DOS DIREITOS HUMANOS DOS IMIGRANTES E DAS MINORIAS

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DOS DIREITOS HUMANOS DOS IMIGRANTES E DAS MINORIAS SOCIAIS E ÉTNICAS: SAÚDE E CIDADANIA
UNIVERSAL
Karina Carvalho 1
RESUMO
As situações médico-terapêuticas e as condições de acesso aos serviços de saúde vivenciadas por grupos especialmente vulneráveis
de pessoas (imigrantes, refugiados, minorias étnicas, pessoas em situação de pobreza extrema) deixam de estar apenas no plano das
políticas de saúde para se inscreverem no plano mais alargado dos direitos, que não meramente de cidadania, mas direitos de
dignidade humana, direitos humanos, na medida em que a saúde, para estas pessoas e nestes contextos, não é uma questão que
possa apenas ser gerida entre o profissional de saúde e o paciente.
Palavras-chave: Direitos Humanos, Cidadania Universal, Imigração, Saúde
É uma ideia consensual a acepção de que vivemos perante um enquadramento novo na organização do mundo… ou dos
mundos. Os últimos trinta anos caracterizaram-se pela intensificação sem precedentes das relações transnacionais, a par de uma
completa reconfiguração do modo como estados, governos, povos, passaram a conceber-se a si mesmos e por comparação com os
outros. Noções como as de formação global, cultura global, sistema global, cidades globais, ou simplesmente globalização, procuram
exactamente enfatizar a novidade do fenómeno relativamente a anteriores formas de interacção transfronteiriça, designadamente a
internacionalização e a multinacionalização.
Neste contexto, as migrações internacionais assumem-se, simultaneamente, como uma das dimensões e um dos processos
da globalização, tornando particularmente evidentes a tensão entre os modos de regulação nacionais e as consequências dos modelos
de regulação internacional subscritos. Mais importante, estabeleceu-se imperativo distinguir, pelo menos em termos analíticos, e
talvez pela primeira vez, os aspectos político-económicos e socioculturais do fenómeno migratório.
1
Socióloga, membro da Associação GIS/Grupo Imigração e Saúde No entanto, se é certo que no passado a regulamentação dos fluxos migratórios se concentrava essencialmente no
estabelecimento de limites e critérios político-económicos para a abertura ou fecho de fronteiras, e que, hoje em dia, as políticas de
imigração prestam já atenção especial a um conjunto de problemas sociais complexos - quer porque se percebem associados a
questões de índole racial e étnica, quer porque abalam as estruturas sacralizadas da cidadania e da identidade nacionais - a verdade é
que o desenvolvimento e o sentido dos movimentos migratórios continuam a equacionar-se sob a égide dos direitos soberanos dos
Estados-nação.
De facto, e apesar da intensa mobilidade transnacional característica das últimas três décadas, os fluxos migratórios,
especialmente no que à imigração diz respeito, continuam a ser primordialmente regulados pelo controlo de fronteiras estabelecido
por cada Estado, de acordo com os seus interesses geoestratégicos e a sua conjuntura económica.
Adivinha-se aqui porventura um dos maiores paradoxos das sociedades contemporâneas, na medida em que, se por um
lado a globalização é concebida como fenómeno/ conjuntura capaz de desencadear um grau de desenvolvimento económico, social e
cultural sem precedentes, antes de mais pelo potencial democrático/ democratizante e de empowerment individual que os processos/
fluxos transnacionais de pessoas, produção, investimento, capital financeiro, informação, etc., próprios da globalização,
proporcionam, os direitos humanos, por seu lado, continuam a afirmar-se como um conjunto de reivindicações e de garantias que se
assumem serem providenciadas pelo Estado.
Dito de outro modo, seria previsível que, no quadro de um sistema internacional aberto e cosmopolita, os direitos
individuais, e assim mesmo os direitos tidos como garante da dignidade humana, fossem igualmente individualizados na sua
prossecução – no sentido em que seria próprio de um(a) cidadão/ cidadã do mundo reivindicar os seus direitos a cada momento e em
qualquer circunstância, independentemente da localização geográfica em que se encontre -, todavia, verificamos que se mantém um
regime de direitos humanos que, pese embora a sua afirmação progressivamente transnacional, continua internacional na sua
2 concretização prática, isto é, refém de prerrogativas e disposições nacionais, tantas vezes não mais que uma interpretação
governamental de um regime de direitos que é, afinal, o que sustenta os estados enquanto Estado.
Porque, é importante não esquecê-lo, os direitos humanos surgem, em primeira instância, como um universo de liberdades
fundamentais, constituindo “as protecções mínimas que permitem ao indivíduo viver uma vida digna desse nome, defendido das
usurpações do arbítrio estatal (ou outro)” e “uma espécie de espaço ‘sagrado’, intransponível [que traça] à volta dos indivíduos uma
esfera privada e inviolável” (Haarscher, 1997) 2 .
Tal como enunciado na primeira Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (assinada em Paris a 26 de
Agosto de 1789), o poder do Estado tem como função primordial preservar os direitos fundamentais dos cidadãos, o que significa, a
um tempo, limitar as tendências despóticas do Estado, e, a outro tempo, pela legitimação do poder político, reforçar os poderes do
Estado no que à garantia das liberdades fundamentais diz respeito. Existe, assim, um compromisso de poder, fundamentado num
pacto social de legitimação do poder, que só é legítimo enquanto respeitador dos direitos do indivíduo enquanto tal.
Esta precisão é importante porquanto vem realçar as dificuldades que continuadamente se (re)colocam ao agendamento
político dos direitos humanos nas agendas governamentais dos Estados, em resultado do que nos parece ser a apropriação colectivista/
colectivizada da filosofia e o predomínio de uma concepção moralista dos direitos humanos, com efeitos – creio particularmente
perversos – no que se refere às questões da justiça, e das liberdades e das garantias fundamentais dos seres humanos.
Sem nos determos sobre os instrumentos jurídico-políticos ao dispor, por exemplo dos(as) imigrantes, para vincular os
governos às determinações internacionais concertadas no que respeita ao acolhimento de nacionais de outros países, importa realçar o
que me parece constituir a completa subversão dos princípios que legitimam o Estado moderno enquanto garante das liberdades
fundamentais dos indivíduos – indivíduos enquanto tal, e não exclusivamente dos cidadãos/ cidadãs de um dado estado.
2
HAARSCHER, Guy (1997). A Filosofia dos Direitos do Homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 13. 3 A limitação dos direitos humanos dos imigrantes, comum à generalidade dos procedimentos formais de políticas antiimigração (tantas vezes não declaradas), é, em toda a sua expressão, um acto político, preconizado por governos de estados, e não
pode nem deve, contrariamente ao que pretende fazer-se crer, ser confundido com razões de Estado, ou seja, decorrentes dos
interesses individuais colectivamente considerados dos indivíduos que legitimam e conferem ao Estado o poder de, em seu nome e
em nome do bem comum, cercear o exercício de determinadas liberdades.
Em matéria de direitos humanos, contrariamente às matérias dos direitos civis, é a dignidade humana, individual e
inalienável, que está sob consideração, pelo que a limitação dos direitos dos imigrantes, e em particular dos que advém da aplicação
directa do regime dos direitos humanos à regulamentação das migrações internacionais é, não raras vezes, um subterfúgio que
esconde razões políticas nacionais e/ ou geoestratégicas.
Os direitos humanos estão, desde a sua génese, associados a uma filosofia individualista (são direitos do indivíduo
enquanto tal), sendo a lógica contratualista subjacente à sua institucionalização formal/ legal apenas decorrente do facto inelutável
dos indivíduos não existirem isolados, mas viverem em sociedade. Maquiavel dizia que ‘só há direitos quando eles são defendidos
contra o poder excessivo sempre iminente do Príncipe’ e o próprio contrato social de Rousseau pressupõe que os indivíduos possuem
direitos essenciais – entenda-se, que advém da sua essência mais íntima – que constituem interesses subjectivos protegidos pela lei e
garantidos pela autoridade política.
E ainda que sejam pertinentes as críticas à concepção de que todos os indivíduos são naturalmente livres e iguais 3 , não se
pode, seguramente, afirmar a existência de qualquer oposição entre o primado contratualista do poder do Estado, assente numa
convenção que legitima a sociedade política e a sua autoridade, apenas enquanto poder que age no quadro previsto pelo contrato e
que adquire o direito de ser obedecido exclusivamente pelo seu potencial de maximização da garantia do respeito dos direitos naturais
– entenda-se, essenciais – dos indivíduos.
3
Preconizada por Locke, Hobbes e todos os chamados juristas do direito natural, e amplamente contestada pelo ideário marxista. 4 A dignidade humana não é, assim, uma concretização colectiva (como é, por exemplo, a democracia), antes uma condição
de existência individual, e os direitos humanos, não obstante assumidos pelo colectivo como um valor universal necessário, não
devem ser esvaziados da expressão dessa individualidade, nem tão pouco enquadrados como elemento do campo mais restrito dos
direitos civis, que resultam da aquisição do estatuto de cidadã/ cidadão de um determinado estado.
O direito à saúde é, como se compreende, um direito inalienável dos indivíduos. Um dos direitos fundamentais, portanto,
pelo que em concreto a questão do acesso aos serviços e cuidados de saúde deve ser equacionada no quadro político e programático
do regime internacional dos direitos humanos e não apenas no contexto de programas e medidas governamentais de âmbito nacional,
isto é, no quadro da cidadania.
Isto é tanto mais necessário porquanto se verifica a existência de maleitas, de desordens, intimamente relacionadas com
situações de exclusão social afectando grupos inteiros de pessoas para quem problemas como a tuberculose, a desnutrição ou a falta
de cuidados materno-infantis são presente e não passado.
As situações médico-terapêuticas e as condições de acesso aos serviços de saúde vivenciadas por grupos especialmente
vulneráveis de pessoas (imigrantes, refugiados, minorias étnicas, pessoas em situação de pobreza extrema) deixam de estar apenas no
plano das políticas de saúde para se inscreverem no plano mais alargado dos direitos, que não meramente de cidadania, mas direitos
de dignidade humana, direitos humanos, na medida em que a saúde, para estas pessoas e nestes contextos, não é uma questão que
possa apenas ser gerida entre o profissional de saúde e o paciente.
Na realidade, o direito à saúde é tantas, demasiadas vezes, gerido e mediado por políticos, gestores, assistentes sociais,
muitos dos quais se encontram pouco ou nada sensibilizados, por exemplo, para as relações particulares entre a saúde e a imigração,
isto é, para a circunstância de existirem tipos de desordens físicas e psíquicas que tendem a tornar-se mais expressivas na diáspora,
não directamente decorrentes da condição de imigrante ou refugiado mas das condições de exclusão social e precariedade económica
associadas, e que afectam de igual modo outros grupos excluídos.
5 Ou para as especificidades da imigração feminina já que, sendo certo que para muitas mulheres, assim como para
inúmeros homens, a emigração é uma experiência altamente positiva do ponto de vista do empowerment e da emancipação individual,
para tantas outras, no entanto, a experiência da emigração traduz a sua especial vulnerabilidade e exposição a situações de
discriminação, exploração e abuso, incluindo o tráfico de natureza sexual, com consequências inevitáveis para a sua saúde sexual e
reprodutiva.
Ou para a imperativa necessidade de se implementarem acções e intervenções que tornem real a figura dos mediadores
interculturais para a saúde, a formação e sensibilização dos técnicos de saúde para a diversidade cultural, a existência de tradutores
nos hospitais e centros de saúde, entre outras iniciativas que poderiam, a nosso ver, contribuir decisivamente para a melhoria global
do sistema de saúde mas, mais importante, respeitariam os direitos humanos de Todos exactamente porque permitiriam incluir
direitos que sempre foram Direito, e não apenas direitos próprios das minorias sociais e étnicas, como tantos querem fazer crer.
Não raras vezes, a violação de direitos é entendida, quer politica quer ideologicamente, como socialmente funcional, pelo
que a acepção do que constituem os direitos humanos dos indivíduos – e em concreto os direitos humanos dos imigrantes e das
minorias sociais e étnicas – impõe ir mais além do que promover a instauração de um regime jurídico e normativo universalmente
aceite por todos, já que a subscrição das normas jurídicas internacionais e a sua transposição para os regimes nacionais não consegue,
por si só, vincular os governos dos estados ao respeito por esses direitos.
Cremos, por isso, imprescindível a articulação entre as identidades específicas de cada indivíduo (étnicas, de género,
nacionalidade, convicções religiosas, orientação sexual, etc.) e a consideração do “indivíduo universal”, feito cidadão/ cidadã do
mundo no enquadramento do Estado pós-moderno, sob pena de não se conseguir evitar o extremo responsável pela intolerância, o
racismo, e os fundamentalismos nacionalistas e religiosos. O que passa, necessariamente, pela incorporação mais abrangente e mais
6 definitiva do regime internacional dos direitos humanos nos direitos de cidadania, isto é, a transformação dos direitos de todos os
indivíduos em direitos experimentados por todos como apolíticos, direitos naturais, direitos de dignidade humana, direitos de Estado.
É, assim, imperativo que os direitos de todos se transfigurem numa cidadania universal, contrapondo-a a um regime de
direitos humanos que não pode efectivamente sê-lo porque não integra ambos os sujeitos do contrato social: um conjunto de estados
não é o Estado.
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