O que é um princípio Sérgio Sérvulo da Cunha 1. O termo "princípio

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1
O que é um princípio
Sérgio Sérvulo da Cunha
1.
O termo "princípio" é único. E, por sê-lo, é encontrado assim,
com base em sua raiz latina, mesmo em línguas que não são predominantemente latinas.
Os gregos diziam "arque", e a esse termo os dicionários costumam se referir tal qual o
fazem com relação a "princípium": "arque" significa a ponta, a extremidade, o lugar de
onde se parte, o início, a origem.
No termo "princípium", porém, há mais do que em "arque".
"Princípium", tal como "príncipe" (princeps) e "principal" (principalis-e), provém de
"primum" (primeiro) + "capere" (tomar, pegar, apreender, capturar). "Primum capere"
significa colocar em primeiro lugar. Assim, ao nascer, o termo "princípio" não significa o
que está em primeiro lugar, mas aquilo que é colocado em primeiro lugar, aquilo que se
toma como devendo estar em primeiro lugar, aquilo que merece estar em primeiro lugar. A
distinção é importante, porque à base do termo está, como se vê, uma distinção valorativa.
No meu "Dicionário Compacto do Direito" (DCD)
catorze acepções para o termo princípio.
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2
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listei
Aí ocorre o que é comum, principalmente em
No prelo.
1. Começo, início, aquilo que está no começo ou no início. 2. Termo final de toda
regressão (ggg). 3. Proposição que basta para suportar a verdade do juízo (mh). 4. Causa
natural, em razão das quais os corpos se movem, agem, vivem (li). 5. Elemento ativo de
uma fórmula, substância ou composto (li). 6. Aquilo que constitui, compõe as coisas
materiais (li). 7. Aquilo que, pertencendo à própria coisa, contém suas determinações como
2
dicionários de filosofia, com relação a termos que podem ter diferentes definições quando
vistos na perspectiva da lógica, da ontologia ou da deontologia (ou da axiologia). 3 Como a
experiência dos fatos materiais costuma ser anterior à dos versados na lógica e na
deontologia, a acepção ontológica (desde que nela compreendida a física, ou seja, a
materialidade das coisas), em geral vem antes da acepção lógica ou deontológica.
2.
Com o termo "princípio", como vimos, é diferente. Ele é
primariamente deontológico, e apenas derivadamente ontológico ou lógico. 4
A qualquer uma dessas perspectivas serve a acepção 1 do
DCD, demarcatória do campo semântico do termo "princípio", e segundo a qual ele é usado
para indicar, no tempo, o começo ou início de alguma coisa, ou aquilo que está no começo
ou no início. É segundo essa acepção que se costuma dizer, por exemplo, que "no princípio
era o Verbo". Nela se contêm, ou dela é possível se desdobrarem as demais, que têm o
princípio como causa ou como fundamento, seja das coisas materiais (nelas compreendidas
fenômeno (mh). 8. Matriz dos fenômenos pertencentes a um determinado campo da
realidade. 9. Fator de existência, organização e funcionamento do sistema, que se irradia da
sua estrutura para seus elementos, relações e funções. 10. Fonte ou finalidade de uma
instituição, aquilo que corresponde à sua natureza, essência ou espírito (l). 11. Os primeiros
preceitos de uma arte ou ciência (li). 12. Prescrição fundamental. 13. Opção valorativa
implicada como fundamento da norma. 14. Prescrição consistente numa opção valorativa
fundamental.
3
No seu Vocabulário técnico e crítico da filosofia, assinalando a imprecisão do termo
"princípio", Lalande observa que os termos filosóficos costumam formar um campo
contínuo, onde o que se consegue apreender são somente os pontos de condensação.
Entretanto, por ser a linguagem um instrumento vivo, todas as palavras possuem o seu
campo semântico, ou seja, o campo de associações por onde se alastram os seus múltiplos
sentidos.
4
Não parece estar certo Condillac ao dizer: "princípio é sinônimo de começo; e é nessa
acepção que primeiro foi empregado" (cf. Lalande, Vocabulaire technique et critique de la
philosophie, Paris, PUF, 1956).
3
os conjuntos, organismos ou sistemas), seja da ação humana (nela compreendidos o fazer e
o agir, a ciência, a arte, as instituições).
3.
É de natureza lógica a definição referida como acepção 2,
inspirada por Gilles-Gaston Granger, e que compreende o princípio como termo final de
toda regressão. 5 Segundo ela, o número 1 seria o princípio da série numérica positiva não
fracionária, e Adão o princípio da espécie humana. Nessa perspectiva é evidente que,
"contrario sensu", poderíamos definir como princípio o termo inicial de toda progressão, ou
seja, o ponto inicial, o lugar de onde se parte, com a diferença de que qualquer regressão
supõe a visão de toda a série. Essa definição aproxima-se de uma definição física, e incluise com facilidade na primeira acepção.
Também de natureza lógica é a definição 3, cujo autor é
Martin Heidegger. Diz ele: "um princípio, em contraste com uma mera condição negativa, é
uma proposição tal que nela é posto um fundamento para a verdade possível, quer dizer, é
uma proposição que basta para suportar a verdade do juízo." 6
Heidegger não fala na verdade da proposição, mas na verdade
do juízo. Para ser verdadeiro, todo juízo terá um princípio, e nesse sentido princípio será o
seu fundamento, que se encontra numa proposição.
5
Gilles-Gaston Granger, "Pour la connaisance philosophique", Paris, Odile Jacob, 1988, p.
243: "....le mot de 'principe' doit être pris ici au double sens originaire d'énoncé et de
concept primitifs. .... Toutefois, chacun de ces deux aspects correspond à un caractère
déterminant de la notion de principe. Pour la forme-concept, le principiel designe le terme
d'une régression par conditionnement de sens; pour la forme-énoncé, une régression par
conditionnement de conséquence. Dans le premier cas, le principe est le simple, dans le
second l'anhypothétique."
6
"Die Frage nach dem Ding", cit. conforme a edição portuguesa: "O que é uma coisa?",
Lisboa-Rio de Janeiro, Edições 70, 1992, p. 169.
4
Lalande
7
acentua o caráter axiomático dessa acepção, ao
referir-se ao princípio como "proposição posta ao início de uma dedução, a qual não se
deduz de qualquer outra no sistema considerado...".
A essa acepção filiam-se todas
as definições que concebem o princípio como fundamento. A noção de princípios como
fundamentos encontra-se em Platão, 8 em Aristóteles 9 e em Kant; este os apresenta como
"juízos a priori", "que têm esse nome não apenas porque são o fundamento de outros juízos,
mas também porque não se fundam em outros conhecimentos mais gerais e elevados". 10 O
DCD define fundamento como "aquilo que sustenta, justifica ou demonstra alguma coisa".
Aí se compreendem, nessa ordem, as acepções física, axiológica e lógica.
4.
São de natureza ontológica as definições que vão do n° 4 ao 9
do DCD.
Como enuncia Littré,
11
princípios são "todas as causas
naturais em razão das quais os corpos se movem, agem, vivem" (acepção 4). Entre
considerar o princípio como causa de uma coisa a considerá-lo como elemento ativo dessa
coisa (acepção 5) vai apenas um passo. E outro passo se dá para ter o princípio como
7
Vocabulaire technique et critique de philosophie, Paris, PUF, 1956.
8
"Um princípio é algo de não-engendrado; porque é necessariamente a partir de um
princípio que vem à existência tudo que aí vem, enquanto o princípio não provém de nada:
se um princípio viesse a existir a partir de alguma coisa, não seria a partir de um princípio
que viria a existir aquilo que existe" (Fedro, 245).
9
"São 'verdadeiras' e 'primeiras' aquelas coisas nas quais acreditamos em virtude de
nenhuma outra coisa que não seja elas próprias; pois, quanto aos primeiros princípios da
ciência, é descabido buscar mais além o porquê e as razões dos mesmos; cada um dos
primeiros princípios deve impor a convicção da sua verdade em si mesmo e por si mesmo
(Tópicos, L. I, 100 b 18, cf. trad. de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, a partir da edição
inglesa de W.A. Pickard, Cambridge; São Paulo, Abril Cultural, 1983); id., L VIII, 158b.
10
Crítica da Razão Pura, A 149-B 188. Veja-se também A 158-B 197 e A 737-B 765. Sobre
os princípios da razão prática, veja-se o que consta na nota 16 sobre "imperativos".
11
''Emile Littré, "Dictionnaire de la langue française".
5
simples elemento da coisa assim como "os átomos são os princípios de todos os corpos"
(acepção 6).
A reflexão filosófica prefere ver o princípio como forma das
coisas, assim na acepção 7: aquilo que, "pertencendo à própria coisa, contém suas
determinações como fenômeno".
12
O princípio pertence à coisa, mas não como elemento;
dele decorrem os elementos, propriedades e efeitos da coisa, ou seja, suas determinações
como fenômeno.
Conforme a acepção 8, princípio é a matriz dos fenômenos
pertinentes a um campo determinado da realidade. "Matriz", com relação a um determinado
conjunto de fenômenos, é sua "forma matriz", ou seja, a forma que não apenas lhes é
comum, mas de que depende o fato de existirem, ou de se produzirem com essa forma.
Dizer "forma matriz" é o mesmo que dizer "idéia", termo que evitei empregar no DCD. Na
verdade, a definição 8 é outro modo de dizer o que está na definição 7.
É nesse sentido que se utiliza o termo "princípio" em ciências
naturais, como se vê nas locuções "princípio da incerteza", "princípio da conservação da
energia"; dele se aproxima o termo "lei", na definição que lhe dá Montesquieu ("lei é a
relação necessária que deriva da natureza das coisas"), e que no DCD se atribui a regra.
Costuma-se pois dizer indiferentemente "princípio da gravidade", ou "lei da gravidade".
Princípio, no uso das ciências naturais, é a causa, "ratio", ou razão de ser dos fenômenos,
aquilo que explica sua existência e movimento; ao princípio tomado nessa acepção
12
Essa definição inspira-se em Heidegger. Às páginas 184 e 185 da obra acima citada, ao
discorrer sobre a concepção de Kant acerca dos princípios, diz Heidegger: "esta
determinabilidade matemática dos corpos naturais não é todavia, para Kant, de modo algum
uma forma ocasional que lhes é somente acrescentada para o cálculo dos processos; pelo
contrário, este matemático, no sentido do que se move no espaço, pertence, antes de mais e
acima de tudo, à determinação da coisalidade da coisa". E acrescenta: "Os princípios
contêm as determinações das coisas como fenômenos que, antecipadamente, 'a priori',
pertencem às próprias coisas, em conseqüência das formas possíveis da unidade da ligação
segundo o entendimento, quer dizer, das categorias".
6
corresponde um enunciado descritivo, v.g.: "O calor dilata os corpos"; "na natureza nada
se perde, nada se cria, tudo se transforma".
Embora não se possa designar como "fenômenos" aos
processos lógicos, é também nesse sentido (como relação necessária que deriva da natureza
das coisas) que se costuma dizer "princípio da identidade", ou "princípio de nãocontradição"; na prática da linguagem não se costuma dizer "lei da identidade" ou "lei de
não-contradição" (talvez porque se tenha reservado o termo "lei" para aquilo que tem
consistência ou é passível de experimentação; mas fala-se não obstante em "leis do
espírito" e em "lei moral"). 13
5.
Também ontológica é a acepção 9, que considera o princípio
como "fator de existência, organização e funcionamento do sistema, que se irradia da sua
estrutura para seus elementos, relações e funções". Isso é o que tinha em vista Lalande, ao
dizer que do princípio depende "todo o desenvolvimento posterior do sistema".
Essa definição não se opõe às de n° 7 e 8, apenas representa
sua aplicação ao interior dos conjuntos sistemáticos; também não se opõe à concepção do
princípio como "forma" a sua concepção como "fator". Sistema, diz o DCD, é o conjunto
funcionalmente integrado. Fator dessa integração é o princípio, como se vê na definição de
sistema oferecida por Kant: "conjunto ordenado de conhecimentos segundo princípios". O
que se diz do sistema como conjunto de conhecimentos, pode-se dizer de qualquer conjunto
funcionalmente integrado, como acontece também no plano sociológico.
O que nós vemos, ao observar um sistema, são os seus
elementos, mas não sua estrutura. Esta não é aparente. Ela consiste, como já notamos,
numa ordem abstrata, cuja existência precisa ser induzida a partir da observação dos
elementos, de suas relações e de suas funções.
13
Indagar se a estrutura precede aos
Também o termo "lei" parece ter migrado das ciências humanas para as ciências naturais.
7
elementos, ou se os elementos precedem à estrutura, é o mesmo que perguntar o que vem
antes, se o ovo ou a galinha. Os elementos são a matéria que a estrutura anima e define; ou
seja, eles somente se compreendem quando integrados à estrutura, segundo as suas funções.
Como forma-matriz, a força do princípio se exerce na
produção e estruturação do sistema. Tendo em vista um determinado sistema, os princípios
podem concernir ao seu fundamento (princípios fundantes), à sua organização (princípios
estruturantes), e à sua estrutura (princípios estruturais), que se irradiam para os seus
elementos, relações e funções, gerando outros princípios (princípios elementares,
relacionais e funcionais). Princípios fundantes e princípios estruturantes do sistema são
princípios prévios, e podem ser condições ou finalidades do sistema. Tanto os pressupostos
quanto os requisitos são necessários à existência do sistema (podendo ser concebidos, por
isso, como condições), mas os pressupostos existem independentemente do sistema,
enquanto os requisitos ganham existência na conformação do sistema. Para os sistemas
prescritivos o princípio, a par de sua função lógica, traduz seus valores e é fonte de suas
normas. Ele pode ser explícito ou implícito: implícito quando conserva sua forma abstrata;
explícito quando, sem prejuízo de sua natureza, é expressamente formulado, manifestandose como elemento.
6.
Quando se trata da construção de um sistema, princípio é
enunciado modelar, segundo o qual se produz, organiza e estrutura esse sistema. Tratandose, por exemplo, de uma instituição, princípio é antes de tudo o que se pode designar como
sua causa final: aquilo segundo o que ela é construída, sua fonte ou finalidade, e portanto
aquilo que corresponde à sua natureza, essência ou espírito (acepção 10). Ou,
resumidamente, princípio é a idéia (idéia não já, como antes, no sentido de arquétipo, mas
no sentido de algo pensado, projetado pelo homem) de uma instituição. A importância do
costume e das tradições para a configuração das instituições não afasta sua qualidade de
algo construído (e não dado), como obra humana que obedece aos desejos, necessidades,
vontades e aspirações dos homens. 14
8
Sob esse ponto de vista distinguem-se dois tipos de princípio:
um primeiro tipo correspondente ao que se pode chamar "princípios instituídos" ou
"princípios concretos", que fazem parte das instituições tal como existentes. O segundo
tipo compreende os princípios que podemos designar como "princípios ideados", aqueles
que ainda não se incorporaram às instituições tal como existentes, mas que se pretende
venham a nelas se integrar.
Ao princípio como enunciado modelar, na medida em que se
trata de construir as instituições, de desenvolvê-las, ou de adequar os fatos às instituições,
corresponde um enunciado prescritivo. Por exemplo: "todos os homens devem ser tratados
igualmente perante a lei". Mas desde que incorporado ao sistema esse princípio pode ser
lido na forma declaratória: "todos os homens são iguais perante a lei".
É nesse sentido que, entre as várias acepções de "princípio",
Littré arrola "os primeiros preceitos de uma arte ou ciência" (acepção 11), onde "ciência"
pode-se entender também como sinônimo de "método científico".
7.
À parte a ausência de apódose ou sanção - que, como
acontece com muitas normas, pode encontrar-se em outra disposição normativa - o
enunciado "todos os homens devem ser tratados igualmente perante a lei" corresponde ao
enunciado ordinário de uma norma. Quer dizer, então, que sob o ponto de vista
deontológico, princípios são normas?
Nada se opõe, como vimos, a que os princípios sejam
expressos como normas, ou como se fossem normas, e isso não é difícil de acontecer
praticamente, dentro do ordenamento jurídico.
14
Princípios podem ser implícitos ou
"Este mundo civilizado foi feito certamente pelos homens; pode-se portanto, porque se
deve, achar os princípios dentro das modificações da nossa própria mente humana" (G.
Vico, Ciência nova, livro 1°, seção 3a., cf. Julián Marías, La filosofia en sus textos,
Barcelona, Labor, 1963, 2/491).
9
explícitos, e neste último caso porque o legislador entendeu de expressá-los no corpo de
disposições legais, como se fossem elementos do sistema. O que distingue, então, princípio
e norma?
Ambos - princípio e norma - são diretivas imperativas de
comportamento (prescrições). A diferença está em que o princípio é uma prescrição
fundamental (acepção 12).15 O enunciado deontológico "todos os homens devem ser
tratados igualmente", ainda que expresso em artigo de lei não é norma, mas princípio. É
impossível enxergar, nele, outro fundamento que não o princípio da igualdade, do qual ele é
a expressão normativa.
Conselhos,
recomendações,
diretrizes,
prescrições,
mandamentos, comandos, ordens, mandados, princípios, normas, leis, regras, são diretivas
(ou orientações) de comportamento. A imprecisão com que esses termos são utilizados, e
sua habitual superposição, reclama o estabelecimento de um consenso quanto ao seu
significado. Dentre as diretivas acima referidas, conselhos, recomendações e diretrizes não
são imperativos;
16
prescrições são diretivas imperativas, e podem ser genéricas ou
15
Nesse sentido a preleção de Celso Antônio Bandeira de Mello: "Princípio é, por
definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de
critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido
harmônico." (Elementos de Direito Administrativo, S. Paulo, Revista dos Tribunais, 1984,
p. 230).
16
Como "imperativo" se entende, nesse contexto, a diretiva de comportamento vinculante.
Em textos legais não se costuma encontrar o termo "imperativo", que não tem curso no
linguajar jurídico, a não ser um tanto atecnicamente, quando se faz referência, por exemplo,
a "imperativo estatal", ou quando se fala das normas jurídicas como correspondendo a
imperativos hipotéticos. Na filosofia kantiana o termo "imperativo" corresponde a uma
diretiva ou orientação de comportamento, podendo consistir num imperativo hipotético ou
no imperativo categórico. Imperativos hipotéticos são os que recomendam uma ação como
adequada a um fim (se você quer x, então faça y). O imperativo categórico corresponde ao
princípio da moral, e assim se expressa: "Procede apenas segundo a máxima em virtude da
qual podes querer ao mesmo tempo que ela se torne lei universal" (Fundamentação da
metafísica dos costumes, conforme tradução de António Pinto de Carvalho, S. Paulo,
10
específicas. Na verdade, a distinção entre elas é que umas (designadas como específicas)
mandam para o presente, tendo em vista o que aconteceu e o que é preciso fazer agora, e
outras (designadas como genéricas) dispõem para o futuro, para o que pode vir a acontecer,
e daí seu caráter aberto. Ordens são prescrições específicas, para o caso individual, que
supõem subordinação e exigem obediência. Os termos “comando” e "mandamento" são de
significado variável, utilizados ora como prescrições genéricas, ora como prescrições
específicas, e o último convém ser reservado, em Direito, para os casos em que há ação ou
sentença mandamental.
17
O termo “mandado” usa-se em Direito como determinação
judicial, ou mais adequadamente como instrumento da determinação judicial. Princípios,
normas, leis, regras, são prescrições abstratas e genéricas. Norma é a prescrição genérica,
preceptiva, ou a regra que se transformou em preceito, e que portanto se enuncia ao modo
de consequência: se x, logo y.
18
O termo "lei" convém ser reservado, em Direito, para
indicar a norma jurídica em seu aspecto formal (v.g. a lei do inquilinato, o código penal, a
Constituição), ou a norma jurídica primária (neste caso a lei ordinária ou a lei
complementar, por oposição a normas jurídicas de outra hierarquia). Ao termo "regra"
convém melhor a idéia de Montesquieu, como a regularidade ou constância que a
Companhia Editora Nacional, 1964, p. 83) ou então "Procede como se a máxima da tua
ação pudesse ser erigida, por tua vontade, em lei universal da natureza" (id).
Os termos “comando” e “mandamento” são usados como sinônimos, seja como diretiva
genérica de comportamento, seja como diretiva específica, equiparada a “ordem”. É o que
acontece também com o termo alemão “Gebot”, que costuma ser traduzido como
“comando, mandamento, ordem”. Na tradução da “Fundamentação da metafísica dos
costumes” elaborada por António Pinto de Carvalho para a Companhia Editora Nacional
(São Paulo, 1964), lê-se: “A representação de um princípio objetivo, na medida em que
coage a vontade, denomina-se mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chamase imperativo”; mas em “A Kant Dictionary”, de Howard Caygill (Oxford, Blackwell,
1999), assim consta a referência ao mesmo texto da Fundamentação da Metafísica dos
Costumes”: “Command (Gebot) .... “representation of an objective principle insofar as it
necessitates the will”, que pode ser traduzida como “representação de um princípio
objetivo, enquanto vinculante da vontade”.
17
18
"Os
princípios não se confundem com as normas porque não possuem a estrutura destas,
isto é, não se desdobram em hipóteses e conseqüências, nem permitem a subsunção direta
de casos específicos” (F. Müller, Die Einheit der Verfassung. Berlin, Duncker & Humblot,
1979, p. 192).
11
inteligência enxerga, por indução, na natureza das coisas, e que, por isso, pode vir a adotar
como diretiva de comportamento (tal como, por exemplo, as regras sintáticas).
8.
A noção de princípio como prescrição fundamental (acepção
12) é meramente formal, e não leva em conta o que se disse ao início destas linhas: que à
sua base está uma distinção valorativa.
opções valorativas.
Toda norma implica, na sua elaboração, várias
Essas opções, que são fundamentos da norma, correspondem a
princípios. Os princípios, portanto, sob esse aspecto, são opções valorativas implicadas,
como fundamento, no enunciado das normas (acepção 13). Essa acepção ainda não contém
uma definição suficiente de princípio, mas um esclarecimento que, ao mesmo tempo em
que o distingue da norma, mostra sua relação com a norma.
Toda norma deve ser lida como se fosse o parágrafo de um
artigo cujo “caput” compreende os princípios de que se irradia, e que justificam sua
existência como norma. É isso que se tem em vista ao afirmar que as normas devem ser
aplicadas segundo seu espírito, e não segundo sua literalidade.
Aplicar uma norma
contrariamente aos respectivos princípios é o mesmo que aplicar outra norma, inexpressa,
ou talvez inexistente no sistema. Do mesmo modo, tratando-se de um sistema logicamente
consistente, a observância das normas assegura "ipso facto" o cumprimento dos princípios.
É impossível, porém, construir um ordenamento jurídico composto unicamente por
princípios. 19
19
"Careceria de sentido - diz Gadamer - um saber geral que não saiba aplicar-se à situação
concreta" (Warheit und Methode, cf. a edição espanhola (Hans-Georg Gadamer, Verdad y
método, Salamanca, Sígueme, 1993, p. 384). No mesmo sentido a afirmação de Antonio A.
B. Pécora: "Não há como pensar a ética em termos de princípios que não se particularizem
como ocorrência: as potências não cumprem integralmente sua substância ética sem que a
efetuem atos, que são, neste caso, tanto circunstancial como ontologicamente relevantes".
Política do céu (Anti-Maquiavel), in Ética (Adauto Novaes, org.) S. Paulo, Companhia das
Letras, 1992)
12
É possível aplicar princípios independentemente da existência
de normas, mas sua exigibilidade supõe a existência das normas. A mediatidade é
característica do princípio jurídico, assim como a imediatidade é característica da norma.
9.
20
A nobreza dos princípios fez com que se passasse a assim
designar algumas normas de grande extensão. Segundo essa concepção, seria possível
imaginar uma pirâmide hierárquica envolvendo princípios e normas, nela dispostos, à
semelhança do que normalmente supõe-se acontecer com os conceitos, segundo uma ordem
de crescente ou decrescente generalidade. Essa prática, entretanto, tolda a distinção entre
princípios e normas, e traz imprecisão ao conceito de princípio, que passa então a ser
considerado como uma norma "de grande generalidade". 21
É sabido que os conceitos se classificam segundo uma relação
de inclusão, tendo em vista a sua compreensão e extensão. Assim, por exemplo, o conceito
"paulista" tem menor extensão que o conceito "brasileiro", e nele se inclui. Já a extensão
das normas é demarcada pelo seu objeto ou campo de incidência, mas elas não se incluem
logicamente em outras normas; é o seu campo de incidência que se inclui em outro campo
de incidência mais amplo, ao modo como o direito das obrigações se inclui no campo do
direito civil, e este se inclui no campo do direito privado. O direito das obrigações
compreende várias normas cujo objeto corresponde ao mesmo campo de incidência; esse
campo de incidência é demarcado por um corpo de princípios, que aglutina essas normas e
estrutura o respectivo sistema.
20
Diz Dahl: "A ação inteligente requer não só princípios gerais, mas também conhecimento
das circunstâncias concretas. Os princípios oferecem uma orientação, não um caminho; um
compasso, não um mapa. O consenso sobre princípios facilita o diálogo mas não produz
automaticamente um acordo quanto às conclusões." (Dahl, Robert: After the revolution?:
authority in a good society. Yale University Press, New Haven & London, 1990, p. 88).
21
"Para o direito continental" - diz Friedrich Müller - "a norma jurídica distingue-se do
princípio jurídico não pelo seu nível de abstração (Abstraktheit), mas pela
determinabilidade do evento material a que se aplica. O princípio surge, face à cláusula
geral, não como diretiva determinada ou determinável, mas como seu fundamento, critério
e justificação" (Strukturiende Rechtslehre, Berlin, Duncker & Humblot, 1994, p. 202).
13
É sem dúvida possível, dentro de cada sistema deontológico,
estabelecer uma pirâmide hierárquica, tendo as normas à sua base e, no seu topo, os
princípios rectores do sistema. Se esse sistema, assim como o direito das obrigações com
relação ao direito civil, é inscrito em outro de maior extensão (chamêmo-lo, então, de subsistema), os respectivos princípios (princípios sub-sistemáticos) inscrevem-se abaixo dos
princípios sistemáticos na pirâmide sistemática, que tem à sua base as normas, distribuídas
segundo os vários campos de incidência.
Tanto os princípios quanto as normas possuem um campo de
incidência, demarcado pelos respectivos enunciados. Entretanto, o campo de incidência do
princípio sistemático tem extensão correspondente ao âmbito do respectivo sistema. A
norma incide sobre um fato ou ato jurídico, enquanto a eficácia do princípio diz respeito à
elaboração e aplicação das normas. Princípios não têm suporte fático, ao contrário das
normas. Estas pretendem ser instruções sobre o modo como se aplicam os princípios em
situações determinadas, por elas previstas.
22
Por isso o enunciado "todo cidadão deve ter
vergonha na cara" (cuja extensão é a mais ampla possível, pois abrange o campo
correspondente a todas as ações humanas) não chega a ser uma norma, nem seria suficiente
para pautar juridicamente o comportamento das pessoas.
10.
Em síntese, e sob o ponto de vista deontológico, princípio é a
prescrição consistente numa opção valorativa fundamental (acepção 13).
Falar em "opção valorativa" é quase redundante, porque todo
valor implica uma escolha. No termo "princípio", como vimos, está bem presente o
elemento gnoseológico: ele não aponta, como a maioria dos termos, para algo externo ao
22
"A norma distingue-se do princípio porque contém uma regra, instrução, ou imposição
imediatamente vinculante para certo tipo de questões....Os princípios são núcleos de
condensação nos quais confluem bens e valores constitucionais..." (J.J.G. Canotilho e Vital
Moreira, Fundamentos da Constituição. Coimbra Ed., 1991, p. 49).
14
homem, mas apropria uma relação entre o homem e a realidade. O mesmo acontece com o
termo "valor", correspondente não ao que vale em si, mas ao que é valioso para um sujeito
determinado, ou para um conjunto determinado de sujeitos.
Dizer que todo valor implica uma escolha significa que
normalmente existe alinhada, à disposição das nossas preferências, uma série de valores, ou
uma série de coisas valoradas, que podem ser escolhidas como objeto ou fim das nossas
ações. Essas escolhas não são necessariamente polares, antagônicas ou excludentes. Ao
alcance dos nossos desejos estão vários bens, situados um ao lado do outro,
independentemente do valor supremo que tenhamos escolhido como fundamental, ou
independentemente de que tenhamos escolhido, para nossas vidas, um valor supremo tal
como seriam, por exemplo, a riqueza, a felicidade ou a perfeição.
Isso, que se observa com mais facilidade na determinação dos
fins individuais, observa-se igualmente na determinação dos fins da sociedade. São várias
as concepções sobre o valor supremo do direito, indicados, aqui e ali, como sendo a justiça,
a ordem ou a paz. Essas são concepções abstratas, doutrinárias ou subjetivas, que se
manifestam rotineiramente sob a forma de escolhas excludentes no ofício do jurista, do
legislador ou do juiz. Mas o que se vê normalmente referido no ordenamento são valores
com menor grau de abstração, alinhados expressamente no mesmo nível, como princípios
ou finalidades. A figura da pirâmide, portanto, não é inteiramente ajustada à descrição de
um sistema valorativo: seu topo não é agudo, mas corresponde a um platô, onde se
justapõem vários princípios de igual naipe. 23
Na verdade, essa é uma descrição topológica do sistema
normativo, útil na medida em que sejam explicitados os princípios sistemáticos. Ela
permite a fácil verificação da compatibilidade das normas com aqueles princípios
23
É o que também aconteceria à ordem dos conceitos, como pretende mostrar Gerhard Otte,
invocando Aristóteles: inexiste o 'summum genus', a classe das classes, apesar do hábito de
se incluir, como 'ser', tudo que cai em qualquer das categorias (Dialektik und Jurisprudenz,
Frankfurt am Main, Vittorio Klosterman, 1971, p.65).
15
sistemáticos. Observados sob esse aspecto, os princípios são indutores da elaboração das
normas, que se distribuem pelo campo de aplicação do sistema como que a preencher um
espaço até então vazio. Esse processo de construção é tanto mais visível - a partir, por
exemplo, dos princípios constitucionais - quanto maior seja a racionalidade do sistema.
Entretanto, não é assim que as coisas costumam acontecer na
infância do Direito, no direito costumeiro, ou mesmo na prática do processo legislativo.
Tem-se em tais casos a visão da árvore e não da floresta, e o que prevalece no processo de
criação do costume, da regra costumeira, ou da norma escrita, é primeiramente o fato que se
pretende regular, e só depois os critérios dessa regulação. Daí a observação de Marcello
Caetano: "os princípios, na sua grande maioria, não são postulados, não são conceitos
intuídos 'a priori': são sínteses extraídas das normas, por abstração de aspectos do seu
conteúdo ou da sua forma".
24
E, igualmente, a observação de Karl Larenz: "À ordem
jurídica está imanente um complexo de princípios fundamentais ordenadores, de que o
próprio legislador terá partido, consciente ou inconscientemente, nas suas valorações ....O
princípio jurídico, no sentido que Esser lhe atribui, é 'descoberto' originariamente no caso
concreto, e só depois se condensa numa 'fórmula' que sintetiza uma série de pontos de vista
que, nos casos típicos, se revelam corretos".
25
Na verdade, podemos desenhar uma outra figura do sistema
valorativo, em que os elementos não se superpõem segundo a extensão dos respectivos
campos de aplicação, mas em que eles se encadeiam horizontalmente, segundo uma relação
de meios e fins. Sobreleva, aí, a função das normas, e não dos princípios. As normas são
meios para a consecução de determinados fins, que por sua vez são instrumentos para a
consecução de outros fins. Sendo vários os meios ou caminhos disponíveis para alcançar o
mesmo fim, essa relação não é unívoca. Isto significa que, mesmo sendo sinalizada a
24
Marcello Caetano, Princípios fundamentais do direito administrativo, Rio de Janeiro,
Forense, 1977, p. 22.
25
Karl Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, cit. conforme a tradução portuguesa
de José de Sousa e Brito e José António Veloso: Metodologia da ciência do direito, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 153 e 154.
16
teleologia do sistema mediante a manifestação dos seus princípios, ressalva-se a liberdade
do legislador quanto aos meios necessários à sua consecução. À base de cada norma
encontram-se não apenas as opções valorativas (os princípios) correspondentes ao sistema a
que ela pertence, mas também as opções valorativas (inclusive as opções técnicas) feitas
livremente pelo seu autor, desde que compatíveis com o sistema.
Assim, ao lado dos princípios indutores de um sistema princípios fundantes, estruturantes ou estruturais desse sistema - também é possível
identificar outros princípios estruturais, induzidos a partir das normas componentes do
sistema.
Nesta hipótese, dificulta-se a solução das incompatibilidades entre normas e
princípios, porque são raros os casos de sistemas principiologicamente fechados, como
acontece com uma Constituição. É possível falar em incompatibilidade de uma emenda
constitucional com relação a princípios implícitos, induzidos do corpo das normas
constitucionais. Isso já não acontece com o conjunto da legislação infra-constitucional,
onde se pode falar com mais propriedade em conflitos de princípios. O legislador, com
efeito - desde que respeitada a consistência do sistema - não é vinculado pelo que se entrevê
a partir de um mesmo critério, utilizado anteriormente na formulação de várias normas de
um sistema, e de cuja regularidade se induz um princípio.
11.
dos princípios.
São vários os motivos que dificultam, na prática, a aplicação
26
Um deles, possivelmente, a referência aos princípios gerais do direito
como se fossem de certo modo externos ao ordenamento, como acontece com o art. 4° da
26
A par desse desdém pelos princípios existe paradoxalmente, em alguns setores, uma
supervalorização dos princípios. Waldemar Schreckenberger trata como "fundamentalista"
a prática argumentativa do Tribunal Federal Constitucional alemão, que "se apresenta como
um intento de reduzir os textos jurídicos, e em particular o texto constitucional, a uma
ordem de princípios", de tal modo que caberia falar, nesse caso, em uma "idolatria dos
princípios" (Rhetorische Semiotik: Analyse von Texten des Grundgesetzes und von
rhetorischen Grundstrukturen der Argumentation des Bundesverfassungsgerichtes, cit.
conforme edição em língua espanhola: Semiótica del discurso jurídico, México, UNAM,
1987, pp. 170ss.).
17
lei de introdução ao código civil, em que eles são mencionados, juntamente com a analogia
e os costumes, como fontes supletivas ou secundárias do direito.
Princípios gerais do direito são princípios superiores (ou
anteriores), decorrentes da natureza do direito. Contrariá-los significa contrariar a idéia do
direito, tanto quanto o ordenamento jurídico. Princípio geral do direito é, por exemplo, o
princípio da dignidade da pessoa humana, de que são expressões os princípios da liberdade,
da isonomia e da proporcionalidade.
Abaixo deles encontram-se os princípios
constitucionais, independentemente de que, no catálogo destes, se incluam princípios
gerais do direito.
Princípios fundantes da Constituição são aqueles inseparáveis
do conceito e existência de Constituição. Por isso eles independem do ato constituinte, no
sentido de que só mediante sua observância se consegue produzir uma verdadeira
Constituição. Pode-se por isso, parodiando o dito clássico relativo à natureza, dizer que
“Constitutio ne facitur nisi parendo”. Entre os princípios fundantes alinham-se condições de
existência da Constituição, embora haja condições constitucionais que não são princípios,
mas apenas pressupostos e requisitos de existência da Constituição (assim, por exemplo, a
existência de um povo soberano - pressuposto material - e de promulgação da Constituição
escrita - pressuposto formal).
São princípios fundantes da Constituição os princípios gerais
do direito implicados na sua existência, finalidade e funções – entre eles os acima referidos
princípios da liberdade, da isonomia e da proporcionalidade – e princípios técnicos
concernentes à natureza da Constituição, como os princípios da supremacia e da rigidez.
Os princípios da supremacia e da rigidez não precisam constar
explicitamente no corpo da Constituição. O princípio da rigidez não se confunde com a
fórmula da rigidez, tal como expressa em norma constitucional. Por outro lado, embora
não seja usual, nada impede que o princípio da supremacia venha expresso como
dispositivo da Constituição, possivelmente com este enunciado: “As normas desta
18
Constituição aplicam-se acima de quaisquer outras, sob pena de nulidade”. Esse enunciado
é “sui generis” porque idêntico ao de uma norma, e possuidor de suporte fático de
incidência, que é a existência de uma norma incompatível com a Constituição; contudo,
seus destinatários são o legislador e o aplicador da norma, e não se enxerga, antes dele,
princípio ou norma que o fundamente.
Princípios estruturantes são princípios que estabelecem
e
organizam a Constituição. Eles dizem respeito à estruturação da Constituição, e por isso,
embora não sejam princípios estruturais, integram-lhe a estrutura. São princípios
estruturantes, por exemplo, aqueles segundo os quais determinada matéria é incluída na
Constituição, seja originária seja derivadamente. A reunião das leis constitucionais num
único texto, ou a inclusão, nesse texto, de um ato das disposições constitucionais
transitórias, são atos materiais de estruturação da Constituição, mas o critério segundo o
qual nela se incluem correspondem a princípios estruturantes da Constituição. Também
estruturante é o princípio de unidade da Constituição, e não princípio fundante, porque é
possível incluir, no texto constitucional, normas estabelecendo graus hierárquicos com
relação a princípios constitucionais.
Tanto
os
princípios
fundantes
quanto
os
princípios
estruturantes têm como objeto a própria Constituição, voltam-se sobre ela, e podem por isso
ser designados como princípios duplamente constitucionais, ou, melhor, como princípios
reflexivos.
Os outros princípios constitucionais – princípios estruturais – podem ser
designados como princípios intencionais, porque têm como objeto fatos externos à
Constituição.
A Constituição é um corpo lógico cujos elementos (as normas
de natureza constitucional) se agrupam segundo uma ordem determinada de relações. A
estrutura da Constituição consiste nessa ordem abstrata de relações, que se estabelece a
partir de sua existência, e princípios estruturais são aqueles que a compõem. Os elementos
são o corpo físico da Constituição, a estrutura é a trama lógica correspondente à sua
19
essência ou identidade. O sistema é o corpo lógico, composto pelos elementos e pela
estrutura, e operante segundo suas funções.
Isto significa que, à descrição do sistema constitucional, não
basta descrever sua estrutura. Dizer que o sistema é o corpo “operante segundo suas
funções” significa que à existência da Constituição não basta a existência do seu texto.
Mediante a atuação dos princípios estruturais - que são princípios intencionais, como os
princípios sociais, o princípio democrático, o princípio do pluralismo - a estrutura projetase para fora de si mesma, empenhando-se na edificação do governo e da sociedade. Os
princípios reflexivos não esgotam sua eficácia com a construção do texto da Constituição,
nem satisfaz-se, a estrutura constitucional, em permanecer aprisionada ao texto. Tanto os
princípios reflexivos quanto os princípios estruturais da Constituição, ao modelar o governo
e a sociedade, constroem o corpo pulsante, o corpo vivo da Constituição, de cuja
instauração o corpo textual só vale como instrumento.
12.
Se os conflitos entre normas resolvem-se segundo fórmulas
bastante conhecidas, o mesmo não acontece quanto aos conflitos entre princípios, e aos
conflitos entre princípios e normas.
Na definição dessa matéria são úteis alguns conceitos acima
mencionados, como os de hierarquia sistemática, de princípio induzido, princípio
sistemático e princípio sub-sistemático, a que se acrescentam agora as noções de princípio
originário e norma originária.
Devemos também distinguir o que acontece com relação à
Constituição daquilo que acontece com relação ao conjunto normativo infra-constitucional.
Havendo conflito entre princípio e norma, prevalece o
princípio, pois todo elemento é elemento do sistema, subordinado à sua estrutura, com
relação à qual se justifica e entende. Pode ocorrer porém que o conflito seja aparente, o que
20
acontece quando a norma é contemporânea do sistema, como sua integrante originária
(norma originária). Isso porque "nas leis e decretos não há palavra que se julgue inútil, e
que não opere seu efeito".
27
Nesse caso a norma não se entende como exceção ao
princípio, mas ou como sua especificação, ou como a manifestação de outro princípio do
mesmo sistema.
Coisa diversa acontece com a norma nova, que pretende
integrar-se ao sistema: se ela contraria princípio explícito do sistema infra-constitucional, é
repelida por ilegalidadade; se contraria princípio induzido do sistema (princípio implícito),
é admitida quando não lhe ofende a consistência. A legislação infra-constitucional, como
conjunto aberto, admite alteração estrutural que não afete a consistência do sistema.
A concorrência (conflito aparente) entre princípios resolve-se
na sua harmonização, sejam eles ou não do mesmo nível hierárquico, desde que integrantes
originários do sistema (princípios originários).28 Sendo esses princípios de graus
hierárquicos distintos - como acontece na Constituição brasileira, em que se vêem
princípios fundamentais (v.g. arts. 1° e 3°), princípios pertinentes a direitos fundamentais
(v.g. art. 5°), princípios gerais (como o princípio da isonomia, art. 5°, "caput") e princípios
particulares (v.g. art. 150-II ou 150-III) - os princípios sub-sistemáticos se interpretam em
consonância com os princípios sistemáticos, e os princípios particulares em consonância
com os princípios gerais. Assim como não se afasta a norma originária – como se fosse
inexistente - pela sua aparente contradição com um princípio, não se afasta um princípio de
grau inferior (princípio estrutural, princípio sub-sistemático, princípio particular) pela sua
27
28
Assento de 22 de outubro de 1778.
"Os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma 'lógica do tudo ou nada', antes
podem ser objeto de ponderação e concordância prática, consoante o seu 'peso' e as
circunstâncias do caso."(J. J. G. Canotilho, id, p. 196). "Os princípios, por definição,
encarnam valores em estado de fricção potencial ou latente, ....a postular, assim, um manejo
bem mais cuidadoso dos métodos de interpretação jurídica, no que toca à seleção daquele
princípio que, numa situação em concreto, deva preponderar sobre o outro." (Carlos Ayres
Brito, As modernas formas de interpretação constitucional, in "10 anos de Constituição uma análise". S. Paulo, 1988, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, p. 32.
21
aparente contradição com um princípio de grau superior: busca-se sua conciliação com
aquele.
Mas há conflito quando, mediante reforma, se procura
introduzir na Constituição norma ou princípio novo, contrário a princípio pre-existente.
Reforma constitucional, por definição, só pode alterar elemento do sistema (norma de
natureza constitucional), mas não lhe pode afetar a estrutura, que corresponde ao ser, ou à
identidade do sistema. Isso só é possível mediante revisão, desde que prevista, e nos casos
em que seja prevista.
13.
Disse com felicidade o desembargador José Osório de
Azevedo Júnior: "É verdade que, na cabeça do juiz, se o advogado alegou algum 'princípio'
é porque não tem razão; se invocou o art. 5° da lei de introdução, a função social da
propriedade, é porque não tem direito, e então começa a apelar para o milagre, para aquele
ato desesperador, pois, se tivesse direito, indicaria o específico dispositivo da lei." 29
Contudo, tanto quanto as leis - e mais do que elas - os
princípios são fontes primárias do direito e integrantes do ordenamento jurídico positivo,
sejam eles princípios fundantes, princípios estruturantes, ou princípios estruturais do
ordenamento. Eles são – como diz Canotilho a propósito dos princípios constitucionais "princípios historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência
jurídica",
30
a partir da necessidade de justificação das normas. No passado as leis valiam
por si mesmas – tal como mandamentos divinos - independentemente do seu conteúdo e
em razão simplesmente da autoridade do seu emissor.
Normas, entretanto, não são
mandamentos nem ordens. A chamada “principialização” do Direito e da Constituição
corresponde ao aumento da consciência sobre sua natureza, e ao processo histórico de
“hominização”.
29
in Problemas e reformas - subsídios para o debate constituinte. São Paulo, OAB, 1988, p.
303.
30
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra, Livraria Almedina,
1986, p. 120.
22
Santos, 7 de abril de 2001
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