CORPO E SOCIABILIDADE - MARCAS CORPORAIS, GÊNERO

Propaganda
Departamento de Ciências Sociais
CORPO E SOCIABILIDADE - MARCAS CORPORAIS,
GÊNERO, SEXUALIDADE E “RAÇA” EM DIFERENTES
CONTEXTOS DE SOCIABILIDADE NA CIDADE DO RIO
DE JANEIRO.
Aluna: Aline Ferreira de Souza
Orientadora: Sônia Maria Giacomini
Introdução
A corporalidade pode ser uma chave para acessar o conhecimento de um grupo e um
caminho importante para entender uma cultura. Essa pesquisa realiza uma reflexão sobre o
corpo enfocando-o em duas dimensões: a primeira trata do corpo tal como é representado por
uma cultura, e a segunda o toma como vetor de conhecimento através da abertura produzida
pela sensorialidade, pelos sentidos. Uma dimensão, portanto, leva em conta uma construção
cultural, ao passo que a outra, determina a maneira como o corpo e o seu lugar ocorrem na
nossa transformação em atores sociais, na medida em que somos enraizados no mundo.
Tendo como foco e inspiração as reflexões de alguns teóricos sobre essa temática
simultaneamente a uma introdução em um olhar antropológico procurou-se identificar os
significados corporais, marcas, signos que permitem interpretar as relações estabelecidas entre
essas inscrições corporais e a sexualidade, gênero e raça em alguns contextos etnográficos,
diferenciando os indivíduos; identificando como na sociedade contemporânea os atores
sociais participam ativamente dessas intervenções, através de embates políticos que acionam
certas marcas corporais.
Essa pesquisa investiga a relação entre corpo e sociabilidade, refletindo sobre como
algumas marcas corporais são significativas e selecionadas entre muitas outras possíveis na
conformação do que é visto como um corpo ideal e que geralmente tem grande efeito nas
construções identitárias e na configuração de sujeitos coletivos. Parte-se de um entendimento
do corpo como algo construído pela cultura, participando de maneira fundamental do processo
de socialização (1), sendo a compreensão da maneira específica como tal processo ocorre um
aspecto privilegiado nesse estudo.
Nossa abertura é decorrente de nossa condição humana, corporal, através de cuja
abertura, sensorial, nos possibilita aprender através do sentido. Nascemos com
potencialidades e
recebemos de fora conjuntos de fundamentos e instruções que
apreendemos através do outro, que nos socializa, de modo que sem este, não conseguiríamos
discernir a nossa própria existência. Portanto, o outro se faz necessário para que a auto
existência seja percebida. Sem a mediação socializada e organizada pelo outro não há uma
capacidade de transformação do indivíduo, uma vez que não se nasce completo,ao contrário,
os indivíduos são completados pela cultura. A interação com o outro oferece um processo de
Departamento de Ciências Sociais
informação pela qual é estabelecida uma complementaridade ao indivíduo. A transformação
em ator social depende de um acesso ao sistema simbólico, sobretudo, a um significado. Na
verdade, torna-se um ator social quando há uma percepção de inclusão de valores de um
determinado lugar, dentro de um sistema simbólico. O simbolismo pertence ao corpo e
atravessa o corpo, transformando o indivíduo em ator social, moldando o corpo e o
construindo. Entretanto, sem o corpo aberto, a sociabilidade não poderia existir, uma vez que
o inacabamento causado pela ausência do outro, faz deste um estruturante do indivíduo. O
inacabamento que o outro causa no indivíduo, faz com que a sua presença seja fundamental.
O conceito que Le Breton (1) traz em sua discussão, refere-se ao laconismo corporal
como uma comparação estabelecida entre a palavra, a linguagem e a expressividade corporal,
uma vez que a gestualidade e a corporalidade são tidas como uma expressividade, não
funcionando exatamente como uma linguagem. O sistema simbólico oferece uma capacidade
de deciframento, sentidos e apreensão de sentidos, que decifram o outro no mundo a partir de
códigos, sem os quais não há possibilidades desse deciframento. A comunicação não é dada, e
para que ocorra é necessário um partilhamento de sistema simbólico, condição esta da própria
possibilidade de comunicação. No sistema simbólico, a noção de tempo-espaço é
fundamental, são determinadas estruturas fundadoras da comunicação, como o uso de
mímicas, por exemplo, bem como a postura, os gestos, ou seja, são matérias de uma
linguagem escrita no espaço e no tempo, que remetem a uma ordem de significações. Essa
gestualidade prolonga os sentidos e os significados já oferecidos pela voz e palavra, onde a
expressividade está sempre tida como uma expressividade corporal. Ela faz sugestões,
apontando direções, sem nunca estar preso a significados.
Para que a expressividade corporal possa atuar como uma comunicação, deve existir um
registro somático comum, onde se misturam percepções sensoriais, gestualidade, postura, etc.
O autor acentua a simbólica corporal oferecendo a cada cultura uma forma característica de
como se dá a especificidade da sua relação com o mundo, expressa no corpo. O modo como
esse corpo está construído e como terá o registro somático comum é o que permitirá a
comunicação. Esse registro somático comum está inserido em tudo o que envolve percepções
sensoriais, gestualidades, mímicas, posturas. Le Breton diz sobre o individuo que habita no
próprio corpo de acordo com as orientações sociais e culturais que o atravessa, voltando
posteriormente a representá-las segundo a sua maneira e o histórico pessoal. Cada ser tem
uma maneira de habitar seu corpo, incluindo todos os aspectos sociais e culturais, entretanto,
são representadas de maneira única segundo cada indivíduo.
O discurso e o encontro social são ressaltados pelo autor, tendo como destaque o aumento
da significação através da gestualidade, que na maior parte das vezes, o corpo está
aumentando essa significação sobre aquilo que está sendo dito e acompanhado pela palavra.
Essa forma comunicacional está interligada a uma afirmação de afetividade, e a matéria do
corpo não escapa do que seria tal afirmação através da comunicação. Compreender a
comunicação seria compreender também a maneira como um sujeito participa dela, uma vez
que participamos da comunicação com o corpo. Existem várias formas expressivas, que
podem ser enquadradas através de convenções sociais. Segundo Le Breton, a expressividade
corporal existe justamente através de elementos onde na transcrição da fala, desaparecem.
Departamento de Ciências Sociais
Toda comunicação pressupõe códigos partilhados da linguagem, destacando a forma
comunicacional, gerando o corpo imbuído, construído, sobretudo, ganhando formas
expressivas.
Se o código estivesse dentro do indivíduo como algo natural, existiria, portanto uma única
cultura, sem precisar do outro. A transformação em ser simbólico remete a uma inclusão
social, numa interação com o outro e sua cultura. A relação com o mundo é mediada por
símbolos e valores onde é dado significados as coisas.
Os autores estudados problematizam o corpo como lugar de crítica central colocando em
foco as condições sociais e os atores sociais, transformando- o em elemento político. A
reflexão da corporalidade é acompanhada de uma comparação diacrônica, uma comparação
que possibilita relativizar, e assim, desnaturalizar. Trata-se do corpo como sujeito criador de
um sentido antropológico, sendo um objeto de cultura, de um sujeito identificado pelo seu
corpo, não se tratando mais de uma separação do sujeito e do corpo, mas sim, de serem ambos
confundidos como um só.
A antropologia ajuda a pensar como o corpo pode ser visualizado em cada cultura,
entendendo-o além da sua dimensão física, sobretudo, como uma construção cultural ligada a
visões específicas do mudo. Pensar as singularidades culturais oferecidas pelas posturas,
pré-disposições, humores, e manipulação de diferentes aspectos do corpo. Por isso pensar a
cultura através do corpo é importante. Contudo, o significado que o cabelo remonta para cada
indivíduo, assim como para cada grupo, possui um dado expressivo, entretanto, para a mulher
negra, esse objeto de estudo, o cabelo, remete a uma luta contra o preconceito, e uma
resistência ao padrão dominante onde a imposição se dá como um modelo a ser seguido. O
cabelo está relacionado à trajetória de vida de cada mulher e das múltiplas identidades
adotadas por estas. A partir da estética negra é possível compreender as relações
étnico-raciais, assim como as escolhas individuais.
A abordagem de Karen Tolentino e Maria Clara Macellin, em “Manipulando cabelos e
identidades: um estudo com mulheres negras em Santa Maria-RS” (2) refere-se às diferentes
formas de manipulação do cabelo servindo para distinção de determinados grupos sociais,
demonstrando o fato de o cabelo estar relacionado à história de vida das mulheres
participantes do estudo.
Há no Movimento Negro um debate acerca da manipulação do cabelo, onde aquele que
adota suas origens utilizaria a forma natural, entretanto, ainda que este movimento afirme não
haver diferenciação, muitas mulheres que adota uma forma manipulada, sentem-se
diferenciadas. As diversas justificativas para a manipulação do cabelo estão imbicadas em
significados como classe social, estilo de vida, processo geracional, estética negra ou ao
mundo do trabalho.
Sobre os espaços utilizados para a realização da pesquisa, o Museu Treze de Maio
contrapõe-se ao Salão Angelita, pois este se refere à manipulação capilar e aquele, aos cabelos
“crespos”, black power e trançados. Sendo o Movimento Negro destituído de uma posição
homogênea quanto à manipulação do cabelo. Sobretudo, há uma inconstante em relação aos
Departamento de Ciências Sociais
cabelos “crespos”, como simbolizador da negritude, ou apenas moldado para uma melhor
representação de cachos. De qualquer forma, observou-se um aprisionamento da mulher negra
quanto à manipulação do cabelo, uma discriminação ao alisar ou um preconceito pela forma
natural de deixar o cabelo, sobre todo caso, há uma ausência da mulher quanto ao modo como
escolhe cuidar de si, mais especificamente, o cabelo, sendo este sempre uma pauta de debate.
O importante a ressaltar neste aspecto, está no sentido atribuído ao que se denomina
como "cabelo natural", uma vez onde sua definição varia de acordo com o local e grupo social
onde está sendo discutido. Segundo o grupo de mulheres entrevistadas no estudo de Karen
Tolentino e Maria Clara Mocellin, (2016) o "cabelo natural" relaciona-se a uma
conscientização negra, onde o black power e as tranças, são consideradas símbolos da
negritude. Essa estética capilar negra ganhou força e visibilidade também através do
movimento negro, visando à valorização da negritude. O black power ganha força quanto as
mulheres ao se apropriarem dele, ao compreenderem o sentido político e estético como um
cabelo afro, oferecendo assim uma autoestima. Este penteado requer um entendimento
referente ao que ele diz politicamente, lembrando que tal estética é alvo de preconceito. Há
uma diversidade dos meios como universidades, blogs, músicas, movimentos e outros
elementos, que reforçam a escolha do cabelo afro natural.
Geralmente as mulheres consideradas "alisadas" recorrem a esse tratamento no cabelo
muito devido às exigências dos ambientes formais, uma vez que integrantes do movimento
negro discursam contra determinada atitude, pois deixam de aderir ao “natural” para agredi-lo
quimicamente. O tipo de cabelo “crespo” ideal, segundo o estudo das autoras, são os cachos
definidos, frequente em integrantes do Movimento Negro. Percebe-se que a mulher na
verdade tem a possibilidade de articular, negociar e experimentar as diversas formas de
identidades, de acordo com seu ambiente, sendo, portanto expressado através das diferentes
formas que se manipula o cabelo, sendo este o referencial.
As mulheres trançadas são minoria nos ambientes de sociabilidade negra, sendo tratadas
como autenticas, uma vez que suas tranças atuam como uma marca da negritude. No ambiente
de trabalho, o cabelo liso assim como o cabelo “crespo” com manipulação química, é
aceitável por associarem a um cuidado feminino com a aparência. Todavia, destaca-se o fato
de que o público feminino na verdade, manipula seu cabelo de modo que possam jogar com
diferentes identidades. Há um ritual de “reafricanização” de uma estética focada na negritude
nos ambientes de sociabilidade negra, onde adereços negros como turbantes, batas e colares
aprimoram a imagem da mulher negra nesses lugares, sendo elementos como a música e a
dança intensificadores do movimento e ritmo africano, acima de tudo, desta forma, o ritual
trabalha com a interação entre os negros. Todavia, existem certas indicações que os lugares
direcionam a um determinado figurino, nos espaços de sociabilidade negra, o sentido é de
uma africanização, ao passo que o embelezamento para ambientes formais, o sentido é de
atenuação aos detalhes negros a fim de adentrar no padrão estético dominante do local,
atendendo a estes padrões estéticos.
Quanto às relações amorosas, o cabelo possui certa influência, o uso de uma tipologia
capilar e manipulação química associam-se ao intuito de conquistarem um parceiro. Na
Departamento de Ciências Sociais
escolha de um parceiro negro, muito se diz de um compartilhamento de negritude e uma
ancestralidade africana, onde neste caso, o cabelo atua como objeto de aproximação, sendo
este comum a ambos. Por outro lado, mulheres cujo parceiro é branco, realizam manipulações
químicas no cabelo devido a diferença capilar, e com isso, uma intenção de diminuir a
diferença, aproximando da estética branca.
Metodologia
Buscamos nas leituras realizadas abordar diferentes formas de compreender o corpo.
Adotando uma metodologia qualitativa, com a realização de observação participante em
alguns eventos, como os seminários feministas, ocorridos na semana da mulher na PUC-Rio,
foi observado o uso do corpo como expressão cultural de uma identidade negra por meio da
dança, onde esse corpo que estaria caracterizado por um tipo de gestualidade – “gestos fortes”
- é associado à liberdade. Nesse contexto, foi possível pensar esta dança como uma técnica
corporal no sentido explorado em “As técnicas corporais” de Marcel Mauss (3) onde
apresenta uma teoria a partir de uma exposição de discrição das técnicas corporais, pensando
essas técnicas como ações específicas, sobretudo ressaltando o fato de ser exigida uma técnica
a todas essas atitudes.
A argumentação de Mauss define como técnicas corporais as maneiras como os homens,
sociedade por sociedade, sabem servir-se de seus corpos. Conforme os homens utilizam seus
corpos, estes são construídos, de forma que o corpo é estabelecido como nosso primeiro
instrumento, atuando como base aos demais, sendo assim, todos os demais instrumentos passa
a imitar o corpo. Não é o corpo que usa instrumentos, pois ele é a conexão do sujeito no
mundo, e assim, através dele nos enraizamos no mundo. A descrição pura e simples das
técnicas corporais sempre parte do concreto ao abstrato, partindo da técnica tal como ela é, ou
seja, de uma desnaturalização. As técnicas moldam o corpo, ordenam os movimentos
corporais.
Ao fazer um movimento, seja através da gestualidade, corporalidade ou da técnica, faz- se
uso de uma estética, produzindo uma imitação, pois não é uma natureza humana que cada um
traz consigo, entretanto, uma imitação prestigiosa, pois se imita aquilo que mais se valoriza,
empregando uma positividade, pois não é imitado o que não se prestigia. O fator do prestígio
remete à natureza social da imitação a partir das técnicas corporais, pois não é imitada
qualquer coisa. Existe aquilo que é inconsciente e aquilo que é imitado. Sobretudo, o
elemento do prestígio fala de uma maneira profundamente social com um processo de
incorporação das técnicas. O fundamental é o fato de exigir para toda técnica, uma
aprendizagem, um ensino técnico, pois sua especificidade é o caráter para todas as técnicas,
aprendendo estas através da descrição. O autor apresenta as técnicas corporais como ato
tradicional que só tem sentido dentro de um grupo específico. Ao entender o corpo como
simbolizado, entende-se, portanto, que os seres humanos são seres simbólicos, não separando
a ideia de eficácia a partir de uma visão estritamente objetiva, separando assim, objetivo do
subjetivo, numa ideia de restituir ao corpo uma dimensão simbólica.
Mauss ao estudar os fatos sociais, não se prende ao abstrato, e através da reflexão sobre as
Departamento de Ciências Sociais
técnicas corporais, mostra estas como enraizadas no mundo social, presidido por valores. O
ritual, categoria antropológica, pode ser percebido na ótica das técnicas corporais como
procedimentos enraizados na vida social, e, portanto, atribuídas a valores. O social implica
nas técnicas na medida em que se realiza, dentro de uma infinidade, especificamente uma
técnica, considerando assim como uma imitação prestigiosa, que em sua maioria é
inconsciente, todavia, em termos de corporalidade humana, quase tudo é uma imitação.
Todos os sentidos estão abertos ao mundo, essas aberturas funcionam de diversas
maneiras, possuindo diferentes significados. Uma mesma ação possui significados distintos,
os atos tem uma conotação, são sociais porque são específicos, sendo partes do que se
denominaria linguagem. A linguagem corporal é algo aprendido, dependendo de códigos
partilhados onde a comunicação possa ser estabelecida. Dentro de uma sociedade, a maneira
de se comunicar ocorre de modos distintos em diferentes grupos, utilizando de aspectos
diferenciados do corpo, sendo como sinal distintivo, uma vez que o prestigio e as posições são
diferentes.
O conceito de Habitus refere-se ao que funciona como algo mais intrínseco ao corpo,
fazendo-se necessário um processo de desconstrução a fim de construir uma nova postura
segundo outras técnicas. A construção social é uma construção de habitus, constrói- se o
corpo na medida em que adquirimos o habitus. Este conceito é muito ligado à ideia de
imitação prestigiosa, cujos valores estão presentes, classificando pessoas e coisas segundo
determinadas referências. Trata-se em fundar o que seria a noção de natureza social do
habitus como algo inscrito no social, variando não só entre indivíduos e suas imitações, como
também de sociedade e suas implicações, conveniências, sobretudo, com os prestígios. A
ideia de homem total é a composição do homem em todos os elementos: psicológicos,
sociológicos e biológicos, sendo o corpo, uma síntese de todos os aspectos conjugados.
Segundo Mauss, apura-se o social a partir do individuo.
O fato social existe no individuo, embora para Escola sociológica Francesa, os indivíduos
contém parcialmente o social sem ser de forma completa, pois os indivíduos não são
igualmente socializados, deste modo, o social é muito mais amplo do que cada um
individualmente possa remeter. Para Mauss, o importante é o fato social vivido e sentido, e o
fato social só pode ser vivido e sentido pelos indivíduos. Nesta abordagem do social, o
indivíduo é importante. Não importa somente o fato registrado numa consciência coletiva ou
tampouco numa memória corporativa, a questão do corpo vai estar presente justamente pelo
corpo ser individual. Mauss pensa nas técnicas envolvendo uma construção corporal ligada ao
prestígio, associadas à natureza moral do social nos indivíduos e no coletivo,
fazendo parte de um processo de socialização onde o habitus é estabelecido como o exigido e
o adquirido. O que Mauss apresenta como uma ideia do natural associa-se ao corpo, não
existindo "maneira natural" no homem. A própria ideia de técnica dialoga com o fato de não
existir uma forma natural, uma vez entendendo-se não ser preciso aprender o que é tido como
natural.
Há uma compreensão da técnica como ato tradicional e eficaz, onde a ideia das técnicas
Departamento de Ciências Sociais
congrega três dimensões presentes no corpo: o ato técnico, o ato físico e o ato mágico
religioso. A natureza da técnica funciona como uma especificidade que requer uma tipologia
das diversas maneiras de atuar. As partes do corpo possuem significados diferentes,
conferindo um cuidado à determinada parte do corpo, atribuindo um sentido de ser aquela
parte um ponto positivado dentro de uma cultura.
Tratando de fatores simbólicos, os ornamentos que foram trazidos à reflexão por Anthony
Seeger (4), referindo-se à ornamentação de um órgão, relacionando ao significado simbólico
desse órgão numa sociedade. Uma sociedade revela através das características que escolhe
como diferenciação em relação à outra sociedade. Este entendimento fundamenta-se em seu
artigo, onde demonstra como os objetos usados pelas tribos Suyá são considerados
particulares justamente por se destacarem entre aos demais grupos com os quais mantém
contato.
A audição e a fala são faculdades sociais fundamentais e são complementares, porque
tanto os homens como mulheres e crianças são assim definidos socialmente. Aprender a falar
é um valor fundamental, e um ato social definidor, onde a oratória, estabelece "fórmulas
especiais" desempenhadas, de modo que a própria música Suyá é toda voltada para o vocal,
assim como o cantar tem suas significação, pois é o máximo da expressão oral individual e
coletivo. Para um homem adulto, há a importância do falar, cantar e orar como sendo
imprescindível, pois isso está ligado à liderança da qual os deveres principais são coordenar o
esforço grupal e resolver disputas através da oratória. Quanto à visão, esta deve estar
distanciada do significado simbólico dos olhos, pois é algo que não é simbolicamente
elaborado, porque não é a visão a elogiada, mas a sua acuidade. Ao tema da visão, existe a
questão dos feiticeiros, pois é a eles atribuída uma extraordinária visão, onde uma pessoa só
se tornaria feiticeiro quando seu feitiço invisível entrasse nos olhos, e isso só é possível se a
pessoa for uma pessoa imoral.
As faculdades essenciais para os Suyá são os olhos e o nariz, e assim, elaboradas com
ornamentos corporais. Os discos labiais estão relacionados à importância cultural que a
audição e a fala representam aos Suyá, sendo associados à certa agressividade. Esses
ornamentos são inseridos nos rituais de passagens e demarcam "status", as orelhas são
furadas por ambos os sexos quando estes apresentam seus primeiros sinais de atividade
sexual, portanto, orelha e lábios indicam quando esses indivíduos estão imersos no contexto.
O uso dos ornamentos corporais funciona como distribuição importante para grupos de sexo e
idade. O grande teor desses ornamentos não está posto como meros objetos sem fundamentos,
mas, carregam uma diversidade de sentidos que funda a coletividade e oferece a ela um
prosseguimento, onde uma vez que as orelhas perfuradas são na verdade como um marcador
comportamental, atingindo um comportamento ditos correto pela tribo. Estes ornamentos, é
de fato um marcador por excelência do que é a cultura Suyá, são os estágios que cada
indivíduo perpassa.
Em “Notas provisórias sobre a percepção social do corpo” (5) Bourdieu realiza uma
discussão sobre os investimentos na qual as questões sociais simbólicas são pensadas como
relações de poder. O corpo, enquanto forma perceptível se apresenta como uma manifestação
Departamento de Ciências Sociais
do indivíduo, que é considerado como expressão mais profunda, autêntica e genuína da
pessoa. A análise social de Bourdieu baseia-se no modo como os indivíduos revelam suas
partes essenciais como aquilo que pouco se consegue modificar, e, portanto, aquilo que mais
fala sobre eles.
Segundo o autor, corpo funciona como uma linguagem na qual, antes se é falado do que
aquele que fala, falando sobre o indivíduo como um depoimento falado e registrado dessa
forma perceptível. O corpo estabelece uma linguagem de “identidade natural”, ou melhor,
como uma identidade social naturalizada. O que parecia como uma construção surge como
natural, seja apresentada como vulgar ou como distinção natural. Naturalizada sobre forma de
vulgaridade, no sentido de considerar como se o indivíduo fosse naturalmente vulgar, tendo
uma forma perceptível onde supostamente revelaria o que há de mais profundo nele. E a
distinção natural, algo naturalizado, são as marcas corporais tendo significados específicos ora
de vulgaridade ora de distinção do corpo. Sobretudo, são sinais funcionando como marcas de
vulgaridade ou distinção que se naturalizaram, sendo na verdade, identidades sociais
corporais.
Na visão de Bourdieu, a construção corporal e a relação com o próprio corpo estão
ligadas. A relação existente entre o indivíduo e o próprio corpo é uma maneira particular de
experimentar a posição ocupada no espaço social. Através da relação com o corpo no espaço
social é apresentada uma forma de experiência de distanciamento entre o que seria o corpo
real e corpo legítimo. Entende-se como corpo legitimado o corpo modelo, tendo uma
variedade de características encarnado na figura, na estrutura, na moda, na política e em
diversos dispositivos da vida social. O corpo legítimo é determinado como um modelo ideal,
existindo sempre uma distancia entre esse corpo real e o corpo ideal, sendo uma espécie de
parâmetro através da qual se vive a experiência do próprio corpo. Quanto mais estiver
afastado do corpo ideal, maior o desconforto tido na experiência com este. Sendo a distancia
do corpo real e do corpo ideal não a mesma para todos, pois a relação com o corpo vai ser
diferente para cada um justamente por conta dessa distância entre ambos os aspectos. Quem
determina o belo ou o justo tem um poder simbólico de convencimento de acordo com seus
valores sobre a adesão do outro.
As propriedades corporais são percebidas através de categorias relacionadas à forma
como se dá a distribuição das classes de diferentes propriedades, como uma classe social
dominante numa sociedade, impondo sua vontade como padrão geral. Desta maneira, o belo,
o feio, o vulgar e o distinto produzem taxonomias a partir de índices mais recorrentes entre os
dominantes e dominados, considerando o vulgar ou o distinto, o grosseiro, o sublime, o belo e
o feio etc. A maneira como é elaborado a representação subjetiva do corpo e a própria
disposição corporal são obtidas através de um sistema de classificação social.
"O corpo socialmente objetivado vai ser um produto social que deve suas propriedades
distintivas às suas condições sociais de produção". O olhar social projetado sobre os corpos
não é uma expressão de um simples poder universal, mas sim, um exercício de poder cuja
eficácia está justamente no fato onde ele encontra no outro a adesão às suas próprias
categorias de aplicação. Dizer que determinado tipo de cabelo é feio, diz respeito a uma
experiência corporal, onde essa classificação do cabelo de qualquer feição corporal, não se
refere a uma expressão de olhar social remetido a um poder universal de objetivação,
entretanto, é um exercício de poder, uma categoria social cuja origem Bourdieu identifica
como uma relação de poder onde a eficácia é simbólica, dependendo de encontrar naquele que
aplica o reconhecimento das categorias de percepção. Dizer que determinada feição corporal é
feia ou bela, não significa dizer que se trata de um olhar social, mas está se identificando as
Departamento de Ciências Sociais
categorias de percepção, informando determinado formato corporal como feio ou belo.
Bourdieu ressalta um poder tido, cuja eficácia se encontra na adesão. E se essas formas
perceptíveis falam, supostamente, é o que se tem de mais essencial e profundo, mostrando o
que é visto do corpo de uma maneira real. É demonstrada uma projeção de expectativa com
relação às outras, conforme essas características se apresentam, ou seja, não é qualquer
informação que é dada. Afirmando o quanto o corpo está imerso nas interações.
O corpo alienado é pensado por Bourdieu como uma experiência oposta ao bem estar.
Quanto maior a distância entre o corpo real e o corpo ideal, maior a probabilidade da
experiência do corpo como incômodo, constrangimento, em contraposição ao bem estar,
reconhecimento e aprovação. A experiência do bem estar é uma espécie de indiferença ao
olhar objetivo do outro. Entretanto, Bourdieu diz em todas estas experiências, onde estas são
na verdade construídas, como não sendo naturais ou universais. Essas experiências com o
corpo não estão desvinculadas de maneira alguma com o lugar onde se ocupa no espaço
social.
A dominação do corpo e seus usos não exercem o seu efeito específico de possessão a não
ser quando o efeito é desconhecido como tal. A vergonha corporal se dá quando
reconhecemos aquilo como não aceitável dentro de determinado padrão. A aceitação é a
própria aversão. O corpo real e o corpo legítimo são construídos a partir de esquemas de
percepção. Em cada contexto esse esquema tem um conteúdo próprio.
É importante compreender a construção do cabelo como um sinal diacrítico, pois,
havendo uma intervenção sobre ele e, através dele, as legitimidades e posições sociais estão
em disputa. Deste modo, o tema do uso do cabelo, e seu significado na vida social através de
uma narrativa etnográfica descritiva, a autora, Nilma Lino trabalha os símbolos do corpo e do
cabelo como identidades negras (6), apresenta aspectos teóricos onde apropria- se de análises
antropológicas a fim de fundamentar o entendimento direcionado ao estudo do significado do
cabelo nesse contexto. A autora aborda o tema no contexto das relações sociais e raciais onde
o cabelo “crespo”, assim como o corpo negro, possuem significados específicos por estarem
situadas no centro do sistema de classificação racial.
Apreendendo aspectos do corpo e do cabelo como uma construção de representação
social da beleza negra, há uma reflexão sobre o modo como o negro se vê e como é visto pelo
outro, através da cor da pele e tipologia do seu cabelo. O cabelo “crespo” é pensado como
uma revalorização, que ainda apresenta contradições e tensões ao processo identitário,
entretanto, ressalta uma ancestralidade africana. A estética negra apresenta o cabelo e o corpo
por meio da cultura, onde o cabelo “crespo”, assim como o corpo negro, funciona como
suportes simbólicos de identidade, pois ambos constroem uma comunidade social negra,
política negra, elemento cultural negro, ideologia negra, sobretudo, aspectos proporcionados
por uma beleza negra. Deste modo, a autora justifica os aspectos do corpo e do cabelo como
jamais sendo considerados aspectos puramente biológicos.
O conflito está estabelecido a partir do suposto onde há o antagonismo qualitativo da
tipologia do cabelo do negro e do branco. Portanto, o negro mudar o cabelo expressa uma
tentativa de imersão a um lugar diferente do seu lugar, como uma negação, oposto àquilo que
naturalmente está demonstrado nele. Neste ponto, relembra-se Bourdieu (5) descrito acima,
Departamento de Ciências Sociais
no entendimento do corpo real e do corpo ideal, neste estudo Nilma apresenta no Brasil a
existência do branco como um padrão ideal, em oposição ao negro, tido como padrão real. A
questão aqui se direciona ao modo como esta tensão exprime o tratamento dado ao cabelo,
onde antes de ser ligado à estética ou à vaidade, o aspecto identitário é maior.
O cabelo não funciona como um elemento neutro no conjunto corporal, e também não
escapa de prováveis modificações pela cultura. Deste modo, o cabelo “crespo” é um sinal
marcante da negritude nos corpos, a identidade negra como uma construção social é
materializada, ou seja, corporificada. O significado do cabelo negro vem se modificando com
o passar do tempo, e a existência de um espaço onde o principal objeto é o cabelo, os salões
étnicos, é um atenuante desse conceito transformador, onde estabelecem uma
propriedade para ser debatidos assuntos de negros, e assim, o estigma social deste espaço
passa a ser símbolo de orgulho. Neste ambiente ocorre uma reprodução de existência da
comunidade negra.
Cada estabelecimento que trata do cabelo negro, possui sua própria forma e concepção
em relação à estética negra, as divergências não são puramente profissionais, todavia, há o
julgamento à denominação de uma "autenticidade étnica" como apresentação valorativa da
negritude. Sobretudo, os salões étnicos apresentam-se no centro de uma luta política e
ideológica, sendo aqueles pregadores de uma imagem positiva da negritude na sociedade,
onde, de um modo ou de outro, alimentam ou intensificam uma identidade. A autora
evidencia o “ser negro” no mundo ligado a uma dimensão estética, aparência corporal, à
afirmação, acima de tudo, ao modo de estar no mundo e como se colocar nele, trazendo de
volta as marcas africanas cuja identidade negra necessita destacar para apropriar-se no mundo.
Considerando os conceitos estudados e leituras realizadas, compreende-se a atuação do
cabelo como um objeto marcador da cultura estudada, onde não somente identifica uma
estética identitária, como afirma e forja uma determinada aparência coletiva. O cuidado
concedido ao cabelo revela a importância atribuída a ele na história e na luta negra. Alvo de
preconceito, de diversas maneiras, a imagem capilar, nunca disse tanto quanto na
contemporaneidade, participando das lutas de poder, fazendo parte dos jogos de poder.
Abordar o tema do cabelo, nesse contexto, atualmente, é tocar na liberdade de cada indivíduo.
O cabelo nunca foi tão pessoal e tão coletivo como nos dias de hoje. É sobre estas tensões que
trata este estudo.
Referências
1- Le Breton, David. 2009. As Paixões Ordinárias. Rio De Janeiro, Ed. Vozes.
2- Pires, Tolentino Karen e Mocellin, Clara Maria. “Manipulando cabelos e identidades:
um estudo com
mulheres negras em Santa Maria-RS” Revista Africa e
Africanidades-Ano 9- n21, Jan-abr.2016
3- Mauss, Marcel. 1974. As técnicas corporais. In Mauss. Sociologia e Antropologia.
São Paulo, EUP/ EDUSP, Vol.II, p. 209-233.
Departamento de Ciências Sociais
4- Seeger, Anthony. 1980 “O significados dos Ornamentos Corporais” In: Os Índios e
Nós: Estudos sobre Sociedades Tribais Brasileiras. Rio de Janeiro: Editora Campus.
5- Bourdieu, Pierre.. 1977. Notas provisórias sobre a percepção social do corpo. In
Actes de la Recherche en Sciences Sociales, número14, avril, p.51-54
6- Gomes, Lino Nilma. 2002 “Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra”
Download