do Rio Grande do Norte, centrando seu
trabalho na denúncia das atividades criminais dos Policiais Meninos de Ouro.
Como parte de suas atividades profissionais, Gilson Nogueira de Carvalho
apresentou ao Ministério Público, em nome do Centro de Direitos Humanos e Memória
Popular, uma notitia criminis, cuja qual deu ensejo a uma investigação de diversos
homicídios, torturas e sequestros cometidos pelos Policiais Meninos de Ouro. Tal
investigação clareou nomes de vítimas e descrições de feitos concretos atribuídos a
tal grupo.
Em decorrência da denúncia, criou-se uma comissão especial de fiscais do
Ministério Público, com o objetivo de investigar os crimes cometidos pelo referido
grupo. Esta comissão, após a escuta de diversas testemunhas e a colheita de várias
evidências, apresentou acusação contra membros dos Policiais Meninos de Ouro,
incluindo, até mesmo, o Subsecretário de Segurança Pública do estado do Rio Grande
do Norte. Também, a referida comissão veio a publicar informes e assegurou que todos
os crimes investigados eram de responsabilidade da polícia civil e de empregados
da Secretaria de Segurança Pública.
Assim sendo, subentende-se que as denúncias de Gilson Nogueira de
Carvalho vieram a ocasionar a acusação criminal de diversos policiais e funcionários
do estado. Também, ocorrera a difusão da existência de um grupo de extermínio,
por intermédio dos meios locais e nacionais de comunicação, motivando a atuação
do Governo Federal.
Em meio a este cenário, Gilson Nogueira de Carvalho recebera inúmeras
ameaças de morte330, especialmente pelo desenvolvimento de suas atividades
profissionais de proteção e promoção de defesa dos direitos humanos. Assim sendo,
o Governo Federal lhe disponibilizou uma proteção específica, por intermédio da
polícia federal, a partir da data de seis de setembro de 1995.
Acontece que, sem motivação alguma, na data de quatro de junho de 1996 –
quatro meses antes de seu assassinato –, por ordem do chefe de gabinete do Ministério
da Justiça, Dr. José Gregori, cumprindo determinações do próprio Ministério, a
referida proteção foi suspensa.
330
Viera a relatar, em 16 de agosto de 1995, tais ameaças à Comissão de Direitos Humanos da
Câmara dos Deputados e do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, requerendo
uma especial proteção.
173
Na data de 19 de outubro de 1996, Gilson fora uma festa pública, acompanhado
de uma jovem que havia conhecido poucos dias antes. Segundo seu amigo, Juney
Pinheiro Lucas, a jovem insistiu que Gilson a levasse a seu sítio, em Macaíba.
Pouco tempo depois, Gilson e a jovem deixaram o local, em direção a seu sítio.
Ocorre que o referido amigo morava nas proximidades do sítio de Gilson e
deixou a festa no mesmo período que os dois, podendo notar que eles estavam
sendo seguidos por um automóvel.
Poucos minutos após chegar a sua casa, o amigo de Gilson ouviu alguns
tiros, fato que motivou sua ida imediata ao sítio do referido. Chegando lá, encontrou
Gilson morte e a jovem com o telefone celular dele em suas mãos.
Segundo depoimento da jovem, logo que ela e Gilson chegaram ao sítio, por
volta da meia noite e meia, do dia 20 de outubro de 1996, três homens, que estavam
a bordo do automóvel, atiraram com uma escopeta e um rifle em direção de Gilson,
não tendo acertado a jovem.
O homicídio de Gilson Nogueira de Carvalho teve ampla difusão no país,
fato que motivou o governador do Rio Grande do Norte declinar a competência do
fato em favor da investigação da Polícia Federal, justificando a necessidade de
assegurar a imparcialidade das investigações.
Também, o referido governador, logo após o homicídio, resolveu afastar do
cargo o Subsecretário de Segurança Pública de seu estado, dando como motivos a
existência de acusações sobre a possibilidade de seu envolvimento com grupos
de extermínio.
De tal forma, já em 25 de outubro de 1996, a Polícia Federal iniciou a
investigação331 com o depoimento da jovem que estava com Gilson quando de seu
assassinato. A jovem declarou que teria pedido a Gilson que a levasse a sua casa e
que não queria ter ido ao sítio do rapaz. Ocorre que a mãe da jovem, em um jornal
local, relatou que sua filha havia mentido em seu testemunho à polícia federal, uma
vez que havia sido pressionada, pela própria polícia, a não contar nada sobre o ocorrido.
Ao mesmo tempo, o amigo de Gilson, Juney, declarou que havia presenciado
a insistência da jovem em ir ao sítio: contradição entre as testemunhas que nunca
foi solucionada.
331
Investigação n.o 296/96/-SR/DPF/RN.
174
Nessa investigação, o Ministério Público observou que os policias a cargo de
tal omitiram perguntas fundamentais às pessoas que poderiam ter interesses na
morte de Gilson, tendo sido, tal investigação, arquivada, por ordem judicial de 19 de
junho de 1997.
Não satisfeito, o Ministério Público ordenou, em 24 de setembro de 1998, a
reabertura da investigação. Como parte de sua fundamentação, a referida instituição
ressaltou que Antonio Lopes, amigo de Gilson, havia realizado uma investigação por
sua própria conta, mediante gravações de entrevistas, e tinha encontrado fortes
indícios a respeito da autoria do homicídio em um elemento identificado como "Chicão".
Absurdamente após tais revelações, Antonio Lopes também viera a ser assassinato.
Assim, em 15 de novembro de 1998, policiais federais executaram busca e
apreensão na propriedade de Otavio Ernesto Moreira, policial afastado da Secretaria de
Segurança Pública do Rio Grande do Norte, e ali encontraram duas metralhadoras, duas
escopeta e uma pistola. A referida pessoa foi, logo após tal fato, detida preventivamente.
Ocorre que, até aqui, como bem se sabe, o Estado brasileiro ainda não
havia reconhecido a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Após essa data, a partir de 10 de dezembro de 1998, o caso Gilson contou com a
possibilidade de ser levado a tal instância.
Ainda na mesma data supracitada, peritos do Instituto Nacional de Criminalística
da Polícia Federal determinaram que Gilson tinha sido morto por uma bala de
escopeta, tal qual tinha sido encontrado na casa de Otavio Ernesto Moreira – que
declarou que a arma era de seu uso pessoal.
Assim, em 25 de janeiro de 1999, o Ministério Público formulou denúncia
contra o ex-policial Otavio Ernesto Moreira, pelo homicídio de Gilson Nogueira de
Carvalho. O caso fora levado a júri popular que entendeu que Otavio seria inocente
e, em 7 de junho de 2002, o juiz que cuidava do feito decidiu pela sua absolvição.
Então, em 28 de agosto de 2002, o Ministério Público apelou da decisão,
solicitando a realização de um novo júri, com novos jurados, uma vez que a decisão
fora contra as provas apresentadas nos autos. Além do Ministério Público, os pais de
Gilson, por intermédio de seu advogado, também apelaram da decisão.
175
Acontece que ambos os recursos foram indeferidos e, assim sendo, valeu-se
a decisão acima discorrida, obstando aos pais de Gilson uma compensação pelos
danos sofridos e impossibilitando a identificação e a sanção aqueles que cometeram
o homicídio.
3.2
O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
O Caso Gilson Nogueira de Carvalho chegou a conhecimento da Comissão
já em 11 de dezembro de 1997, quando então ocorrera a apresentação de uma
petição pelo Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, pelo Holocaust Human
Rights Project e pelo Grupo de Estudantes de Direito Internacional dos Direitos
Humanos. Além deles, mais tarde, em 2000, a Justiça Global incorporou-se ao caso
como co-peticionária.
Na referida petição, os peticionários salientaram a responsabilidade do Estado
pela morte de Gilson, alegando que o Brasil havia faltado com a sua obrigação de
garantir ao referido cidadão o direito à vida, além de não ter realizado uma investigação
séria sobre sua morte, nem processado os responsáveis e muito menos promovido
os recursos judiciais adequados.
Em de janeiro de 1998, a Comissão transmitiu as informações ao Estado e às
partes pertinentes da denúncia, dando-lhes o prazo de 90 dias para que prestasse
informações sobre o caso. Acontece que, por diversos motivos – tais como a tradução
ao português da petição –, o prazo do país para prestar esclarecimentos acabou por
ser prolatado, mas, assim mesmo, até abril de 1999, o Brasil não havia apresentado
a sua resposta, fato que levou a Comissão a conceder-lhe um prazo de mais 30 dias,
mas advertindo-o sobre a possibilidade da aplicação do art. 42 do Regulamento da
Comissão (presumindo a veracidade dos fatos alegados, caso não houvesse
resposta do Estado).
Apenas em 29 de junho de 2000 é que o Estado foi informar que, segundo a
Procuradoria Geral de Justiça do Rio Grande do Norte, o processo sobre o homicídio
de Gilson se encontrava em fase de pronúncia.
176
Mais adiante, em 2 de outubro de 2000, a Comissão aprovou o Relatório de
Admissibilidade n.o 61/00, ressaltando a possibilidade da denúncia ser recebida e
salientando que "o silêncio do Estado (sobre esgotamento dos recursos internos)
constitui, no presente caso, uma renúncia tácita à invocação da exigência".
Seleciona-se que tal relatório fora enviado tanto aos peticionários, como ao
Estado e, em 29 de agosto de 2003, a Comissão colocou-se à disposição das partes
para que fosse encontrada uma solução amistosa ao caso. Ocorre que três dias
após, os peticionários declararam que gostariam de continuar com a análise do
mérito da causa, antes de se chegar a uma solução amistosa – fato este que o
Estado não se pronunciou.
Em 10 de março de 2004, a Comissão veio a concluir que o Estado seria
responsável pela violação dos direitos estabelecidos nos artigos 4 (direito à vida), 8
(garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana, recomendando,
em 13 de abril do mesmo ano, ao Estado a adoção de uma séria de medidas para
sanar tais violações, fixando um prazo máximo de dois meses para que informasse
sobre o cumprimento de tais recomendações.
Acontece que o Estado solicitou, por duas vezes, a prorrogação do prazo e,
em 18 de maio de 2004, os peticionários requereram à Comissão, a submissão do
caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Mais tarde, de 10 de agosto de 2004 a 12 de janeiro de 2005, o Brasil
apresentou vários relatórios acerca do cumprimento das recomendações formuladas
pela Comissão, informando, inclusive, em que fase processual estava o processo de
homicídio no âmbito interno e o desenvolvimento de um programa de proteção dos
direitos humanos. Viera informar, ainda, que o principal acusado no processo havia
sido absolvido em primeira instância, mas como era de interesse do Ministério
Público em interpor recurso à decisão até os tribunais superiores, então as etapas
recursivas ainda não se apresentavam conclusas.
Novamente, em 21 de dezembro de 2004, os peticionários alegaram que
"era extremamente importante o envio do caso para a Corte Interamericana [...] uma
vez que o Estado [...] não havia cumprido com as três recomendações formuladas
pela Comissão". Logo, em 13 de janeiro de 2005, a Comissão apresentou a demanda
perante a Corte, anexando prova documental e oferecendo prova testemunhal e
pericial como fundamentos.
177
3.3
O CASO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Como dito anteriormente, o caso 12.058 chegou à Corte em 13 de janeiro de
2005, quando então a Comissão veio apresentá-lo perante este órgão.
Fora informado à Corte, mediante sua solicitação, pelos representantes de
Gilson, que ao Estado caberia a sua responsabilização em plano internacional, uma
vez que não investigou a morte do referido cidadão, não sancionou seus responsáveis
e incorreu na violação dos artigos 4 (direito à vida), 8 (garantias judiciais) e 25
(proteção judicial) da Convenção Interamericana. Além, requereram ao órgão que
ordenasse o pagamento, pelo Estado, de danos materiais e morais, imputasse a adoção
de medidas de não repetição e garantisse o reembolso das custas e gastos processuais.
Ocorre que, em 21 de junho de 2005, o Estado interpôs, perante a Corte,
primeiramente, exceções preliminares de incompetência ratione temporis da Corte,
alegando que a Comissão, embora discorresse sobre violações dos artigos 8 e 25 da
Convenção, tinha por objetivo, na realidade, a declaração da violação do direito à
vida. Também, apresentou exceções preliminares de não esgotamento dos recursos
internos. Ambas as exceções foram consideradas, pela Comissão, infundadas e
requereu que fossem julgadas improcedentes.
No que tange às exceções preliminares de incompetência ratione temporis, a
Corte entendeu que é sim competente para examinar as ações e omissões relacionadas
às violações contínuas ou permanentes, mesmo que essas tenham início antes mesmo
da data do reconhecimento de sua competência pelo Estado. Consequentemente,
entendeu ser competente para julgar o caso 12.058 e considerar improcedente tal
exceção preliminar do Estado brasileiro.
Julgando as exceções preliminares de não esgotamento dos recursos internos,
entendeu-se que o momento oportuno para suscitar tal exceção seria quando da
interposição da petição à Comissão, fato que não ocorrera e acabou, como já dito
anteriormente, por presumir-se a renúncia tácita do Estado a tal argumentação.
Indeferiu, então, a Corte, tal exceção.
178
Apesar de ambas as vitórias por parte dos representantes da vítima, a Corte
viera a decidir, por unanimidade, o arquivamento do caso, uma vez que entendeu ser o
suporte fático limitado para demonstrar que o Estado teria mesmo violado os direitos às
garantias judiciais (art. 8.o) e à proteção judicial (art. 25 da Convenção Interamericana).
Finalmente, declarou que
a Corte lembra que compete aos tribunais do Estado o exame dos fatos e das
provas apresentadas nas causa particulares. Não compete a este Tribunal
substituir a jurisdição interna, estabelecendo as modalidades específicas de
investigação e julgamento num caso concreto, para obter um resultado
melhor ou mais eficaz, mas constatar se nos passos efetivamente dados no
âmbito interno, foram ou não violadas obrigações internacionais do Estado,
decorrentes dos artigos 8 e 25 da Convenção. Assim, entendeu que não se
demonstrou que o Estado tenha violado os direitos à proteção e às
garantias judiciais [...], com relação à Jaurídice Nogueira de Carvalho e
Geraldo Cruz de Carvalho (pais da vítima).332
3.4
REPERCUSSÃO DA DECISÃO NO BRASIL
Apesar de ter sido absolvido na Corte Interamericana de Direitos Humanos,
o caso Gilson Nogueira de Carvalho repercutiu no âmbito interno.
Primeiramente, é cabível ser mencionado o fato de que, mesmo tendo ocorrido
antes do reconhecimento, pelo Estado brasileiro, da jurisdição da Corte, o caso pôde
ser levado a seu conhecimento. É que, como bem se argumentou na sentença da
Corte, caso a violação do direito inicie-se anteriormente ao seu reconhecimento, mas
torne-se continua após este prazo, é passível de ser conhecida por este órgão. Este se
tornou um marco importante no entendimento da competência da Corte Interamericana,
especialmente no que tange à submissão do Estado brasileiro.
Acontece que, adentrando ao mérito da sentença internacional, muito se
criticou, especialmente pelos defensores de direitos humanos. Falou-se que, apesar
da Organização dos Estados Americanos reconhecer a necessidade de apoio às
tarefas dos defensores dos direitos humanos, em sua promoção, proteção e respeito, a
Corte veio a decidir pelo arquivamento do processo, alegando falta de suporte fático,
332
Decisão do Caso Gilson Nogueira de Carvalho contra o Estado brasileiro (caso 12.058), da Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
179
no principal caso em que se pôde traduzir o abuso, a violação e a perseguição aos
defensores dos direitos humanos.
Ecoou ainda mais em solos brasileiros, quando então a Comissão, em
desacordo com a sentença da Corte, entendeu que como consequência das violações
dos direitos dos defensores dos direitos humanos é que se repele a voz de mais
defensores em solos nacionais, uma vez que tais violações têm, por objetivo, causar
temor generalizado, desestimular defensores de direitos humanos e silencias
denúncias, alimentando a impunidade e impedindo a plena realização da defesa de
tais direitos e, em último grau, da própria democracia.
Assim, por mais que a sentença internacional estivesse em acordo com os
ditames processuais da Corte, seria sim o momento do Brasil mostrar a prevalência
dos direitos humanos internamente e fazer, diferentemente do que fora a sua postura,
uma flexibilização dos ditames processuais da Corte, relevando o mérito da causa,
atinente à violação dos direitos humanos.
E em relação ao Brasil, observa-se claramente que, de uma maneira ou de
outra, violações maciças de direitos humanos estariam, no Rio Grande do Norte,
ocorrendo, de maneira ininterrupta. E, mesmo tendo sido o caso em questão arquivado,
está mais do que na hora do Brasil agir em prol dos direitos humanos daqueles que,
bravamente, os defendem.
4
CASO ARLEY JOSÉ ESCHER E OUTROS – CASO 12.353
Adentrando à avaliação do Caso Arley José Escher e outros (Caso 12.353),
julga-se, logo em um primeiro momento, que tal conta com peculiaridades específicas,
uma vez que versa em torno de violações, cometidas pelo Brasil, de direitos ainda
não demandados, por cidadãos brasileiros, no sistema interamericano de proteção.
Examina-se, ainda, que as referidas violações – materializadas no desrespeito
aos direitos de proteção da honra, da dignidade, da liberdade de associação, das
garantias judiciais e da proteção judicial – são frutos de interceptação e monitoramento
180
ilegal de linhas telefônicas de cooperativas de trabalhadores ligadas ao Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).333
Com a devida prova de que, em âmbito interno, não houvera uma efetiva
reparação dos direitos violados, o caso chegou ao sistema interamericano, vindo a
ser debatido, primeiramente, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Após constata-se que as violações descritas na petição não haviam, realmente,
sido reparadas em âmbito interno, a Comissão determinou que o Brasil adotasse
algumas medidas. Acontece que o Estado não as adotou, tendo, então, o referido
órgão levado o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos que, em julho de
2009, emitiu sentença condenando o Estado brasileiro.
Tendo em vista esse breve quadro, exprime-se, a seguir, um estudo mais
detalhado do caso.
4.1
HISTÓRICO DO CASO
No primeiro momento da análise do Caso 12.353, imprescindível se faz
conjugar, às violações de direitos, o próprio contexto social brasileiro, uma vez que
a própria questão em si versa, em termos genéricos, sobre o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Dessa maneira, remonta-se ao ano de 1964, quando o então Presidente
Castelo Branco promulgou a primeira Lei de Reforma Agrária do Brasil (o Estatuto
da Terra), propondo a modificação da distribuição da terra no Estado. Ocorre que
não ocorrera a implementação de tal situação, transformando, tal documento, apenas
em um desarticulador dos conflitos de terras.334
Mesmo nos anos de ditadura militar, quando as perseguições às organizações
dos trabalhadores rurais era uma constante, a luta pela reforma da distribuição das
333
334
O MST é um movimento social camponês, autônomo, que luta pela Reforma Agrária e por
transformações sociais no Brasil. Fundado no ano de 1983, é composto por antigos posseiros,
migrantes, meeiros, parceiros, pequenos agricultores, entre outros não proprietários de terras.
(Disponível em: <http://www.mst.org.br/>. Acesso em: 26 maio 2011).
Demanda do Caso José Arley Escher e Outros contra o Estado brasileiro (caso 12.353), na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos.
181
terras cresceu intensamente e, em 1975, desenvolveu-se a primeira organização dos
trabalhadores rurais sem terra do Brasil, a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Alguns anos mais tarde, ao final de 1983, operou-se o início de um movimento
com objetivos e linha política definidos, sendo que, em 1985, em Curitiba, Paraná, o
MST realizou, de fato, o seu primeiro Congresso Nacional. Evocou, como lema,
"ocupação como a única solução", tendo, desde então, ocupado mais de 3.900
propriedades no Estado brasileiro.
Sem visar um debate sobre a licitude e a moralidade do MST, fato é que o
Brasil caracteriza-se por uma alta concentração de terra e uma crescente mobilização
de setores sociais para sua melhor distribuição. Essa mobilização, sem respaldo para
dúvidas, provocou reações violentas por parte de setores latifundiários que, em alguns
casos, contaram com a aquiescência e conivência de certos órgãos governamentais.
Aponta-se que tal violência335 concentrou-se, especialmente, nos líderes dos
movimentos e naqueles que pregavam os direitos humanos dos trabalhadores rurais,
visando o temor generalizado e, por conseguinte, desanimar outros que poderiam
defender tais movimentos.
É nesse contexto político-social que se desenvolvem as violações do Caso
12.353, iniciadas logo em maio de 1999, quando o então Major Copetti Neves, do
Quadro de Oficiais da Política Militar do Paraná, solicitou à Juíza Elisabeth Kather, da
Comarca de Loanda, com fulcro na Lei n.o 9.296, de 1996, a autorização para que a
empresa de Telecomunicações do Paraná (TELEPAR) interceptasse e monitorasse
linhas telefônicas de determinada cooperativa de trabalhadores, ligada ao MST.
O supracitado Major declarou, como fundamento de seu pedido, que as vítimas
usavam as referidas linhas de telefone para o apoio fundamental à consecução de
seus crimes e, de tal maneira, demonstrava-se por essencial à Polícia, o monitoramento
dessas comunicações.
Precisa-se que, por intermédio de uma simples anotação à margem da
própria solicitação, sem qualquer fundamentação, a Juíza deferiu o pedido da Polícia,
em cinco de maio de 1999, não dando sequer notícia da decisão da interceptação ao
335
De acordo com os estudos realizados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
constata-se que a violência mostrou-se mais intensa nos governos democráticos que na época da
ditadura militar, uma vez que a criação e a atuação das milícias privadas eram patrocinadas por
latifundiários. Prova-se uma estreita relação entre os mandantes dos crimes e as estruturas locais
de poder.
182
Ministério Público – atitude que seria legalmente obrigatória – e nem atinando ao
fato de que não competiria à Polícia Militar a referida investigação criminal.
Correlacionadas a todas essas irregularidades, ressalta-se que apesar da
autorização de monitoramento ter sido concedida apenas para uma única linha
telefônica, a interceptação também fora efetuada em outra linha, de uma cooperativa
também ligada ao MST.
Nesse quadro, durante 49 dias, os telefonemas foram gravados e, em
primeiro de julho de 1999, o já citado Major Waldir Copetti Neves entregou à Juíza
de Loanda, 123 fitas com conversas gravadas das linhas interceptadas.
Ocorre que, anteriormente a essa data, em oito de junho de 1999, fragmentos
das gravações obtidas foram reproduzidas pelo noticiário de um canal de televisão
local e, também, por diversos jornais da imprensa escrita. Segundo tais gravações,
constatou-se que as conversas consistiam, majoritariamente, sobre as atividades
promovidas por esses movimento (ocupação de terras, perseguição de seus membros,
entre outros pontos).
Mesmo que com essa prévia reprodução, o conteúdo das gravações fora,
oficialmente, divulgado mais tarde em uma coletiva de imprensa, por ordem do então
secretário de Segurança Pública do Paraná, Cândido Martins de Oliveira.
O problema que se desencadeou foi a questão de que as gravações estavam,
nitidamente, editadas de maneira tendenciosa, insinuando o desvio de verbas
repassadas pelo governo, além de ameaças à segurança de autoridades locais.
Contribui, assim, de maneira incisiva para o processo de criminalização do MST.
Consequentemente, alguns de seus membros, afetados por tais interceptações
e divulgações, interpuseram, em primeiro de abril de 2000, mandado de segurança,
impugnando o ato mediante o qual a Juíza de Loanda autorizara a interceptação e
monitoramento da linha telefônica. Quatro dias após, em cinco de abril, rejeitou-se
tal remédio constitucional, alegando que a escuta telefônica havia sido suspensa
antes do referido processo.
Então, mediante a situação desfavorável, as vítimas interpuseram, perante o
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e no âmbito do mesmo processo, embargos
de declaração, declarando a existência de omissões na rejeição. Mais uma vez, em
sete de junho de 2000, o recurso fora rejeitado.
183
Nesse momento, ainda, o Tribunal decidiu que o pedido de destruição das
gravações obtidas não poderia ser atendido, pois a resolução que havia indeferido a
petição anteriormente proposta não analisara o mérito da causa – motivo que não
permitia o debate sobre a existência de omissão na resolução.
Incansáveis, em 19 de agosto de 2000, as vítimas interpuseram denúncia
perante o Ministério Público, motivando-a nos delitos contra elas cometidos. Mais
uma vez, em seis de outubro do mesmo ano, o Tribunal de Justiça do Estado do
Paraná expediu uma resolução rejeitando a denúncia e absolvendo dos delitos de
usurpação da função pública, abuso de autoridade e crime de responsabilidade a
Juíza de Loanda (Elisabeth Khater), o Subcomandante de Chefe do Estado-Maior da
Polícia Militar (Coronel Valdemar Kretschmer), o Major Waldir Copetti Neves e o
Terceiro Sargento do 8.o Batalhão da Polícia Militar (Sargento Valdecir Pereira da Silva).
No mesmo momento, remeteu-se a causa relativa ao Secretário de Segurança
Pública (Cândido Manuel Martins) ao Juizado de Primeira Instância Penal, ante a
possível adequação de conduta – uma vez que se divulgou, à imprensa, a
informação presente nas gravações obtidas nas linhas monitoradas – ao tipo penal
do art. 10, da Lei n.o 9.296/96.
Assim, o Secretário em questão fora condenado no Processo Penal
o
n. 82.516-5, pelo delito de quebrar o segredo de justiça sem autorização judicial.
Teve sua pena substituída, já na sentença, por serviços comunitários e ao pagamento
de dez dias de multa. Já contando com uma pena branda, o Secretário beneficiou-se
ainda mais quando o Tribunal de Segunda Instância do Estado do Paraná, em outubro
de 2004, reverteu sua condenação e absolveu-o, considerando que os conteúdos
das conversas não foram por ele divulgados aos meios de imprensa na entrevista
que este concedera, pois já haviam sido tornados públicos anteriormente.
Provando, então, que os direitos violados das vítimas – quando então da
interceptação e monitoramento de suas linhas telefônicas, além das insinuações de
atitudes criminosas das referidas pessoas – não foram sequer analisados, em seu
mérito, pela justiça brasileira, inquestionável se traduz a possibilidade da análise das
violações pelo sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e, assim
sendo, segue-se o estudo do caso na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
184
4.2
O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
O Caso 12.353 inicia-se na Comissão Interamericana de Direitos Humanos
em 26 de dezembro de 2000, quando então fora lhe proposta denúncia, apresentada
pelas organizações Rede Nacional de Advogados Autônomos Populares (RENAAP) e
pelo Centro de Justiça Global (CJG).336
Segundo o seu teor, alegou-se que as vítimas teriam os seguintes direitos
violados, de acordo com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos: violação
do direito à proteção da honra e da dignidade (art. 11); violação do direito à
liberdade de associação (art. 16); violação do direito às garantias judiciais (art. 8.1);
violação do direito à proteção judicial em relação com a obrigação geral de garantir
os direitos humanos (art. 25.1); e a violação do dever de adotar disposições de
direito interno (art. 1.1).
Conjugou-se, ainda, os referidos pedidos: reparação das violações das vítimas,
em concordância com o teor do art. 63.1 da Convenção; compensação dos seus
danos materiais e morais, uma vez que o Estado não cumpriu com o seu dever de
proteção dos direitos humanos; e a inserção de medidas de satisfação e garantias
de não repetição pelo Estado brasileiro.
Assim, logo em 27 de dezembro de 2000, a Comissão transmitiu a denuncia
ao Brasil, vindo, juntamente, solicitar que este apresentasse uma resposta no prazo
de noventa dias – prazo que não fora respeitado.
Então, em oito de agosto de 2001, os peticionários solicitaram que se realizasse
uma audiência sobre o caso, sendo tal instaurada na data de 14 de novembro de
2001, onde as partes puderam discutir as questões de admissibilidade da questão.
Então, logo ao encerramento da audiência, o Estado brasileiro veio a apresentar,
por escrito, sua posição a respeito da admissibilidade do caso, transmitida aos
peticionários em 26 de novembro de 2001. Tais peticionários apresentaram resposta à
posição do Estado em 22 de janeiro de 2002, a qual fora imediatamente transmitida
ao último.
336
Demanda do Caso José Arley Escher e Outros contra o Estado brasileiro (caso 12.353), na
Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
185
Mais tarde, em 15 de outubro de 2002, fora realizada uma reunião de trabalho,
com a presença de ambas as partes, na sede da Comissão.
Esse órgão, na busca pela verdade sobre a causa, desenvolveu seus trabalhos
por alguns anos. Nesse sentido, apenas em dois de março de 2006 é que veio a
declarar, formalmente, a admissibilidade do caso José Arley Escher e outros,
transmitindo, em 19 de abril do mesmo ano, o Relatório de Admissibilidade às partes.
Concedeu, nesse momento, prazo de dois meses aos peticionários, para que
propusessem suas alegações sobre o mérito. Colocou-se, ainda, à disposição das
partes para o encontro de uma solução amistosa, nos conformes do art. 48.1, f, da
Convenção Americana.
Por conta de problemas atinentes ao recebimento de notificações, os
peticionários vieram a apresentar as alegações sobre o mérito da questão apenas em
10 de julho de 2010, tendo sido encaminhadas ao Estado 15 dias após a data anterior,
concedendo-lhe, também, prazo de dois meses para a apresentação de resposta.
Requerida a prorrogação do prazo, o Estado apresentou resposta em 30
de novembro de 2006 e, em sete de dezembro, remeteu-se aos peticionários,
concedendo-lhes prazo de um mês para observações.
Após esse período, em oito de janeiro de 2007, os peticionários apresentaram
observações sobre as informações alegadas pelo Estado, remetidas, mais uma vez,
a este último.
Finalmente, no intermédio do Centésimo Vigésimo Sétimo período Ordinário
de Sessões, em oito de março de 2007, a Comissão veio a aprovar o Relatório
de Mérito 14/07337, concluindo, então, que o Estado brasileiro violou os direitos
consagrados nos artigos 8.1, 11, 16 e 25 da Convenção Americana, não cumprindo,
igualmente, as obrigações gerais, do mesmo documento, constante em seus
artigos 1.1, 2 e 28.
Além disso, recomendou que o Brasil: a) realizasse uma investigação completa,
imparcial e efetiva dos fatos, com o objetivo de estabelecer as responsabilidades
civis e administrativas com respeito dos fatos relacionados com as interceptações
337
Demanda do Caso José Arley Escher e Outros contra o Estado brasileiro (caso 12.353), na
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, p.4.
186
telefônicas e com as gravações realizadas de forma arbitrária; b) reparasse, plenamente –
material e moralmente –, Arley José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José
Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni, além dos familiares de Eduardo Aghinoni,
pelas violações de direitos humanos; c) aprovasse e implementasse medidas destinadas
a preparar funcionários da justiça e da polícia, a fim de evitar ações, em investigações,
que impliquem violações do direito de privacidade; e d) aprovasse e implementasse
ações imediatas para assegurar o cumprimento dos direitos estabelecidos nos
artigos 8.1, 11, 16 e 25 da Convenção Americana, para que os cidadãos brasileiros
tivessem tais direitos assegurados.
Transmitido o referido Relatório ao Estado brasileiro em dez de abril de 2007,
concedeu-lhe o prazo de dois meses para que informasse sobre ações executadas
com o intuito de implementar as referidas recomendações.
Na mesma data, ainda, informou aos peticionários sobre a aprovação do
Relatório e a remessa ao Estado, dando-lhes o prazo de dois meses para que
manifestassem sua posição em relação à eventual submissão do caso à Corte
Interamericana de Direitos Humanos, e, logo em dez de maio de 2010, os peticionários
expuseram seu desejo de que o caso fosse encaminhado à Corte.
Por outro lado, o Brasil veio, em 24 de maio de 2007, solicitar a prorrogação
do seu prazo para implementação das medidas, alegando a alta complexidade
na articulação interna dos diferentes atores responsáveis pelo cumprimento das
recomendações e a falta de tempo para elaboração de um relatório completo e preciso.
A Comissão entendeu a consideração do Estado e, em cinco de junho de
2007, concedeu-lhe uma prorrogação de três meses, suspendendo, igualmente, o
prazo para o envio do caso à Corte (art. 51.1 da Convenção Americana).
Então, em 11 de setembro de 2007, o Brasil enviou à Comissão um relatório
sobre o cumprimento parcial sobre as recomendações formuladas, requisitando, ainda,
uma segunda prorrogação – dessa vez por seis meses – do prazo do disposto
no art. 51.1 da Convenção Americana, objetivando o cumprimento integral das
recomendações relativas ao caso, esclarecendo, ainda, que não pretendia eximir-se
de suas responsabilidades internacionais.
Investiga-se que os peticionários apresentaram suas observações sobre o
relatório de cumprimento parcial do Estado em 27 de setembro de 2007 e em oito de
outubro do mesmo ano, a Comissão concedeu a segunda prorrogação ao Estado,
187
mas pelo período de dois meses. Tal prorrogação pretendia que o Brasil dispusesse
de um prazo hábil para a implementação integral das recomendações.
Paradoxalmente, como informado pelos peticionários à Comissão em 14 de
novembro de 2007, a Assembleia Legislativa do Estado do Paraná e o Governador
do Estado concederam, em 11 de outubro de 2007, o título de Cidadã Honorária do
Estado do Paraná338 à Juíza Elisabeth Kather, envolvida nos fatos alegados na
denúncia. Claro fica, segundo os peticionários, a impunidade quanto à responsabilidade
da magistrada, distanciando-se, assim, do cumprimento das recomendações por
parte do Estado brasileiro.
Relata-se que, apesar de tal contexto, o Brasil solicitou, em dez de dezembro
do ano em questão, uma terceira prorrogação pelos mesmos argumentos da
anteriormente requerida. Nesse momento, a Comissão concedeu-lhe apenas dez
dias para a apresentação de um cronograma de cumprimento de cada uma das
recomendações, além de um detalhado relatório sobre o grau de cumprimento de
cada uma delas.
Provando, mais uma vez, o descaso do Brasil para com esta demanda, não houve
qualquer tipo de apresentação que lhe fora requerida, sendo que, então, convenceu-se
a Comissão que era o momento de submeter o caso à Corte Interamericana.
Assim, não tendo o Brasil reparado as violações e nem mesmo implementado
as medidas solicitadas pela Comissão, o Caso 12.353 fora submetido ao julgamento
da Corte em 20 de dezembro de 2007.
4.3
A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Como já registrado nesse estudo, o Caso 12.353 chegou ao conhecimento
da Corte Interamericana na data de 20 de dezembro de 2007, quando a Comissão
Interamericana entendeu ser passível de julgamento, pela Corte, o citado caso.
338
Conforme a Lei n.o 13.114 de 2001, o Estado do Paraná só concede o título de cidadão honorário
às pessoas que tenham prestado relevantes serviços ao estado federado.
188
Logo após, em seis de fevereiro de 2008, o Estado e os peticionários
(representantes) foram notificados sobre a referida demanda, ordenando-se a
apresentação dos escritos principais, além do recebimento de declarações de um
agente dotado de fé pública, de oito testemunhas propostas pela Comissão, pelos
representantes e pelo Estado e de dois peritos oferecidos pelos representantes.
Para que o julgamento se demonstrasse possível, a Presidente convocou a
Comissão, os representantes e o Estado para uma audiência pública, realizada em
três de dezembro de 2008, a fim de escutar os depoimentos de determinadas pessoas
envolvidas no caso.
Mais além, em 19 de janeiro de 2009, os três interessados – Estado, Comissão
e representantes – remeteram suas alegações finais escritas, passando-se à investigação
das alegações do Estado.
Sintetiza-se, primeiramente, que o Brasil veio a interpor três exceções
de caráter preliminar. Na primeira delas, referindo-se ao descumprimento pelos
representantes dos prazos previstos no Regulamento para apresentar o escrito de
petições e argumentos e seus anexos, afirmou o Estado que os representantes haviam
descumprido os prazos estabelecidos nos artigos 26.1 e 36 do Regulamento da
Corte Interamericana de Direitos Humanos.339
No tocante ao disposto em tal exceção, entendeu a Corte que o suposto
descumprimento dos representantes, em relação aos prazos previstos no Regulamento,
não configura uma exceção preliminar, mas sim questão a ser analisada juntamente
às provas.
A segunda exceção preliminar interposta referiu-se à impossibilidade de alegar
violações não consideradas durante o procedimento perante a Comissão Interamericana.
Debateu, nesse ponto, o Estado brasileiro que a violação do art. 28 da Convenção
Americana não tinha sido alegada durante o procedimento perante a Comissão.
339
Artigo 26. Apresentação de escritos. 1. A demanda, sua contestação, o escrito de petições, argumentos
e provas e os demais escritos dirigidos à Corte poderão ser apresentados pessoalmente, via
courier, facsímile, telex, correio ou qualquer outromeio geralmente utilizado. No caso de envio por
meios eletrônicos, os documentos originais, assim como a prova que os acompanhe, deverão ser
remetidos a mais tardar, em um prazo de sete dias.
Artigo 36. Escrito de petições, argumentos e provas. 1. Notificada a demanda à suposta vítima,
seus familiares ou seus representantes devidamente acreditados, estes disporão de um prazo
improrrogável de 2 meses para apresentar autonomamente à Corte suas petições, argumentos
e provas.
189
Mais uma vez, a Corte rejeitou tal exceção preliminar, uma vez que o
Estado, tendo oportunidade de apresentar seus argumentos de defesa sobre esse
aspecto da demanda em outro momento, não o fez e, ainda, segundo o art. 62.3, da
Convenção Americana, vislumbra-se a ampla liberdade e competência da Corte para
interpretar e aplicar as disposições da Convenção, a partir do momento que o
Estado tenha reconhecido sua jurisdição – caso brasileiro.
Finalmente, alegou o Brasil, como exceção preliminar, a falta de esgotamento
dos recursos judiciais internos. No ponto em questão, a Corte discriminou cada
um dos recursos judiciais, entendendo, em todos eles – mandando de segurança,
ação penal e ações civis – que não eram passíveis de serem acatados como
exceções preliminares.
Assim, com o decorrer do caso, e fruto de diversas investigações sobre tal, a
Corte prolatou sua sentença, declarando, por unanimidade, o Estado como violador
do direito à vida privada, à honra e à reputação, previstos no art. 11 da Convenção
Americana, das vítimas, pela interceptação, gravação e divulgação de suas conversas
telefônicas. Violou, ainda, o direito das vítimas à liberdade de associação, reconhecido
no art. 16 da Convenção, pelas alterações no exercício desse direito. Por fim,
referiu-se ao fato de não contar com elementos que demonstrem a existência de
violação dos direitos consagrados nos artigos 8 e 25 da Convençao Americana, no
que tange ao mandado de segurança de segurança e às ações civis, mas contou
com a presença de violações dos referidos direitos no que tange à ação penal
movida em face do ex-Secretário de Segurança Pública.340
Finalmente, veio a Corte determinar que o Estado brasileiro deveria: a) pagar
aos senhores Arley José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker,
Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni, o montante de U$ 20.000,00 (vinte mil dólares),
a título de dano imaterial, no prazo de um ano, a partir da notificação da sentença;
b) publicar no Diário Oficial, em outro jornal de ampla circulação nacional, em outro
de ampla circulação no Estado do Paraná e em um sítio na Internet oficial da União
Federal e do Estado do Paraná, uma única vez, a sentença da Corte, no prazo de
340
Demanda do Caso José Arley Escher e Outros contra o Estado brasileiro (caso 12.353), na Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
190
seis meses para os primeiros e dois meses para esses últimos, contados a partir da
notificação da sentença; c) pagar o montante de U$ 10.000,00 (dez mil dólares), por
restituição de custas e gastos, dentro do prazo de um ano, contados a partir da
notificação da sentença; d) apresentar, dentro do prazo de um ano, contado a partir
da notificação da sentença, um relatório sobre as medidas adotadas para o
cumprimento da mesma.
Taxa-se, em termos finais, que a sentença da Corte veio a condenar o
Estado brasileiro de maneira incisiva a fim de que, ao menos para as referidas
vítimas, os direitos humanos prevaleçam sobre quaisquer outros interesses, sejam
eles privados ou, até mesmo, públicos.
4.4
O CUMPRIMENTO DA SENTENÇA INTERNACIONAL PELO BRASIL
Apesar da demora no cumprimento da sentença, não se pode deixar de
relatar o fato de que o Estado brasileiro tomou atitudes para o seu cumprimento.
Logicamente, não se vislumbra, nesse cumprimento, a plena reparação de todos os
direitos que outrora estavam sendo violados – até mesmo pela demora no cumprimento
da referida sentença –, mas deve-se ressaltar o grande passo no reconhecimento e
na efetivação da jurisdição internacional em solos nacionais.
Passando-se às resoluções brasileiras que deram ensejo ao cumprimento,
seleciona-se a promulgação do Decreto n.o 7.158, de 20 de abril de 2010, quando
então se autorizou que a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
promovesse as gestões necessárias ao cumprimento da sentença da Corte
Interamericana, referente ao Caso 12.353.
O decreto em questão regulamenta, especialmente, a existência de previsões
orçamentárias para o pagamento de indenizações às cinco vítimas341, elencadas no
próprio instrumento legal, no valor de U$ 20.000,00 (vinte mil dólares).
341
São elas: Arley José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral
e Ceso Aghinoni.
191
Logicamente, tal previsão, como já julgado, é um grande avanço no
reconhecimento e na efetivação das decisões advindas de foros internacionais, mas
não se pode conceber como a única e satisfatória atitude do Estado brasileiro.
Lembra-se, mais uma vez, que o pagamento das indenizações é apenas um
dos pontos em que o Brasil fora condenado, devendo, impreterivelmente, em um
futuro próximo – e não em momento oportuno aos seus políticos – cumprir todas as
determinações da Corte para que, de fato, ocorra a reparação das violações dos
direitos humanos das vítimas.
Conjuntamente ao caráter econômico da reparação, o Estado tem por
obrigação vir a procurar, processar e punir os culpados pelas violações, não podendo,
nesse ponto, as vítimas e a própria sociedade brasileira se contentarem com grandes
discursos teóricos e pequenas atitudes fáticas na punição de seus delituosos.
Além disso, deve o Brasil enxergar que a morosidade de sua justiça e,
também, do próprio cumprimento de decisões em âmbito interno – sejam elas nacionais
ou internacionais – já se demonstra como uma afronta aos próprios direitos humanos.
E é nesse momento, onde há uma condenação em plano internacional e todos
os olhos encontram-se lançados ao seu cumprimento, que se vislumbra uma grande
oportunidade do Brasil vir a mostrar que paraíso de impunidades e falta de efetividade
de decisões serão, em um futuro próximo, adjetivos incompatíveis com a sua conduta.
5
CASO SÉTIMO GARIBALDI – CASO 12.478
Enuncia-se, nesse momento, o Caso 12.478, também conhecido como Caso
Sétimo Garibaldi, fruto da violência na área rural brasileira.
Documenta-se que o homicídio do senhor Sétimo Garibaldi fora consequência
da operação de desocupação extrajudicial da Fazenda São Francisco, localizada na
cidade de Querência do Norte, estado do Paraná.
O caso traz preocupações além de suas delimitações fáticas, uma vez que
se vislumbra, a partir dele, um imenso problema presente na sociedade brasileira: a
concentração de terra entre poucos proprietários rurais.
192
Antes de se adentrar ao histórico propriamente dito – e, mais uma vez, não
cabendo, nesse trabalho, uma análise crítica sobre o movimento –, deve-se atentar
ao fato de que, novamente, os direitos humanos violados foram de um cidadão ligado
ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Sintetiza-se que os direitos humanos violados, devidamente reconhecidos
pela Corte, foram os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (artigos 8.1 e
25.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos).
Assim, investigar-se-á, mais detalhadamente, o caso em tela.
5.1
HISTÓRICO DO CASO
Primeiramente, é de relevância extrema argumentar que o histórico do caso
em questão se faz indissociável de seu contexto, uma vez que fora esse o próprio
fundamento do ocorrido.
Assim sendo, especifica-se que o senhor Sétimo Garibaldi morreu esvaído em
sangue, em decorrência do disparo de arma de fogo, recebido na perna esquerda,
em meio a uma operação de despejo extrajudicial, no assentamento localizado na
Fazenda São Francisco, situada no município de Querência do Norte, estado do Paraná.
Como se observa, o referido cidadão não possuía terras e vivia em um
assentamento no local supracitado. Ocorre que ele não era o único nestas condições,
uma vez que a concentração de terra, no Brasil, é considerada como uma das mais
elevadas do mundo.342
Conjugado a esse quadro, ainda, de acordo com os dados do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), há cem milhões de hectares de terra
ociosos no Brasil e, paradoxalmente, cerca de cinco milhões de famílias de trabalhadores
rurais sem propriedade de nenhuma terra, vivendo como posseiros, arrendatários,
regimes de terra compartilhada ou com propriedades inferiores a cinco hectares.
342
Segundo dados da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2007, o número de
proprietários rurais brasileiros não atingia 50.000. Aproximadamente 1% da população brasileira
detinha 46% de todas as terras.
193
Logicamente, nessa situação, os trabalhadores, já desde a década de 70,
uniram-se e criaram o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, objetivando
avanços na política agrária e de habitação brasileira. Diferentemente do que imaginavam,
as mudanças têm ocorrido a passos lentos, sofrendo intensas repressões.
As referidas desigualdades e falta de incentivos trouxeram, como consequência
imediata, a violência na área rural brasileira, onde, segundo dados da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), entre os anos de 1987 e 2005, cerca de dois mil trabalhadores
rurais foram assassinados.
Diante desse quadro, pontua-se que a ascendência da maior revolta – maior
até que a decorrente dos dados sobre a violência – plaina sobre a conformação da
sociedade brasileira com a impunidade daqueles que cometem a violência rural. Há, de
fato, casos de atuação conjunta entre aqueles que praticam a violência propriamente
dita – pistoleiros particulares, contratados pelos proprietários das terras objeto de
despejo – e forças públicas. Sem dúvidas, a impunidade transformou-se em uma
importante cúmplice da violência rural.
No contexto em questão, ocorrido no estado do Paraná durante o mandato do
ex-governador Jaime Lerner, entre 1994 e 2002, 16 trabalhadores rurais paranaenses
foram assassinados, além de terem ocorrido 5216 prisões arbitrárias. Em decorrência
de tais fatos, o então governador passou a ser conhecido como "arquiteto da violência".
Fora nesse cenário que, em novembro de 1998, na Fazenda São Francisco,
localizada em Querência do Norte, Paraná, de propriedade de Maurílio Favoretto,
Darci Favoretto, Morival Favoretto e Wilson Favoretto, ocorrera a ocupação por
cerca de setenta famílias de trabalhadores rurais, do MST.
Logo em seguida, em 27 de novembro de 1998, operou-se, de madrugada,
uma violenta ação de despejo na fazenda, realizada por um grupo armado civil, de
aproximadamente vinte homens, contratados pelos fazendeiros.
Com a invasão, de madrugrada, do referido grupo ao acampamento, iniciouse o despejo, forçando os ocupantes a saírem de suas barracas e dirigirem-se ao
centro do local, onde deveriam permanecer estendidos, com a boca apontando para
baixo. Relata-se que nesse momento, o grupo disparava tiros.
Assim, o trabalhador Sétimo Garibaldi, de 52 anos, fora ferido por um projétil,
que veio a causar uma hemorragia e, como consequência, levou-lhe à morte na mesma
data, poucas horas após a operação.
194
Taxa-se que, segundo declarações testemunhais não controversas, os ocupantes
da fazenda tinham conhecimento, anteriormente à ação, de que os proprietários
possuíam a intenção de desalojá-los por meios próprios. Também, durante a própria
operação, as declarações confirmaram que Morival Favoretto, co-proprietário da
fazenda, e seu capataz, Ailton Lobato, estavam sem capuz, comandando a operação.343
Os integrantes do grupo, ainda, usavam patentes militares como forma de
tratamento (chamando-se de capitão, sargento, entre outros) e identificaram-se como
agentes da polícia. Logo após atirarem em Sétimo Garibaldi, e observarem a sua
consequente morte, o grupo retirou-se do local e não finalizou o despejo das famílias.
Após o referido homicídio, na mesma data, denunciou-se à Polícia Militar do
Estado do Paraná, instruindo-se, então, a investigação policial n.o 179/98. Logo, em
14 de dezembro de 1998, a juíza do caso negou a solicitação de prisão temporária
de Morival Favoretto, por considerar as declarações das testemunhas divergentes.
Em 17 de dezembro do mesmo ano, atendendo ao pedido da juíza da
comarca de Loanda, o escrivão de polícia Cézar Napoleão Casimir Ribeiro, acostou
um documento de informação ao expediente da investigação policial, informando
que, para evitar a represália dos integrantes do MST, o investigado Ailton Lobato
tinha acordado com os policiais que dispararia um tiro ao alto para avisar-lhes que
um veículo parado na fazenda não oferecia ameaça.
Além disso, o senhor Morival Favoretto afirmou, em suas declarações, que, por
motivos de ameaças de morte proferidas pelos trabalhadores rurais, não frequentava
a fazenda desde agosto de 1998, anteriormente à data da ocupação pelos membros
do MST.
Após inúmeras investigações, em 18 de maio de 2004, a Juíza de Loanda
(Elisabeth Khater) – a mesma que viera a investigar e arquivar o caso Arley José
Escher e outros –, seguindo o parecer do Ministério Público, determinou o arquivamento
da investigação da morte do senhor Sétimo Garibaldi.
Inconformada com a decisão, a viúva de Garibaldi, Iracema Garibaldi, impetrou,
em 16 de setembro de 2004, mandado de segurança, solicitando a reabertura da
343
Demanda do Caso Sétimo Garibaldi contra o Estado brasileiro (caso 12.478), na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos.
195
investigação, a qual fora novamente arquivada, uma vez que se entendeu absoluta
ausência de fundamentos (art. 93, alínea IX, Constituição Federal).
Um dia após, o Tribunal de Justiça do Paraná negou-lhe o recurso, afirmando
não existir direito definido e certo em favor da requerente, sendo necessária uma
análise mais profunda no conteúdo probatório, incompatível com o objeto e propósito
da peça em questão.
Não tendo resposta do Estado brasileiro em decorrência do ocorrido e,
ainda, comprovadas, de fato, as violações dos direitos às garantias judiciais e à
proteção judicial violados, o caso chegou ao sistema interamericano de proteção dos
direitos humanos.
5.2
O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Examina-se que a petição relativa ao Caso 12.478 fora apresentada à Comissão,
na data de seis de maio de 2003, pelas organizações Justiça Global, Rede Nacional
de Advogados e Advogados Populares (RENAP) e Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), em nome de Sétimo Garibaldi e seus familiares.
Após a análise de seus fundamentos, em cinco de fevereiro de 2004, a
Comissão, de acordo com o art. 30 de seu Regulamento, transmitiu ao Brasil as partes
pertinentes da denúncia, solicitando uma resposta à petição, concedendo-lhe prazo
de dois meses, comunicando, igualmente, os peticionários acerca da situação.
Vencido o prazo, e não tendo o Estado apresentado qualquer resposta, os
peticionários, em 17 de maio de 2004, requereram que a Comissão aplicasse o
art. 37.3 de seu Regulamento. Ocorre que, ainda assim, o Estado não viera a se
manifestar e então, o referido organismo, em nota de 20 de dezembro de 2004,
comunicou-lhe que o caso seria registrado sob o n.o 12.478 e as considerações
relativas à admissibilidade do pedido seriam adiadas ao momento do debate sobre o
mérito da questão.
No referido momento, ainda, comunicou os peticionários, segundo o disposto
no art. 38.1 de seu Regulamento, que deveriam apresentar, no prazo de dois meses,
informações adicionais sobre o mérito.
196
Pouco mais tarde, em seis de junho de 2005, os peticionários finalmente
informaram questões acerca do mérito, as quais foram transmitidas ao Estado,
concedendo-lhe, novamente, prazo de dois meses para apresentar considerações
acerca do mérito da causa.
Provando o total descaso do Brasil, até a data de 20 de abril de 2006, este
não havia prestado qualquer informação sobre o mérito da demanda, apresentandoas apenas em seis de junho do referido ano. Tais informações foram remetidas aos
peticionários, concedendo-lhes prazo de um mês para sintetizarem observações.
Após ambas as partes prestarem informações relativas à questão, no
127.o Período Ordinário de Sessões, em 27 de março de 2007, a Comissão aprovou
o Relatório de Admissibilidade e Mérito 13/07, concluindo que existia uma violação
do direito à vida, às garantias judiciais e à proteção judicial, em respectiva concordância
com os artigos 4, 8.1 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, sendo
que no que concerne às duas últimas violações, os prejudicados seriam os familiares
de Sétimo Garibaldi.
Fruto também de tal relatório, recomendou-se que o Brasil: 1) realizasse uma
investigação completa, imparcial e eficaz da situação, com o objetivo de estabelecer a
responsabilidade do assassinato de Sétimo Garibaldi, além de punir os responsáveis;
2) reparar plenamente os familiares de Sétimo Garibaldi, moral e materialmente, pelas
violações de direitos humanos nesse documento indicadas; 3) adotar e implementar
as medidas necessárias para uma eficaz implementação das investigações policiais,
bem como para o julgamento dos fatos puníveis, decorrentes dos despejos forçados
em assentamentos dos trabalhadores sem terra; 4) adotar e implementar medidas
necessárias para observar-se os direitos humanos nas políticas governamentais que
tratam da ocupação da terra; 5) adotar e implementar medidas adequadas dirigidas
aos funcionários de justiça e da polícia, evitando a proliferação de grupos armados
que realizem despejos arbitrários e violentos.344
344
Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o Caso Sétimo Garibaldi (caso
12.478), p.5.
197
Concedeu-se ao Brasil o prazo de dois meses para informar sobre as ações
empreendias para efetuar as supracitadas recomendações. Igual prazo fora concedido
para que os peticionários se posicionassem a respeito da eventual submissão do
caso à Corte Interamericana.
Em 15 de agosto de 2007, o Estado solicitou uma prorrogação do referido
prazo, aceitando, expressamente e de boa fé, que a eventual concessão da prorrogação
suspendia o prazo estabelecido no art. 51.1 da Convenção para encaminhar o caso
à Corte.
Precisa-se que o Estado, após outras solicitações de prorrogações de prazos,
não apresentou qualquer relatório sobre implementações satisfatórias das medidas
e, assim sendo, em quatro de setembro de 2007, os peticionários manifestaram seu
interesse na submissão do caso à Corte.
Decidiu a Comissão, então, submeter o caso à jurisdição da Corte
Interamericana em 21 de dezembro de 2007.
5.3
A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Não tendo o Estado brasileiro atendido, de maneira satisfatória, as medidas
previstas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, esta apresentou o
Caso 12.478 à Corte Interamericana, em 21 de dezembro de 2007, solicitando que
fosse estabelecida a responsabilidade internacional do Estado, o qual não cumpriu
suas obrigações internacionais ao incorrer nas violações dos artigos 8 (garantias
judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Logo após o seu recebimento, a demanda da Comissão foi notificada ao
Estado e aos peticionários (aqui chamados de representantes) em 11 de fevereiro
de 2008 e, considerando as circunstâncias particulares do caso, a Presidente –
Cecilia Medina Quiroga – do julgamento convocou a Comissão, os peticionários e o
Estado para uma audiência pública, visando a escuta de depoimentos de duas
testemunhas (uma oferecida pela Comissão, outra pelo Estado), de dois peritos (um
indicado Comissão, outro pelo Estado) e das alegações finais orais das partes sobre
198
as exceções preliminares e os eventuais pontos acerca do mérito, das reparações e
das custas do processo.
A audiência desenrolou-se em 29 e 30 de abril de 2009, durante o XXXIX
Período Extraordinário de Sessões da Corte, realizado em Santiago do Chile.
Ainda, em maio de 2009, a Corte recebeu escritos, na qualidade de amicus
curiae, da Clínica de Direitos Humanos, do Núcleo de Prática Jurídica da Escola de
Direito da Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro) e da Coordenação de Movimentos
Sociais do Paraná, ambos informando sobre a violência no campo brasileiro e ao
arquivamento e posterior reabertura do procedimento para investigar a morte de
Sétimo Garibaldi.345
Alguns meses após, em 10 de junho de 2009, a Comissão, os representantes
e o Estado remeteram suas alegações finais escritas à Corte.
No que tange às considerações do Estado brasileiro, este interpôs quatro
exceções preliminares. A primeira delas, atinando à incompetência ratione temporis
da Corte para examinar supostas violações ocorridas antes do reconhecimento da
competência da Corte pelo Estado, entendeu que, por ter o homicídio de Sétimo
Garibaldi ocorrido na data de 27 de novembro de 1998, anteriormente ao reconhecimento
da jurisdição da Corte (ocorrido em 10 de dezembro de 1998), o referido órgão não
teria competência para declarar violações à Convenção do presente caso.346
Acolhendo parcialmente esta exceção, a Corte entendeu que não seria
competente para levantar dados e julgar os fatos relativos à própria morte de Sétimo
Garibaldi, mas teria competência para analisar os fatos e possíveis omissões
relacionadas à investigação da referida morte. Assim, a Corte não poderia analisar a
violação do direito à vida, mas teria plena competência para sentenciar as violações
dos artigos 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana de
Direitos Humanos, decorrentes das incongruências das investigações e processamentos
em âmbito interno.
345
346
A reabertura do inquérito, pelo Ministério Público Federal, do assassinato de Sétimo Garibaldi se
deu em 19 de abril de 2009. O Ministério Público Federal explicou que a referida reabertura fora
motivada por novas informações sobre o caso, advindas do depoimento de um dos filhos de
Sétimo Garibaldi, Vanderlei Garibaldi, à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Demanda do Caso Sétimo Garibaldi contra o Estado brasileiro (caso 12.478), na Corte Interamericana
de Direitos Humanos.
199
Combinada à citada exceção, o Estado alegou o descumprimento, pelos
representantes, dos prazos previstos no Regulamento da Corte para apresentar o
escrito de petições, argumentos e seus anexos. Segundo os entendimentos do tribunal,
o argumento não constituiria uma exceção preliminar propriamente dita e poderia ser
analisado no capítulo da sentença referente à prova.
Já na terceira exceção preliminar, afirmou o Brasil que seria impossível
alegar violações que não tivessem sido consideradas durante o procedimento perante a
Comissão Interamericana. Novamente, a Corte desconsiderou a exceção em pauta,
uma vez que o referido organismo exerce jurisdição plena sobre todos os seus
artigos e disposições, não dependendo de anteriores considerações sobre os temas.
Por fim, na última das exceções apresentadas, o Estado evocou a falta de
esgotamento dos recursos internos, situação que a Corte desestimou, uma vez que,
decorrente dos argumentos das partes e da prova juntada aos autos, concluiu-se
que as alegações, do Estado, relativas à eficácia e à inexistência de um retardo
injustificado do inquérito policial, versariam sobre o mérito, não sendo este o momento
oportuno para seu levantamento.
Após a investigação de todos os pontos oportunos para o julgamento do
caso, a Corte declarou, por unanimidade, que o Estado havia incorrido na violação
dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, reconhecidos nos artigos 8.1 e
25.1 da Convenção Americana, em prejuízo dos familiares do senhor Sétimo Garibaldi.
Por fim, dispôs que o Estado deveria publicar no Diário Oficial, em dois
jornais (um de circulação nacional, e em outro de ampla circulação no Paraná) e em
páginas da web oficiais da União e do Estado do Paraná, a parte resolutiva da
referida sentença, no prazo de seis meses.
Além disso, entendeu-se o dever do Estado em conduzir, eficazmente e dentro
de um prazo razoável, o inquérito e qualquer processo que se demonstre necessário,
para identificar, julgar e, eventualmente, sancionar os autores da morte do senhor
Garibaldi. Deveria, ainda, investigar e, caso assim seja plausível, punir as eventuais
faltas funcionais dos funcionários públicos.
Ainda, teria a obrigação de pagar o montante de US$ 68.000,00 (sessenta
mil dólares) à viúva do senhor Garibaldi, Iracema Garibaldi, e US$ 20.000,00 (vinte
mil dólares) em favor das outras vítimas (Darsônia Garibaldi, Vanderlei Garibaldi,
Fernando Garibaldi, Itamar Garibaldi, Itacir Garibaldi e Alexandre Garibaldi), a título
200
de dano moral, material, e restituição de custas e gastos, dentro do prazo de um
ano, a partir da notificação da sentença.
Por fim, concluiu a Corte que supervisionaria o cumprimento integral da
sentença e só seria dado por concluído o referido caso quando o Estado tiver cumprido
cabalmente o dispositivo da mesma.
5.4
O CUMPRIMENTO DA SENTENÇA INTERNACIONAL PELO BRASIL
Julga-se que o Brasil, após um ano da prolação da sentença do caso
Garibaldi – datada de 23 de setembro de 2009, pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos – começou a cumpri-la.
Inicialmente, decretou-se, nos termos do Decreto n.o 7.307 de 2010, que a
Secretaria de Direitos Humanos estaria autorizada a promover gestões necessárias
para o cumprimento da referida sentença, especialmente no que tange ao pagamento
das indenizações, de acordo com as dotações orçamentárias.
Ademais, ocorrera, de fato, a publicação da sentença nos jornais O Globo
(de relevância nacional) e no Diário Oficial do Estado do Paraná.
Como de praxe, o Brasil realizou o pagamento das indenizações previstas
na sentença, mas não cumpriu, ainda, as determinações referentes às obrigações de
investigar e punir os eventuais culpados pelo homicídio de Sétimo Garibaldi.
O problema que se vislumbra, mais uma vez, é que a morosidade da justiça
e a impunidade dos culpados é um mal permanente na realidade brasileira, onde
nem sequer uma decisão internacional consegue reverter.
O Brasil, um ano e meio após a condenação, não implantou qualquer esforço
para investigar e sancionar, nesse caso concreto, os eventuais responsáveis pela morte
do cidadão. Em decorrência, o que se vislumbra é um futuro não muito esperançoso
na justiça que um Estado Democrático de Direito tanto almeja.
Se não há sequer uma única perspectiva de solução ao caso concreto, onde
já há condenação em foro internacional, acaba por ser quase uma utopia o debate
sobre a reforma agrária e o fim das impunidades decorrentes da violência da área
rural brasileira.
201
O Brasil precisa, emergencialmente, rever os pilares de sua democracia e de
sua prática de justiça. E, para isso, necessário se demonstra que realmente ocorra o
cumprimento integral das condenações internacionais que visam, direta ou indiretamente,
reformular a sociedade brasileira de acordo com os ditames reais de justiça e,
especialmente, dos referentes aos direitos humanos.
6
CASO JULIA GOMES LUND E OUTROS (GUERRILHA DO ARAGUAIA) –
CASO 11.552
Chega-se, finalmente, na análise do Caso Julia Gomes Lund e Outros, mais
conhecido como Guerrilha do Araguaia347 – Caso 11.552 da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos.
Juntamente com o caso, vem à tona toda historicidade brasileira do período
chamado de Ditadura Militar, localizado entre os anos de 1964 a 1985, quando a censura
e a repressão de muitos direitos, tidos como fundamentais, tornou-se uma constante.348
Nesse contexto, também, crimes de repressões políticas foram realizados por
parte daqueles que trabalhavam para e com o governo militar, sendo que o maior
massacre registrou-se no caso da Guerrilha do Araguaia, uma vez que, como bem
apontam os registros históricos349, foi a única tentativa de guerrilha consistente nos
anos da ditadura militar.
Acontece que, não bastando o cenário caótico de violação dos direitos humanos,
o governo brasileiro promulgou uma lei, em 1979, que tratava sobre a concessão de
anistia àqueles que tinham praticado crimes políticos e/ou crimes conexos com
347
348
349
Anexo B.
De acordo com os arquivos da revista VEJA, "entre 1964 e 1985, o Brasil foi governado pelos
militares. Durante esse período, as instituições democráticas sofreram restrições, as liberdades
individuais foram limitadas e a imprensa foi censurada". (Disponível em: <http://veja.abril.com.br/
arquivo_veja/regime-militar-ditadura-ai5-medici-geisel-figueiredo-lamarca-marighella-terrortorturas-herzog-anistia.shtml>. Acesso em: 17 maio 2011).
FÓRUM DE ENTIDADES NACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em:
<http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2387&Itemid=25>.
Acesso em: 17 maio 2011.
202
esses, ficando conhecida como Lei de Anistia350 (Lei n.o 6.683/79). Presumivelmente,
o teor da lei – e nem qualquer documento posterior – não tratou qual seria o conceito
de crimes conexos, tendo sido aplicada, irrestritamente, para a concessão da anistia
aos praticantes do massacre da Guerrilha do Araguaia.
O mais revoltante ainda estava por vir: o governo, talvez para se isentar de culpa,
destruiu a maioria dos documentos que versavam sobre as principais repressões –
especialmente no que condiz à Guerrilha do Araguaia – e, ainda, sumiu com os
corpos exterminados, impossibilitando que os familiares das vítimas encontrassem
reparação adequada.
Mas, por mais que se imagine que o cenário apresentava-se em um contexto
histórico-político diferente do atual, o Supremo Tribunal Federal, em processo findado
no início do ano de 2010351, entendeu ser desnecessária a revisão da referida Lei de
Anistia, significando um visível retrocesso no que tange à reparação de um direito
humano violado.
Nesse sentido, passa-se ao estudo detalhado do caso em tela.
6.1
HISTÓRICO DO CASO
Imprescindível se demonstra, para o entendimento do caso, a compreensão
de todo o contexto histórico político que se transcorria em solos brasileiros.
Em 1.o de abril de 1964, o Brasil adentrou ao período chamado de Ditadura
Militar, quando então os militares vieram a tomar o poder político352 e instituíram um
regime ditatorial baseado, no que importa e este trabalho, na repressão de muitos
direitos humanos dos seus cidadãos – especialmente aos seus direitos políticos e
direitos de liberdade de expressão.
350
351
352
A lei veio a anistiar os cidadãos – funcionários públicos afastados de seus cargos; indivíduos com
direitos políticos cassados; ativistas presos ou no exílio – punidos por ações ou ideologias
contrárias à Ditadura. De acordo com a interpretação firmada na época e persistente até os dias
atuais, a lei também beneficiou os agentes de Estado acusados de violarem os direitos humanos.
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.o 153. Min. Relator: Eros Grau.
Os militares armaram um golpe de Estado que depôs o Presidente João Goulart
203
Acontece que, ao longo dos 21 anos do regime ditatorial militar brasileiro (de
1964 a 1985), houve períodos de maior e menor repressão e violência (conhecidos
como períodos de abertura e endurecimento), sendo que, a partir do Ato Institucional
n.o 5353, entre os anos de 1968 e 1974, – onde ocorreram as desaparições forçadas
das vítimas da Guerrilha do Araguaia –, o Brasil encontrava-se na fase ditatorial
conhecida como Anos de Chumbo, nomenclatura utilizada por conta da repressão
ter alcançado o mais alto grau do regime (onde até mesmo a tortura seria uma
prática constante).
Mesmo já presentes anteriormente, fora neste período que as guerrilhas
urbanas, contrárias ao regime, desenvolveram-se de forma intensa. Também, o partido
de oposição de maior representatividade nacional, o Partido Comunista do Brasil,
dividiu-se no Partido Comunista Brasileiro (PCB) – o qual acreditava no restabelecimento
da democracia por intermédio de meios pacíficos – e no Partido Comunista do Brasil
(PCdoB), cujos membros acreditavam que a ditadura só seria finalizada por meio da
luta armada.
Assim sendo, considera-se como feito público e notório o fato de que, a partir
de 1966, membros do PCdoB instalaram-se à margem esquerda do Rio Araguaia, no
sul do estado do Pará, instaurando, ali, a Guerrilha do Araguaia, cujo objetivo era
armar um exército popular de campesinos, com inspiração no processo revolucionário
da China, ocorrido entre os anos de 1927 e 1949.354
Apesar da inegável existência da Guerrilha do Araguaia, há imensos obstáculos
na compreensão dos detalhes das operações militares que lá se desenvolveram,
dificultando sobremaneira o esclarecimento dos feitos do presente caso e afetando,
notavelmente, a possibilidade da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em
individualizar as ofensas aos direitos humanos das vítimas e de seus familiares.355
353
354
355
Conhecido por AI-5, o ato fora responsável pelo endurecimento da censura no Regime Militar,
estendo a fiscalização prévia dos artigos e reportagens de imprensa, às letras de músicas, peças
teatrais e cenas de filme. Além disso, possibilitou que a ditadura mostrasse sua faceta mais cruel
contra os dissidentes e contrários ao Regime Militar.
ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. São Paulo: Vozes, 1996. p.196.
Demanda do Caso Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) contra o Estado brasileiro
(caso 11.552), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
204
Valoriza-se que essa situação – da impossibilidade de conhecimento dos
verdadeiros acontecimentos para com as vítimas – já configura uma violação dos
direitos humanos de seus familiares, uma vez que impossibilita o conhecimento à
verdade e as suas devidas reparações.
Apesar disso, segundo a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos356, e estimativa é que setenta pessoas participaram das ações de resistência
armada ao governo militar na região do Araguaia, sendo que aproximadamente sessenta
militantes foram mortos em combate, não sendo conhecida, até hoje, a localização
da maioria dos restos mortais dos combatentes.
Nesse contexto, em 1995, com base em um dossiê organizado pelos familiares
dos desaparecidos políticos, fora promulgada a Lei 9.140, contando com um Anexo que
listava 136 desaparecidos políticos, sendo que, dessas, sessenta e uma desapareceram
em virtude das operações militares contra a Guerrilha do Araguaia. Lembra-se que a
referida posição do Estado, em reconhecer os desaparecimentos em questão, possibilitou
aos familiares das vítimas, direito a reparações econômicas.
Acontece que, se de um lado, em 1995, o Estado brasileiro veio a reconhecer
os desaparecimentos políticos, por outro, algumas situações contribuem para a
manutenção, em segredo, de dados sobre todas as possíveis vítimas do massacre, tais
como: o modus operandi durante as operações militares contra a Guerrilha; a negativa
das Forças Armadas de fornecer informações sobre eventos ali ocorridos e documentos
oficiais que demonstrem suas atividades; e a promulgação, em 2005, da Lei n.o 11.111,
que dificultou o acesso a documentos públicos que, segundo os seus termos,
"contenham informações cujo sigilo seja imprescindível à suposta e outorgada
segurança da sociedade e do Estado", sendo que tal sigilo pode ser por um prazo de
trinta anos, renováveis por mais trinta.357
356
357
COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS. Disponível em:
<http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/desaparecidos/abert_desaparecidos.htm>. Acesso em: 17 maio 2011.
Em junho de 2011, o governo brasileiro iniciou uma série de debates visando o fim do sigilo
eterno dos documentos da ditadura militar. Ocorre que, até o fechamento desse estudo – julho de
2011 –, o impasse sobre a publicidade dos documentos encontra-se ainda incerto, não havendo
ainda, por parte do governo brasileiro, resposta definitiva sobre o fim do sigilo. Consequentemente,
até esse momento, os documentos encontram-se sob sigilo.
205
Mesmo com todas essas dificuldades, evocam-se três principais operações
contra a Guerrilha do Araguaia, quais sejam: Operação Papagaio, Operação Sucuri
e Operação Marajoara.
A primeira delas, conhecida como Operação Papagaio, iniciou-se nos últimos
dias de março de 1972, sendo que, entre abril e outubro do mesmo ano, um contingente
de aproximadamente quatro mil soldados fora mobilizado para tal operação. Nesse
momento, não existiam informações muito precisas sobre o contingente da Guerrilha
do Araguaia, sendo que os militares vieram a realizar sete prisões de membros do
PCdoB. Ocorre que, já aqui, ocorrera o desaparecimento da primeira vítima, aponta
como Jorge.
De acordo com as informações da Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos, perdoaram-se apenas as vidas dos primeiros capturados
políticos, uma vez que, já na segunda operação contra a Guerrilha do Araguaia,
conhecida como Operação Sucuri, entre meio e outubro de 1973, a ordem oficial
passo a ser a de exterminar os guerrilheiros, sepultando seus restos mortais na
selva358, sem possibilidade de identificação.
A última das operações, a Operação Marajoara, iniciada em sete de outubro de
1973, contou com a determinação do governo para que seus militares não mantivessem
prisioneiros, executando-os assim que pegos, sem a devolução dos cadáveres. Em
quatro meses de operação, os militares, a mando do governo, dizimaram a Guerrilha do
Araguaia, mas, como ocultavam os cadáveres, o governo não reconheceu a existência
de tal operação.359
Apenas após alguns anos, em 19 de outubro de 1993, é que houve uma
entrevista com o oficial da Aeronáutica, Pedro Cabral Corrêa, que afirmou que havia
pilotado um helicóptero que contava com corpos exumados para a incineração.
Provavelmente aí estavam alguns dos corpos exterminados no referido massacre.
358
359
Há registros que contam que os combatentes militares, a mando do governo, quando exterminavam
algum dos combatentes membros da Guerrilha do Araguaia, desapareciam com seus restos mortais,
mas os decapitavam e carregavam consigo essas cabeças para virem a apresentar, como troféus, a
seus superiores.
Imediatamente após o ocorrido com a Guerrilha do Araguaia, o governo militar determinou o
silêncio a respeito do episódio e a imprensa não publico absolutamente nada sobre o assunto, no
referido momento.
206
Assim, considerando todos os fatores supramencionados, não há a possibilidade
de identificação de todas as vítimas do caso, nem estabelecer com precisão, as
circunstâncias de desaparecimento de cada uma delas.
Ocorre que, apesar das dificuldades, dezesseis processos foram iniciados,
na jurisdição brasileira, por moradores da região e, devido às incertezas, os casos
foram conclusos sem a devida análise do mérito.
Mas, antes mesmo de tais processos, os primeiros esforços dos familiares dos
desaparecidos, em solos nacionais, foram desenvolvidos já no ano de 1977, quando
o arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, juntamente com uma comissão
de familiares de desaparecidos políticos, visitou o General Golbery. A princípio, o
General se comprometeu a dar uma resposta sobre o paradeiro de tais, em trinta dias,
mas, mais tarde, por intermédio do Ministro da Justiça da época, Armando Falcão,
relatou-se à imprensa que os referidos desaparecidos jamais haviam sido detidos.360
Mais tarde, em 1980, um grupo de familiares dos desaparecidos no Araguaia
visitou a região em busca de informações a respeito dos possíveis locais de sepultura
dos restos mortais de seus parentes, encontrando indícios de corpos no cemitério na
cidade de Xambioá e em cemitérios clandestinos em áreas próximas.
Então, em 1991, os familiares promoveram escavações no cemitério de
Xambioá, encontrando restos mortais de duas pessoas – um deles fora, em 1996,
identificado como os restos mortais de Maria Lucia Petit da Silva.
Avalia-se, ainda nesse ponto, a ocorrência de uma outra situação revoltante:
entre 29 de junho e 24 de julho de 1996, uma nova missão na região do Araguaia,
mais especificamente na reserva indígena Suruís, desenvolveu-se para oportunizar
o reconhecimento de novos restos mortais, mas, infelizmente, as sepulturas que ali
se localizavam haviam sido violadas e a maioria dos ossos, retirados. Momentos
depois, outras buscas foram igualmente realizadas, mas sem grandes sucessos.
Ademais, em dois de outubro de 2003, o Estado criou uma Comissão
Interministerial, por intermédio do Decreto n.o 4.850, com o propósito de obter
informações para localizar os restos mortais dos participantes da Guerrilha do Araguaia.
Tais trabalhos finalizaram-se em março de 2007, sendo que nada fora encontrado.
360
ARNS, Paulo Evaristo. Brasil..., p.65-66.
207
Mesmo sem sucesso na busca dos restos mortais dos combatentes da
Guerrilha do Araguaia e na falta de informações e esclarecimentos sobre o caso,
desenvolveram-se algumas ações em âmbito nacional relacionados com o fato.
A primeira delas, a Ação Civil n.o 82.00.24682-5 (Ação Ordinária para
a Prestação de Fato), inciou-se em 21 de fevereiro de 1982, pelos familiares de
22 desaparecidos no Araguaia, perante o 1.o Juizado Federal do Distrito Federal.
Solicitou-se a declaração de ausência dos desaparecidos, a determinação de seu
paradeiro e, se possível, a localização de seus restos mortais para que possam ter
um enterro digno.
Previsivelmente, sete anos após, em 27 de março de 1989, a ação foi declarada
extinta, sem julgamento de mérito, uma vez que o pedido mostrava-se jurídica e
materialmente impossível de ser cumprido. Após muitos recursos, com perdas e
ganhos para os familiares das vítimas, o caso chegou ao conhecimento do STJ que
entendeu que a sentença de primeira instância deveria ser restabelecida integralmente,
dando fim à causa e aos anseios dos familiares das vítimas.
Os parentes das vítimas ainda tentaram outras vias de natureza judicial,
sendo que, em 2001, as Procuradorias da República dos estados do Pará, São Paulo e
Distrito Federal instauraram Inquéritos Civis Públicos – n.o 1/2001, n.o 3/2001 e
n.o 5/2001, respectivamente – para recopilar informações sobre a Guerrilha do
Araguaia. Mediante tais informações colhidas, o Ministério Público Federal interpôs
Ação Civil Pública (n.o 2001.39.01.000810-5) contra a União Federal, para que fosse
cessada a influência das Forças Armadas sobre as pessoas que viviam na região do
Araguaia, objetivando, ainda, conseguir do Estado todos os documentos que contivessem
informações sobre as ações militares das Forças Armadas contra a Guerrilha. Em
primeiro grau, a União fora condenada, mas, com a interposição dos recursos
especiais e extraordinários por parte da União, não houve, ainda, a execução de tal
sentença – demonstrando, mais uma vez, que os direitos das famílias das vítimas já
foram lesados apenas pela demora na decisão final do feito.
Em resumo, os parentes das vítimas dos desaparecidos e dos executados da
Guerrilha do Araguaia têm impulsionado, desde o ano de 1982, de maneira independente
ou através de órgãos do próprio Estado, ações de natureza não penal, relacionadas
com a abertura dos arquivos das Forças Armadas sobre o referido caso, para saber
sobre as circunstâncias dos desaparecimentos forçados e execuções de seus familiares,
208
além da localização de seus restos mortais. Mas, até hoje, não fora permitido o
acesso e nem mesmo o conhecimento das verdades sobre o ocorrido.
6.1.1
A Lei de Anistia (Lei n.o 6.683/79)
A Lei de Anistia – vigente até o momento, uma vez que, em decisão recente
o Supremo Tribunal Federal entendeu que não feria a Constituição, esquecendo-se
dos valores supremos dos direitos humanos – fora sancionada pelo General João
Baptista de Oliveira Figueiredo, em 28 de agosto de 1979.
De acordo com o entendimento da referida Lei, encontra-se extinta a
responsabilidade penal de todos os indivíduos que cometeram "crimes políticos ou
conexos a estes", durante o período de dois de setembro de 1961 a 15 de agosto
de 1979.361
De acordo com a questão, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
em seu Informe Anual 1979-1980, assinalou que:
O Governo do Brasil informou que, em agosto de 1979, editou a Lei n.o 6.683,
mediante a qual se concede anistia a todos os que, no período entre 2 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram delitos de tipo políticos
e conexos a estes, assim como delitos eleitorais. A anistia cobre, também,
os que tiveram suspendidos seus direitos políticos, os servidores da
administração direta ou indireta de funções vinculadas ao Poder Público, os
servidores dos poderes Legislativo e Judicial, os militares e dirigentes e
representantes sindicais, apenados com fundamento em atos institucionais
e complementários. Concede-se, ainda, anistia aos empregados de empresas
privadas que, por motivos de participação em qualquer movimento reivindicatório
ou de reclamação de direitos regidos pela legislação social, foram despedidos
de seu trabalho ou destituídos de seus cargos administrativos ou de
representação sindical.362
361
362
Lei n.o 6.683/79, Art. 1.o: "É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02
de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram, crimes políticos ou conexo com estes,
crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da
Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos
Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos
com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. § 1.o Consideram-se conexos, para
efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados
por motivação política".
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Informe anual da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos 1979-1980. Washington, 1979-1980. Capítulo IV, A.
209
Teoricamente, a Lei de Anistia tinha como propósito principal, anistiar os
cidadãos que foram processados com base nas normas de exceção, aprovadas pelo
governo militar. Acontece que seu texto, como já se referiu, veio a incorporar o
conceito de "crimes conexos", beneficiando claramente os agentes do Estado
envolvidos na prática de torturas e assassinatos.
Em decorrência do referido absurdo, o Estado brasileiro reconheceu que a
investigação e a sanção penal dos responsáveis pelas desaparições forçadas das
vítimas e pela execução de Maria Lucia Petit da Silva estariam impossibilitadas por
conta da lei, uma vez que ainda se encontra vigente.
Por mais revoltante que soe, em decorrência da interpretação da Lei de Anistia,
vislumbra-se a absolvição automática de todas as violações de direitos humanos que
foram desenroladas durante os anos da ditadura, numa espécie de autoanistia
(quando o próprio governo concede anistia a seus integrantes), não cabendo sequer
às vítimas e/ou aos seus familiares, uma devida reparação de seus direitos violados.
Apesar desse quadro, deve-se frisar que os crimes de tortura e extermínio,
considerados ou não crimes políticos, não são passíveis de serem anistiados, uma
vez que são crimes contra a humanidade, como já se decidiu, em outros momentos,
nas cortes internacionais de direitos humanos.
Além disso, muito se debate sobre o fato de que as leis de anistia – não apenas
a brasileira, mas todas aquelas que, no mesmo período, desenvolveram-se nos
países latino-americanos –, além de violarem instrumentos internacionais, ratificados
posteriormente pelos Estados, violam também as normas imperativas de direito
internacional (jus cogens), as quais – entende esse trabalho, em concordância
com a doutrina majoritária – possuem valores supraconstitucionais, por abrangerem
temas indisponíveis.
O problema maior que se vislumbra na Lei de Anistia brasileira é a
consideração sobre crimes conexos, deixando margens a dúbias interpretações.
Mas, em concordância com os dizeres de Flávia Piovesan, deve-se, sem qualquer
dúvida, ser de tal forma compreendido:
[...] há que se afastar a insustentável interpretação de que, em nome da
conciliação nacional, a lei de anistia seria uma lei de 'duas mãos', a
beneficiar torturadores e vítimas. Esse entendimento advém da equivocada
leitura da expressão 'crimes conexos' constante da lei. Crimes conexos são
os praticados por uma pessoa ou grupo de pessoas, que se encadeiam em
210
suas causas. Não se pode falar em conexidade entre fatos praticados pelo
delinquente e pelas ações de sua vítima. A anistia perdoou a estas e não
àqueles; perdoou às vítimas e não aos que delinquem em nome do Estado.
Ademais, é inadmissível que o crime de tortura seja concebido como crime
político, passível de anistia e prescrição.363
Somada à problemática da interpretação do que vem a ser crimes conexos
está o fato de que a Lei de Anistia brasileira perdura até os dias atuais, revelando
um atraso político da sociedade, tendo em vista que a grande maioria dos Estados,
localizados geograficamente próximos ao Brasil, que também haviam editado uma
Lei de Anistia, já a revogaram por entenderem que hoje não mais perdura os
entendimentos, os contextos e muito menos os valores que basearam os textos das
referidas leis.
O Brasil teve a possibilidade de revogá-la, quando então a Ordem dos
Advogados do Brasil, por intermédio da ação de arguição de descumprimento de
preceito fundamental n.o 153364, Distrito Federal, alegou ser notória a controvérsia
constitucional a propósito do âmbito de aplicação da Lei de Anistia, questionando se
houve ou não anistia dos agentes públicos responsáveis pela prática de homicídio,
desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado
violento ao pudor contra opositores políticos ao regime, sendo que, caso tivesse anistiado
tais agentes, teria violado frontalmente os preceitos fundamentais do Estado.
Igualmente, alega a OAB que os atos de violação da dignidade humana não
se legitimariam com a reparação pecuniária concedida às vítimas ou aos seus
familiares, vez que os responsáveis pelos atos violentos estariam imunes ou acobertados
por seu anonimato. Requereu, finalmente, que a anistia da Lei n.o 6.683/7 não fosse
estendida aos crimes comuns praticados pelos agentes de repressão, contra opositores
políticos durante o regime militar.
Não se vislumbra um melhor momento para a revogação da Lei de Anistia,
quando então alguns entes da sociedade civil estavam ali questionando sobre a
363
364
PIOVESAN, Flávia. Direito internacional dos direitos humanos e lei de anistia: o caso brasileiro.
Revista da Faculdade de Direito da FMP, Porto Alegre, n.4, p.117, 2009.
A controvérsia constitucional estaria consubstanciada na divergência de entendimentos entre o
Ministério da Justiça e do Ministério da Defesa.
211
inferioridade da Lei de Anistia perante os preceitos fundamentais do Estado brasileiro.
Mas, infelizmente, o Supremo Tribunal Federal trouxe à tona um retrocesso indiscutível
no âmbito dos direitos humanos, quando entendeu que não seria hora de revogá-la,
uma vez que, segundo os dizeres do Ministro relator do processo, Eros Grau, não
caberia ao Poder Judiciário a revisão desse acordo político – competência exclusiva
do Poder Legislativo.
Mesmo que a compreensão do Poder Judiciário, no começo de 2010 tenha
sido a de sobrepor – erroneamente – outros valores aos mais supremos de todos –
quais sejam, os direitos humanos –, o caso sobre a Guerrilha do Araguaia já se
encontrava no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e em vias
de finalização. Como não poderia deixar de ser, ali, o entendimento fora contrário ao
da corte suprema brasileira.
O mais revoltante é que, se o caso ainda não estava findado na Corte
Interamericana de Direitos Humanos, na Comissão a questão sobre a Lei de Anistia
já havia adquirido contornos concretos, tendo a própria Comissão determinado que o
Estado brasileiro deveria adotar todas as medidas que fossem necessárias para
garantir que a referida lei não continuasse representando obstáculos para a persecução
penal de graves violações de direitos humanos, as quais constituíam, sem dúvidas,
crimes contra a humanidade. Referiu-se, também, ao fato de que a Lei de Anistia – não
apenas do Brasil, mas de todos os países da América Latina – seriam incompatíveis
com a Convenção Americana.
Infelizmente, em um ato de soberba e desrespeito aos direitos humanos de
todos os cidadãos brasileiros, o Supremo entendeu diferente – considerando plenamente
plausível a reafirmação da Lei de Anistia no contexto político e jurídico atual – e
revelou, mais uma vez, a sua mentalidade retrógrada.
Na verdade, o que se entende é que o Supremo, ao analisar apenas a
compatibilidade da Lei de Anistia com a Constituição de 1988, não se ateve,
perigosamente, ao fato de que, hoje, não se fala mais apenas em controle de
constitucionalidade de leis ou atos normativos, uma vez que, devido ao valor
inestimável dos documentos internacionais que versam sobre os direitos humanos,
212
fala-se, sim, em controle de convencionalidade365 – pautado, especialmente, nos
referidos documentos.
Nessa linha de raciocínio, presume-se que a Lei de Anistia não passaria pelo
referido controle, uma vez que o Brasil vem a ser signatário, em âmbito regional e
global, da maioria – se não de todos – dos instrumentos que garantem e protegem
os direitos humanos. E mais: estando a maioria desses direitos já presentes no
ordenamento interno, e condenado o Brasil já em âmbito internacional – no sistema
interamericano de proteção dos direitos humanos – caberia uma nova análise do
que fora decidido pelo Supremo sobre a Lei de Anistia.
Nesse sentido, passa-se ao estudo do caso no sistema interamericano de
direitos humanos, iniciado em sua Comissão.
6.2
O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Primeiramente, examina-se que o trâmite do caso inaugurou-se na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, na data de sete de agosto de 1995, quando
então viera a receber uma petição contra o Brasil, apresentada pelo Centro pela
Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pela Human Rights Watch/Americas, em
nome das pessoas desaparecidas no contexto da Guerrilha do Araguaia e seus
respectivos familiares.366
Mais tarde, em dez de janeiro de 1997, os peticionários originários solicitaram
a inclusão, como co-peticionários do caso, da Comissão de Familiares dos Mortos e
Desaparecidos Políticos, do Instituto da Violência do Estado (IEVE), e da senhora
Ângela Harkavy, irmã de Pedro Alexandrino Oliveira, um dos desaparecidos citados
na demanda.
365
366
O controle de convencionalidade encontra respaldo na normativa internacional, advinda de
tratados e convenções. Diz-se que quando um Estado submete-se, em plano internacional, a um
determinado documento, seu conjunto normativo inferior à Constituição deverá não apenas
respeitá-la (controle de constitucionalidade), mas também adequar-se às obrigações internacionais
do Estado (controle de convencionalidade).
Demanda do Caso Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) contra o Estado brasileiro
(caso 11.552), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
213
Ainda, em vinte de maio de 1997, os peticionários solicitaram a inclusão,
novamente como co-peticionário, do Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro.
A petição apresentada relatava, em suma, os seguintes pontos: o
desaparecimento de integrantes da chamada Guerrilha do Araguaia, entre os anos
de 1972 a 1975; a falta de investigação e punição das pessoas que deram causa
aos desaparecimentos; e a falta de informações acerca das campanhas militares,
realizadas para combater a guerrilha, sobre as circunstâncias de óbito dos combatentes
e sobre o paradeiro de seus corpos.367
Salientou a Comissão que a demanda referia-se à responsabilidade do
Estado em virtude da detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de, pelo
menos, 70 pessoas, cujas quais seriam membros do Partido Comunista do Brasil
(PCdoB) e camponeses da região. Entendeu ainda que tais atitudes resultariam de
operações do exército brasileiro, entre 1972 a 1975, objetivando erradicar, por completo,
a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar brasileira, empreendida nos
anos de 1964 a 1985.
Segundo os peticionários, o Brasil havia incorrido na violação dos direitos
humanos previstos nos seguintes artigos da Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem: artigo I (direito à vida, à liberdade, à segurança e integridade da
pessoa); artigo XXV (direito de proteção contra a detenção arbitrária); e artigo XXVI
(direito ao processo regular).
Compreendeu-se, igualmente, que o Estado brasileiro havia violado a
Convenção Americana dos Direitos Humanos em seus artigos 4.o (direito à vida),
artigo 8.o (direito às garantias judiciais), artigo 12 (liberdade de consciência e de
religião), artigo 13 (liberdade de pensamento e de expressão), e artigo 25 (direito
à proteção judicial), juntamente com o descumprimento do artigo 1.1 (obrigação de
respeitar os direitos).
Nesse quadro, em 21 de agosto de 1995, a Comissão acusou o recebimento
da petição e em 12 de dezembro do mesmo ano, remeteu os autos às partes,
solicitando que prestassem maiores informações sobre o caso.
367
Contestação do Estado brasileiro no caso n.o 11.552 (Caso Júlia Gomes Lund e Outros –
Guerrilha do Araguaia), da Corte Interamericana de Direitos Humanos, apresentada em 31 de
outubro de 2009.
214
O Brasil veio, em 26 de junho de 1996, responder à solicitação da Comissão,
informando que não haviam esgotados os recursos internos, estando em curso
regular a Ação Ordinária n.o 82.00.24682-5, criando-se, ainda, por intermédio da Lei
n.o 9.140/95, a Comissão Especial sobre Mortos de Desaparecidos Políticos
(CEMDP), reconhecendo 61 mortos na Guerrilha do Araguaia e estipulando o pagamento
de indenizações aos seus familiares, além da previsão da realização de buscas de
restos mortais no local do fato.
Em 16 de julho seguinte, a Comissão enviou uma cópia da resposta estatal
aos referidos representantes, solicitando que tecessem comentários – fato ocorrido
em 23 de agosto de 1996, sendo logo, em 19 de setembro próximo, remetidos ao
Estado brasileiro.
Assim, em sete de outubro do mesmo ano, celebrou-se, no âmbito do sistema
interamericano de proteção dos direitos humanos, uma audiência entre as partes,
onde os representantes da petição e o Estado apresentaram seus argumentos sobre
a admissibilidade do caso em tela.
Em nove de dezembro, os representantes solicitaram informações sobre o
interesse do Estado em procurar uma solução amistosa na questão. Então, em 13
de dezembro de 1996, a Secretaria da Comissão informou aos representantes que o
Estado não havia se pronunciado sobre a possibilidade de uma solução amistosa.
No ano seguinte, em 25 de janeiro de 1997, a Comissão recebeu informações
do Estado brasileiro, alegando, novamente, sobre o regular andamento da Ação
Ordinária n.o 82.00.24682-5, propugnando pela inadmissibilidade da petição em questão,
por falta de esgotamento dos recursos internos. Esta informação, então, fora remitida
aos representantes em 18 de abril de 1997.
Mais tarde, em quatro de março do mesmo ano, a Comissão celebrou,
novamente, uma audiência entre as partes, onde se apresentaram argumentos em
torno da admissibilidade da petição, ouvindo-se, na qualidade de testemunha, a
senhora Ângela Harkavy. Incansável, a Comissão ofereceu seus bons ofícios para
procurar uma solução amistosa e outorgou um prazo de trinta dias para que as partes
decidissem se desejavam recorrer a essa via. Nessa mesma ocasião, os representantes
apresentaram alegações escritas sobre o caso.
Então, em seis de março de 1997, o Brasil informou sobre as medidas que
vinham sendo adotadas, em cumprimento à Lei n.o 9.140/05, sendo que, logo na
215
data de 20 de maio, os representantes remitiram uma resposta ao Estado, que veio
a se pronunciar em 25 de julho, reiterando que inexistia relatório sobre as atividades
anti-guerrilha em posse das Forças Armadas e, ainda, que não dispunha de
informações completas sobre a localização dos restos mortais dos desaparecidos.
Entre a data de quatro de novembro de 1997, a 22 de abril de 1998, os
representantes remeteram informações à Comissão, tais como a declaração de um dos
sobreviventes da Guerrilha do Araguaia, além de informarem sobre a existência de
documentos militares com dados precisos sobre o paradeiro das pessoas desaparecidas.
Mais uma vez, em 31 de agosto de 1998, o Estado brasileiro reiterou as
informações prestadas em 25 de fevereiro de 1997 e requereu, novamente, a
inadmissibilidade da demanda por falta de esgotamento dos recursos internos e seu
consequente arquivamento. Tais informações foram transladadas em 1.o de setembro
de 1998, e em cinco de março de 1999, os representantes apresentaram suas alegações.
Finalmente, em seis de março de 2001, a Comissão expediu o Relatório de
Admissibilidade n.o 33/01, declarando admissível que o Brasil, segundo a descrição e
suas provas, tenha violado o artigo I, artigo XXV e artigo XXVI da Declaração Americana
de Direitos e Deveres do Homem, além dos artigos 1.o (1), artigo 4.o, artigo 8.o,
artigo 12, artigo 13 e artigo 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos,
passando à análise do mérito do caso.368
De tal maneira, em 16 de dezembro de 2004, a Comissão requereu que os
representantes apresentassem suas alegações sobre o mérito do caso, no prazo de
dois meses. Após várias solicitações de prorrogações, as alegações foram apresentadas
em 28 de novembro de 2006 e já em quatro de dezembro, foram enviadas ao Brasil.
Em maio de 2007, o Brasil apresentou declarações sobre as ações realizadas,
iniciadas no ano de 1993, com vistas a esclarecer os fatos ocorridos durante a
Guerrilha do Araguaia. Tal documentação fora recebida pela Secretaria Executiva da
Comissão no dia 22 de maio.
Ademais, a CIDH recebeu informações dos representantes – cujas quais
foram devidamente transmitidas ao Estado – nas datas de sete de julho e oito de
novembro de 2007, e 18 e 22 de abril de 2008.
368
Contestação do Estado brasileiro no caso n.o 11.552 (Caso Júlia Gomes Lund e Outros –
Guerrilha do Araguaia), da Corte Interamericana de Direitos Humanos, apresentada em 31 de
outubro de 2009.
216
Do Brasil, a Comissão recebeu sua manifestação em agosto de 2007, a qual
relatava, mais uma vez, que os recursos no âmbito interno não haviam sido esgotados
e que já estava promovendo, a partir da promulgação da Lei n.o 9.140/95, medidas
de reparação material e moral aos familiares das vítimas do caso.
O Estado brasileiro ainda informou, em setembro de 2007 e em janeiro de
2008, que seus entes internos encontravam-se realizando gestões necessárias junto
aos seus órgãos para o início da execução da sentença proferida no âmbito da Ação
Ordinária n.o 82.00.24682-5.
Ocorre que o Brasil não foi convincente em suas alegações e, muito menos,
provou que a reparação aos direitos humanos das vítimas e de seus familiares seria
suficiente em âmbito interno e, assim sendo, em 31 de outubro de 2008, a Comissão
expediu o Relatório de Mérito n.o 91/08, nos termos do art. 50 da Convenção,
determinando recomendações ao Estado e concluindo que:
O Estado brasileiro deteve arbitrariamente, torturou e desapareceu os membros
do PCdoB e os camponeses listados no parágrafo 94 deste Relatório. Além
disso, a CIDH conclui que, em virtude da Lei 6.683/79 (Lei de Anistia),
promulgada pelo governo militar do Brasil, o Estado não levou a cabo
nenhuma investigação penal para julgar e sancionar os responsáveis por
estes desaparecimentos forçados; que os recursos judiciais de natureza civil
com vistas a obter informação sobre os fatos não foram efetivos para garantir
aos familiares dos desaparecidos o acesso à informação sobre a Guerrilha
do Araguaia; que as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo
Estado restringiram indevidamente o direito ao acesso à informação desses
familiares; e que o desaparecimento forçado das vítimas, a impunidade dos seus
responsáveis, e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação afetaram
negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos.369
Além disso, a Comissão considerou que o Estado havia violado todos os artigos
referidos na petição apresentada pelos representantes das vítimas e determinou que
o Brasil adotasse algumas medidas: a) garantir que a Lei de Anistia não continuasse
representando obstáculo para a persecução penal de graves violações de direitos
humanos; b) determinar a responsabilidade penal pelos desaparecimentos forçados
das vítimas da Guerrilha do Araguaia, mediante uma investigação judicial completa e
imparcial dos fatos, visando identificar os responsáveis por tais violações e
sancioná-los penalmente, levando em conta que tais crimes não são suscetíveis de
369
Demanda do Caso Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) contra o Estado brasileiro
(caso 11.552), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, p.10.
217
anistia e, igualmente, são imprescritíveis; c) sistematizar e publicar todos os documentos
relacionados com as operações militares contra a Guerrilha do Araguaia; d) fortalecer,
com recursos financeiros e logísticos, os esforços já empreendidos na busca dos
restos mortais dos desaparecidos; e) outorgar uma reparação aos familiares das
vítimas, que inclua o tratamento físico e psicológico, assim como a celebração de
atos de importância simbólica que garantissem a não repetição dos delitos cometidos
no caso e o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelo desaparecimento das
vítimas e sofrimento de seus parentes; f) implementar, em prazo razoável, programas
de educação em direitos humanos permanentes dentro das Forças Armadas brasileiras;
e g) tipificar, no ordenamento interno, o crime de desaparecimento forçado, segundo
o disposto em instrumentos internacionais.370
O referido relatório fora transmitido ao Brasil em 21 de novembro de 2008,
concedendo-lhe prazo de dois meses para que implementasse as referidas medidas ou,
ao menos, informasse sobre as ações executadas com o propósito de implementá-las.
Após dois pedidos de prorrogações do prazo, em 24 de março de 2009, o Brasil
encaminhou à CIDH o primeiro Relatório Parcial de Cumprimento de Recomendações
e uma nova solicitação de prorrogação, por seis meses.
Como os representantes já haviam solicitado, em 22 de dezembro de 2008, a
submissão do caso à Corte, e tendo a Comissão entendido a falta de implementação
satisfatória, por parte do Estado brasileiro, das recomendações contidas no Informe
n.o 91/08, decidiu-se, durante seu 134.o Período Ordinário de Sessões, a submissão
do caso à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, na data exata de
26 de março de 2009.
A Comissão, ao submeter a questão à Corte, pontuou que o fato poderia
representar uma importante oportunidade para consolidar a jurisprudência interamericana
sobre as leis de anistia, em especial em relação aos desaparecimentos forçados e as
execuções extrajudiciais, revelando, ainda, as obrigações dos Estados em possibilitar
o conhecimento da verdade à sociedade, além de ter o dever de investigar,
processar e punir os violadores dos direitos humanos. Por fim, previu a possibilidade
da Corte afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia com a Convenção Americana.
370
Contestação do Estado brasileiro no caso n.o 11.552 (Caso Júlia Gomes Lund e Outros –
Guerrilha do Araguaia), da Corte Interamericana de Direitos Humanos, apresentada em 31 de
outubro de 2009. p.12-13.
218
6.3
O CASO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Como já dito anteriormente, a Comissão apresentou o Caso 11.552 à Corte
Interamericana de Direitos Humanos, em 26 de março de 2009, requerendo,
essencialmente, que o organismo responsabilizasse o Estado brasileiro pela detenção
arbitrária, tortura e desaparecimento dos membros do PCdoB e dos moradores da
região (listados como vítimas desaparecidas); pela falta de investigação penal para
julgar e sancionar os responsáveis pelos atos descritos, e também pela execução
extrajudicial de Maria Lucia Petit da Silva; pela falta de efetividade dos recursos
judiciais de natureza civil para obtenção de informações sobre o ocorrido; pela
restrição do acesso à informação por parte dos familiares das vítimas; pelos danos à
integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e executados e pela impunidade
dos culpados.371
Descreve-se, então, que a referida demanda fora notificada ao Estado e aos
representantes em 18 de maio de 2009, conjuntamente ao requerimento do
Presidente da Corte, referente ao recebimento dos depoimentos e pareceres das 26
supostas vítimas, de quatro testemunhas (duas propostas pelos representantes e duas
pelo Estado) e de cinco peritos (um proposto pela Comissão, dois pelos representantes
e dois pelo Estado).
O Presidente também convocou a Comissão, os representantes e o Estado
para a realização de uma audiência pública, em 21 e 22 de maio de 2010, durante o
LXXXVII Período Ordinário de Sessões da Corte, com o intuito de ouvir alguns
depoimentos que considerou relevantes ao desfecho do caso.372
371
372
Demanda do Caso Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) contra o Estado brasileiro
(caso 11.552), na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Corte recebeu oito escritos na qualidade de amicus curiae, sendo eles: a) Open Society Justice
Initiative, Commonwealthy Human Rights Initiative, Open Democracy Advice Centre e South
African History Initiative, relacionados ao direito à verdade e ao acesso à informação; b) Grupo de
Pesquisa de Direitos Humanos na Amazônia, relacionado com a Lei de Anistia; c) Ordem dos
Advogados do Brasil, Seccional do Rio de Janeiro, sobre os efeitos de uma eventual sentença da
Corte Interamericana e a decisão emitida na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n.o 153; d) Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão "Democracia e Justiça de
Transição", da Universidade Federal de Uberlândia, sobre a extensão da Lei de Anistia e a
importância do caso para a garantia do direito à memória e à verdade; e) Grupo de Pesquisa
"Direito à Memória e à Verdade e Justiça de Transição, da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, o Núcleo de Pesquisa e Extensão da Universidade Federal do Rio Grande, o
Movimento Nacional de Educação em Direitos Humanos e Acesso, Cidadania e Direitos
219
Então, em 21 de junho de 2010, a Comissão e o Estado enviaram suas
alegações finais escritas, além de terem os representantes as apresentado horas
após o vencimento do prazo – sem objeções –, mas admitidas pela Corte. Tais escritos
foram transmitidos às partes para a realização de observações sobre os documentos
anexados pelas outras, remetendo, ainda, documentos adicionais.
Adentrando às alegações das partes, pode-se dizer que o Brasil interpôs
contestação da demanda, vindo, em primeiro lugar, apresentar exceções preliminares.
No que tange às exceções preliminares373 do Estado, estas foram em número
de três, quais sejam: incompetência do Tribunal em virtude do tempo para examinar
determinados fatos, falta do esgotamento dos recursos internos e falta de interesse
processual da Comissão e dos representantes. Posteriormente, durante a audiência
pública, o Estado acrescentou uma nova exceção: a regra da quarta instância,
relacionada a um fato qualificado como superveniente.
Adentrando à primeira das exceções, atinente à incompetência temporal da
Corte Interamericana, o Brasil alegou que o referido órgão era incompetente para
examinar supostas violações ocorridas anteriormente ao reconhecimento de sua
competência, realizado em 10 de dezembro de 1998.
Por outro lado, a Comissão atentou ao fato de que a demanda se refere
unicamente às violações dos direitos previstos na Convenção Americana que
persistem depois do referido reconhecimento de competência, em razão da natureza
contínua do desaparecimento forçado, vindo a confirmar a competência da Corte
para o conhecimento da causa.
373
Humanos, o Grupo de Pesquisa "Delams-Marty: Internacionalização do Direito e Emergência de
um Direito Mundial", o Grupo de Pesquisa "Fundamentação Ética dos Direitos Humanos, a
Cátedra UNESCO/UNISINOS, O Curso de Graduação em Direito e o Núcleo de Direitos Humanos
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, sobre eventuais consequências desse processo na
justiça de transição no Brasil; f) Justiça Global, com respeito à incompatibilidade da Lei de Anistia
brasileira com a Convenção Americana; g) Equipe do Núcleo de Direitos Humanos do
Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, sobre o direito de
acesso à informação em poder do Estado; e h) Associação dos Juízes para a Democracia, sobre
o direito à memória e à verdade, com relação à Lei de Anistia.
Afirma a Corte que exceções preliminares têm a finalidade de obter uma decisão que previna ou
impeça a análise do mérito do aspecto questionado ou do caso em seu conjunto.
220
A Corte considerou parcialmente a referida exceção preliminar, entendendo
que não poderia exercer sua competência contenciosa para aplicar a Convenção e
declarar uma violação de suas normas quando os fatos alegados ou a conduta do
Estado fossem anteriores a esse reconhecimento, tendo excluído de sua competência
a alegada execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva. Entretanto, considerou
o caráter contínuo ou permanente do desaparecimento forçado de pessoas e entendeu
ter jurisdição para analisar tal ponto.
Adentrando à segunda exceção preliminar, sobre a falta de interesse processual,
entendeu o Estado brasileiro que já desenvolveu muitas ações para a reparação da
violação dos direitos humanos dos familiares e a falta de interesse processual dos
peticionários seria consequência do fato de que as referidas medidas, já adotadas
ou que ainda seriam implementadas, atendem integralmente seus pedidos.
A Comissão ressaltou que as referidas alegações do Estado brasileiro não
teriam características de exceções preliminares e, igualmente, os representantes
manifestaram-se sobre a insuficiência das medidas adotadas pelo Brasil.
A Corte veio a afirmar que as eventuais medidas adotadas ou em vias de
consolidação pelo Estado não repercutem no tema das exceções preliminares, devendo
ser relevantes quando da análise do mérito do caso. Assim sendo, desconsiderou
tal exceção.
No que tange à terceira exceção preliminar, acerca da falta do esgotamento
dos recursos internos, o Estado discutiu que a Comissão não atendeu a tal requisito,
uma vez que havia algumas ações pendentes, em jurisdição interna, sobre as questões
levadas a seu conhecimento. A Comissão, em sua defesa, referiu-se ao fato de que
o seguinte pressuposto foi devidamente analisado no Relatório de Admissibilidade
n.o 33/01, sendo que os três dos quatro pilares de argumentação do Estado são
posteriores ao referido documento. Também, os representantes afirmaram a ineficácia
dos recursos internos, aludidos pelo Estado, na reparação de seus danos.
Então, entendeu a Corte que a suposta falta de esgotamento dos recursos
internos deveria ter sido apresentada em um momento anterior, na etapa de
admissibilidade do procedimento perante a Comissão – fato não consumado pelo
Brasil. Igualmente, a Corte referiu-se, a partir dos argumentos das partes e das
provas apresentadas, à ineficácia e ao atraso injustificado dos recursos internos,
desconsiderando, então, essa exceção preliminar.
221
A última das exceções preliminares apresentadas, quanto à regra da quarta
instância, fora superveniente à contestação da demanda, tendo o Estado alegado
que o seu Supremo Tribunal Federal "declarou improcedente, por sete votos a dois,
a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.o 153", relativa à Lei de
Anistia, considerando-a necessária em um determinado momento histórico. Assim
sendo, o Estado questionou a competência da referida Corte Interamericana para
revisar decisões adotadas pelas mais altas cortes brasileiras.
Entre outros argumentos, os representantes entenderam que, apesar do
caráter subsidiário da jurisdição internacional, a análise do conjunto dos elementos
das violações continuadas aos direitos das vítimas e de seus familiares é essencial
para a responsabilização internacional do Estado.
Nesse aspecto, argumentou a Corte que a alegação sobre a quarta instância
foi interposta pelo Estado na audiência pública do presente caso, posteriormente à
apresentação do escrito de contestação à demanda, compreendendo, então, que a
sentença do Supremo Tribunal Federal, de 29 de abril de 2010, constitui fato
superveniente e, por esse motivo, a Corte encontra-se apta a pronunciar-se sobre a
alegação estatal.
Além disso, a Corte finalizou a argumentação estatal e desestimou tal exceção
preliminar, quando se referiu ao fato que não pretende um embate com o Supremo
Tribunal Federal, uma vez que, no sistema interamericano, pretende-se estabelecer
se o Estado violou ou não determinadas obrigações internacionais.374
Analisados tais pontos, a Corte passou à análise do mérito da demanda
proposta pela Comissão, baseando-se nos fatos alegados e nas provas admitidas pelo
referido Tribunal, tendo decidido pela demanda na data de 24 de novembro de 2010.
374
Como bem refere a Corte, na página 20 da Sentença sobre o caso: "No presente caso, não se
solicita à Corte Interamericana a realização de um exame da Lei de Anistia com relação à
Constituição Nacional do Estado, questão de direito interno que não lhe compete e que foi matéria
do pronunciamento judicial na Arguição de Descumprimento n.o 153, mas que este Tribunal
realize um controle de convencionalidade, ou seja, a análise da alegada incompatibilidade
daquela lei com as obrigações internacionais do Brasil contidas na Convenção Americana".
222
Na referida decisão, a Corte declarou que: a) as disposições da Lei de Anistia
brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos
humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, não podendo, além,
representar um obstáculo para a investigação dos fatos do caso em tela; b) o Estado
é responsável pelo desaparecimento forçado e pela violação dos direitos elencados
nos artigos 3.o, 4.o, 5.o e 7.o da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; c) o
Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à referida Convenção
Americana, interpretando e aplicando a Lei de Anistia também a graves violações de
direitos humanos; d) o Estado é responsável pela violação do direito à liberdade de
pensamento e de expressão, pela afetação do direito a buscar e receber informação,
bem como do direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido; e) o Estado é responsável
pela violação do direito à integridade pessoal, em prejuízo dos familiares indicados
no caso.375
Além disso, decidiu, por unanimidade que o Estado: 1) deve conduzir
eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente
caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais
e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja; 2) deve realizar
todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o
caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares; 3) deve oferecer o
tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram e, se for o
caso, pagar o montante estabelecido; 4) deve realizar as publicações ordenadas;
5) deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional
a respeito dos fatos do presente caso; 6) deve continuar com as ações desenvolvidas
em matéria de capacitação e implementar, em um prazo razoável, um programa ou
curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis
hierárquicos das Forças Armadas; 7) deve adotar, em um prazo razoável, as medidas
que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas
em conformidade com os parâmetros interamericanos. Enquanto cumpre com esta
medida, deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se
375
Demanda do Caso Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) contra o Estado brasileiro
(caso 11.552), na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
223
for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado
através dos mecanismos existentes no direito interno; 8) deve continuar desenvolvendo
as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a
Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos
humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma; 9) deve
pagar as quantias fixadas na presente Sentença, a título de indenização por dano
material, por dano imaterial e por restituição de custas e gastos; 10) deve realizar
uma convocatória, em, ao menos, um jornal de circulação nacional e um da região
onde ocorreram os fatos do presente caso, ou mediante outra modalidade adequada,
para que, por um período de 24 meses, contado a partir da notificação da Sentença,
os familiares das pessoas aportem prova suficiente que permita ao Estado identificálos e, conforme o caso, considerá-los vítimas nos termos da Lei n.o 9.140/95 e da
Sentença internacional em questão; 11) deve permitir que, por um prazo de seis
meses, contado a partir da notificação da presente Sentença, os familiares dos
senhores Francisco Manoel Chaves, Pedro Matias de Oliveira ("Pedro Carretel"),
Hélio Luiz Navarro de Magalhães e Pedro Alexandrino de Oliveira Filho, possam
apresentar-lhe, se assim desejarem, suas solicitações de indenização utilizando os
critérios e mecanismos estabelecidos no direito interno pela Lei n.o 9.140/95.376
Debate-se, finalmente, segundo os termos da própria decisão advinda da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, que o Brasil violou sobremaneira os
direitos humanos das vítimas e dos familiares daqueles que foram desaparecidos,
forçadamente, durante o período da Ditadura Militar. E, por mais que em solos
nacionais o entendimento – especialmente na interpretação da Lei de Anistia – seja
diferente, o Brasil encontra-se numa via de mão única na afirmação e concretização
dos direitos humanos, não podendo sobrepor, aos direitos humanos, os entendimentos
arcaicos de suas instituições jurídicas.
376
Demanda do Caso Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) contra o Estado brasileiro
(caso 11.552), na Corte Interamericana de Direitos Humanos, p.115-116.
224
6.4
REPERCUSSÕES DA SENTENÇA INTERNACIONAL EM SOLOS BRASILEIROS
Inquestionavelmente, a decisão da Corte Interamericana sobre o Caso 11.552,
publicada no dia 14 de dezembro de 2010, condenando o Brasil pelo desaparecimento
forçado de pessoas, além da violação de diversos direitos humanos, elencados na
Convenção Americana, representa, formalmente, um novo ânimo para a submissão
do Brasil aos valores supranacionais, elencados e traduzidos como direitos humanos.
Nesse sentido, o conceito de supranacionalidade não advém da Corte
propriamente dita, mas sim do teor de sua decisão, que guarda, sem dúvidas, respeito
e reparações às violações, cometidas pelo Estado brasileiro, dos direitos humanos.
Pelo seu valor inestimável, o Brasil já deveria cumpri-la, de maneira voluntária.
Mas, além disso, o Estado reconheceu a competência da Corte, em 10 de dezembro
de 1998 e, por assim ser, entendeu, igualmente, que, caso venha a ser condenado –
como esta e as outras questões levantadas neste trabalho –, deverá cumprir
cabalmente a referida condenação.377
Acontece que esse caso, infelizmente, repercutiu de maneira dúbia em solos
nacionais. Uma primeira corrente, que felizmente se sustenta pela supremacia dos
direitos humanos no cenário brasileiro, aplaudiu a referida decisão, e entendeu que,
segundo as palavras do então secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, "o Brasil
não pode ter qualquer dúvida de que cabe reexaminar e cumprir cuidadosamente a
decisão, que é irrecorrível. Cabe agora aos poderes públicos do Brasil, especialmente
ao Judiciário, promover ajustes das suas decisões anteriores"378.
Paulo Vannuchi acreditou, ainda, que o Supremo Tribunal Federal poderia,
por conta de tal condenação, rever sua postura no que tange ao seu entendimento
sobre a Lei de Anistia declarado na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n.o 153.
377
378
O recorte temporal desse estudo, no que tange ao cumprimento da sentença internacional do
Caso 11.552 pelo Brasil, é dado até o início de julho de 2011.
JOBIM reage à OEA e diz que país não punirá torturadores; Vannuchi defende cumprimento da
sentença do órgão. Jonal O Globo, em 15 de dezembro de 2010. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/12/15/jobim-reage-oea-diz-que-pais-nao-puniratorturadores-vannuchi-defende-cumprimento-da-sentenca-do-orgao-923301888.asp>. Acesso em:
05 abr. 2011.
225
O Itamaraty, também, divulgou uma nota favorável a tal decisão, ressaltando
a importância da referida sentença internacional e a obrigação do Estado brasileiro
em cumpri-la e implementá-la em solos nacionais.
No reconhecimento de tal sentença internacional, manifestou-se, ainda, a
Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, quando então, por intermédio de uma
nota pública, datada de 15 de dezembro de 2010, afirmou que a decisão posicionase pela repulsa aos crimes contra a humanidade, especialmente àqueles cometidos
pelos Estados contra seus próprios cidadãos. Ainda, parabenizou o trabalho do
sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, pelas elucidativas decisões.
Em termos de direitos humanos e fortalecimento da democracia.
Infelizmente, nem todos tiveram uma posição favorável à sentença. Nesse
sentido, o Ministro da Defesa, Nelson Jobim, ressaltou, logo em 15 de dezembro de
2010, que a decisão seria meramente política, não produzindo sequer efeitos jurídicos
no Brasil e nem sendo possível, como ela própria determina, a punição dos militares
que praticaram tortura no período ditatorial brasileiro. Disse ainda que já está se
cumprindo a sentença por intermédio de um Grupo de Trabalho do Tocantins para
localização dos corpos desaparecidos na Guerrilha e complementa suas declarações,
afirmando que, no ponto que tange à Lei de Anistia, a discussão não poderia ser
recolocada na pauta do Supremo Tribunal Federal.
Provando, ainda, o despreparo de algumas instâncias brasileiras no cumprimento
de sentenças internacionais, o então Presidente do STF, Cezar Peluso, afirmou que,
em referência clara ao ponto pertinente à Lei de Anistia, não revoga, não anula, não
cassa a decisão do Supremo.
Mas, sem dúvidas, a mais despreparada declaração fora a do Ministro Marco
Aurélio Mello, que afirmou que o direito interno, pautado na Constituição Federal,
deveria sobrepor-se ao direito internacional, sendo que a decisão sobre os direitos
humanos teria, apenas, eficácia política.
As posições supracitadas despertam um sentimento de revolta naqueles que
acreditam nos valores dos direitos humanos e no próprio Direito Internacional, uma
vez que, tendo o Brasil reconhecido a jurisdição da Corte Interamericana, o não
cumprimento da decisão advinda desse organismo seria uma afronta ao próprio
Direito Internacional e, mais ainda, um retrocesso na proteção e eficácia dos valores
226
mais elevados e de maior indisponibilidade de uma sociedade democrática, quais
sejam, os direitos humanos.
Julga-se, ainda, que caso o Brasil não venha cumprir a sentença do Caso
11.552 – como os fatos estão sinalizando –, o Estado incorrerá em uma nova
responsabilidade internacional, podendo dar ensejo a uma nova ação, na mesma
Corte, uma vez que deixou de efetivar os direitos humanos das vítimas e de seus
familiares, reconhecidos em um plano internacional.
Infelizmente, o Executivo, apesar de ter sinalizado positivamente ao cumprimento
da sentença internacional – quando então pagou às vítimas, de imediato, naquilo em
que fora condenado –, tomou a mesma posição do Judiciário, tendo em vista que, na
data de 17 de junho de 2011, pela primeira vez, o governo de Dilma Rousseff
admitiu que, apesar da Lei de Anistia não abranger aqueles delitos que violem os
direitos humanos, ainda assim, a referida lei é válida para todos os crimes cometidos
durante o período da Ditadura Militar brasileira, independentemente do entendimento
diverso da sentença advinda da Corte da OEA. Em nota, o Itamaraty assim divulgou:
Em parecer, Advocacia-Geral reforça entendimento do Supremo de que a
anistia vale para todos os crimes cometidos na ditadura e enfatiza que País
não precisa cumprir a sentença da OEA, que pedia punição de responsáveis
na Guerrilha do Araguaia. Sob Dilma, União reafirma decisão do STF sobre
validade da Lei da Anistia. Pela primeira vez no mandato da presidente Dilma
Rousseff, o governo afirmou que a Lei da Anistia não permite a punição de
envolvidos em crimes de tortura e violação de direitos humanos. Em parecer,
a Advocacia-Geral da União reforçou o entendimento já manifestado pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) de que a anistia vale para todos os crimes
cometidos durante a ditadura.379
Lastimavelmente, o Brasil está recorrendo-se de meios irracionais para sobrepor
sua posição perante decisões internacionais acerca dos direitos humanos, demonstrando
o total desconhecimento da sistemática do sistema de proteção interamericano dos
direitos humanos.
379
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Para governo, sentença da OEA não muda Lei
da Anistia. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/selecao-diaria-denoticias/midias-nacionais/brasil/o-estado-de-sao-paulo/2011/06/17/sob-dilma-uniao-reafirmadecisao-do-stf-sobre>. Acesso em: 20 jun. 2011.
227
Apesar do pouco tempo transcorrido desde a publicação da referida sentença
internacional, os direitos humanos não podem aguardar mais uma compreensão do
Estado brasileiro sobre a relevância de tais direitos, uma vez que como bem se observa
no âmbito da sociedade brasileira, nenhuma atitude, por parte dos poderes estatais,
fora tomada para o cumprimento da sentença do caso da Guerrilha do Araguaia.
Correlacionadas a este cenário, já em abril de 2011, pessoas e entidades
que trabalharam no processo do caso da Guerrilha do Araguaia, contando com a
adesão de cidadãos brasileiros e de outros Estados das Américas, enviaram uma
carta aos três poderes da República para exigir o cumprimento da referida sentença.
O documento, com mais de 600 assinaturas, fora enviada às presidências da República,
do Senado, da Câmara dos Deputados, do Supremo Tribunal Federal e ao procuradorgeral da República.
Até esse momento, julho de 2011, não se tem notícias sobre a resposta
dada ao documento, nem sequer sobre qualquer nova ação do Estado brasileiro que
vá de encontro às determinações da sentença do Caso 11.552. Infelizmente, já não
se cumpriu as determinações em tempo hábil, uma vez que, versando a questão
sobre direitos humanos, a urgência em sua efetivação deve ser, sempre, máxima.
Mas, ainda assim, por mais que o cenário demonstre-se caótico para o
cumprimento de seu integral teor, se o Brasil realmente defende os valores essenciais
de um Estado Democrático de Direito, e, em especial, os direitos humanos, não se
vislumbra outra saída – não apenas nessa questão, mas caso existam outras
condenações na Corte Interamericana – que o cumprimento da sentença internacional.
7
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Debatidas as principais questões levantadas contra o Estado brasileiro no
sistema interamericano de proteção dos direitos humanos – materializado, nesse
momento, na Corte Interamericana de Direitos Humanos –, julga-se necessária uma
última análise dos desafios do próprio sistema e, especialmente, das principais
mudanças que se demonstram imprescindíveis no papel brasileiro na implementação
da proteção dos direitos humanos em âmbito interno.
228
Valoriza-se que as críticas que aqui serão desenroladas não visam desmerecer
o sistema interamericano e nem a posição brasileira nessa conjuntura: sabe-se que
muitos avanços tornaram-se realizáveis apenas pela existência do referido sistema
e, da mesma forma, considera-se a posição do Brasil perante a implementação de
tal essencial para todo o seu desenvolvimento. Prevê-se, apenas, que alguns aspectos
realmente merecem uma especial atenção.
Assim sendo, inicialmente, adentrando aos pontos do próprio sistema
interamericano que ainda não se encontram aptos em sua plenitude, atina-se ao fato de
que o principal desafio da Organização dos Estados Americanos, hoje, é, sem dúvidas,
a definição de quais são as violações da democracia que permitem o desenvolvimento
de procedimentos e sanções, de acordo com a Carta Democrática Interamericana.
Explica-se: os direitos configurados no sistema de proteção dos direitos humanos
não podem se estender a questões que não sejam essenciais, característica inerente
aos próprios direitos humanos. Também, não se pode deixar de proteger e sancionar
eventuais violações dos direitos humanos em detrimento dos conceitos advindos da
normativa interna ou escusando-se por não haver previsão exata e expressa, da violação,
na Convenção Americana de Direitos Humanos. Essa tarefa é, obrigatoriamente, um
dos principais desafios ao sistema interamericano de proteção aos direitos humanos.
Outro alarmante problema, inerente ao sistema, é a questão do seu déficit
operacional: o referido sistema conta com limitadíssimos recursos financeiros para a
sua carga jurisdicional. Ou seja, acaba por ser praticamente um milagre o sistema
não ter entrado, ainda, em colapso. O que se sugere, nesse ponto, é que programas de
assistência monetária à Corte Interamericana sejam desenvolvidos pela OEA e por
organizações não-governamentais para a indispensável busca de fundos financeiros.380
Traça-se, ainda, o debate sobre a asfixia da Comissão e da Corte Interamericana
de Direitos Humanos, uma vez que, pela elevada demanda de casos e pelos poucos
recursos, a justiça tem se demonstrado cada dia mais retardada, contribuindo de
maneira expressiva para o jargão já recorrente nos Estados da América Latina:
justiça tardia é justiça negada.
380
ROMANO, Cesare. Can you hear me now? The case for extending the international judicial
network. Chicago Journey of International Law, Chicago, v.10, n.1, p.233-273, 2009.
229
Logicamente, existem ainda inúmeros outros debates para a melhoria do
sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, mas, inquestionavelmente,
consideram-se como os mais essenciais e urgentes os aqui referidos.
Passando-se, então, aos apontamentos sobre o caso brasileiro, a primeira
grande discussão que se observa é aquela que pretende uma legislação auxiliar na
implementação das sentenças internacionais que versem sobre direitos humanos.
Nesse sentido, ilustra-se o Projeto de Lei n.o 3.214381 (Deputado Federal Marcos
Rolim) e o Projeto de Lei n.o 4.667 (Deputado Federal José Eduardo Martins Cardozo)
que, mais tarde, fora alterado pelo Deputado Federal Orlando Fantazzini e foi, sem
dúvidas, o mais expressivo dos projetos. Aponta-se:
O Relator de 2006, Deputado Federal Orlando Fantazzini incluiu várias
alterações no projeto original, tendo sido estabelecido o caráter vinculante
das decisões e recomendações internacionais referentes a direitos humanos.
Ademais, no caso das medidas cautelares e provisórias da Corte Interamericana
de Direitos Humanos e também da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos foi ainda fixado o prazo de 24 horas para cumprimento. Na parte
indenizatória das decisões, a União teria 60 dias para cumprimento (teriam
natureza alimentar) e lhe seria permitido ingressas com ações regressivas
contra os responsáveis pelas violações e descontar eventualmente os valores
das indenizações do repasse das receitas a Estados ou municípios responsáveis.
O texto aprovado ainda sugere a criação de um órgão específico para
acompanhar a implementação dessas decisões internacionais.382
Investigadas, ponto a ponto, as implementações das condenações internacionais
de direitos humanos do Brasil, considera-se, indubitavelmente, a necessidade de
uma lei que preveja, internamente, modos de cumprimento das referidas decisões,
assim como organismos permanentes que vistoriem, dando-lhes, de fato, a eficácia
necessária para que o Estado seja considerado um referencial na proteção dos direitos
humanos. Infelizmente, o Brasil tem se demonstrado falho em efetivar condenações
internacionais apenas pela voluntariedade.
Além de toda essa problemática, na atualidade, a postura brasileiro que merece
uma maior análise crítica reside sobre a questão da medida cautelar, outorgada em
381
382
O referido projeto tratava sobre as indenizações, além de estipular a possibilidade de ações
regressivas contra pessoas físicas ou jurídicas que teriam realmente violado os direitos humanos
que deram causa à ação internacional.
SOARES, Guido Fernando Silva; CASELLA, Paulo Borba; CELLI JUNIOR, Umberto; MEIRELLES,
Elizabeth de Almeida; POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot (Orgs.). Direito internacional, humanismo e
globalidade. São Paulo: Atlas, 2008. p.466.
230
1.o de abril de 2011, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que requereu
a suspensão imediata do processo de licenciamento da usina hidroelétrica de Belo
Monte, no Rio Xingu, localizado no estado do Pará.383
No referido caso, os membros das comunidades indígenas da bacia do Rio
Xingu (PA)384 requereram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos a suspensão
da construção da referida usina hidroelétrica. O citado órgão acatou a solicitação de
medida cautelar, alegando que a vida e a integridade pessoal dos beneficiários da ação
estariam em risco pelo impacto da construção da usina hidroelétrica Belo Monte,
solicitando que o governo brasileiro suspendesse, imediatamente, o seu processo
de licenciamento e impedisse qualquer obra material de execução até que fossem
observadas as condições mínimas previstas na referida medida cautelar.
Ocorre que, diferentemente do que se esperava – especialmente por estar
se tratado de um Estado que possui, como seu preceito fundamental, a observância
dos direitos humanos –, a posição do Brasil foi a pior possível.
Em um primeiro momento, o Senado classificou como "absurda" a recomendação
da Comissão, que, segundo o entendimento de Flexa Ribeiro (PSDB-PA), estaria a
OEA adentrando à própria soberania do Brasil. Igualmente, o Ministério de Relações
Exteriores disse que as referidas medidas seriam "precipitadas e injustificáveis". Em
ambas as declarações, demonstra-se transparente o fato de que se levou em conta
somente a necessidade de tal meio energético ao Brasil, e não as suas consequências
aos direitos da própria sociedade.
Mas a posição de maior impacto, infelizmente, veio da Presidente do Brasil,
Dilma Rousseff, quando afirmou que, caso a Comissão não reveja suas medidas, o
Brasil deixará o órgão a partir de 2012 e, já 2011, deixará de repassar a verba à entidade,
prevista de aproximadamente US$ 800 mil.
Inquestionavelmente, a atitude do governo brasileiro é vergonhosa, demonstrando
um descaso para com o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e,
383
384
No momento da finalização desse estudo, os fatos, relacionados às medidas requeridas pela
Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao Estado brasileiro, encontravam-se em intermináveis
debates. Assim sendo, taxa-se, como recorte temporal desse ponto do trabalho, o início do mês
de julho de 2011.
São elas: Arara da Volta Grande do Xingu; Juruna de Paquiçamba; Juruna do "Kilómetro 17";
Xifrin de Trinceira Bacajá; Asurini de Koatinemo; Kararaô e Karayapó da terra indígena Kararaô;
Parakanã de Apyterewa; Araweté do Igarapé; Ipixuna; Arara da terra indígena Arara; Arara de
Cachoeira Seca; e as comunidades indígenas em isolamento voluntário da bacia do Xingu.
231
mais ainda, negando até mesmo os referidos direitos às populações indígenas por
dois motivos: primeiramente, por impossibilitar que sua vida se desenvolva às margens
do rio Xingu e, segundo – ponto que mais interessa nesse momento –, por negar-lhes
a possibilidade de socorrerem-se em organismos internacionais, uma vez que seus
direitos humanos violados não tiveram resposta em âmbito interno.
Preocupa-se, também, o fato de que a recusa do Brasil em acatar as
recomendações da Comissão possa, tristemente, enfraquecer a instituição, desmoralizar
a própria posição do Estado na defesa dos direitos humanos e, ainda, dar-lhe um
status de descumpridor de obrigações assumidas no plano internacional. A posição
do Brasil, na questão é, de fato, extremamente preocupante para todo o sistema
interamericano de proteção dos direitos humanos.
Acredita-se que para que um colapso no referido sistema não ocorra – devido,
especialmente, à posição hegemônica do Brasil no contexto teórico de proteção
interamericano dos direitos humanos –, a Comissão veio a afirmar, em maio de 2011,
que iria revisar as medidas cautelares impostas ao Estado.
Infelizmente, o que se esperava não era uma mudança de posição da Comissão,
mas sim da própria mentalidade governamental brasileira frente não apenas a esse
ponto, mas à proteção efetiva dos direitos humanos e à seriedade do sistema
interamericano de proteção dos direitos humanos como um todo.
Findadas tais considerações, em suma, deve-se pensar que o Estado
brasileiro – no que tange à efetivação de condenações internacionais de direitos
humanos no plano interno – e o referido sistema de proteção interamericano estão
em sua fase embrionária, necessitando de atenções especiais, críticas construtivas,
análise de modelos (cita-se, em especial, o sistema europeu) e incentivos de toda a
sociedade para que possam desenvolver-se melhor e mais rapidamente. Se assim
for feito, os institutos que hoje são sinônimos de incertezas serão modelos de proteção
e efetivação dos direitos humanos de amanhã.
232
CONCLUSÃO
Essa dissertação objetivou, especificamente, o estudo dos casos de violações
de direitos humanos, por parte do Estado brasileiro, que foram levados ao conhecimento
da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Ocorre que, para que se demonstrasse possível chegar até esse ponto
primordial do estudo, necessário se fez a análise de diversos outros institutos,
localizados em três grandes esferas que garantiram o suporte ao próprio título do
trabalho, sendo elas: organizações internacionais, direitos humanos e a consequente
interligação entre essas últimas na correlação entre os casos brasileiros de violação
dos direitos humanos e a Organização dos Estados Americanos.
Nesse sentido, alguns assuntos demonstraram-se indispensáveis para a
correta compreensão do trabalho, quais sejam: organizações internacionais – e todo o
conjunto que se compreende a partir dela; sentenças internacionais e a consequente
responsabilização dos Estados frente organismos internacionais; direitos humanos,
em suas mais diversas acepções; a proteção universal dos direitos humanos e os
sistemas convencional e não-convencional; os sistemas regionais de proteção dos
direitos humanos – sistema europeu, sistema africano, sistema árabe e, especialmente,
o sistema interamericano; as peculiaridades do sistema de proteção interamericano
dos direitos humanos, com especial enfoque à sua Comissão e Corte; e, finalmente,
o papel do Brasil diante do sistema interamericano e os casos envolvendo-lhe que
foram levados ao conhecimento da Corte.
Diversas conclusões, ao longo do estudo, foram detectadas e, nesse
momento, sintetizam-se da seguinte forma:
1. No que tange às organizações internacionais, exprime-se o fato de que
estas tiveram, de fato, seu desenvolvimento com a abertura dos sujeitos
de Direito Internacional Público para além dos Estados, baseando-se,
primordialmente, nos pilares de cooperação e solidariedade.
2. A origem das organizações internacionais acompanha todo um desenrolar
histórico, dividindo-se, didaticamente, em gerações. Como hoje se
concebem, as organizações surgiram no contexto pós Segunda Guerra
Mundial, por intermédio da necessidade dos Estados em compartilharem
233
de esforços comuns na busca pela paz e segurança internacional, tendo
como exponencial exemplo a Organização das Nações Unidas.
3. Segundo o seu conceito, sugere-se que as organizações internacionais
dependam da livre vontade dos Estados em associarem-se, tendo
seu surgimento vinculado à aprovação de seu tratado constitutivo.
As organizações, tais como os Estados, são consideradas como sujeitos
clássicos de Direito Internacional, possuindo vontade própria e um importante
papel no cenário internacional.
4. O desenvolvimento de uma organização internacional está intrinsecamente
ligado ao compartilhamento de soberania dos Estados no plano internacional,
em prol de objetivos comuns, no âmbito de uma determinada organização.
5. Para o atendimento da demanda internacional, desenvolveram-se duas
espécies de organizações: aquelas cujo processo decisório depende da
aprovação de seus membros (intergovernamentais) e aquelas cujo
processo decisório encontra-se acima dos seus membros, estando estes
submetidos às decisões (supranacionais).
6. Há, de fato, uma correlação entre o processo decisório das organizações
internacionais, seus órgãos jurisdicionais e a responsabilidade internacional
dos Estados, especialmente no que tange aos direitos humanos, uma
vez que quando determinada organização, por intermédio de seu órgão
jurisdicional, emite um ato internacional (decisão), condenando o Estado,
este incorre na responsabilidade internacional de seu cumprimento.
Caso o Estado não o cumpra, poderá ter a suspensão de certos direitos no
interior da organização e se a decisão versar sobre direitos humanos, e o
Estado não cumpri-la de plano, poderá ser duplamente responsabilizado
internacionalmente.
7. O problema que se vislumbra na eficácia das decisões dos órgãos
jurisdicionais internacionais é que, além de dependerem da livre vontade
dos Estados em fazer cumprir e internalizar suas determinações, não
há um conceito amplamente aceito pela doutrina que garanta sua
efetividade irrestrita.
8. Conclui-se que o estabelecimento da diferenciação entre sentenças
estrangeiras e sentenças internacionais é imprescindível para a compreensão
234
de todo o processo decisório internacional, tendo em vista que apenas
as sentenças internacionais caracterizam-se como atos internacionais,
advindos de órgãos jurisdicionais internacionais. Diferentemente delas,
as sentenças estrangeiras advêm de sistemas judiciários internos de
terceiros Estados.
9. Nesse estudo, a análise das organizações internacionais teve sua importância
atrelada aos direitos humanos, os quais, segundo sua natureza, não
podem ser entendidos sob um único prisma, dependendo de um foco
detalhado e complexo, a partir de seu histórico, iniciado já nos remotos
períodos da Grécia antiga.
10. Apesar de sua origem distante, os direitos humanos foram se adequando
de acordo com as demandas da sociedade, e por encontrarem-se em
constante mudança, guardam características essenciais que permitam
não apenas identificá-los, mas garantir-lhes uma posição de supremacia
no ordenamento jurídico que se fazem presentes.
11. A mais importante conceituação dos direitos humanos deve considerar,
impreterivelmente, a dignidade da pessoa humana – instituto indissociável
dos direitos humanos, uma vez que lhe garantem unidade e permanência.
12. Fica claro que a melhor maneira de se compreender a evolução dos
direitos humanos é mediante a análise dos períodos da história, sendo
que, apesar de sua origem remontar à antiguidade, fora, de fato, na Idade
Moderna que os documentos basilares para sua formatação se
desenvolveram (declarações inglesas, declarações norte-americanas e
declarações francesas) e, mais tardar, na Idade Contemporânea, que os
direitos humanos realmente adquiriram as configurações que hoje
apresentam – fruto especialmente da democracia e das diversas
revoluções que lhes molduraram.
13. Acredita-se que a forma mais eficaz de estudar os direitos humanos é
dividindo-os entre suas gerações, por conta dessas acompanharem, de
fato, os reclames sociais, a própria evolução dos referidos direitos e, mais
ainda, a consolidação desses na sociedade em que se desenvolvem.
14. Uma vez consolidados, os direitos humanos sofreram, por intermédio da
mudança dos conceitos de soberania clássica estatal e fruto do repúdio
235
das atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial, o importante
processo de internacionalização, que veio alterá-los definitivamente. Alterou,
também, o próprio Direito Internacional, que começou a preocupar-se com
o tratamento dispensado pelo Estado aos seus nacionais, guardando o
dever de proteção dos direitos humanos.
15. O marco na proteção e efetivação dos direitos humanos, em termos
recentes, fora o desenvolvimento, no âmbito da ONU, da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948. De fato, esse documento
representou a materialização de todos aqueles direitos conquistados e
confirmados ao longo dos tempos e, apesar de não ter um caráter
vinculante, pretendeu servir de base para os ordenamentos jurídicos dos
Estados. Teve importância exacerbada por dotar, definitivamente, os
direitos humanos de um caráter universal, indivisível e interdependente.
16. Uma vez que a referida Declaração não possuía caráter vinculante, fora
imprescindível o surgimento dos dois Pactos que, de fato, obrigavam os
Estados a respeitar e consolidar os referidos direitos em seu âmbito
interno. O Pacto dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foram absolutamente necessários
na imputação de uma responsabilidade internacional aos Estados
contratantes e, apesar de sua divisão por questões geopolíticas, não
trazem – e nem poderiam – uma divisão dos direitos humanos que ali
estão elencados.
17. Além dos processos de evolução e internacionalização, os direitos humanos
foram influenciados pela globalização, que, apesar de poder ser manejada
em proveito da proteção e efetivação dos referidos direitos, pode também,
infelizmente, ser utilizada para a dominação de uma cultura sobre a outra,
trazendo resultados reversos aos pretendidos pelos direitos humanos.
18. Advindo de todo o processo de surgimento, consolidação e efetivação
dos direitos humanos – a partir dos acontecimentos históricos, da
internacionalização e da universalidade –, decorre o processo de proteção
internacional desses, demonstrando-se indispensável a transposição
dos direitos humanos do plano teórico ao plano fático.
236
19. A proteção internacional dos direitos humanos é um instrumento essencial
na efetivação de tais direitos, encontrando-se sensível nos seguintes
sistemas: de petições, de relatórios e de investigações. Ocorre que a
referida proteção não é imposta, de plano, aos Estados, uma vez que estes
devem submeter-se a um determinado sistema de proteção internacional,
a partir da ratificação e internalização do documento internacional que
garanta a referida proteção.
20. Ressalta-se que o alegado sistema de proteção é subsidiário ao sistema
interno de cada Estado, uma vez que a responsabilidade primária em
proteger e efetivar os direitos humanos de todos os cidadãos é do próprio
Estado. Consequentemente, há a necessidade prévia do esgotamento
dos recursos internos – com algumas variáveis, como a demora em uma
resposta estatal, a não existência de recursos, entre outras – à demanda
no plano da proteção internacional dos direitos humanos. Não restam
dúvidas, assim, que há a compatibilização entre o plano internacional e
o plano interno de proteção dos direitos humanos.
21. Existem inúmeros entraves ao desenvolvimento do citado sistema de
proteção, atrelados à mentalidade dominante em algumas sociedades –
onde nem sequer a democracia se consolidou. Mas, inquestionavelmente,
avanços foram obtidos, especialmente quando se observa a possibilidade
dos indivíduos em demandarem nos foros internacionais de proteção
dos direitos humanos – atitude que, em um momento anterior, era
possibilitada apenas aos Estados.
22. Em termos gerais, o sistema de proteção divide-se entre o sistema
universal e os sistemas regionais. O sistema universal configura-se no
âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), dividindo-se, por sua
vez, nos mecanismos convencionais e não-convencionais de proteção
dos direitos humanos. Já o sistema regional divide-se, segundo sua
própria nomenclatura, nos seguintes sistemas: europeu, africano, árabe
e interamericano.
23. A compreensão do sistema universal é indissociável do entendimento da
própria ONU. Por mais que a proteção dos direitos humanos não seja um
ponto basilar em sua estrutura, criou-se, em seu interior, todo um aparato
237
indispensável para a proteção dos direitos humanos (documentos,
tratados, cartas, órgãos, entre outros).
24. Os mecanismos convencionais do sistema universal de proteção ordenam-se
em documentos internacionais específicos e autônomos, localizados no
interior das Nações Unidas, sendo obrigatórios aos Estados que os
aderiram, além de contarem com Comitês para fiscalização de seu
cumprimento. Já os mecanismos não-convencionais são os que decorrem
da própria Carta da ONU, de suas resoluções e de determinações de
seus órgãos, sendo obrigatórios a todos os Estados membros da ONU.
25. Quanto aos sistemas regionais, valoriza-se o sistema europeu de proteção
como o mais evoluído na efetivação dos direitos humanos. Baseando-se
na Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950, conta com um
tribunal onde os indivíduos podem demandar diretamente seus direitos –
grande inovação desse sistema. Apesar de seus méritos e contribuições
inestimáveis aos sistemas regionais de proteção, o sistema europeu
encontra-se em uma situação delicada, tendo em vista que o livre
acesso dos indivíduos ao tribunal sobrecarregou o sistema, resultando
em decisões cada vez mais tardias.
26. O sistema africano desenvolveu-se em meados dos anos 80, a partir da
ratificação da Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Conta com
uma comissão, uma corte e com um comitê. Apesar dos válidos esforços,
o sistema é vítima de inúmeros problemas, decorrentes, especialmente,
das incontáveis violações que assolam a África. Demonstra-se impossível
enumerar todas as questões que merecem destaque para que a
proteção e a efetivação dos direitos humanos no continente africano seja
uma realidade, mas, sem dúvidas, o desenvolvimento do referido sistema
de proteção tem contribuído para que a realidade venha a ser mais
digna, no futuro, ao povo que ali habita.
27. Já o sistema regional árabe é o mais recente dentre todos os sistemas,
baseando-se na Carta Árabe de Direitos Humanos. Observa-se que
esse não se encontra em funcionamento, uma vez que inexiste qualquer
órgão para fiscalizar as violações que ali ocorrem.
238
28. O sistema interamericano – focado sobremaneira nesse estudo –
localiza-se no seio da Organização dos Estados Americanos, notavelmente
na Comissão e na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Configurou-se
como um meio eficaz de proteção dos direitos humanos a partir da
ratificação, pelos Estados, da Convenção Americana Sobre Direitos
Humanos e de seu Protocolo Adicional.
29. Além de proteger e efetivar os direitos humanos, o sistema interamericano
participou exaustivamente na consolidação da democracia e da cooperação
na região, tendo em vista que seus próprios pilares estruturais baseiam-se
nesses institutos. Os Estados, que desse sistema fazem parte, devem
obedecer a todos os valores ali elencados e, para participarem de um
modelo de proteção ainda mais efetivo, devem anuir, expressamente,
com a submissão à Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso
seja essa sua vontade.
30. Contando com dois principais órgãos, o sistema interamericano
caracteriza-se, em suma, pela necessidade de um prévio crivo, pela
Comissão, aos casos que serão levados à Corte. Ou seja, o indivíduo,
nesse sistema, não possui um livre e irrestrito acesso ao órgão jurisdicional
(como ocorre no sistema europeu), sendo lhe disponibilizado, apenas, a
possibilidade de se levar a conhecimento da Comissão os casos de
violações. Por sua vez, será esta quem decidirá sobre a oportunidade ou
não da Corte conhecer e julgar o caso (segundo a análise de alguns
critérios previamente definidos), provando assim que o indivíduo ainda
não se encontra, nesse sistema, elencado como um dos sujeitos de
Direito Internacional – conceituação que abrange os Estados e as
organizações internacionais.
31. Por mais que o sistema interamericano tenha avançado na proteção e
efetivação dos direitos humanos, há pontos que ainda merecem um
especial destaque. Mais urgencial, talvez, seja o fato de que a sua Corte
depende, para exercer a jurisdição, da aceitação expressa dos Estados.
Em outros termos, paradoxalmente, um Estado que faz parte do sistema
interamericano pode não aceitar a jurisdição da Corte e, assim, seus
cidadãos não contarem com um meio de socorrer-se em um organismo
239
de cunho regional, caso haja violações de seus direitos em âmbito interno.
Nesse sentido, o sistema interamericano – para aqueles cidadãos de
cujos Estados não reconheceram a competência da Corte – carece, de
fato, de uma utilidade prática, estando seus direitos protegidos contra as
violações dos Estados apenas em plano teórico.
32. O Brasil sempre se demonstrou como uma força regional no progresso do
sistema interamericano de proteção e, nesse sentido, veio a submeter-se à
jurisdição da Corte em 1998, concebendo a tal reconhecimento a natureza
de cláusula pétrea. Dessa maneira, o ordenamento interno, em seus
mais variados recursos, encontra-se completamente compatibilizado
com a jurisdição internacional (sendo essa subsidiária à nacional), não
podendo, em uma determinada questão, valer-se o Brasil da escusa da
incompatibilidade com a norma interna para não fazer cumprir as
determinações da referida Corte.
33. O maior problema que se vislumbra no cumprimento das sentenças da
Corte pelo Brasil é o fato de que não há qualquer previsão legal sobre os
meios de internalização dessas e nem como se dará, em solos nacionais,
o desenrolar da efetivação de seus termos. Em outras palavras, o
cumprimento das condenações fica a cargo do livro arbítrio do Estado
brasileiro e, infelizmente, nem sempre a realidade que se desenvolve é
satisfatória àqueles que ganharam a demanda em plano interamericano.
Indispensável se demonstra a releitura dessa postura, não apenas em
fazer cumprir as sentenças, mas também na mudança do ordenamento
jurídico interno, uma vez que, sendo o reconhecimento da Corte cláusula
pétrea no ordenamento jurídico nacional, necessária se demonstra a
criação de leis que deem diretivas ao cumprimento das referidas condenações
pelo Estado brasileiro, garantindo-lhes segurança e eficácia.
34. O Brasil fora demandado, até 2011, por cinco vezes na Corte
Interamericana de Direitos Humanos, sendo que em quatro delas fora
condenado (Damião Ximenes Lopes; Arley José Escher e Outros; Sétimo
Garibaldi; e Julia Gomes Lund e Outros) a apenas em uma, absolvido
(Gilson Nogueira de Carvalho). Infelizmente, o que se observa nas
condenações é quase que uma postura padrão do Brasil, onde cumpre
240
as determinações pecuniárias dispostas nas sentenças, prevendo dotação
orçamentária para tal, mas esquece e escusa-se de fazer cumprir as
outras condenações, que versam em obrigações de fazer e/ou de
alterações das realidades presentes em âmbito interno.
35. A posição brasileira, até então, tem contribuído para o desenvolvimento
do sistema interamericano. A principal problemática reside no ponto de que
se em plano internacional o Brasil se demonstra um fervoroso defensor
dos direitos humanos, incorre em contradições no plano interno, tendo em
vista que, não cumprindo todas as determinações de suas condenações,
viola, duplamente, os direitos humanos e não merece, em solos nacionais
da forma que deveria, o sistema de proteção regional de que é parte.
36. Infelizmente, na conjuntura dos últimos acontecimentos, o futuro do
Brasil no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos não
se manifesta promissor, uma vez que o Estado não tem cumprido as
recomendações da Comissão e, pior, tem ameaçado retirar-se do
sistema, caso seja demandado na Corte. Mais alarmante é o fato de
que, com receio de perder a força regional, o sistema interamericano
tem se curvado perante a postura brasileira, revendo suas decisões para
que o Brasil não venha abandoná-lo. Advinda de tais atitudes, vislumbrase uma imaturidade na consolidação e na juridicidade do sistema, uma
vez que, em um sistema sério e eficaz, torna-se impensável curvar-se às
vontades de um determinado Estado e esse tem por obrigação jurídica –
uma vez que integra o sistema – e moral – pelo tema versar sobre
direitos humanos – cumprir as determinações advindas da jurisdição do
sistema de proteção dos direitos humanos.
Finalmente, avalia-se que o sistema interamericano de proteção dos direitos
humanos, por mais que tenha avançado na busca da proteção e efetivação dos direitos
humanos, tem muito que se desenvolver, especialmente na eventual possibilidade de
um acesso direto dos indivíduos ao sistema e, também, na maior jurisdicionalização
da Corte aos Estados que abrangem ao próprio sistema, devendo, de fato, findar com
a distinção entre aqueles que fazem parte apenas de outros organismos, excluindo-se
da submissão à Corte. Quanto ao Brasil, claro está que o Estado é, ainda, um
grande violador dos direitos humanos de seus cidadãos, contando com inúmeros
241
problemas sociais e, igualmente, com outras tantas questões inadmissíveis, desde
sempre presentes na justiça brasileira. Por mais que aceite a jurisdição da Corte
Interamericana, falta muito até o Brasil alcançar o postulado de pleno garantidor dos
direitos, em plano internacional, aos seus cidadãos, uma vez que, como bem se
analisou, o descaso para com as suas condenações em âmbito interamericano faz o
Estado incorrer em uma dupla violação. Indispensável de torna uma mudança da postura
brasileira frente à seriedade e primordialidade não apenas de suas condenações e
do próprio sistema interamericano, mas sim dos direitos humanos, que devem, por
obrigação do Estado, ser respeitados e efetivados acima de qualquer outro bem
jurídico. Só assim – e hoje, visivelmente, ainda não o é – o Brasil poderá ser
considerado um Estado Democrático de Direito defensor dos direitos humanos.
242
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252
ANEXO A
INVESTIGAÇÃO IN LOCO – COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS - OUT 1961-JAN 2010
continua
DATAS
LUGAR
1
22-29 outubro 1961
Rep. Dominicana
2
2 janeiro 1963
Miami, Florida
3
5-9 maio 1963
República Dominicana
Segunda visita de observação in loco
4
11 junho 1965 - 1 junho 1966
República Dominicana
Terceira visita de observação in loco
4-7 julho 1969
El Salvador
8-10 julho 1969
Honduras
6
22 julho - 2 agosto 1974
Chile
7
29 novembro - 7 dezembro 1977
Panamá
Primera visita de observação in loco
8
18 janeiro 1978
El Salvador
Segunda visita de observação in loco
9
16-25 agosto 1978
Haití
Primeira visita de observação in loco
10
3-12 outubro 1978
Nicaragua
Primeira visita de observação in loco
11
20 setembro 1979
Argentina
Visita de observação in loco
12
21-28 abril 1980
Colombia
Primeira visita de observação in loco
13
6-11 outubro 1980
Nicarágua
Segunda visita de observação in loco
14
3-6 maio 1982
Nicarágua
Terceira visita de observação in loco
15
7-9 maio 1982
Honduras
Visita ao campo de refugiados miskitos em
Mocorón
16
28-29 junho 1982
Estados Unidos Puerto Rico
Visita a centros de detenção de refugiados
haitianos na Florida e Puerto Rico
17
5-6 agosto 1982
Estados Unidos
Visita ao centro de refugiados haitianos no
Brooklyn, Nueva York
18
21-26 setembro 1982
Guatemala
19
2-8 janeiro 1983
México
20
12 junho 1983
Honduras - Nicaragua
Visita à Mosquitia de ambos países
21
20-24 junho 1983
Suriname
Primeira visita de observação in loco
22
6-10 maio 1985
Guatemala
Segunda visita de observação in loco
23
12-17 junho 1985
Suriname
Segunda visita de observação in loco
24
10-16 agosto 1986
El Salvador
Segunda visita de observação in loco
25
20-23 janeiro 1987
Haití
Segunda visita de observação in loco
26
15-19 febrero 1987
El Salvador
Terceira visita de observação in loco
27
5-9 outubro 1987
Suriname
Tercera visita de observação in loco
28
3-7 janeiro 1988
Guyana Francesa
29
25-28 janeiro 1988
Guatemala
Terceira visita de observação in loco
30
20-22 janeiro 1988
Nicarágua
Quarta visita de observação in loco
N.o
5
OBSERVAÇÕES
Primeira visita de observação in loco
Visita aos refugiados cubanos
Uma Comissão Especial permaneceu em
ambos os países até 25 de outubro de 1969
Visita de observação in loco
Primeira visita de observação in loco
Visita ao campo de refugiados guatemaltecos
em Chiapas, México
Visita aos campos de refugiados surinameses
253
continua
DATAS
LUGAR
31
2-30 abril 1988
Nicarágua
32
29 agosto - 2 setembro 1988
Haití
Terceira visita de observação in loco
33
13-16 dezembro 1988
Suriname
Quarta visita de observação in loco
34
27 febrero - 3 março 1989
Panamá
Segunda visita de observação in loco
35
6-12 maio 1989
Peru
Primeira visita de observação in loco
36
29 janeiro – 3 febrero 1990
Guatemala
Quarta visita de observação in loco
37
7-9 febrero 1990
Paraguai
38
17-20 abril 1990
Haití
Quarta visita de observação in loco
39
9-13 julho 1990
Panamá
Terceira visita de observação in loco
40
14-16 novembro 1990
Haití
Quinta visita de observação in loco
41
3-7 dezembro 1990
Colômbia
42
12-14 agosto 1991
República Dominicana
43
28 outubro - 1 novembro 1991
Peru
Segunda visita de observação in loco
44
4-6 dezembro 1991
Haití
Sexta visita de observação in loco
45
19-21 abril 1992
Perú
Terceira visita de observação in loco
46
27-30 abril 1992
Nicarágua
Quinta visita de observação in loco
47
4-8 maio 1992
Colômbia
Segunda visita de observação in loco
48
11-12 maio 1992
Perú
Quarta visita de observação in loco
49
2-6 novembro 1992
Guatemala
Quinta visita de observação in loco
50
17-21 maio 1993
Peru
Quinta visita de observação in loco
51
23-27 agosto 1993
Haití
Sétima visita de observação in loco
52
6-10 setembro 1993
Guatemala
Sexta visita de observação in loco
53
9-10 março 1994
Guatemala
Sétima visita a Guatemala para verificar a
situação das "Comunidades de Poblaciones en
Resistencia (CPR)"
54
16-20 maio 94
Haití
55
22-27 maio 94
Bahamas
56
24-27 outubro 1994
Haití
57
7-11 novembro 1994
Ecuador
58
1-5 dezembro 1994
Guatemala
59
7 dezembro 1994
Jamaica
Primeira visita de observação in loco
60
20-23 março 1995
Haití
Décima visita de observação in loco
61
3-5 maio 1995
Estados Unidos
Visita à Penitenciária Federal de Lompoc,
California, para verificar as condiciones de
detenção dos presos "Marielitos" cubanos
62
30 de maio 1995
Estados Unidos
Visita à Penitenciária de Leavenworth, Kansas
63
5-10 julho 1995
Guatemala
64
4-8 dezembro 1995
Brasil
65
26 abril 1996
Estados Unidos
66
12-18 maio 1996
Venezuela
N.o
OBSERVAÇÕES
Revisão de expedientes de ex-guardas
nacionais (1,834 casos)
Visita de observação in loco
Visita de observação in loco (preliminar)
Quarta visita de observação in loco
Oitava visita de observação in loco
Primeira visita de observação in loco
Nona visita de observação in loco
Primeira visita de observação in loco
Oitava visita de observação in loco
Nona visita de observação in loco
Primeira visita de observação in loco
Visita à Allenwood, Pennsylvania, verificação
das condições carcerárias dos presos "Marielitos".
Visita de observação da situação carcerária
254
conclusão
DATAS
LUGAR
67
15-24 julho 1996
México
68
9-10 dezembro 1996
Estados Unidos
69
28 abril - 2 maio 1997
Bolívia
70
16-20 junho 1997
República Dominicana
71
20-22 outubro 1997
Canadá
Visita de observação das condições dos
refugiados
72
1-8 dezembro 1997
Colômbia
Terceira visita de observação in loco
73
7-9 julho 1998
Estados Unidos
74
6-11 agosto 1998
Guatemala
75
9-13 novembro 1998
Peru
76
7-9 julho 1999
Estados Unidos
77
28-30 julho 1999
Paraguai
78
21-25 agosto 2000
Haití
79
6-8 junho 2001
Panamá
Quarta visita de observação in loco
80
7-13 dezembro 2001
Colômbia
Quarta visita de observação in loco
81
6-10 maio 2002
Venezuela
Visita de observação in loco
82
28-31 maio 2002
Haití
Décima segunda visita de observação in loco
83
24-29 março 2003
Guatemala
Décima primeira visita de observação in loco
84
18-22 agosto 2003
Haití
Décima terceira observação in loco
85
11-17 julho de 2004
Colombia
Quinta visita de observação in loco
86
1-3 setembro 2004
Haití
Décima quarta observação in loco
N.o
87
15-20 novembro 2004
OBSERVAÇÕES
Visita de observação in loco
Visita à Marksville e Amite, Louisiana, de
verificação das condições carcerárias dos
presos "Marielitos"
Visita de observação in loco
Quinta visita de observação in loco
Visita à Los Angeles e San Diego, Califórnia,
para estudar a situação dos trabalhadores
migrantes e suas famílias
Décima visita de observação in loco
Sexta visita de observação in loco
Visita a El Paso, Texas
Segunda visita de observação in loco
Décima primeira visita de observação in loco
Visita para observar a situação das crianças e
adolescentes ligados aos grupos conhecidos
El Salvador y Guatemala como "maras" ou "gangues"; e para conhecer as
condições de vida das pessoas privadas da
liberdade
Visita para observar a situação das crianças e
adolescentes ligados aos grupos conhecidos
como "maras" ou "gangues"; e para conhecer as
condições de vida das pessoas privadas da
liberdade
88
1-4 dezembro 2004
Honduras
89
12-17 dezembro 2006
Bolívia
Visita de observação in loco
90
9-13 junho de 2008
Bolívia
Visita para observar a situação das comunidades
em cativeiro do povo indígena guarani
91
1-5 dezembro 2008
Jamaica
Visita de observação in loco
92
17-21 agosto de 2009
Honduras
Visita de observação in loco
255
ANEXO B
CARTOGRAMA DE LOCALIZAÇÃO DA GUERRILHA DO ARAGUAIA
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