etiopatogenia das tiroidites auto-imunes

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ACTA MÉDICA PORTUGUESA 1989; 4 5:231-233
ARTIGO DE REVISÃO
ETIOPATOGENIA DAS TIROIDITES AUTO-IMUNES
FRANCISCO MANUEL CARRILHO
Serviço de Endocrinologia. Hospitais da Universidade. Coimbra
RESUMO
O autor faz uma revisão da etiopatogenia das tireoidites auto-imunes: antigénio sequestrado, antigénio modificado, selecção dona!, tolerância imunitária por pequenas doses do antigénio e alterações
da imunorregulação. Referem-se os principais auto-anticorpos anti-tireoideus, suas características e fun
ções. Refere-se a susceptibilidade genética associada aos antigénios HLA bem como a importância da
expressividade aberrante HLA nas células foliculares tireoideias. A tireoidite auto-imune experimental
induzida ou espontânea é referida como modelo para estudo das tireoidites auto-imunes humanas.
SUMMARY
Ethiopathogeny of Autoimmune Thyroiditis
The author reviews the ethiopathogeny of autoimmune thyroiditis: sequestered antigen, clonal
selection, acquired tolerance with low doses of antigen and disordered immunoregulation. The main
thyroid autoantibodies, their characteristics and functions are described. The genetic susceptibility asso
ciated to HLA antigen as well as the importance of inappropriate expression in thyroid epithelium are
also pointed out. The experimental autoimmune thyroiditis, induced or spontaneous is shown as a
model to the study of human autoimmune thyroiditis.
INTRODUÇÃO
As doenças auto-imunes podem apresentar-se com ou sem
especificidade de órgão. No mesmo grupo coexistem doenças
auto-imunes da tireoide e outras endocrinopatias auto
-imunes com as quais a associação é mais frequente. A asso
ciação no mesmo doente de doenças auto-imunes com e sem
especificidade de órgão é mais rara.
A expressividade clínica das tireoidites auto-imunes é
muito significativa. Segundo R. Volpé, podem apresentar
diferentes variantes clínicas: tireoidite de Hashimoto, tireoi
dite fibrosa crónica, tireoidite linfocitária da criança e ado
lescente, tireoidite do post-partum, mixedema primário
Serão desenvolvidas as características patogénicas funda
mentais e comuns das tireoidites auto-imunes sem definir as
características particulares das variantes clínicas.
A ausência da resposta imunitária relativamente aos cons
tituintes próprios e historicamente definidos por Erlich como
horror autotoxicus, fundamentou um dos clássicos princí
pios da imunologia. A distinção tradicional entre sei/e not
-self caracteriza-se no essencial pela capacidade de induzir,
relativamente a esses antigénios, uma résposta imunitária
humoral e ou celular. A tolerância imunitária aos auto
-antigénios termina quando há agressão auto-imune. Impor
tantes alterações caracterizam o conhecimento actual dos
mecanismos auto-imunes. A resposta auto-imune não é sem
pre patológica e não conduz inevitavelmente à doença auto-imune. Algumas formas de auto-imunidade, com
reconhecimento antigénico e resposta auto-imune,
consideram-se normais e mesmo essenciais à função imunitá
ria normal pois aumentam e diversificam a capacidade de
Recebido para publicação: 6 de Julho de 1987.
resposta do sistema imunitário. Ë exemplo a resposta anti
-idiotípica relativamente aos idiotipos próprios ~.
Não existe teoria unificadora capaz de responder à com
plexa patogenia das doenças auto-imunes organo-específicas.
A diminuição ou ruptura da tolerância imunitária essencial
ao início e desenvolvimento auto-imune tem várias causas
possíveis e prováveis.
Patogenia da Auto-Imunidade
Antigénio sequestrado
A função tireoideia normal
esteve associada durante muitos anos à aceitação de que a
tireoglobulina tinha localização restrita no espaço coloidal
folicular da tireoide sem reconhecimento prévio pelo sistema
linfóide; a entrada na circulação poderia estar na origem de
doença tireoideia e particularmente das tireoidites auto
-imunes. Hoje sabe-se que a tireoglobulina não é um antigé
nio sequestrado e que está presente, em concentrações
variáveis, na circulação periférica de indivíduos normais ~.
Antigénio modificado
Antigénios tireoideus alterados
na origem de doença auto-imune não foram até agora
demonstrados. Estruturas virusais ou virus-likes têm sido
referidas na tireoide de alguns animais e na tireoide humana
de doentes com patologia auto-imune. No entanto, as mes
mas estruturas foram já encontradas em tecido tireoideu nor
mal. Não há prova de que o processo auto-imune tireoideu
tenha início em alterações antigénicas, seja por mutação ou
por alteração química 2~
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FRANCISCO MANUEL CARRILHO
Selecção clonai
Segundo Burnet, a tolerância imunitá
ria aos auto-antigéneos resultaria da eliminação fetal das
células com capacidade potencial de produzir anticorpos
após um contacto prévio e muito precoce com os auto
-antigéneos
delecção clonal. Mais tarde, outros autores,
Nossal e al., referem que as células B numa fase precoce de
maturação entre pré-B e B, se colocadas perante os auto
-antigénios, adquirem facilmente a tolerância imunitária.
Para que esta aquisição seja efectiva não é necessária a des
truição do clone celular mas antes a inactivação funcional
precoce dos linfócitos B específicos. É pois normal a pre
sença de células auto-reactivas com competência potencial
mas sem capacidade de actuação específica. Relativamente à
função tireoideia comprova-se no indivíduo normal a pre
sença de um pequeno número de linfócitos B circulantes
capazes de fixar a tireoglobulina em receptores imunoglobu
línicos de superfície. Está também experimentalmente
demonstrada a presença em normais de células T auto-reactivas. Pode-se concluir que a tolerância imunitária coex
ista com a presença de clones celulares B funcionaimente
inactivos
anergia clonal
o que exclui a sua destruição
precoce ou delecçõo clonal 2 4~
Tolerância imunitária por pequenas doses do antigénio
A tolerância imunitária pode ser obtida pela imunização
com doses variáveis de antigénio. A utilização de pequenas
doses provoca a não reactividade das células T. A tireoglo
bulina, auto-antigénio presente em pequena concentração é
capaz de provocar a não reactividade das células T, consti
tuindo o melhor exemplo de tolerância imunitária por
pequena dose de antigénio ~.
Imunorregulação: células supressoras e idiotipos anti
-idiotipos
A acessibilidade dos auto-antigénios e a pre
sença de células auto-reactivas, criam condições para que a
doença auto-imune seja teóricamente frequente no indivíduo
normal. No entanto, a auto-agressão imunitária tireoideia
não é frequente nem é própria do indivíduo normal. Existem
outros importantes mecanismos reguladores da resposta
imune associados à acção reguladora e efectora das subpo
pulações linfocitárias. Segundo R. Volpé, a cada doença
auto-imune organo-específica corresponde uma lesão própria
da imuno-regulação secundária provavelmente a um déficit
das células T supressoras espe~cíficas. As células B auto-reactivas normalmente presentes só produzem auto-anticorpos com a ajuda das células T helper específicas.
Estas, normalmente não existem, mas quando presentes,
após mutação, são frenadas pelas células T supressoras o que
impede a doença auto-imune. A associação, no mesmo indi
víduo, de duas ou mais doenças auto-imunes organo
-específicas sugere a associação de deficiências singulares e
selectivas das células T supressoras. O déficit generalizado
das células T supressoras não tem sido experimentalmente
demonstrado. Alguns autores não o encontram e, outros
com resultados positivos, mantêm reservas à sua valorização,
pois o hipertireoidismo deprime as células T supressoras. Os
resultados mais convincentes resultam de um trabalho de
Okita e ai. de q~e se resumem algumas conclusões: 1.
linfóticos T de doentes com tireoidite de Hashimoto são
capazes de produzir o M1F só quando em presença de antigénios tireoideus e não de outros antigénios; 2.”
a associa
ção de linfóticos T normais aos linfócitos dos doentes com
tireoidite de Hashimoto suprime a produção do MiF; 3.
a posterior associãção de linfócitos T de doente com a
mesma doença, não altera a capacidade inicialmente
demonstrada de produzir o MIF.
Em conclusão: na patogenia das tireoidites auto-imunes
há, provavelmente, a associação de vários factores imunoge
néticos. O déficit selectivo das células T supressoras, consti
tui neste momento, o mecanismo patogénico principal.
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Auto-Imunidade Humoral e Celular
Os auto-anticorpos presentes nas doenças auto-imunes da
tireoide são fundamentais na patogenia e expressividade clí
nica. Não se conhecem modificações antigénicas importan
tes, pelo que os mecanismos imunoreguladores são decisivos
na patogenia auto-imune, condicionando a produção de dife
rentes auto-anticorpos anti-tireoideus. Estes com funções e
especificidades distintas estão em relação directa com o qua
dro clínico tireoideu e sistémico. As doenças tireoideias auto
-imunes podem ser consideradas como pertencendo a um
espectro de doenças com etiopatogenia semelhante ou
comum (deficiências específicas da imunoregulação), mas
também com autonomia suficiente para produzirem diferen
tes anticorpos e distinta expressão clínica.
Nas tireoidites auto-imunes encontram-se os auto-anticorpos: anti-tireoglobulina; anti-microsomais, com
acção citotóxica e fixadores do complemento; anti-segundo
antigénio do colóide (CA 2); anti-antigénios celulares de
membrana; anti T e T ~; estimuladores e inibidores do cres
cimento celular tireoideu que condicionam a presença de
bócio ou de tireoide atrófica.
Para o diagnóstico é fundamental a quantificação dos
anticorpos anti-tireoglobulina e anti-microsomais; estes últi
mos com melhor correlação diagnóstica. Em outras doenças
auto-imunes tireoideias encontram-se também anticorpos
capazes de estimularem ou inibirem o receptor para a TSH
pelo que determinam a presença de hiper ou
hipotireoidismo ‘~.
A lesão imune celular localizada à tireoide acontece após
activação das células T helper com especificidade antigénica
tireoideia. Os principais mecanismos de citotóxicidade são
produzidos de forma directa ou mediados por anticorpos
(ADCC) .7
HLA
A expressividade celular dos antigénios codificados pelos
genes HLA é diferente segundo a classe a que pertencem. Os
•antigénios da classe 1 (A, B, C) estão presentes em quase
todas as células nucleadas e plaquetas, ainda que com dife
rente expressividade quantitativa. Os antigénios da classe II
(DP, DQ, DR) estão presentes em monócitos, macrófagos,
células de Langerhans, endotélios vasculares e linfócitos B.
Botazzo e al., demonstraram que as células foliculares tireoi
deias em patologia auto-imune exprimem também os antigé
neos DR o que poderia constituir um acontecimento
primário, relativamente ao qual se associam posteriores
feni5menos auto-imunes, pois a presença do DR torna possí
vel a apresentação de antigénios tireoideus a algumas subpo
pulações celulares imunologicamente competentes. O mesmo
se relatou na diabetes mellitus tipo 1. Os mesmos autores
referem posteriormente que a expressividade DR nas células
foliculares pode ser induzida pelo interferon produzido pelos
linfócitos T, o que a classifica como fenómeno secundário e
de muito menor importância na patogenia auto-imune. Na
tireoidite de Hashimoto que se apresenta com bócio há
expressividade HLA DR5, enquanto na tireoidite atrófica há
expressividade HLA B8, DR 3 ‘~
Tireoidite Auto-Imune Experimental (EAT)
A tireoidite auto-imune experimental constitui um modelo
para estudo da patogenia das tireoidites auto-imunes.
Conhecem-se dois modelos principais: formas experimentais
com indução das lesões tireoideias (ex.: ratinho, coelho, etc.)
e modelos com início espontâneo da doença (ex.: frangos
ETIOPATOGENIA DAS TIROIDITES AUTO-IMUNES
OS). Não há na patologia experimental uma reprodução
exacta das lesões histologicamente conhecidas na espécie
humana. Assim, os centros germinativos não se desenvolvem
e as células plasmáticas não são predominantes
A destruição total da glândula é rara e a manutenção das
lesões exige um estímulo antigénico repetido. A EAT indu
zida, em algumas espécies animais, pode ser transferida pelo
soro o que não acontece na espécie humana. A agressão
imune parece ter mediação humoral principal e só posteriormente celular.
Os modelos animais espontâneos parecem mais próximos
das características existentes nas tireoidites humanas.
Apesar das diferenças fundamentais que permitem não
•aceitar uma identidade entre a patologia experimental e a
humana, há características experimentais que merecem refe
rência e que são semelhantes às das tireoidites humanas
auto-imunes. Refere-se: susceptibilidade genética muito
assoiada ao equivalente do complexo HLA (H2 no ratinho),
a presença normal de tireoglobulina e de células T auto-reactivas, a diminuição das células T com produção de célu
las citotóxicas e de linfocinas em resposta ao estímulo
antigénico específico, a expressividade aberrante dos antigé
nios HLA (la) e a presença de auto-anticorpos anti
—tireoideus .2
-
BIBLIOGRAFIA
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Pedidos de Separatas:
Francisco Manuel Carrilho
Rua Cidade Santa Clara da Califórnia, 54, 1. ° E
3000 Coimbra
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