Trata-se de questionamento formulado pela Secretaria Municipal

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Parecer nº
1038/2001
Processo nº
01006249.01.9
Requerente: Secretaria Municipal de Saúde - CSBJ
Assunto:
Requisições de autoridades de informações
sobre pacientes atendidos em centros de saúde
municipais. Resolução nº 1605/2000, do
Conselho Federal de Medicina. Relatividade do
segredo médico. Diversidade de tratamento
diante das peculiaridades de cada caso. Em
regra, havendo requisição judicial, e não se
tratando das hipóteses previstas na referida
Resolução, deverão ser prestadas informações
básicas sobre o paciente, tais como o nome, a
enfermidade e a data do atendimento, sem a
remessa de quaisquer documentos, o que deve
ser escusado com base no dever de guardar
sigilo médico, em atendimento à determinação
do Conselho Federal de Medicina.
Trata-se de questionamento formulado pela Secretaria
Municipal da Saúde, visando a atender à solicitação do Centro de Saúde Bom
Jesus, a respeito do procedimento a ser adotado quando solicitadas informações
acerca de atendimentos a usuários, por diversos serviços públicos (Coordenadoria
da Infância e da Juventude, Coordenadoria das Promotorias Cíveis e Criminais,
Delegacias de Polícia, Departamento Médico Legal, Conselhos Tutelares, etc),
considerando os termos da Resolução nº 1605/2000 do Conselho Federal de
Medicina.
A referida Resolução do CFM proíbe a revelação do conteúdo
do prontuário médico, sem o consentimento do paciente, ressalvando a
possibilidade de apresentação de prontuário ou ficha médica apenas quando
requisitada por autoridade judicial competente, na instrução de processo criminal,
caso em que o médico disponibilizará os documentos ao perito nomeado pelo juiz,
para neles seja realizada perícia restrita aos fatos em questionamento.
É o breve relatório.
1
O sigilo profissional encontra amparo no Direito brasileiro. O
art. 144 do Código Civil e o art. 406, II, do Código de Processo Civil eximem o
portador de segredo de depor em juízo, garantindo ao depositário do sigilo o direito
de não romper com o dever que lhe foi imposto em decorrência da profissão que
exerce.
A discrição e a reserva de determinados fatos assimilados no
exercício de uma profissão visam a proteger interesses morais e materiais dos
indivíduos, considerando ser a privacidade direito constitucionalmente assegurado.
Em contrapartida, a obrigatoriedade do sigilo profissional do
médico não tem caráter absoluto. O art. 154 do Código Penal relativiza tal
obrigação ao dispor: “Revelar a alguém, sem justa causa, segredo de que tem
ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa
produzir dano a outrém ...” (não grifado no original). A referência constante no texto
do dispositivo à justa causa, com toda certeza, afasta o caráter absoluto do sigilo,
permitindo ou, até, impondo a sua revelação em determinadas circunstâncias.
Embora seja controversa a questão, prevalece, atualmente, o
entendimento de que o sigilo profissional é relativo, reclamando a matéria
diversidade de tratamento, diante das particularidades de cada caso.
De qualquer modo, entende-se que a revelação do segredo
médico se impõe quando estiverem em jogo questões de maior relevância.
Há que se considerar, ainda, que, em determinados casos,
embora seja requisitada a ficha médica do paciente, nem sempre a sua revelação é
necessária, bastando o fornecimento de alguns dados para o esclarecimento da
situação. Isso demonstra a necessidade de se avaliar caso a caso, não sendo
possível traçar-se um procedimento padrão, notadamente porque haverá situações
em que a revelação do segredo se mostrará impositiva, em face da gravidade da
questão que a envolve, podendo haver outras situações em que a revelação do
sigilo não se justifique.
Por outro lado, o procedimento a ser adotado pelo profissional
da área médica acerca da requisição de informações sobre pacientes não nos
parece que deva ser estabelecido por este órgão consultivo de natureza jurídica.
Isso porque não nos parece possível padronizar um procedimento, como se disse,
considerando a necessidade de se avaliar as peculiaridades que envolvem cada
caso. Impõe-se a análise de cada situação individualmente, a partir de um juízo a
respeito do interesse que está em jogo e se ele se sobrepõe ao sigilo a tal ponto
que a sua violação seja justificada por razões de ordem ética, legal e social.
O que se pode afirmar é que o sigilo profissional, mais
especificamente o segredo médico, encontra amparo no ordenamento jurídico
brasileiro, tanto quanto a possibilidade de autoridades judiciais requisitarem
informações acerca de pacientes. Desse conflito de interesses nasce a dificuldade
em se estabelecer conduta que não agrida direitos igualmente amparados no
ordenamento jurídico.
2
Sobre o tema, discorre WALTER CENEVIVA:
“A doutrina tem destacado a relatividade, servindo-se de
exemplos que a dramatizam: a manutenção do segredo para
permitir que o inocente seja condenado; para que o cliente cumpra
a promessa de que matará alguém; o silêncio do médico dando
ensejo ao portador de síndrome de imunodeficiência adquirida de
se casar com pessoa sadia.
A ordem pública não se limita a destacar a relevância do
segredo. Outros valores a inspiram, igualmente voltados para o
bem comum. Fica manifesto, como conseqüência, que certos atos
de interesse geral são dificultados ou mesmo impossibilitados pelo
segredo mantido, o que pode danificar o tecido social.
Na busca de uma posição equilibrada entre os vetores
considerados (a transparência plena contraposta ao sigilo integral)
verifica-se a inviabilidade de uma solução que satisfaça
integralmente
a
pluralidade
das
alternativas
possíveis,
predominando, na dúvida, o segredo.
(...)
A relatividade provoca para o intérprete a tarefa de
ajustar leis e regras éticas a cada caso. As variáveis tendem ao
infinito. A norma geral é da primazia do direito-dever do segredo.” 1
São raros os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal a
respeito do tema, destacando-se o seguinte:
“Segredo profissional. A obrigatoriedade do sigilo profissional
do médico não tem caráter absoluto. A matéria, pela sua
delicadeza, reclama diversidade de tratamento diante das
particularidades de cada caso. A revelação do segredo médico em
caso de investigação de possível abortamento criminoso faz-se
necessária em termos, com ressalvas do interesse do cliente. Na
espécie o hospital pôs a ficha clínica a disposição de perito médico
que “não estará preso ao segredo profissional, devendo,
entretanto, guardar sigilo pericial” (art. 87 do Código de Ética
Médica). Por que exigir a requisição da ficha clínica? Nas
circunstâncias do caso o nosocômio, de modo cauteloso, procurou
resguardar o segredo profissional. Outrossim, a concessão do
“writ”, anulando o ato da autoridade coatora, não impede o
prosseguimento regular da apuração da responsabilidade criminal
de quem se achar em culpa.
1
Walter Ceneviva, Segredos Profissionais, São Paulo, Ed. Malheiros, 1996, p. 29/30.
3
Recurso extraordinário conhecido, em face da divergência
jurisprudencial, e provido.” 2
A propósito, manifestou-se o Superior Tribunal de Justiça:
“PROFISSIONAL RESGUARDADO. O sigilo é exigência
fundamental da vida social que deve ser respeitado como princípio
de ordem pública, por isso mesmo que o Poder Judiciário não
dispõe de força cogente para impor a sua revelação, salvo na
hipótese de existir específica norma de lei formal autorizando a
possibilidade de sua quebra, o que não se verifica na espécie. O
interesse público do sigilo decorre do fato de se constituir em um
elemento essencial à existência e à dignidade de certas categorias,
e à necessidade de se tutelar a confiança nelas depositada, sem o
que seria inviável o desempenho de suas funções, bem como por
se revelar em uma exigência da vida e da paz social. Hipótese em
que se exigiu da recorrente ela que tem notória especialização em
serviços contábeis e de auditoria e não é parte na causa - a
revelação de segredos profissionais obtidos quando anteriormente
prestou serviços à ré da ação. Recurso provido, com a concessão
da segurança. 3
O Tribunal de Justiça de São Paulo enfrentou a questão no
mandado de segurança nº 102.893.3, em que o magistrado, acolhendo promoção
do Ministério Público, requisitou à Santa Casa de Misericórdia de São Paulo cópia
da ficha clínica e o relatório médico referentes a paciente que teria tentado suicídio.
Não satisfeito com o envio de resumo do prontuário médico do paciente, o juiz
reiterou a requisição, ocasião em que a Santa Casa se disse impedida em razão do
dever de guardar segredo médico, colocando a documentação à disposição de
perito médico que viesse a ser nomeado.
O magistrado persistiu na ordem de remessa dos
documentos, sob pena de busca e apreensão e processo por desobediência, o que
motivou a impetração.
O Des. Denser de Sá considerou que, se os impetrantes
tivesse acatado a ordem judicial estariam afetando o sigilo médico que estão
obrigados a preservar, ressaltando que a solução por eles alvitrada satisfez
plenamente as exigências do caso.4
2
3
4
RE 91218/SP, relator Ministro Djaci Falcão, 2ª Turma, j. 10/11/81.
ROMS 9612/SP, 4ª Turma, rel. Ministro César Asfor Rocha, j. 03/09/98
Walter Ceneviva, ob. cit., p. 154
4
No Rio Grande do Sul, o Tribunal de Justiça do Estado
examinou a matéria no julgamento do Habeas Corpus nº 586054744, em decisão
assim ementada:
“Sigilo profissional. Rejeitada preliminar de incompetência
oposta pelo Ministério Público. Diretor médico de sanatório, embora
prestando algumas informações solicitadas, escudado no sigilo
profissional, nega-se a entregar prontuário de doente. Juiz, em
ofício, reitera determinação e noticia que resistência do médio
originaria processo por desobediência (Cód. Penal art. 330).
Importância do segredo profissional. Sua relatividade no direito
pátrio. Interpretação do art. 144 do Código Civil. Precedente
jurisprudencial no Primeiro Grupo Cível. (...) .” 5
O relator do caso, Desembargador Silvino Joaquim Lopes
Neto, no corpo do acórdão, assevera:
“... Então haverá casos em que o profissional estará
compelido à revelação. Mas, entenda-se, não está submetido em princípio a
ninguém. O próprio detentor do segredo, em função da profissão, é o juiz da
oportunidade, conveniência e imperatividade das circunstâncias, com poder de
pressão sobre a consciência individual, a ponto de abrigar a divulgação do objeto
do segredo.
Não se perca de vista que o sigilo profissional, se de um lado
se considera um dever, de outro ângulo, se toma como um direito. Ademais, na
instituição do sigilo profissional, tem grande saliência o interesse público, daí a
importância de que seja ciosamente resguardado (...)
Eusébio Gomes, citado por Serrano Neves, in “Imunidade
Profissional”, página 151, esclarece com previsão: “O segredo não pertence a
quem faz a confidência nem ao que a recebe; pertence à profissão, à sociedade
que exige essa segurança dos homens aos quais é entregue cuidado de seus
respeitáveis interesses.”
(...)
Essa segurança de que nenhuma autoridade atentará contra
a inviolabilidade do sigilo é a garantia para o relato desinibido e completo das
aflições do fiel, paciente ou cliente.”
Naquele caso, o médico, na condição de Diretor do Sanatório,
em atendimento à ordem judicial, informou ao juízo a data de internação do
paciente e a enfermidade de que era portador, escusando-se de enviar o prontuário
médico em resguardo ao sigilo profissional. Tal atitude foi referendada pela decisão
judicial em parte transcrita acima, sob o fundamento de que o essencial foi
revelado ao juiz, não se configurando, no caso, resistência à ordem judicial.
5
HCO nº 586054744, 2ª Câmara Cível do TJRGS, j. 19/11/86, rel. Des. Silvino Joaquim Lopes Neto.
5
Há que se considerar a necessidade de se resguardar o
Município de Porto Alegre de eventuais demandas de responsabilidade civil e penal
decorrentes da revelação indiscriminada de informações que deveriam estar
abrigadas pelo sigilo profissional.
Não se deve perder de vista, em contrapartida, a necessidade
de se atender, quando possível, às requisições judiciais.
Como se vê, a questão se afigura bem mais complexa do que,
a primeira vista, se apresenta. Daí a dificuldade de se estabelecer, genericamente,
um padrão de comportamento.
Desse modo, procurando responder, tanto quanto possível, o
questionamento formulado, de modo a atender às requisições judicias, sem
prejuízo do estabelecido pelo Código de Ética Médica, notadamente a Resolução
nº 1.605/00 do CFR, entende-se que devam ser prestadas apenas as informações
elementares, quando houver requisição judicial.
Assim, havendo requisição judicial, tão somente, e não se
tratando das hipóteses previstas na referida Resolução, deverão ser prestadas
informações básicas sobre o paciente, tais como o nome, a enfermidade e a data
do atendimento, sem a remessa de quaisquer documentos, o que deve ser
escusado com base no dever de guardar sigilo médico, em atendimento à
determinação do Conselho Federal de Medicina.
Outras autoridades que não judiciais deverão requisitar tais
informações judicialmente.
S.M.J., é o parecer que submetemos à consideração superior.
Em, 07 de junho de 2001.
Bethania Regina Pederneiras Flach,
Procuradora Municipal
‘Matrícula nº 69149.3
OAB/RS Nº 46.724
6
HOMOLOGAÇÃO
APROVO o Parecer nº 1038/2001, subscrito pela
Procuradora Bethania Regina P. Flach, para que surta seus jurídicos e legais
efeitos, a fim de orientar á SMS quanto aos procedimentos para fornecimentos
de documentação e informações sobre o atendimento e internações de
pacientes na rede pública municipal de saúde.
Registre-se, extraindo-se cópia homologado à
parecerista e a ESP, dando-se ciência coletiva aos demais procuradores desta
Procuradoria.
Devolva-se o expediente ao Secretário da SMS, em
resposta à consulta daquela secretaria, a fim de orientar de forma global e
uniforme toda sua estrutura.
Porto Alegre, 29 de junho de 2001.
ROGERIO FAVRETO
Procurador-Geral do Município
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