GIL, José (2003), “Um virtual ainda pouco virtual”, Revista de Comunicação e Linguagens, nº 31 – Imagem e vida, Lisboa, Relógio d’Água, Fevereiro de 2003, pp- 11-18 O texto encontra-se abrangido pelo ©. Para uso exclusivo no contexto das aulas de MPAC. O texto encontra-se disponível na biblioteca da FBAUP, que é assinante da Revista de Comunicação e Linguagens. Manteve-se o translineamento das páginas, para efeito de referência ao texto impresso na RCL. pág.11 UM VIRTUAL AINDA POUCO VIRTUAL José Gil Departamento de Filosofia, Universidade Nova de Lisboa 1. Um estranho e obscuro objectivo parece adivinhar-se nos mais entusiásticos discursos sobre os progressos das novas tecnologias: atingir o poder demiúrgico de criar um novo mundo, um novo real e uma nova vida a partir de zero. Ou, mais precisamente, a partir da razão tecno--científica. Para além da simulação — construção de universos duplos virtuais que co-existiriam com o nosso «real» —, o fito seria a substituição do mundo da percepção actual por outro ou outros, alternativos, despojados das escórias, impurezas e imperfeições da matéria e da vida. Curiosamente, o novo discurso dá-se como neutro, raramente abordando a dimensão ética e social do progresso tecnológico. Traço característico, que impressiona imediatamente: a neutralidade científica do discurso, que não escolhe, que não opta política ou eticamente. E, no entanto, as apostas implícitas no que está em jogo quanto ao futuro da sociedade humana comportam efeitos decisivos (por isso nascerão em breve disciplinas «tecnoéticas», à maneira da bioética). No mundo que se nos propõe não haverá falhas (rates: excepto as que acontecerem às próprias máquinas, estando estas concebidas para se corrigirem e regenerarem). Será um mundo essencialmente asseptizado e puro. Repare-se: não é por acaso que se chamaram aos bombardeamentos da Guerra do Golfo «ataques cirúrgicos»; nem que se qualificam as bombas atómicas de «sujas» e «limpas». Por detrás deste vocabulário (que se estende para lá da esfera militar), esconde-se a ideia de um virtual sem mancha que deve substituir a vida impura, maculada, desvalorizada — um aspecto moderno do niilismo, tal como Nietzsche o descreveu. O objectivo último é banir a imprevisibilidade e o acaso dos comportamentos. Não é para reduplicar a nossa humanidade caótica, o Terceiro e o Quarto mundos miseráveis, epidémicos, subhumanos, que as mais extraordinárias inovações são concebidas no ciberespaço. De certo modo, pág. 12-13 eles transformar-se-ão, desaparecerão graças a operações «cirúrgicas» da tecnologia virtual... Da mesma maneira que as neurociências e a engenharia genética fazem nascer um eugenismo da espécie humana à escala universal — uma humanidade sem doenças, sem velhice e, «por fim», sem morte —, as novas tecnologias encerram potencialmente a ideia de uma sociedade planetária cada vez mais perfeita1. Sem que haja evoluções convergentes de disciplinas, imagina-se facilmente como se poderá elaborar um discurso em que umas e outras procurarão articular-se para realizar o projecto megalómano de uma humanidade sem conflitos, imaterial, divina. É verdade que se assiste hoje a trajectos mais divergentes do que convergentes: do lado da biologia, a engenharia genética vai no sentido de construir um corpo mais organicamente perfeito; do lado das tecnociências da imagem e da comunicação, caminha-se na direcção da imaterialidade do corpo. Mas os cruzamentos entre uma e outras já começaram: a cirurgia e a medicina recorrem cada vez mais às técnicas digitais, às próteses e enxertos de órgãos artificiais, na linha da fabricação de um corpo alternativo. 2. No cerne do processo actual de transformação do mundo e do homem, e enquanto agente decisivo, determinante na elaboração imaginativa e conceptual de universos alternativos, está a imagem digital. Lembremos algumas das propriedades deste tipo de imagem, segundo o discurso já tradicional que o descreve: radicalmente diferente das imagens analógicas, não depende de um original, mas apenas do programa ou algoritmo (linguagem) que lhe dá origem. De certo modo, ela cria-se ex nïhilo; e existe num espaço e num tempo próprios que podem ser considerados indestrutíveis, pois em nada dependentes do tempo cronológico e do espaço objectivo: tempo e espaço virtuais, totalmente controláveis pela manipulação dos parâmetros programados. Manipuláveis também as imagens, agora decompostas e tratadas numericamente, de tal maneira que a sua formação deixa de se relacionar com todo e qualquer referente que não seja o algoritmo calculado. «A hibridação inesperada de um calculador electrónico e de uma tela de televisão iria provocar no universo das imagens a mutação mais radical desde o aparecimento — há mais ou menos uns vinte e cinco mil anos — das primeiras técnicas de figuração»2. A imagem individual foi até agora «imóvel, gelada, estática. Qualquer movimento seu é, no melhor dos casos, ilusão. A imagem digital representa o exacto oposto. Aqui, cada componente da imagem é variável e adaptável»3. A variação, transformação, plasticidade metamórfica da imagem digital representa a grande novidade. Um objecto (imagem) não oferece apenas uma ou duas das suas faces num espaço bi ou tridimensional, mas uma infinidade de faces porque vistas de uma infinidade de pontos de vista num espaço incessantemente móbil. «Pela primeira vez na história, a imagem é um sistema dinâmico»4. A imagem digital define-se como um acontecimento, ou melhor, como um acontecimento-mundo: integra o seu contexto (a reacção do observador que a controla), e constitui «sequências de acontecimentos de variabilidade acústica e visual e de informação virtual; sequências dinâmicas de acontecimentos locais (acústicos, visuais ou olfactivos)»5. Assim a própria imagem virtual se transforma num «acontecimento-mundo de contexto controlado»6. Atente-se nestas passagens de um longo artigo em que a utopia gerada pela imagem virtual se centra na substituição da vida orgânica «natural» por uma vida não menos orgânica, mas «artificial» — o objectivo marcando-se pela nova natureza artificial de criaturas virtuais, os knowbots: «Um outro aspecto da imagem virtual é provocado pelas propriedades dinâmicas do seu sistema imanente. Sendo o sistema por definição variável, agirá como um organismo vivo. Será capaz de reagir ao input do contexto engendrado, modificando o seu próprio estado e adaptando o seu output em conformidade. [...] Em última instância, o objecto destes novos cenarii consiste e depende da informação binária: objectos, estados, experiências são registadas e guardadas em ficheiros de dados depois da sua transformação em códigos binários. Assim, os novos mundos serão mundos virtuais.»7 O observador não contemplará já uma imagem fixa, estática, à distância, como no passado, mas participará no sistema «cujos cenarii virtuais reagirão à sua presença e produzirão, por sua vez, umfeedback da sua parte». O virtual confundir-se-á com a vida, ou melhor, a vida será absorvida pelo mundo virtual, prolongando-o e animando-o; ao mesmo tempo que ele se anima, reagindo às modificações do contexto virtual. A vida — ou seja, o contexto real em que se situa o observador (agora também participante) — compor-se-á apenas daqueles acontecimentos-reacções consequentes aos «lifelike behaviors» e às «lifelike properties» (comportamentos e propriedades semelhantes aos da vida) da imagem virtual. Assim, toda a vida «real» se conformará ao mundo virtual das imagens, o qual duplicou, primeiro, ao construir-se por uma linguagem algorítmica, a vida real (mesmo, sem aspas). Mas, como se constata, a simulação escolhe, selecciona, purifica, cria condições próprias. No entanto, no ciberespaço, imagem, realidade, corpo, constituirão um só mundo onde será teoricamente impossível distingui-los uns dos outros. Mas, na fase actual dos trabalhos, a construção da imagem virtual supõe ainda uma instância por assim dizer «demasiado real», que opera como interface entre os dois mundos: a máquina, o computador. Há, pois, pág. 14-15 que conceber uma nova conexão entre o real e o virtual de maneira a abolir a máquina, integrando directamente, sem mediações, o corpo e a vida orgânica no mundo virtual. É a fase futura da ligação directa entre o cérebro e a esfera da imagem virtual. Fase ainda do domínio da ficção científica, mas na qual trabalham já vários laboratórios. Trata-se de construir «brain chips» (microprocessadores a enxertar no cérebro) e «neuro chips-» que conectem imediatamente o cérebro com o universo virtual. Apareceria assim uma «nova concepção da corporeidade e do corpo humano: [...] o corpo terminal que separa o sê//(máquina interna) do corpo (máquina externa)»8. Com este corpo terminal obter-se-ia o conhecimento necessário da transformação instantânea da informação em reacção consistente de um corpo a um (e num) universo virtual (teríamos então definitivamente um mundo de «acontecimentos em contextos controlados»). Poder-se-ia pois, fazer a economia do corpo: todo o sistema de sensores, por exemplo, seria transferido para o cérebro que ditaria logo os comportamentos adequados («através» dos chips que fariam parte integrante do cérebro). Ficaríamos assim na posse de um conhecimento extraordinário dos processos de conexão do mundo virtual com a vida, e da integração desta naquele. Seria então possível aplicar «a inteligência artificial à criação de vida artificial — sistemas visuais e sonoros com comportamento cada vez mais semelhante aos da vida»9. Poder-se-iam conceber e realizar knowbots, criaturas imateriais, «agentes autónomos inteligentes com corpos virtuais que seriam ensinados a aprender. Realizariam tarefas nos bancos de dados e ao longo das auto-estradas de dados»10, em espaços intangíveis, desprovidos de toda a corporeidade, e sem ligação com a realidade material (o que não é o caso dos robots). Os sentidos corporais — e, em particular, a visão — necessários à recepção da informação seriam substituídos pêlos «sentidos imateriais» (processos de recepção e trabalho de dados) dos knowbots. Estes, «enquanto entidades imateriais, consistem em fórmulas, funções matemáticas que podem ser autotransformáveis e auto-reprodutivas, [...] multilocais, omnipresentes, e possuir muitas das características normalmente associadas aos seres humanos. Não limitadas pelas realidades corporais, e independentes de todo o utente possível, são capazes de funcionar dentro de espaços de dados imateriais, colectando, trocando, transformando, engendrando toda e qualquer quantidade de informação. Nós, enquanto seres humanos amarrados às realidades tradicionais do nosso sensorium, determinados pelo corpo e pela sua forma material, somos incapazes de registar a presença destes knowbots»11. Resumindo: os universos virtuais a criar na próxima fase de desenvolvimento das novas tecnologias da informação supõem: a) O desaparecimento, para a percepção e, portanto, para o pensamento humanos, da fronteira que separa o virtual da vida real. A crença «ontológica»12 no real diferente da ficção extingue-se. O que significa que tudo é real, ou melhor, que o que nós hoje chamamos «vida» e «realidade» será percepcionado e pensado no que nos apresenta a imagem digital virtual. E não haverá outra realidade nem outra vida. Digamos, em termos diferentes, que aquela «fé perceptiva» na existência de um mundo transcendente que a fenomenologia pressupõe é substituída por um mundo imanente, o plano único da realidade virtual. Por isso se afirma que este virtual é «pós--ontológico»...13. O discurso euforizante das novas tecnologias nega a ideia de um futuro «esquizofrénico» (Baudrillard, Virilio e outros) a que levaria a sofisticação máxima das técnicas de simulação: a clonagem do real pelo virtual que englobaria toda a existência humana, b) As características do «real» transformar-se-ão radicalmente: sendo as possibilidades de manipulação da imagem ilimitadas, a construção de mundos virtuais também o será. Simplesmente, o real-virtual que daí resultar será fabricado à custa do empobrecimento da vida, por mais complexa e desenvolvida que venha a ser a linguagem algorítmica utilizada. A redução das reacções humanas a respostas pré-programadas, se bem que dentro de um contexto-mundo artificial cada vez mais alargado, com um número cada vez maior de possíveis, diminui infinitamente a imprevisibilidade dos «acontecimentos» reais e as formas de criação que a vida encerra. Aliás, o projecto de construção de universos virtuais controlados encontra limites dentro da própria matemática, o que impõe um obstáculo radical à simulação — absorção absoluta da vida pela imagem digital14. 3. Todo este discurso super-optimista e super-utópico sobre o futuro da humanidade inteiramente submetida às realizações e imperativos das novas tecnologias esquece as realidades económicosociais do mundo de hoje. O homem que ele supõe é um ser já previamente transformado por essas mesmas tecnologias (antes mesmo de elas existirem): uma criatura pronta a obedecer aos ditames do universo virtual, dispondo de meios técnicos individuais para entrar no mundo interactivo da telepresença, da te-lemática, do comportamento formatado pela linguagem digital; criatura isolada na sua auto-suficiência tecnológica, mas inserida numa colectividade de seres semelhantemente isolados mas funcionando «em rede», conectando e organizando a vida social segundo as mesmas regras dos universos virtuais. Ou seja: esquece-se que para realizar a simulação de um mundo concebido segundo a digitalização da imagem é preciso um primeiro dado (ou base de dados) não aleatório, não dissipativo, não criativo: um ser não desejante. Um ser que, para adoptar plenamente os comportamentos que o novo mundo lhe vai exigir, esteja já, precisamente, ensinado a responder assim (com todos os possíveis eventuais, tal como um knowbot). pág. 6-17 Este círculo revela, por si só, uma estrutura dissipativa, geradora de caos. Em segundo lugar, esse tipo de discurso esquece que o seu objectivo (a realização do virtual único e absoluto, quer dizer, com uma perda igual a zero de informação) faz desaparecer as próprias categorias de real/virtual, vida/máquina: porque, quando enfim a realidade virtual se estender pelo campo inteiro da existência e do pensamento, e a vida toda se tornar «artificial», onde se encontrará ainda o elemento diferencial motor do desenvolvimento e da mudança? Que motivações restarão para criar diferentes e múltiplos universos virtuais? Quando da percepção do mundo desaparecer toda a opacidade, onde se encontrará a «diferença» que distingue, separa e faz ver? A imanência de tudo ao universo virtual não se reduz ao plano da «realidade» matemática? Para que servirão ainda a «virtualidade», a «variabilidade» e a «viabilidade» da imagem se o seu dinamismo, devir, consistência se apoiam num controlo supremo da informação? Por aqui se vê que o discurso eufórico das novas tecnologias da imagem tem uma função determinada, entre outras: fornecer fantasmas, fic-ções reguladoras absolutas, a uma realidade actual que fez da disfunção a sua regra15. O que se passará realmente com o progresso acelerado dessas tecnologias, num mundo em que esse mesmo progresso é dominado pelo capitalismo — ninguém o poderá dizer, hoje. Uma das características do discurso utópico que o acompanha é a de pressupor que as novas tecnologias acabarão (supondo-se mesmo que o façam já) por impor o seu domínio a todas as outras formas de poder: ao poder político, ao poder económico, ao poder dos afectos e da vontade do homem. A sua transparência estender-se-á a todo o universo, e a história inteira será determinada pela História da tecnologia. Viveremos num universo «em que a existência e a sua formulação, recognição e predictabilidade, a sintaxe e a semântica convergem. Aqui, a natureza aparece enquanto números e imagens calculáveis que fazem parte integrante de um computador universal»16. 4. Curiosamente, alguns traços do virtual tecnológico parecem ilustrar certas propriedades do «virtual», conceito fundamental do pensamento deleuziano: a imanência (em que «a sintaxe e a semântica convergem»), a imagem virtual como real, as conexões em rede dos universos virtuais, etc. No entanto, só na aparência as duas noções se aproximam. De facto, as mais das vezes excluem-se uma à outra. Não faremos o inventário das suas diferenças. Basta-nos referir dois aspectos: a imagem virtual de Deleuze não é a imagem digital da informação. É suficientemente conhecida a crítica deleuziana ao alcance que certos pensadores pretendem dar à teoria da informação e da comunicação para insistirmos neste ponto. Por outro lado, nada que se pareça com uma tendência a reduzir a realidade ao virtual existe no pensamento deleuziano. Se aqui o virtual é real, é no quadro de uma ontologia da diferença que se deve entendê-lo: o virtual difere do actual, este deriva daquele por diferenciação. De tal modo que dois princípios regem a ideia da imagem virtual: um princípio de inconsciência — já que o virtual se define como o que surge e desaparece «num tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo pensável»17; e um princípio de indeterminação ou de incerteza — já que a brevidade ou efemeridade do virtual, num tempo não pensável, introduz o aleatório e o caos no cerne do movimento virtual. Estamos nos antípodas do virtual das novas tecnologias (se bem que aparentemente muito próximos): estas querem eliminar o caos e não admitem opacidades na formação da imagem digitalizada, inteiramente controlada como «acontecimento» produzido pela operação de uma linguagem matemática transparente. O virtual de Deleuze não é também o possível: opõe-se-lhe mesmo, como o transcendental se opõe ao empírico (porque, diz Deleuze em Diferença e Repetição, o possível é concebido a partir do empírico, enquanto seu decalque realizável). Inconsciente, indeterminado mas diferenciado [«différentié»], spatium de diferenças selvagens, não actualizadas, intensivas, pode-se dizer do virtual o que Deleuze afirma da diferença: «não é o fenómeno, mas o mais próximo númeno do fenómeno»18. Assim, as imagens digitais, que resultam das técnicas de simulação do real, podem ser consideradas como réplicas do objecto empírico, mesmo se um certo discurso afirma que são produzidas ex nihilo; as suas formas são empíricas, mesmo se o espaço e o tempo em que se movem são, num certo sentido, virtuais. O virtual de Deleuze dá conta da criação do novo, e do processo de actualização (os «dinamismos espácio-temporais») dos objectos empíricos. E o processo de criação do novo implica necessariamente o caos. O virtual não é «artificial» para Deleuze. De certa maneira, ele co-existe com (e pré-existe ao) objecto dado. Suponhamos um tal objecto, agora percepcionado. Da sua percepção emanam, por exemplo, lembranças, não só de outros objectos ou de outros aspectos do objecto, mas imagens microscópicas, fragmentos ínfimos de imagens de cores, de espaços, de luz, a que Deleuze chama «partículas» ou «efémeros». Assim, toda a percepção de um objecto actual se rodeia de um mundo de «virtuais». Mundo de um dinamismo intenso, problemático, sem o qual a percepção visível não seria possível pois não se poderia dar sentido ao objecto (este reduzir-se-ia à sua superfície figurada isolada, não conectada, incompreensível). O empírico puro não existe. Falta-lhe a dimensão transcendental. pág. 18 As imagens virtuais digitais são também desta maneira percepcionadas. Também elas emitem partículas «virtuais» e efémeras (mas não no ci-berespaço). A ilusão do discurso do objectoimagem «pós-ontológico» está em crer que as imagens numéricas, ao proliferar e associar-se no ecrã do computador, e graças à sua «variabilidade» e «viabilidade», ocupam o lugar dos «virtuais efémeros» da percepção, a que se refere Deleuze. Para que tal se realizasse, seria necessário que uma nova «fé perceptiva» surgisse que esgotasse o sentido do mundo no puramente dado, no confinado ali, naquilo, naqueles objectos, imagens-fortalezas que aprisionam a vida inteira do universo. O que implicaria, sim, a desmaterialização total do corpo. Ou seja: o que falta à imagem digital das tecnologias da informação e da comunicação para adquirir o poder superior de se substituir à vida é um pouco mais de «virtual-transcendental». Mas, nesse caso, ela própria entraria no plano mais vasto da vida... 1 V. por exemplo, Sherry Turkle, «Constructions and Reconstructions of the Selí in Virtual Reality», in Timothy Druckrey (org.), Electronic Culture, Technology and Visual Represen-tation, Aperture, 1996, p. 354. 2 Edmond Couchot, «Da Representação à Simulação», in André Parente (org.), Imagem Máquina: A Era das Tecnologias do Virtual, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1993, p. 39. 3 Peter Weibel, «The World as Interface: Toward the Construction of Context-Controlled EventWorlds», in Electronic Culture, op. cit., p. 347. 4 Idem, ibidem. 5 Idem, ibidem. 6 Idem, p. 348. 7 Idem, pp. 348-349. 8 Idem, p. 345. 9 Idem, p. 349. 10 Idem, p. 350. 11 Idem, ibidem. 12 Idem, ibidem. 13 Um dos subtítulos deste artigo de Peter Weibel que vamos citando como exemplo de um certo tipo de discurso chama-se «Post-Ontological Art: Virtuality, Variability, Viabi-lity», idem, p. 347. 14 V. Peter Weibel, op. cit., pp. 350-351. O obstáculo maior vem da impossibilidade de abolir totalmente o acaso no mundo virtual, que constitui, afinal, uma estrutura dissipati-va. 15 Cf. estas observações de John Perry Barlow, citadas por Kevin Robins: «Parece haver aqui uma certa nostalgia que associo ao desejo de conversar com extra-terrestres ou com golfinhos ou com seres imateriais... Ou talvez seja apenas uma outra expressão do que pode constituir a pulsão humana mais antiga, o desejo de ter visões» (Cf. K. Robins, «The Virtual Unconscious in Post-photography», in Electronic Culture, op. cit., p. 160). 16 Peter Weibel, op. cit., p. 350. 17 Gilles Deleuze e Claire Parnet, Dialogues, Paris, Flammarion, 1996, p. 179. 18 Gilles Deleuze, Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, p. 286.