A LITERATURA NA ERA DIGITAL Literature in the digital

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A literatura na era digital
Literature in the digital era
Resumo Este trabalho pretende responder à indagação “O que
pode o romance hoje, na época dos “bits”imateriais e da cultura digital?” Para tanto, lança mão de dupla estratégia crítica:
por um lado, examina algumas respostas a ela propostas por
críticos literários; por outro, examina alguns romances de Enrique Vila-Matas, notadamenteO mal de Montano (2002), Paris
não tem fim(2003) e Dublinesca(2010), que são considerados de
modo imanente. Nesse tenso movimento analítico, que pode
recordar a construção de uma (frágil) constelação, as respostas
fornecidas pelos críticos são confrontadas com a experiência
atual da construção literária e com o universo de tais romances, sempre com a esperança de que tal contraste seja capaz de
revelar os impasses e problemas enfrentados atualmente pela
criação literária. Nesse percurso, desponta ainda umobjetivo
complementar, mas necessário: o deidentificar e interpretar os
diversosmodos e procedimentos literáriosa que esses romancesrecorrem a fim de elaborarem, em seus frágeis corpos, uma
concepção literária sobre sua situação objetiva em um mundo
que lhes é francamente hostil. Nessa perspectiva, o tema da
morte da literatura, que comporta diferentes nuances e ocupa o
primeiro plano, pode ser interpretado como uma determinação
social para a criação literária atual, ainda que esta o explore de
modo irônico; ou antes, como maneira de construir uma forma
de resistência literária à concorrência que os novos meios expressivos oriundos de sofisticados aparelhos tecnológicos de
produção e distribuição de sons e imagens impõem a ela, fato
que restringe objetiva e constantemente o públicoleitor. A conclusão, também não sem alguma ironia, aponta para um fato
esdrúxulo e anacrônico: na sociedade atual, “certos mortos gozam de boa saúde”.
Palavras-chave Literatura; era digital; Walter Benjamin; Enrique Vila-Matas.
AbstractThis work aims at answering the following question:
“What are the novel’s possibilities today, in these times of immaterial ‘bits’ and digital culture?”To do so, it makes use of a
doublecritical strategy: on the one hand,itexaminessome answersproposed byliterary critics; on the other, it examines some
of Enrique Vila-Matas’ novels, notably Montano’s malady(2002),
Never any end to Paris(2003), andDublinesque(2010), which are
immanently considered. In this tense analytic movement, which
Renato Franco
FCL – Universidade Estadual
Paulista - Araraquara (FCLUnesp Araraquara)
[email protected]
may recall the construction of a (weak) constellation, the answers provided by critics are
confronted with the actual experience of literary construction and the universe of such novels, always in the hope that such a contrast
may reveal the dilemmas and problems currently faced by the literary production. Along
the way, a complementarybut necessary goal
emerges: to identifyand interpretthe various
literarymodesand proceduresthesenovelsresortto in order to drawontheir fragilebodiesa
specificallyliteraryconceptabout their objec-
tivesituationin a world that is downrighthostile
to them. In this perspective, the subject of the
deathof literature, comprising differentnuancesandoccupying the foreground, can be interpreted asa
social determinationto produce the current literary
creation, althoughexploring itsoironically; or rather, as away of buildinga kind of literaryresistanceto
thecompetitionimposed by the newmeans of expressioncoming fromsophisticatedtechnological
devices for the productionand distribution ofimagesandsounds, a fact that objectively andconstantlyrestrictsreadership. The conclusion,equally
notdevoid ofsome irony, points toa freakandanachronistic fact: in today’s society, somedeadenjoy
good health.
Keywords Literature; digital age; Walter
Benjamin; Enrique Vila-Matas
Em um mundo onde a bioengenharia está criando super-homens,
criaturas de difícil definição, onde
a virtualidade substitui a suposta
realidade, onde os imateriais bits –
como são chamados – substituem
os átomos, o que pode fazer ou ser
o romance? (MAGRIS, 2009)
Introdução
V
ários pesquisadores e críticos literários
manifestaram, durante o século XX e
no início deste, profunda inquietação
quantoà situação da arte e da literatura no
contexto da passagem dacultura letrada à
cultura da imagem, marca de nossa época.Em
geral, temerosos,indagaram como a literatura
e a arte poderiam sobreviver diante do novo
poder das imagens, já que uma e outra não
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operam diretamente com estas. A pergunta,
como é óbvio, aponta,em geral,para uma resposta implícita que suscita a disseminação do
desalento e do pessimismo entre todos aquelesdiretamenteenvolvidos com a vida artística
e literária. Não foram poucos os que, nesse
novo cenário cultural, alardearam a morte da
literatura. Leyla Perrone-Moisés apontou alguns deles:
Ao longo do século 20, grandes teóricos falaram do fim da literatura.
Valéry declarou o fim do romance
quando disse que não se podia mais
escrever “A marquesa saiu às cinco
horas”. Sartre, em 1948, terminava seu “O que é a literatura?” com
uma advertência: “Nada nos garante que a literatura seja imortal […]
O mundo pode muito bem passar
sem a literatura. Mas pode passar
ainda melhor sem o homem”. Maurice Blanchot mergulhou a fundo
na questão e concluiu, em 1959:
“A literatura vai em direção a ela
mesma, em direção à sua essência,
que é o desaparecimento”. E Roland Barthes, em seu último curso,
de 1979, lamentava: “Algo ronda a
nossa história: a morte da literatura”. (MOISÉS, 2011, p.).
Poderíamos acrescentar a essa lista outros nomes, como o do escritor espanholLuis
Goytisolo que, em 1995, discursava sobre “a
influência da imagem na narrativa espanhola”, não sem antes alertar para o fato de que
a sobrevivência da literatura estaria ameaçada, não por causa do talento dos escritores,
mas por conta da falta de interesse dos
leitores jovens por obras não direcionadas
prioritariamenteao entretenimento, transformado em um valor em si mesmo e em
novo fetiche pelo mercado cultural globalizado. Neste, o esforço requerido pela leitura
não seria mais tolerado, como, aliás, quase
tudo que demanda esforço, disciplina, concentração. Segundo Javier Rodríguez Mar-
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cos (2013), Johathan Franzen também chamava a atenção para problema semelhante
nos EUA na mesma época em que Goytisolo
identificava a ameaça de morte que rondava
o universo literário europeu. Ele sustentava
que a narrativa – ou o romance, se preferirmos – estava condenada ao desaparecimento graças ao prestígio adquirido pelo cinema,
pela televisão e demais meios audiovisuais,
que promoviam o soterramento dessa forma
tradicional de prosa literária.
Entretanto, outros estudiosos da literatura ou da arte não se deixaram intimidar
por essa transformação, ou não viram nela
a presença de uma ameaça real. A teóricaargentina Beatriz Sarlo (2010), por exemplo,
sustenta ser esta visão resultante de uma espécie de inversão histórica, ou de uma ilusão
de ótica, pois o aparecimento da supremacia
da imagem na vida cultural, de modo algum
caracterizaria uma novidade radicalporque
isto já teria ocorrido em períodos históricos
anteriores à invenção da imprensa e do jornal
diário, que se disseminaram amplamente em
quase todos os lugares apenasapós o século XIX. Nesta perspectiva, a novidade maior
desse período da modernidade teria sido justamente o aparecimento da “primazia das letras”, possível graças à invenção de determinados aparelhos tecnológicos de reprodução
da escrita. De modo análogo, sugere ainda a
autora que a novidade do século XX não reside diretamente no delineamento da hegemonia da imagem, mas, antes, no aparecimento
de uma série de instrumentos tecnológicos de
reprodução em larga escala da imagem e do
som, “sobretudo com a TV, quando se inaugura a simultaneidade do som e da imagem”,
que “reorganiza o consumo cultural das massas”. (SARLO, 2010)
O fato novo que determinaria profundas
transformações na experiência cultural, ainda
segundo a argumentação de Sarlo, resultaria
das características desses novos aparelhos
tecnológicos de reprodução e de comunicação, como o rádio, capaz de causar grande
impacto social ao criar a transmissão ao vivo,
“que se incorporou à vida cotidiana [rapida-
mente,] afetando inclusive nossa concepção
de tempo”. Anos depois, a televisão aprende
com ele essa possibilidade, passando ela mesma a fazer “transmissões ao vivo”. Na perspectiva do usuário, estemodo de transmissão
confere ao meio um tipo de autenticidade ou
legitimidade porqueoferece ao espectador a
sensação inusitada departicipação direta no
fluxo da vida graças à “imersão”, efeito e novidade maiorda moderna tecnologia de produção e distribuição de imagens.
Nenhum aparelho tecnológico de comunicação ou produção e distribuição de imagens, sons, textos teria, até então, apresentado tal característica. Walter Benjamin, no
famoso ensaio sobre a reprodutibilidade técnica (1985), parece ter sido um dos primeiros
críticos modernos a percebê-la, ao afirmar que
a câmera desvenda o “inconsciente ótico” ao
“penetrar na estrutura da realidade”, como
ocorreria com o cineasta. Por este motivo,
afirma, o cinema seria epistemologicamente
superior à pintura. “Penetrar na estrutura da
realidade”, porém, nada mais é do que provocar uma “imersão” nesta. Não é de espantar,
portanto, que a tecnologia moderna relacionada ao mundo das imagens, sejaela destinada à ciência– como no caso da radiografia ou
do ultrassom, entre outras – seja destinada ao
consumo e à diversão, como os filmes ou televisão em 3D, concretiza esse novo ideal de visibilidade estritamente moderno, possibilitado pela “imersão”. Nesse sentido, podemos
perceber também o quanto se equivocam os
estudiosos de Benjamin que interpretam sua
concepção sobre a superioridade do cineasta
em relação ao pintor como umresíduo positivista em sua obra sem perceber o alcance e o
teor inovador dessa concepção.
A transmissão ao vivo, entendida
como um tipo de imersão, tem inúmeras
implicações. Dentre estas, cabe destacar
que, tecnicamente, ela implica a construção
de uma linguagem característica capaz de
articular“simultaneamente vários pontos
de vistas, captados por diferentes câmeras”
(SARLO, 2010) e de ser, ao mesmo tempo,
reelaborada pela equipe de edição sem que
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o espectador seja capaz de desconfiar de
que aquilo que ele vê não é o real, não é o
acontecimento em sua dinâmica própria. A
“imersão” na pretensa dinâmica do acontecimentoserve, nesse caso, de álibi ao meio, é
sua ideologia, a comprovação de sua verdade,
que refuta previamente qualquer crítica.
Para Sarlo, a transmissão ao vivo passa
a ser vital para o sucesso e afirmação social
da televisão, já que confere uma sensação
inédita de atualidade ao espectador. Por isso,
tal modo de transmissão, com o transcorrer
do tempo e com o acirramento da concorrência entre os novos aparelhos tecnológicos
de reprodução e de comunicação, configura-se como aquele pluscapaz de garantir à
televisão um sucesso sem precedentes, um
enraizamento social profundo, de suscitar
grandeconfiançano espectador, que acredita ser elacapaz de oferecer-lhe o mundo
tal como ele é. Essa confiança depositada
no meio funcionou como um estímulo social
para que este continuasse a se desenvolver
tecnicamentea fim de continuar a gozar dessa
confiança, quefundamenta seu valor no mercado; para tanto, desenvolveu novas técnicas
e nova linguagem capaz tanto de captar a dinâmica e a velocidade da vida ou dos acontecimentos quanto de produzir e distribuir imagens carregadas de velocidade e dinamismo.
A “transmissão ao vivo” é, assim, o coração da televisão. Ela é a grande novidade
de nossa época que os demais meios, de um
modo ou de outro, tentam imitar. Colocar um
vídeo no YouTube, na internet ou nas redes
sociais, por exemplo, pode muito bem ser
considerado uma imitação arruinada da transmissão ao vivo. Entretanto, ela não é a única
novidadecapaz de configurar a experiência
cultural da atualidade e das massas. Não menos importante é o aparecimento do que Cristoph Türcke chama de “sociedade excitada”.
Segundo ele, uma releitura cerrada de algumas célebres passagens do Manifesto Comunista permite entender a modernidade como
caracterizada por um acentuado processo
de “condensação”, o qual tende a diminuir o
tempo socialmente necessário tanto para a
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produção de um gesto ou tarefa quanto para
a obtenção de determinados efeitos. Nesse
sentido, se considerarmos a história social
do álcool, o aparecimento do destilado – um
condensado – foi capaz de abreviar o tempo
necessário para a obtenção de seus efeitos
tradicionais: elepassou a exigir o “trago”, a
aceleração desmedida da embriaguez, que se
tornou imediata. O mesmo ocorreu no mundo
das drogas, que gradativamente deixaram de
ser obtidas da natureza para se tornarem sintéticas, ou seja, condensadas, de efeito imediato, como a cocaína ou a heroína. O “trago” passou, então, a ser acompanhado pelo
“pico”, vertigem da embriaguez imediata.
A condensação, como lógica social,
também passaria a reger o mundo das imagens. Desse modo, estas seriam submetidas
a tratamentos e procedimentos técnicos que
a capacitariam a produzir efeitos imediatos e
amplos. Neste itinerário, as imagens cinematográficas, por exemplo, deixariam de captaro
novo sujeito social e político do século XX, as
massas, tarefa em que elas eram incomparavelmente melhores do que qualquer outra
forma expressiva, segundo Walter Benjamin,
que, por essa razão, reconheceu serem elas
bastante adequadas ao estudo do comportamento desse novo sujeito e, em decorrência
disso, aptas a educá-lo e orientá-lo em um processo de autoconhecimento. Nessa direção,
as imagens deixariam de “orientar as massas”: apropriadas pelo “cinema dos capitalistas”– para usar a expressão de Benjamin – elas
seriam submetidas à lógica da modernidade e
elaboradas de acordo com certos padrões técnicos, que passaram a ser chamados de “efeitos especiais”. As imagens assim obtidas são
densamente carregadas de velocidade e dinamismo; são imagens de “choque”, que concorrem entre si pela atenção do expectador. Tais
imagens tornam-se um fim em si mesmo; são
autorreferentes, servindo para estabelecer
um modelo de percepção. Ao se prestarema
tal uso, são também veículos de uma censura,
de uma interdição, já que obstaculizam o estabelecimento de uma percepção diversa, atada
a ritmos lentos e à singularidade. A atração
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exercida pelo cinema iraniano junto a determinados segmentos de público, em contrapartida, advém de suacapacidade de apegar-se a
ritmos sociais e históricos que “imitam a paciência da natureza”, rompendo,desta maneira,
o bloqueio perceptivo imposto pela ditadura
das imagens aceleradas propagada pelo cinema estadunidense, sedento de completar, no
campo cultural, a hegemonia militar global
conquistada por esse país.
Para Beatriz Sarlo, esse novo contexto
cultural coloca dificuldades objetivas para a
sobrevivência e continuidade da literatura e
da arte. Sarlo reconhece que nesse contexto
estas perdem seus públicos tradicionais, sendo obrigadas a buscar modos originais de sobreviver e criar relações, não com o público
em geral, mas com uma fração dele. Entretanto, realça a autora, a literatura e a arte perdem, de antemão, a batalha e a disputa pela
sobrevivência caso aceitem concorrer com a
transmissão ao vivo ou com a lógica moderna da condensação, que confere dinamismo
e velocidade às imagens – embora elas também sofram em seus frágeis corpos de signos
o impacto de tal lógica.São forçadas a resistir
buscando outros ritmos e possibilidades,
embora não esteja claro de antemão se isso
é, ou não, possível. Ainda segundo a autora,
mesmo o propalado impacto da internet, dos
computadores pessoais e das demais tecnologias digitais na literatura não a afetaram
significativamente, já que não provocaram
qualquer ruptura em seu universo, ou impuseram uma transformação na forma literária,
em seu modo de produção ou em sua aparênciaestética. Ademais, pode-se acrescentar, a
maior parte dos escritores usa o computador
como uma máquina de escrever, o que decididamentenão produz alterações internas na
forma literária.
A autora afinal sugere, apesar dessas
considerações, que a dificuldade maior da
literatura,para garantir sua sobrevivência na
atualidade, pareceestar mesmo diretamenterelacionada com o império da transmissão
ao vivo, gerador da “imersão”, e com a aceleração sem precedentes da atual experiência
cultural, marcada pela produção de fluxos
ininterruptos de imagens freneticamente velozes, já que essesdois fenômenos afastam
da literaturaparte dos leitores e impedemsua
renovação. Os jovens preferem os aparelhos
tecnológicos e parecem apresentar muitas dificuldades no manuseio de um livro ou no ato
de leitura. Leyla Perrone-Moiséssustenta que:
Quando se fala do fim da literatura,
trata-se do fim de um tipo de literatura: aquela da modernidade. É
evidente que algo mudou, e muito,
na esfera literária. Os leitores talvez tenham mudado mais do que
os escritores. As novas gerações
não querem mais ler aquilo que os
teóricos do século 20 chamavam de
literatura. (MOISÉS, 2011).
Entretanto, apesar dessas dificuldades e
das adversidades do cenário cultural presente, a literatura tem sobrevivido, embora ela
efetivamente pareça estar ameaçada em quase todos os lugares. Seela requeresse altos
custos de produção, sem dúvida já teria desaparecido, mas não é esse o caso. Imprimir
livros ainda é relativamente barato se pensarmos, por exemplo, nos custos de uma montagem teatral ou de um filme. Além disso, as
editoras beneficiam-se com as novas tecnologias, de modo que elas podem se disseminar
por várias regiões, como parece ocorrer hoje,
ainda que essa tendência possa ser rapidamente contida caso grandes grupos editoriais
resolvam monopolizar o mercado e assim
criar dificuldades para as pequenas editoras.
Sempre se pode indagar, contudo, que
tipo de literatura ainda desperta de fato o
interesse do público. Leyla Perrone-Moisés
(2011), como se pode perceber, afirma que a
literatura da modernidade não desperta maisinteresse e não é lida. Para ela, as experiências romanescas oriundas das vanguardas literárias eartísticas do início do século XX estão
esquecidas pelo grande público.Beatriz Sarlo
diz algo semelhante ao sustentar que oconsumo de obras literárias “tem se restringido às
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obras clássicas, sobretudo as do século XIX, de
autores canônicos como Victor Hugo, Balzac,
Tolstoy etc.” e que o mercado cultural “costuma apostar no seguro, isto é, no consumo
de autores e compositores tidos como clássicos e consagrados” (2010). Entretanto, talvez
seja possível afirmar que, no caso da América Latina, a literatura – mais especificamente
o romance – parece ter encontrado uma via
para sua sobrevivência imediata, seja porque
ele ainda alimenta a produção de obras que
alardeiam a busca de uma identidade regional, seja por facilitar a aproximação cultural
dos vários países que a compõem, despertando assimo interesse de públicos dos países vizinhos, como ocorre hoje com o interesse do
público leitor brasileiro pela produção literária argentina e vice-versa. Nesse contexto, a literatura rompe a monotonia cultural imposta
pela televisão, pelo cinema estadunidense e
por outros meios tecnológicos que costumam
difundir o mesmo cenário único, a repetição
do idêntico e do sempre igual.
As explicações que identificam uma retração do público leitor, ou um acentuado
desinteresse dos jovens pela leitura, a fim
de apontar as causas das dificuldades atuais
da literatura, parecem ser mais ou menos recorrentes entre os teóricos da literatura e da
arte. Além de Sarlo ou Leila Perrone-Moisés,
também Goytisolo e Johathan Franzenrecorrem a esse tipo de explicação, entre vários
outros. Porém, se for possível considerá-la
sociologicamente, talvez seja possível identificar nela um tipo de lamento dos críticos e
escritores pela suposta crise que a literatura
experimenta na contemporaneidade. Além
disso, também o próprio tema da morte da
literatura poderia – à primeira vista – ser encarado como uma reclamação nostálgica dos
escritores e demais personagens que constituem o universo ou sistema literário, como os
críticos e editores, contra a perda de prestígio
e deinfluência social, ou mesmo de poder, por
parte dos componentes de tal sistema. Efetivamente, a literatura e seu mundo perderam
poder e prestígio diante das novas formas expressivas de origem tecnológica, em especial
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para as que recorrem à imagem e ao som. Todavia, se a história pode ter alguma utilidade
para ajudar a entender o presente, talvez fosse interessante lembrar a confrontação dos
pintores com o aparecimento da fotografia,
que abalou tanto o sistema social do mundo
artístico de então quanto apretensão ou ideal dos pintores, fato que os forçou a elaborar,
depois de muita hesitação e confusão, outra
linguagem plástica que, por seu turno, implicou uma alteração profunda na relação entre
pintura e realidade. Tal crise, experimentada
pela pintura, está na raiz da arte moderna e
no fato de esta ser impulsionada para a abstração, terreno em que a imagem técnica, seja
a da fotografia, seja a do cinema nascente,
não poderia penetrar. Assim, se tirarmos consequências dessa analogia – o que não deixa
de ser uma imensa temeridade, dado o caráter
subjetivo e arbitrário desse tipo de raciocínio
–, talvez a disseminação, o alcance comunicativo e o prestígio socialdos meios tecnológicos
audiovisuais, de fato, coloquem dificuldades
e desafios originais à experiência literária,
forçando-a, inclusive,a elaborar novas formas
narrativas e a desenvolver novos temas, por
mais abstratos que estes possam parecer.
Afinal, também parece despertar interesse no público leitor certa literatura atual.
Para Perrone-Moisés, ela poderia ser chamada de “pós-moderna”, já que “vive da
referência àquela que a precedeu, a da modernidade, que nela sobrevive na forma de citação, alusão, pastiche ou intertextualidade”,
acrescentando tratar-se de “uma literatura
póstuma, uma literatura do adeus”. Como
exemplo, identifica o aparecimento “desde a
década de 1980 de um subgênero de romance que ‘ficcionaliza’ a vida dos escritores da
“alta modernidade” (2011). Essa concepção,
contudo, embora tenha interesse, pode ser
questionada, por um lado, porque aceita sem
inquietação a divisão – e oposição – estanque entre modernidade e pós-modernidade,
não oferecendo nenhum tipo de brecha por
onde possa despontar uma forma de desconfiança em relação a tal distinção que imobiliza
duas supostas formas de cultura, ou de esti-
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los artísticos, sem considerar a possibilidade
de que a história cultural do século XX comporte um processo dinâmico capaz de implicarmomentos diversos; nessa perspectiva, o
pós-moderno não se oporia radicalmente ao
moderno, sendo antes um desdobramento
dele, em um movimento saturado de tensões
não resolvidas – como parece sugerir Fredric
Jameson. Por outro lado, a aceitação acrítica
de tal concepção acaba por resvalar em um juízo genérico demais sobre a literatura do presente, que aproxima e identifica obras muito
diferentes entre si.
A inquietação com os rumos do romance na atualidade acometeu ainda muitoscríticos literários durante o século XX, os
quais,geralmente, costumavam apontar as
dificuldades futuras que o romance deveria
enfrentar para garantir sua sobrevivência;
muitos destes, porém, buscaram identificar
os modos pelos quais o romance poderia não
apenasconservar seu material e temas mais
caros como evitar reduzir-se a uma mera reflexão sobre sua própria situação ou condição
social e histórica, possibilidade então vista
como negativa por muitos. Estes críticos, porém, parecem se esquecer de que faz parte
do processo de modernização social a “autonomização” das atividades culturais, que
abandonam, por força desse mesmo processo, parte de suas características tradicionais,
ou os papéis sociais que desempenhavam por
vastos períodos de tempo. Nessa perspectiva, o processo de modernização social teria
solapado, se tomarmos como exemplo o caso
brasileiro, o papel documental do romance
local, que, por muitos anos, contribuiu para
o desvelamento das contradições e mazelas
da estrutura social brasileira, já que, tanto o
pensamento social quanto historiográfico era
aqui então incipiente.
Nessa perspectiva, não se pode considerar apenas negativa a trajetória atual do
romance; poder refletir sobre si próprio é
também algo muito importante socialmente,
já que essa reflexão traz para o primeiro plano o questionamento e a crítica dos modos
de construção da linguagem e seu relaciona-
mento com o mundo ou a realidade social.
Neste sentido, o romance é hoje forçado a
questionar sua aparência realista, seu poder
de construir um universo que o leitor em geral considera real, atividade que adquire grande significado social porque implicitamente
questiona também como os novos meios
tecnológicos usam a linguagem e concebem
sua relação com a sociedade. Se quisermos
recorrer, uma vez mais, ao raciocínio analógico, correndo naturalmente os riscos implicados por este tipo de raciocínio,talvez até
fosse possível considerar que o impulso do
romance para refletir sobre si mesmo, sobre
sua estrutura, sobre sua história e modos de
constituição seja uma maneira original de ele
equiparar-se, contra as previsões da maioria
de seus teóricos e críticos, à “imersão” propiciada pela moderna tecnologia de comunicação e de produção de imagens.
Encarada desse modo,a produção romanesca de um autor do presente – para citar
um exemplo – adquire grande importância e
destaque: a obra do escritor catalão Enrique
Vila-Matas. Entre vários outros romances, ele
escreveu três obras que serão examinadas a
seguir: O mal de Montano (2002), Paris não tem
fim (2003) e Dublinesca (2010), as quais desenvolvem diferentes aspectos de uma estratégia literária que objetiva, em última instância,
afirmar a possibilidade atual da literatura. Elas
compõem um itinerário de resistência. Esta
produção romanesca, contudo, não merece
ser taxada de saída como “pós-moderna”,
como sugere Perrone-Moisés, inclusive porque ela não recorre ao pastiche, preferindo,
antes, a paródia, procedimento estético típico do modernismo heroico. Tampouco recorre à intertextualidade ou à citação, ou antes,
estas não se esgotam em si mesmas e nem
funcionam como meras referências culturais
destinadas a validar a obra presente por meio
da autoridade das obras do passado. Elas, ao
contrário, parecem, nesse caso, servir ao propósito de estabelecer uma linha de continuidade criativa entre o passado e o presente a
fim de, desse modo, possibilitar a superação
crítica do tema da morte da literatura, con-
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vertido em matéria de reflexão que anima a
totalidade do romance e confere atualidade a
ele e á própria literatura.
O mal de Montano
O mal de Montano tem como narrador
Rosário Girondo, um crítico literário que viaja a Nantes com duplo intento: o de salvar
seu filho Montano do silêncio literário, já
que após escrever um livro sobre os escritores que renunciaram à literatura e pararam de escrever,estese tornouvítima de sua
própria ficção, caindo em radical mutismo
literário,não conseguindo mais dar continuidade àprodução romanesca. Por outro lado,
o narrador também vai a essa cidade com a
intenção clara de curar-se de outra espécie de
mal de Montano, ou de enfermidade literária:
ele não consegue parar de falar da literatura
ou mesmo de viver suas experiências. Nesse
sentido, ele é um homem saturado de literatura, impregnado das mais variadas experiências
literárias, em especial as do alto modernismo
ou das vanguardas heroicas do começo do século passado. O narrador inclusive anota que
“ele age como Jorge Luis Borges, para quem
todo mundo só deveria se interessar pela literatura”. (2002, p.105-106. Tradução própria.).
O romance começa explorando, não
apenas essa temática, que remete à própria
literatura e à possibilidade de sua sobrevivência, tornando-se assim o principal tema ou
eixo do livro, mas também recorrendo a uma
série de jogos de espelhos e à exploração do
tema do “duplo”– modoengenhoso de afirmar o trabalho de criação literária e, portanto, o triunfo desta em uma época que parece
repudiar toda criação. Nesse sentido, o narrador define logo no início a literatura como
a atividade voltada para a invenção de outra
vida: “escrever é fazer-se passar por outro”
(2002, p.16), afirma por meio da citação do escritor mexicano Sérgio Pitol.
A estrutura da obra, porém, é surpreendente. Se, na primeira parte, intitulada Mal de
Montano, é narrada a aventura da dupla cura
– a do pai e a do filho – em complicado jogo
de espelhos, já que o pai pensa curar o filho
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enquanto este pensa em salvar o pai, na segunda parte, intitulada Dicionário do tímido
amor à vida, o narrador revela que a matéria
narrada na primeira parte é toda ela fictícia,
sendo por ele inventada com o propósito de
compor umromance, justamente intitulado
Mal de Montano. A explicação fornecida pelo
narrador é reveladora:
Allíen la Coiffard, mientras hoy abadistraídamente un edición francesa
de El Aleph de Borges, me inventé
un hijo que se llamaría Montano –
acababa de ver una traducción al
francés de un libro de Arias Montano, […], un hijo que viviríaallí en
Nantes y sufriría un bloqueo literario muy serio, un bloqueodel que un
padre dotado de ciertos atributos
–de los que el pobre Montano carecería– inventaría desatascarle. El
hijo regentaría una librería en Nantes, posiblementela Coiffard misma.
Y recibiría la visita de su padre, que
desde Barcelona viajaría a Nantes
para tratar de que superara la condición de ágrafo trágico en que había quedado sumido tras publicar
un libro sobre los escritores que renunciaban a escribir. (VILA-MATAS,
2002, p. 115).
Assim, logo no início da segunda parte, o
narrador dá por realizado o romance e superada sua enfermidade literária, bem como sua
preocupação com o grande tema central do
romance (a primeira parte): o da luta contra
a morte da literatura e seu combate ao “nãoliterário”. Na segunda parte, Rosário Girondo, o narrador, afirma estar cansado de fazer
tanta ficção ou de misturá-la com a vida; por
essa razão, pretende agora narrar algumas
facetas de sua personalidade, “mostrar-se um
pouco ao leitor” e “narrar verdades sobre si
mesmo” (2002, p.106-107) A narração quer
convencer o leitor de que o narrador muda de
atitude após a conclusão do romance elaborado na primeira parte. Na qualidade de críti-
Impulso, Piracicaba • 23(57), 61-77, maio.set. 2013 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
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co literário, recorre tanto à análise do diário
de vários escritores como ao seu (suposto)
próprio diário, realizando, desse modo, uma
transgressão radical dos gêneros e das atividades literárias, pois transita agora da ficção à
crítica e ao ensaio,embaralhando-as de modo
que a ficção passa a funcionar como ensaio e
este como ficção. Esses recursos e procedimentos são mobilizados a fim de ele podernarrar sua vida fragmentada, sua identidade
esfacelada. Pouco depois anuncia ser isso resultante do fato de a vida não se apresentar
contemporaneamente como uma totalidade,
como tendo um centro capaz de organizá-la.
Esta suposta mudança de atitude confere a
ele a possibilidade de comentar de forma crítica o romance elaborado na primeira parte,
porém, o comentário sobre ele e sobre os vários diários, tanto pode parecer um jogo de
espelho da criação literária quanto lembrar,
ainda queremotamente, a técnica “do abismo” usada por Gidepara inserir um romance
dentro do romance, como ocorre em Os moedeiros falsos;ou seja, o pretexto da atitude
crítica em relação ao romance, a análise dos
diários e a disposição de “contar verdades”
configuram, na verdade, um modo de continuar a elaboração literária e de estabelecer,
por meio da ironia – marca de sua obra – a
crítica ao culto do realismo ou à revelação de
detalhes biográficos nutridos ainda no início
desse novo século por leitores e escritores,
como os espanhóis, que “detestam ou desprezam o pensamento”. A criação literária é
assim afirmada e temperada com a crítica social. Nessa empreitada, ao analisar os diários
dos mais diferentes escritores, concluique o
diário não é uma forma adequada para revelar a identidade ou a individualidade, perdendo muito de sua força e importância quando é
usado para tal fim. A má literatura alimenta-se
deles, sugere, pois o diário, comenta ecoando
a voz de Robert Musil, não serve para nos conhecermos; afinal, nessa perspectiva, ele seria
um “gênero sem qualidades”. Em contrapartida, reconhece serem os diários literariamente
atraentes quando não confessam a vida singular, os fatos de uma vida, mas, ao contrário,
o transformam em um gênero literário ficcional, como seria ainda o caso de Gide. O diário,
neste sentido, prestar-se-iaao estabelecimento de um gênero original, o“autoficcional”.
Essa atividade também permite ao narrador a
iniciação na literatura ou, melhor dizendo, a
construção de um estilo literário próprio por
meio do “parasitismo literário”, ou seja, pela
escrita que se constrói inicialmente por meio
do roubo de frases alheias até encontrar seu
ponto de maturação. O vampirismo literário
não é,portanto, um fim em si mesmo, uma
técnica de citações ou de cruzamento de textos diversos, como ocorre em parte da ficção
contemporânea identificada por Leyla Perrone-Moisés como “pós-moderna”. Inclusive,
realça o narrador, o “parasitismo literário”
praticado como meio de elaboração do estilo
pessoal tem antecedentes, poiscaracterizou
amplamente nada menos do que a trajetória
literária da obra de Jorge Luis Borges.
A construção desse estilo indivi­
dual
– “encontrar o meu nos outros” – não é,
porém,tarefa ou empreitada fácil. A apropriação de frases alheias não deve ser caótica, masorientada pela condição dos personagens, como os dos romances de Robert
Walser, por exemplo, que são subalternos e
sempre profundamente molestados pela realidade social, em especial pelo que o autor
chama de “mecanismo do idêntico […] hoje
tão dominante no mundo”. (2002, p.122). A
construção do estilo individual por meio do
“parasitismo literário” orientado pelo humilde deve redundar na obtenção de “um resíduo de irredutível individualidade, algo de
inconfundivelmente seu” (p. 122). O encontro
desse ponto irredutível, forma de resistência
à “impessoalização” ou padronização das
identidades (“mecanismo do idêntico”), lembra a formulação de Cristoph Türcke que, ao
comentar a tendência à destruição social ou
colonização da subjetividade, aponta um limite resistente a tal processo, “a reserva mental” individual que,em última instância, oporia
o indivíduo à sociedade. “Reserva mental” e
“resíduo irredutível de individualidade” aqui
parecem ser a mesma coisa, apontando para
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o esforço individual na direção da construção
ou manutenção das forças da subjetividade,
modo de resistência à ação das forças sociais
atuantes capazes de destruí-la ou inibi-la.
Uma obra literária que afirme essa resistência
e peleje pela construção do estilo individual
– expressão da subjetividade – pode ser considerada uma obra autônoma, que, como sugere Adorno,“é, por sua mera existência, um
ataque à sociedade hostil” (Franco, 2007,
p.63). Nesse sentido, é reveladora a afirmação carregada de boa dose de ironia do narrador: “eu tenho só um pouco de vida própria,
mas dado como está o mundo, já é muito ter
algo de biografia” (Vila-Matas, 2002, p.122)
O recurso irônico usado pelo narrador –
ou seja, a aparente vontade de falar verdades
sobre si mesmo – o impulsiona a retomar o
tema inicial do duplo. Em determinado momento ele explica a origem de seu nome, que
não é um pseudônimo ou um heterônimo,
mas um “matrônimo”, já que ele adotou para
si o nome de sua mãe. Aprofundando o jogo
de espelhos e as possibilidades da criação literária, revela ter descoberto um “diário secreto” dela no qual esta se mostrade modo muito diverso do que adotou em vida, já que, ao
contrário do seu costume, utiliza nele um tom
violento, saturado de rancores e infelicidade,
com acentuada propensão à desclassificação
sumária do outro e a manifestar profundo
descontentamento com tudo o mais – exceto com o próprio diário, a poesia e o filho, a
quem devotaria afeto sincero. Neste diário,
Rosário Girondo – não a mãe, mas o filho-narrador – descobre também, não sem surpresa,
a elaboração de uma “teoria de Budapeste”,
que será o tema e o título da terceira parte do
romance, completado ainda com uma quarta
parte intitulada “Diário de um homem enganado” e uma quinta, denominada “A salvação do espírito”.
A primeira parte do romance narra,
como já foi dito, a viagem de Rosário Girondo
a Nantes a fim de curar seu filho do mutismo
literário em que havia caído após escrever sobre escritores que abdicavam da literatura.
Entretanto, o narrador também a aproveita-
70
ria para tentar curar seu próprio mal de Montano, já que ele se considerava “enfermo de
literatura”, pois não conseguia fazer outra
coisa senão falar dela ou das experiências literárias dos muitos autores que conhecia. A
certa altura, porém, percebe que poderia ter
uma tarefa moralmente mais elevada e justificada se transformasse sua luta pessoal em
uma luta contra o mal de Montano da própria
literatura, que considerava ameaçada de morte pelo “não literário”. Essa guinada na postura do narrador permite a ele abarcar uma
causa coletiva e de caráter social.
O diagnóstico que elabora sobre a crise
da literatura, entretanto, não remete sua origem diretamente à sociedade; ele considera,
como uma das raízes da crise, a proliferação
desmedida do número de escritores que produzem também um número exagerado de romances, ou uma “inflação de romances”, desconhecendo por completo os instrumentos
ou procedimentos típicos desse gênero literário. Ele também sustenta não ser ela recente,
afirmando terem vários autores destacados,
do passado literário ou artístico,apontado tal
crise, como seria o caso de Schopenhauer.
Dessa constatação ampla sobre a natureza da
crise atual da literatura deriva outra, referente à situação da literatura no país do narrador,
a Espanha, já que constataneste país um predomínio deleitores-admiradores do “realismo
do século XIX”. Ou seja, o narrador, que se coloca como um dos herdeiros das vanguardas
artísticas do início do século XX e elabora uma
obra inorgânica – para usar a terminologia de
Peter Burger– na qual as partes não obedecem ao poder do todo e tampouco são absolutamente necessárias ao romance, identifica
na permanência do culto ao realismo originário do século XIX, produtor de obras “orgânicas”, um dos obstáculos à sobrevivência atual
da literatura.
Este diagnóstico sobre a crise atual da
literatura e sobre a ameaça que paira sobre
ela adquire contornos mais precisos após o
narrador referir-se a um panfleto de Julien
Gracq, intitulado A literatura no estômago,
no qual o autor afirma ser a literatura víti-
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ma da massificação padronizadora, que a
submete às regras do “não literário”. O teor
dessa crítica não deixa de conter certa dose
de ambiguidade. Por um lado, o narrador, ao
professá-la, parece aderir a um tipo de crítica
cultural reacionária, movida pelo preconceito
contra tudo o que é de massa; por outro lado,
porém, pode lembrar a postura de Adorno
(2000) ao criticar o suposto efeito democratizador dosaparelhos técnicos de reprodução
da música, que efetivamente provocam a retração da audição e a transformação da música em mercadoria, em fetiche cultural, ao
mesmo tempo em que transforma, ainda, o
ouvinte tradicional em consumidor de música, que agora pode serproduzida de forma industrial. Entretanto, pouco depois, esclarece
o âmbito e o alvo de sua crítica ao afirmar que
faz toda diferença a elaboração e expressão
de um pensamento – por exemplo, por parte
de Walter Benjamin– e por alguém que não
tenha o menor cuidado nem com sua elaboração rigorosa nem com sua expressão correta.
A posição do narrador, porém, não deixa de
parecer uma postura elitista, pois a sociedade
atual, com seus vários mecanismos de dominação e repressão, tornou quase impossível
formular semelhante crítica, como demonstrou largamente Marcuse (1973) ao denunciar
suas desventuras e impasses na sociedade
unidimensional.
O “não literário” – inimigo da literatura –, apontado pelo narrador, adquire, em
seguida, uma configuração clara: ele parece
resultar da própria transformação social que
suscita o aparecimento de um novo tipo de
ser humano, denominado pelo narrador “o
homem-novo”. Este é caracterizado no romance comodotado de uma personalidade
“que está se despedindo de um modo secular de viver, de viver e de conceber o mundo” (2002, p.78), vista como negativa pelo
narrador porque tal homem apresenta certos
indícios questionáveis, como “uma desumanizada risada bárbara”. (p.78). Mais adiante,
ficamos sabendo que seu modo peculiar de rir
expressa o “riso enlatado do futuro […] nem
com Deus nem sem Deus, nem com livros nem
sem livros” (2002, p.90). O sentido social deste “homem-novo” é posteriormente indicado
com clareza: “ele não era um artista, mas um
criminoso moderno […] indiferença à arte
atual e do passado” (2002, p. 91). E seu riso
enlatado finalmente aparece como ameaçador porquedesponta como um “riso de morte”. O narrador assim descreve seu encontro
com este novo tipo de homem:
Que habéis visto ahí, en Pico?,
ha preguntado. “Al hombrenuevo”, le he contestado. “Uno no
se ve todos los días al hombresin
almadelfuturo,uno no se ve cada
díaelrostro glacial y risible que
tendrála humanidad en elextrañomañanaque nos espera. (VILA-MATAS, 2002, p.92).
Esta caracterização do “não literário”
como inimigo da literatura é acrescida logo
depois com a afirmação de que “as pessoas normais são cúmplices do não literário”
(p.82).
A caracterização do homem-novo como
o inimigo da literaturaestá evidentemente associada ao tema da morte da literatura. Como
já deve ter ficado claro, este pode ter diferentes motivações; dentre elas, cabe destacar que
eletambém pode ter-se configurado como expressão de uma fantasia de nossa época, nem
sempre capaz de lidar com a dinâmica acelerada das transformações tecnológicas que suscitam permanentemente temores vários, como
o do desemprego. Os novos meios e aparelhos
tecnológicos não deixam de apresentar, nessa
perspectiva, certo aspecto monstruoso, habitando ameaçadoramente nosso imaginário
social.Nessa perspectiva, tal visão pode gerar
uma reação literária a eles, alimentando um
tipo de expressão literária, ao mesmo tempo
apocalíptica e integrada, já que fantasia negativa e ameaçadoramente o poder da tecnologia, embora de antemão também aceite de
modo implícito seu poder, ao qual não sabe
oferecer resistência ou alternativa. A narração
elaborada por Montano sobre os escritores
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que abandonaram a literatura poderia ser interpretada como sintoma dessa postura, assim como seu próprio mal. Em contrapartida,
o romance e a obra de Vila-Matas manifestam
uma visão crítico-irônica sobre a ameaça à literatura pela tecnologia e suasconsequências.
Em O mal de Montano, como ocorrerá depois
em Dublinesca, assume o tema da morte da
literatura a fim de, paradoxalmente, dar continuidade à atividade literária. Com a adoção
dessa estratégia literária, o autor afirma a
criação literária em uma época em que ela é
forçada a concorrer com meios mais influentes e poderosos, de natureza tecnológica, que
os tornam, inclusive, socialmente mais abrangentes, enquanto a literatura continua sendo
consumida individualmente.
Esse programa, de combater o “não literário” e de lutar contra a morte da literatura,
assumido pelo narrador de O mal de Montano,
leva-o, em determinado momento, em que
sente forte angústia ao ler um livro “sinistro”
sobre a morte, a buscar refúgio na televisão.
Ele a liga, mas está sendo exibido um jogo de
futebol. Passados alguns momentos, ele a
desliga enfadado, sussurrando: “Que angústia!” E retorna ao livro afirmando: “Ler é melhor do que ver televisão”(p.41). Da mesma
maneira, afirma que não usa o computador
ou o notebook para construir sua obra literária, afirmação que encontramos também
em outros romances do autor. Com alguma
boa vontade e certo senso de exagero, talvez também pudesse ser interpretada nessa
direção uma passagem em que o narrador
refere-se ao romance Os anéis de saturno, de
W.G. Sebald. Contra o mundo pasteurizado e
glamorizado da televisão, este romance–assim como vários outros do século passado ou
de nossa época – narra as (des)venturas de
personagens socialmente maltratados pela
sociedade –e, por extensão, pela própria TV –,
configurando a vida dos humildes, dos ofendidos, dos eternos inadaptados, dos desajustados de toda sorte – como os personagens de
Robert Walser, que “estudaram no Instituto
Benjamenta” a fim de não aprender nada, a
não ter sucesso na vida e não saber fazer ou-
72
tra coisa que obedecer em atitude submissa.
Forçando um pouco a interpretação, no romance de Sebaldestes personagens transformam-se em “mortos-vivos”, em “zumbis”,
concebidos, porém, em clara oposição aos
“zumbis” estilizados do cinema estadunidense ou da televisão. Por essa razão, a paisagem
de seus romances manifesta profundo desalento, uma terrível quietude, uma ausência
inquietante de movimento. Segundo Vila-Matas, o narrador de tal romance parecia afirmar
que “Para um homem morto, o mundo inteiro
é um grande funeral” (p.42).
Finalmente, cumpre assinalar a passagem em que o narrador, refletindo sobre o
tema da morte da literatura, lembra a frase
de Maurice Blanchot citada por Leyla Perrone-Moisés, identificada no início desse trabalho:
“A literatura vai em direção a ela mesma, em
direção à sua essência, que é o desaparecimento” (2002, p.78). O narrador, contudo, não
concorda imediatamente com tal assertiva,
pois afirma “melhor ser a memória (a da literatura) do que seu desaparecimento” (p.78). Em
seguida, porém, questiona o tema da morte
da literatura e a tese de Blanchot recorrendoa
Juan Rulfo, citando uma frase de seu romance
Pedro Páramo: “Nada pode durar tanto” (apud
VILA-MATAS, 2002, p.78). Assim, mesmo que
em princípio concorde estar a literatura fadada ao desaparecimento, sua resposta contém
uma ambiguidade, dada pelo uso da palavra
“tanto” ao final dessa frase, já que tal palavra
remete a uma permanência além do previsto, a
uma sobrevivência, a uma duração excessiva.
Ele também explica os motivos pelos quais é
motivado a escrever, afirmando que escreve
porque a “vida é monótona” e porque “entre
os livros e a vida, prefiro os livros” (p.142), lembrando certa tradição da modernidade literária, como a professada pelos esteticistas (Hofmannsthal e George), que sustentavam ser a
poesia bela e a vida feia– ou seja, a conceber
a literatura em oposição à vida social, considerada negativamente. E, sobretudo, o narrador
termina por afirmar a importância e o valor da
literatura: “A literatura sempre me permitiu
compreender a vida” (2002, p. 142).
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Paris não tem fim
Paris não tem fim (VILA-MATAS, 2007)
parece comportar diferentes níveis de leitura. Em um primeiro nível, nota-se que Enrique Vila-Matas constrói um intrigante jogo
de espelhos no qual as recordações de Ernst
Hemingway sobre os anos de sua juventude
e de formação literária vividos nessa cidade
durante a década de 19201 são confrontadas
coma própria aprendizagem literária do
escritor espanhol, concretizada com a experiência boêmia na mesma cidade durante os
anos cinzentos do pós-1968, ou seja, por volta de 1974. A confrontação é mediada pela
construção de refinada ironia, alçada à condição de tema geral de uma conferência que
o narrador ministra em Nantes durante “três
dias seguidos”. Nessa perspectiva, o romance seriaum “romance-conferência”, composto por notas, seguindo o modelo criado por
Wladimir Nabokov em Fogo-pálido, conforme
confessa, não sem ironia, o autor.
Além do jogo de espelhos, Vila-Matas
também parece recorrer à teoria do conto elíptico – elaborada por Hemingway – de modo
que ambos constituem os princípios construtivos fundamentais do livro. Porém, para um
leitor atento, a confrontação levada a cabo
no romance parece ocultar ou mascarar algo
fundamental que não é narrado, não é dito,
exatamente como preconiza a teoria do conto elíptico, que recomenda nunca narrar tudo
em um conto, deixando assim o principal em
uma zona de penumbra, de não dito. Segundo
Hemingway, o sucesso do conto dependeria
dessa habilidade em narrar ocultando.
O segundo nível de leitura permite ler
tal obra na perspectiva do conto elíptico. Desta maneira, é possível perceber que, tanto a
experiência formativa do narrador de Paris
não tem fim quanto a deHemingway são, na
verdade, confrontadas com as de outro narrador, o do romance Oretrato do artista quando
jovem (s.d.), de James Joyce. As referências
Ernst Hemingway diz que nessa época ele “era pobre
e feliz”. Essas recordações são narradas em Paris é
uma festa (1960) –redigido poucos anos antes do
suicídio desse escritor.
1
a essa obra no romance de Vila-Matas, no
entanto, são escassas e dissimuladas. Joyce
e seu Ulisses são adorados por Hemingway
que, em uma noite, na casa de Gertrude Stein,
refere-se a eles em termos muito elogiosos,
conhecendo uma resposta ríspida da anfitriã,
que proíbe falar deles em sua casa na Rue
de Fleurs, número 27, próxima ao Jardin de
Luxembourg. O personagem de Vila-Matas
conhece esse episódio; inclusive, costumava
passar constantementediante dessa casa em
1974, na vã esperança de encontrar a mesma
proteção que Gertrude devotou a Hemingway; entretanto, nessas ocasiões, temia
muito que ela mostrasse ter conhecimento de
seu modo peculiar de citar Joyce, sem aspas e
sem referências.
O retrato do artista quando jovem é um
romance de formação. Talvez o último grande
romance de formação. (Berlin Alexanderplatz,
de Alfred Doblintambém o é, mas de um modo
peculiar, já que narra a formação do lumpem-proletariado e mobiliza uma dicção em frangalhos, supostamente típica de marginais e
desempregados). Nele, chama imediatamente a atenção do leitor o nome do personagem,
cujas experiências infantis e adolescentes o
romance narra. Com efeito, Estephen Dedalus encerra uma contradição, já que aponta,
tanto para o mártir do cristianismo quanto
para o elemento pagão. A obra narra o itinerário desse personagem, um jovem irlandês
educado em colégios religiosos com vistas a
uma carreira eclesiástica, que, em certo momento, prefere abandonar tal perspectiva,
optando por sair de Dublin e morar em Paris,
a fim de desenvolver sua aptidão para as artes. Nesse itinerário, ele recusa a tradição e o
conforto da vida religiosa para escolher viver
“rente ao coração selvagem da vida” (Joyce,
s/d, p.176) frase adotada muitos anos depois
por Clarice Lispector (1998) para dar nome a
um de seus romances. A narração desta experiência de libertação é magnífica, como nessa
passagem em que o personagem
Afastou-se bruscamente e começou
correr através da praia. O seu rosto
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73
estava afogueado; o corpo era um
braseiro, tremiam-lhe os membros.
Caminhou, caminhou a passos largos, para lá das dunas, cantando
um hino selvagem ao mar, gritando
para saudar o advento da vida cujo
apelo acabara de o atingir (Joyce,
s/d, p.177)
O “Retrato” narra a formação de um
futuro escritor, que opta pelo exílio, como
tantos outros escritores e artistas do modernismo fizeram. Em contrapartida, os de Hemingway e de Vila-Matas narram as experiências de dois escritores iniciantes, que também
se sentem exilados.
O terceiro nível da leitura mostra como
o autor, por meio dos procedimentos indicados, elabora outra visão interna ao romance;
de fato, podemos agora perceber que Vila-Matas não escreve exatamente um romance
de formação, mas um romance de desmistificação dos anos de formação de um escritor e
de superação desses anos. Nessa empreitada,
o foco em Hemingway, que parecia homenagear o escritor estadunidense, torna-se irônico e por vezes zombeteiro. Nessa perspectiva, talvez fosse mais exato dizer que Paris não
tem fimé uma reflexão tramada na urdidura e
movimento do romance, voltada a desmascarar e desmistificar o romance de formação em
uma época em que ninguém mais consegue
ser original e na qual a literatura e a formação literária experimentam uma espécie de
crise. Ou, antes, talvez também seja possível afirmar que é um romance de formação,
mas em ruínas, dilacerado. De fato, a obra é
completamente diversa do Retrato, no qual
o personagem centralimpressiona por sua
coerência e unidade. Em contrapartida, o personagem-narrador de Vila-Matas apresenta
uma personalidade esfacelada, fragmentada.
A impossibilidade de viver de modo original
prolonga-se na impossibilidade de se escrever originalmente, já que ninguém mais tem
experiências e por isso não há o que narrar.
Resulta, dessa impossibilidade, um único caminho: tornar o romance um meio de reflexão
74
sobre seus próprios impasses ou sobre os da
literatura. A ausência da experiência pessoal,
que impossibilita a narração, possibilita dar
voz à própria literatura, que, transformada
em personagem, narra a experiência acumulada por gerações de escritores. Por esse
motivo,o romance é,antes de tudo, sobre a
própria literatura e os escritores que são vistos ou encarados de modo não aurático, o
que o levaa privilegiar aspectos pouco heroicos da vida literária, como a velhice, a mortee
o suicídio dos escritores.
Dublinesca
O romance Dublinesca (VILA-MATAS,
2010) não interrompe as preocupações centrais do autor, manifestadas em seus romances anteriores. Nele, continua a explorar a
relação conflituosa entre vida e literatura, o
caráter esfacelado da identidade moderna,
que não gira mais em torno de um centro; a insatisfação e a insegurança permanentes, a solidão e o tédio, o destino da literatura em um
mundo hostil, além de não perder, tampouco,
seu inédito modo de embaralhar a ficção e o
ensaio, forma de valorizar a criação literária e
de afirmá-la no cenário cultural. Ele também
continua a levar adiante certos procedimentos literários típicos do alto modernismoe
certa valorização borgeana da literatura. Seus
personagenscontinuam saturados de literatura, preocupados com “a obsolescência dos
livros” e a “morte da literatura” ou com a passagem de uma época a outra.
Nesse romance, porém, o tema central
é dado pela percepção dopersonagem principal, que se sente no bojo de uma enorme e
iminente transformação social, carregada de
tensões várias, que ele experimenta como
algo negativo, pois tal transformação decretou, inclusive, o fim da atividade à qual dedicou sua vida: a de editor de livros. Por essa
razão, conclui que estamos chegando ao fim
de uma era, a era de Gutemberg, o que o leva
– inclusive como modo de superar o tédio e
o desencantamento, a monotonia cinzenta
do cotidianoe o crescente isolamento ditado
por sua condição de editor aposentado – a
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fazer uma homenagem a ela por meio da comemoração do Bloomsdayem Dublin, cidade
natal de James Joyce. Para tanto, viaja a esta
cidade com alguns amigos,também profundamente ligados à literatura, a fim de concretizar tal homenagem, que se converte no funeral da era da imprensa. Em outras palavras, o
tema da morte da literatura, central em O mal
de Montano, é aqui retomado. A época que se
anuncia é a era digital, que o editor não entende, assim como Rosário Girondo também não
entende o novo tempo que se delineia.
Desta maneira, se em Paris não tem fim
Vila-Matasdesenvolve uma paródia do romance de Hemingway (Paris é uma festa), em Dublinesca concebe uma espécie de espelho no
qual é refletido um dos mais importantes romances da era Gutemberg, o Ulisses de Joyce;
por isso,o romance também pode ser lido
como uma paródia ao enterro do proletário
e alcoólatra Paddy Dignam, que é matéria do
capítulo seis da obra de Joyce.
O jogo de espelhos e a exploração desenfreada, ao mesmo tempo crítica e criativa,
dos textos literários joyceanos – notadamente do capítulo acima referido – impulsiona a
narrativa a promover um embaralhamento
dos textos desse autor irlandês com outros,
em especialcom um poema francês intitulado
Dublinesque, que, salvo engano, motiva o título do romance de Vila-Matas. Nesse poema,
que parece por sua vez dialogar com certa tradição herdada das Flores do mal, de Baudelaire, já que explora as vicissitudes do enterro de
uma prostitutavelha e decadente, há uma alusão – ou isso caracterizaria um procedimento
alegórico, típico das vanguardas do início do
século XX? – à morte da própria literatura,
que seria a verdadeira puta “velha e decadente”. A comemoração do Bloomsday é assim
carregada de tensão por adquirir vários significados superpostos: é tanto a celebração
do romance de Joyce e o funeral de uma era
quanto o velório da “puta velha”, a literatura.
Cabe destacar que nessa empreitada,
embora Samuel Riba – o editor aposentado –
experimente com nostalgia, e até certa dose
de sofrimento físico, o desaparecimento da
literatura, e sinta-se cada vez mais distanciado
do ritmo pulsante da vida, ele, em vão, tenta
– antes de promover a viagem a Dublin – entreter-se permanecendo horas àfrente datelevisão. Entretanto, ou ele nem chegaa ligá-laou
permanece indiferente a ela, exatamente
como Rosário Girondo, para quem “ler era melhor do que ver televisão”. Ou seja, os novos
meios eletrônicos ou digitais, que anunciam
a aurora de uma nova era, não empolgam o
narrador, que continua a achar muito chato
o mundo se ele não for transformado em matéria literária. Com tal atitude, o personagem
não se mostra revoltado ou em luta contra
os novos tempos, apenas desencantado com
o destino que lhe tocou viver. A tensão entre
literatura e meios digitais é assim sempre sugerida, mas não nomeada diretamente.
Conclusão
Outros romances exploraram o tema
ou o problema social da morte da literatura. Dentre eles, caberia enorme destaque ao
chileno Roberto Bolaño, que escreveu parte
de sua obra no México e parte na Catalunha,
em uma cidade próxima a Barcelona, cidade
natal de Vila-Matas. Em Los detectives salvajes (BOLAÑO, 1998), por exemplo, narra de
modo original, por meio daexploração de
denso processo de montagem, que confere
entrelaçamentos inusitados do tempo e do
espaço, os efeitos na vida cultural e política
damodernização conservadora que assolou
os diversos países da América Latina após
o fim das ditaduras militares disseminadas
nessa região durante as décadas de 1960/70,
promovendo uma verdadeira onda contrarrevolucionária em todo este sofrido continente.
A narração acompanha o itinerário de dois
poetas – Ulisses Lima e Arturo Belano –, que
buscam, no presente, os rastros ou marcas
da poeta Cesárea Tinajero. Nas andanças e
aventuras desses dois “detetives selvagens”
deparamos-nos com a sorte dos vários jovens
que, na juventude, movidos pelo ímpeto revolucionário que alimentou as esperanças dos
desesperados dessa vasta região, souberam
cultivar a poesia e alimentaro desejo de trans-
Impulso, Piracicaba • 23(57), 61-77, maio.set. 2013 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
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formar a literatura, conferindo a ela uma importância nesse processo e no novo mundo
almejado por eles.
A narração foca o destino desses jovens
durante a onda contrarrevolucionária; aos
poucos, eles vão, um a um, sendo destituídos
da experiência literária, seja por impedimentos sociais ou políticos, seja por impedimentos econômicos, já que são forçados a enfrentar asagruras da vida em uma sociedade que
se transforma, consolidando a hegemonia do
mercado, em todos os aspectos inimiga da
literatura e da poesia. Entretanto, dados o
tamanho e a ambição desse pequeno ensaio,
isso é matéria para outro trabalho.
À guisa de conclusão, deve-se destacar
que o aparecimento dos novos meios eletrônicos ou digitais, embora promovam uma
alteração fundamental na situação objetiva
da literatura, não a inviabilizam; paradoxalmente, estimulam-na a buscar novos modos
de expressão e novos problemas ou temas
que a diferenciem desses meios e da cultura
hoje predominante, mesmo que, nesse percurso, ela se veja forçada a se contentar em
atingir públicos mais especializados, embora
também mais fiéis e constantes. Ademais, talvez também seja possível dirigir uma reflexão
de Vila-Matas sobre Beckettpara sua própria
produção literária: “Estamos no centro de um
dos motivos recorrentes de sua obra [a de
Becket]: o fracasso que a linguagem acarreta
e a necessidade de continuar a tentar dizer,
de seguir dizendo, apesar de tudo” (VILA-MATAS, 2009. Tradução própria). Também o parágrafo famoso de Rumo ao pior, deBecket, citado por Vila-Matas, poderia ser revertido ao
fazer literário desse escritor, convertido em
programa desafiador para a sobrevivência da
literatura: “Todo de antes. Nada más jamás.
Jamás probar. Jamás fracasar. Da igual. Prueba otra vez. Fracasa otra vez. Fracasa mejor”.
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Dados do autor:
Renato Franco
Professor livre-docente de Filosofia na FCL Unesp Araraquara (aposentado, atual professor voluntário). É coordenador do GEP Teoria Crítica: tecnologia, cultura e formação na mesma
instituição. Autor de Itinerário político do romance pós-64: A festa, (Ed.Unesp) e co-organizador
de Dialética Negativa, estética e Educação (com Pucci, B e Goerken, P.).
Recebido: 16/04/2013
Aprovado: 30/04/2013
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