Mulheres e SAN em experiências locais - Portal da Cidadania

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CURSO DE APERFEIÇOAMENTO EM AGROECOLOGIA
Promoção: Ministério do Desenvolvimento Agrário-MDA / Secretaria da Agricultura
Familiar-SAF / Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural-Dater
Instituições participantes:
Universidade de Berkeley e REDCAPA
Módulo: Segurança alimentar e nutricional sustentável
Texto Complementar: Mulheres, Segurança Alimentar e Agroecologia –notas
para discussão
Emma Siliprandi*
Introdução
O objetivo deste artigo é apresentar as vinculações específicas das
mulheres com os temas de segurança alimentar e nutricional, levando em
consideração, em particular, a proposta agroecológica de organização das
atividades agrárias. Partiremos de uma análise sobre a forma como as
desigualdades de gênero se expressam na divisão sexual do trabalho, cabendo
às mulheres as tarefas da reprodução humana, entre as quais a alimentação.
Veremos com mais detalhe como essas desigualdades se manifestam na
agricultura, e impõem limites quanto ao acesso das mulheres aos recursos
produtivos, aos meios de vida e à sua participação nas instâncias de decisão
política, seja no nível local ou no nível nacional e internacional. Enfocaremos,
ainda, as possibilidades que se abrem com a participação em iniciativas de
transição agroecológicas, relacionadas com a sua percepção e experiência com
relação ao campo da alimentação.
*
Engenheira Agrônoma, Mestre em Sociologia, Doutoranda em Desenvolvimento Sustentável.
Coordenadora do Projeto de Cooperação Técnica entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)
e a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).
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Mulheres e alimentação: dilemas e falsos reconhecimentos
Como poderá ser visto nos demais textos para discussão neste módulo,
segurança alimentar e nutricional (SAN) é um conceito que integra várias
dimensões do processo de alimentação e nutrição, como o acesso, a qualidade,
a quantidade, a saúde, a cultura, a ecologia e as condições sócio-econômicas. É
uma condição básica e indispensável para podermos usufruir da liberdade e do
pleno desenvolvimento de nossas capacidades enquanto seres humanos.
Portanto, impõe a construção de políticas pautadas em uma série de princípios
(tais
como
a
equidade,
a
intersetorialidade,
a
sustentabilidade,
a
descentralização e a participação social) e que sejam capazes de articular
diferentes setores do governo e da sociedade.
A insegurança alimentar não afeta indistintamente as pessoas: existem
particularidades conforme se é pobre ou rico, homem ou mulher, branco ou
negro, morador da cidade ou do campo. Se tomarmos um dos eixos da
proposta de SAN, que é o acesso aos alimentos, podemos evidenciar como a
condição de cada um influencia na sua situação de segurança ou insegurança
alimentar. Por exemplo, sabemos que a condição de pobreza é uma das
principais causas da dificuldade de acessar os alimentos – embora não seja
única. Esta condição (pobreza) está relacionada com o acesso ao trabalho, à
renda, à propriedade. Se existem fatores de discriminação das pessoas
conforme a sua condição (de gênero, de classe, de raça, etnia, etc.) elas estarão
mais propensas a figurar entre os pobres do que outras, e, portanto, têm mais
chances de sofrer também de insegurança alimentar. O estudo dos
condicionantes de cada um desses fatores de discriminação poderá nos
mostrar como as diferentes categorias sociais estarão mais ou menos sujeitas à
vulnerabilidade, tanto em termos de pobreza, quanto de segurança alimentar.
É claro que a relação entre pobreza econômica e segurança alimentar não
é assim tão direta. Podem-se levantar outras questões que definam a pobreza,
além da renda: por exemplo, a privação das capacidades básicas de uma
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pessoa para exercer a vida que julga ser mais adequada. Isso significa que a
renda não é a única variável a ser examinada, sendo apenas um meio para
poder exercer essas capacidades, junto com outras facilidades (liberdade
política, aceitação social, educação, saúde) que permitam ao indivíduo (e à
sociedade) se desenvolverem plenamente. Nesse caso, claramente, o acesso
aos alimentos (via produção própria, ou pelo acesso ao mercado) pode ser um
dos fatores que concorrem para a definição da situação de pobreza.
Na II Conferência da ONU sobre a Mulher, em Copenhagen (1980) foi
feita uma estimativa sobre o acesso das mulheres, em nível mundial, aos
chamados “bens materiais”: as mulheres constituíam metade da população
mundial, um terço da força de trabalho, mas ganhavam apenas um décimo da
renda e possuíam apenas 1% da propriedade mundial. Essa estimativa é uma
aproximação grosseira, mas dá uma idéia do contraste gritante entre a situação
das mulheres e dos homens com relação ao acesso a recursos produtivos e
necessários para a sua sustentação econômica. Se as mulheres detêm menos
renda e propriedades, podemos inferir daí que estarão mais sujeitas à
insegurança alimentar do que os homens. De fato, estudos mostram que, em
grande
parte
dos
países,
especialmente
nos
denominados
“em
desenvolvimento”, as mulheres e as crianças são as mais afetadas pela
insegurança alimentar e por problemas nutricionais tais como má-nutrição e
obesidade. Este exercício poderia ser feito também com outras categorias
sociais, tais como negros, populações indígenas, etc. Não estamos aqui
falando unicamente de renda, mas de condições de assegurar a sua própria
sobrevivência.
Existem ainda outras questões relacionadas à segurança alimentar (além
do acesso aos alimentos) que também vão afetar mais aos pobres do que aos
demais, tais como a qualidade dos alimentos, a possibilidade de contaminação,
a diversidade da dieta, a regularidade de oferta. Além disso, existem fatores
mais gerais (que têm impacto sobre o seu consumo alimentar) como o acesso
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ao sistema de saúde, ao saneamento e à educação. Todos esses fatores devem
ser analisados em conjunto.
Nesta parte do texto, vamos nos dedicar especificamente a explorar as
relações que existem entre as questões de gênero e a segurança alimentar, de
forma mais ampla, mostrando como as relações de poder que se estabelecem
entre mulheres e homens estruturam diferenças não só no acesso, mas
também na forma como as pessoas lidam com os alimentos. Essa discussão
tem como implicações evidentes a demanda para que as Políticas de SAN
desenvolvidas por poderes públicos e por toda a sociedade incorporem
medidas que ajudem a diminuir essas desigualdades, em direção à construção
de uma maior equidade entre homens e mulheres. Ou seja, pretendemos
colocar uma questão de mão dupla: como a melhoria no tratamento das
questões das desigualdades de gênero pode provocar uma maior eficiência e
eficácia nas políticas de SAN, ao mesmo tempo em que essas políticas promovam
mudanças no entendimento que a sociedade tem sobre o papel social de
mulheres e homens, ampliando a autonomia das mulheres?
Uma das questões que estará em discussão é justamente sobre o papel
social atribuído a mulheres e homens no campo da alimentação. As mulheres,
em geral, são responsáveis pela preparação dos alimentos para a família. É,
também, parte do seu leque de responsabilidade a produção dos alimentos
(hortas, criação de pequenos animais) e a aquisição dos alimentos nos
mercados e supermercados, especialmente nas áreas urbanas. As mulheres são,
ainda, as principais envolvidas com as questões da saúde e educação dos filhos
e filhas, sendo estratégicas para a promoção de hábitos saudáveis no seio da
família. São elas também as que exercem com maior freqüência profissões que
lidam com os cuidados das pessoas e sua preparação para a vida, tais como
professoras primárias, agente de saúde, profissionais de saúde (enfermeiras,
nutricionistas) e trabalhadoras sociais. Essas tarefas fazem parte do que as
Economistas Feministas chamam de “economia do cuidado”, tarefas que
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geralmente não são remuneradas, uma vez que são parte do que a sociedade
espera das mulheres enquanto um papel social.
Podemos afirmar então que as mulheres acumularam conhecimento e
experiência em áreas estratégicas para a promoção de segurança alimentar.
Entretanto, normalmente, o conhecimento e a importância das mulheres não
são valorizados e reconhecidos. O número de mulheres que participam de
processos de decisão e que estão em posição de destaque nas organizações
públicas e da sociedade civil ligados ao tema ainda é desproporcional à sua
importância estratégica. Esse é uma das facetas das desigualdades de gênero
existentes.
Por outro lado, essa condição das mulheres como responsáveis pelo
cuidado da família (e, portanto, pelas tarefas de reprodução da sociedade) está
profundamente ligada à identidade feminina que foi construída socialmente e
que é permanentemente reforçada pelos estereótipos de gênero, e isso pode
significar uma armadilha na sua busca por maior autonomia e participação na
sociedade. O “enclausuramento” das mulheres nas tarefas do lar foi utilizado
historicamente para a sua exclusão dos centros de decisão e de poder na
sociedade, relegando às mulheres um papel subordinado na sociedade como
um todo. Esse é um dilema nada fácil de lidar: respeitar as diferenças entre
mulheres e homens construídas socialmente e que imprimem diferentes
identidades de gênero às pessoas; sem que isso reforce relações de
desigualdades.
Mulheres e SAN em experiências locais
Na prática cotidiana, as mulheres vêm se organizando em vários países
para interferir sobre as políticas de segurança alimentar. Em muitos casos elas
também têm experimentado a organização de projetos locais de
abastecimento, que procuram melhorar o acesso das pessoas aos alimentos.
Esses projetos, mesmo que em pequena escala, se opõem ao sistema
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agroalimentar dominante, buscando modificar a relação consumidores–
produtos–produtores. Muitas vezes, essas mulheres são as protagonistas nas
lutas pela socialização do atendimento às necessidades de alimentação, por
meio seja de políticas de redução de preço dos produtos básicos, seja de
políticas de subsídios para as populações pobres. As lutas por melhores
condições de saúde, escolas, espaços de socialização das crianças nos bairros
também têm conseqüências sobre o acesso à alimentação.
Projetos desse tipo têm sido relatados, tanto em países desenvolvidos
como do Terceiro Mundo, e mostram como a ação pessoal e local pode ter
efeitos políticos, à medida que modifica a relação das pessoas (e em especial,
das mulheres) com a vida pública e com as instâncias de poder.
No Brasil, experiências como a relatada em Cristiane Costa e outras
(2002), sobre a introdução de novas práticas de alimentação escolar,
integrando a comunidade escolar, familiares das crianças e o poder público
local, mostram que é possível transformar um modelo de alimentação a partir
do questionamento de hábitos de consumo. O trabalho centrou-se em práticas
de reeducação alimentar e aproveitamento integral de alimentos, envolvendo
crianças de creches e pré-escolas em um município do Estado de São Paulo
(Ribeirão Pires). Suas conseqüências foram não só o melhoramento da saúde e
da nutrição dessas crianças e de seus familiares, como também a criação de
um verdadeiro movimento pela cidadania alimentar na cidade e de alternativas
de renda para grupos de mulheres que se organizaram a partir dessa proposta.
Debbie Field (1999) defende que qualquer esforço massivo para alterar
as políticas alimentares será certamente importante para as mulheres, desde
que as envolva como protagonistas. Entre as várias razões que sustentam essa
premissa, cabe destacar as seguintes:

As mulheres são, de fato, mais vulneráveis à insegurança
alimentar, porque elas têm maior probabilidade de serem pobres. Existem
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dados, bastante conhecidos, sobre o aumento do número de mulheres chefes
de família e sobre como a renda das mulheres é menor do que a dos homens;
a renda das famílias chefiadas por mulheres também é menor do que as
demais, em todo o mundo.

As mulheres freqüentemente fazem da alimentação dos filhos
uma prioridade, até colocando-se elas próprias em risco de fome e
desnutrição, se for o caso. Quando o alimento é insuficiente, é preciso apoiar
ainda mais as mulheres para que obtenham renda ou alimentos, para assegurar
a manutenção da família.

No nível pessoal e familiar, as mulheres ainda mantêm a
responsabilidade de preparo das refeições, mesmo nos casos em que elas e os
homens trabalham fora de casa.
Para essa autora, a presença exagerada das mulheres “na cozinha” é um
claro indicador da distância que ainda deve ser superada para se alcançar a
eqüidade entre os homens e as mulheres. A dupla jornada a que elas são
submetidas constitui uma ameaça para a eqüidade, para sua saúde e para seu
bem-estar. Portanto, políticas de segurança alimentar voltadas para as
mulheres podem reduzir sua vulnerabilidade à insegurança alimentar, bem
como o estresse em que elas vivem, pela responsabilidade de obter e preparar
a comida. Tornar os alimentos básicos acessíveis para as mulheres e socializar
certos aspectos da preparação das refeições (por meio de restaurantes nas
escolas, creches, centros de convivência, locais de trabalho) reduz a pressão
que boa parte delas vivencia na construção diária da sobrevivência.
Mulheres Rurais e Segurança Alimentar e Nutricional
A vida das mulheres agricultoras, sejam elas assalariadas, posseiras,
assentadas de reforma agrária, extrativistas ou agricultoras familiares, é
marcada pela rígida divisão sexual do trabalho no campo e pela posição
subordinada que devem ocupar com relação aos homens, considerados
socialmente os verdadeiros “produtores rurais”. Essa desvalorização se
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expressa no salário menor pago às trabalhadoras rurais para a realização das
mesmas tarefas que os homens; na invisibilidade do seu trabalho produtivo na
agricultura (considerado “ajuda”) e também do trabalho reprodutivo
(considerado parte das suas funções de esposa e mãe); na dificuldade de
acesso à terra, aos financiamentos, à capacitação técnica; e em tantos outros
fatores que concorrem para estabelecer as condições de vida no meio rural, já
comentados.
Particularmente com relação à agricultura familiar, o debate na
academia, na esfera pública e nos movimentos sociais tem avançado bastante
nos últimos anos, centrado principalmente na invisibilidade do trabalho
feminino nas atividades produtivas e reprodutivas. Discutem-se igualmente as
perspectivas que se abrem para as mulheres com a ascensão cada vez maior
das atividades não agrícolas como geradoras de renda no meio rural.
Muitos estudos já mostraram que as mulheres agricultoras trabalham
efetivamente no conjunto de atividades que fazem parte do que consideramos
"agricultura familiar": preparo do solo, plantio, colheita, criação de animais,
entre outras atividades (incluindo a transformação de produtos e o
artesanato), e não apenas nas atividades ligadas ao lar. Na maioria dos casos,
no entanto, elas dedicam a maior parte do seu tempo na produção de
alimentos para o consumo familiar, por meio de hortas, pomares, hortos
medicinais, pequenos animais.
No desempenho dessas tarefas acabam por exercer outras funções,
como guardiãs de sementes, administradoras dos recursos naturais, além de
gerarem rendas e serem praticamente com exclusividade as zeladoras da
qualidade da alimentação doméstica. Apesar disso, não são reconhecidas (e
muitas vezes, não se reconhecem) enquanto trabalhadoras rurais (ou
agricultoras), tendo a sua realidade “profissional” escondida atrás da imagem
de que estas atividades seriam apenas extensões do seu papel de donas de
casa, de esposas e de mães.
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Taciana Gouveia (2003) é bastante contundente na sua análise de que, a
agricultura familiar, mesmo nas suas formas mais “democráticas” não tem
sido capaz de enfrentar as desigualdades de gênero, permanecendo um setor
onde as mulheres têm a sua autonomia bastante restrita, e a sua cidadania
negada, seja pelo Estado (através das políticas públicas) seja pela sociedade
civil. Para esta autora, esta situação se explica porque tanto o Estado como os
movimentos trabalham com uma visão ideal de “família”, em que as pessoas
mantêm entre si fortes laços de complementaridade, mas permanecem
articuladas por um poder central, exercido pelo “marido/pai”.
A agricultura familiar se caracteriza, justamente, por ser uma forma de
produção em que a unidade de trabalho se confunde com a família (ainda que
possam existir trabalhadores externos à unidade familiar, e possa haver
membros da família que exerçam atividades fora da unidade familiar). Essa
dupla condição, de ser uma forma de produção, e um espaço de realização da
vida afetiva das pessoas, ligadas que estão por laços de consangüinidade e
matrimônio, constitui uma das complexidades a serem levadas em conta
quando se estudam as relações de gênero no meio rural.
As relações que se estabelecem entre os membros dentro da unidade de
produção serão afetadas pela forma como se distribui o poder dentro da
família; ao mesmo tempo em que são relações de trabalho, são relações
afetivas, de conflito ou de colaboração, entre pais, mães, filhos e filhas, avós,
cunhados, etc. As decisões sobre o que plantar, onde, em que condições,
dependem fundamentalmente do acesso real que cada um tem aos meios de
sobrevivência (à terra, aos instrumentos de trabalho, à renda monetária, por
exemplo); mas também da posição que ocupam dentro da unidade familiar.
Autoras como Beatriz Heredia e Rosangela Cintrão (2006) em um
estudo sobre as mudanças ocorridas na situação das mulheres rurais brasileiras
nos últimos dez anos, chamam a atenção para dificuldades estruturais
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enfrentadas por elas, por conta da forma como as relações de gênero se
expressam no mundo rural:
- a precariedade das condições de infra-estrutura vividas no meio rural
brasileiro, em especial a falta de água encanada, energia elétrica e esgotamento
sanitário, faz com que piorem ainda mais as condições de exercício, por parte
das mulheres, das tarefas da casa. Sem energia elétrica, por exemplo, não
podem contar com eletrodomésticos já corriqueiros em grande parte dos lares
urbanos (como geladeiras); ademais, cabem a elas e às crianças, normalmente,
as tarefas de obtenção de água para uso doméstico e para a criação dos
animais;
- as dificuldades encontradas pelas mulheres rurais para terem acesso à
educação e aos serviços de saúde; a precariedade desses serviços impacta
diretamente as atividades realizadas por elas, normalmente responsabilizadas
pelo cuidado com os filhos;
- as mulheres rurais, na maioria das vezes, não recebem renda própria;
os resultados do seu trabalho são somados às receitas da família, cujo uso será
decidido, na maioria das vezes, sem a sua participação direta. Nas estatísticas
oficiais (censos, pesquisas, etc.) não é possível obter-se informações sobre a
sua contribuição econômica à unidade familiar, pois embora sejam
contabilizadas como força de trabalho, aparecem como “membros não
remunerados da família”;
- o não reconhecimento, historicamente, da sua condição de
trabalhadoras, fez com que apenas após a Constituição Federal de 1988
passassem a usufruir de direitos sociais básicos, como previdência social,
auxílio maternidade, auxílio doença, e outros; esta situação, somada ao fato de
não terem remuneração ou bens em seu nome acaba por comprometer as suas
condições autônomas de sobrevivência, sobretudo quando idosas;
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- a dificuldade em acessar a terra em próprio nome (seja pela herança,
seja pela compra no mercado, seja nos processos de assentamento de Reforma
Agrária) faz com que sejam ainda mais precárias as condições de
sobrevivência de mulheres sozinhas; sem terra, as mulheres não podem
plantar alimentos para si e para seus filhos, não podem obter rendas extras,
não podem acessar financiamentos, etc.
- decorrentes da invisibilidade do seu trabalho e subalternidade em que
vivem dentro da família rural, muitas dessas mulheres não têm, até hoje, seus
documentos civis básicos, tais como Registro de Nascimento, Carteira de
Identidade, Cadastro de Pessoa Física, e outros. A falta dessa documentação,
condição para exercício da cidadania junto ao Estado, impede-as de
cadastrarem-se para uma série de programas e políticas públicas de apoio aos
trabalhadores rurais e a populações vulneráveis, constituindo-se em mais um
fator de discriminação;
- apenas recentemente as mulheres rurais têm sido focadas como
público de programas específicos, tais como o crédito rural (Pronaf Mulher e
outros), programas de capacitação técnica, de organização da produção, entre
outros. Historicamente, as instituições como bancos, órgãos de assistência
técnica, organizações não governamentais, não as reconheciam como sujeitos
portadores de direitos e capazes de tomar as suas próprias decisões. A
ideologia da família como um espaço homogêneo e representado pelo homem
(“cabeça de casal”) contribuiu para que as necessidades específicas de cada
membro da unidade familiar fossem ignoradas.
Particularmente com relação às instituições públicas de extensão rural,
não há como analisar o seu trabalho sem perceber que ele foi,
permanentemente, marcado por um viés de gênero, que, muitas vezes, negava
o papel das mulheres rurais enquanto agricultoras (SILIPRANDI, 2000;
2002). A extensão sempre foi pensada como uma ação dual, em que um
técnico homem (geralmente engenheiro agrônomo ou técnico agrícola)
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trabalhava com os homens as questões produtivas da agricultura, enquanto
uma técnica mulher (extensionista social, economista doméstica ou com outra
formação ‘social’) se dirigia às mulheres para tratar de assuntos relacionados
com o ambiente doméstico (alimentação, higiene, cuidado com a saúde, etc.).
Às mulheres rurais era oferecida a possibilidade de organização em
grupos (clubes de mães, de senhoras, e outros), acompanhados por essas
extensionistas sociais, e orientados, em sua maioria, para os temas
considerados “femininos”. Mesmo que não fosse essa a intenção, os grupos
ajudavam a consolidar a idéia de que havia um lugar separado entre as
mulheres e os homens no meio rural. Assumia-se uma divisão sexual do
trabalho que, na prática, negligenciava o papel produtivo que as mulheres
sempre desempenharam na agricultura. Ao mesmo tempo, reforçava-se que o
seu papel social era o trabalho doméstico, considerado menos importante.
Essa ação contribuiu para a exclusão das mulheres dos espaços onde eram
tratadas as questões tecnológicas e de financiamento da produção agrícola, e
contribuiu para a exclusão das questões domésticas dos espaços públicos onde
se discutiam as políticas de desenvolvimento rural.
Muito do que já mudou no meio rural no sentido de melhorar a vida
das mulheres, como já foi comentado em outras ocasiões, é fruto das
reivindicações históricas e das mobilizações dos vários movimentos de
mulheres rurais, assim como da ação de profissionais de campo
inconformados com esses papéis, e engajados na construção de propostas
alternativas. Essas propostas se materializaram na criação de associações e
grupos de produção, que desenvolveram experiências produtivas alternativas
em nível das propriedades; na criação de centros de formação, para prestação
de assessoria técnica e organizativa; na formação de espaços de
comercialização, cooperativas, associações; e, sobretudo, na pressão pela
adequação das políticas públicas às propostas das mulheres. Todas essas
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experiências ainda estão em construção, sendo alvo de permanentes avaliações
por parte dos seus participantes.
Mudanças nas relações de gênero são, em geral, condição (e não
conseqüência) para o desenvolvimento rural sustentável, do qual faz parte a
garantia de segurança alimentar (QUISUMBING e MEIZEN-DICK, 2001).
É preciso que as mulheres sejam reconhecidas no papel que desempenham
como produtoras de alimentos, administradoras dos recursos naturais,
angariadoras de receitas e zeladoras da alimentação doméstica e da segurança
nutricional das pessoas, e sejam foco de políticas que busquem “empoderálas”, por meio de ações em diversas áreas. É preciso que haja mudanças tanto
nas políticas públicas, como nos arcabouços legais que regem a propriedade
de bens, para evitar que as mulheres dependam de suas relações com os
homens (pais, maridos, irmãos, filhos) para ter acesso a esses bens.
As propostas de políticas para as mulheres rurais devem atacar em
várias áreas: acesso aos bens naturais (água, terra, matas, rebanhos), ao capital
físico (casas, construções, infra-estrutura), ao capital financeiro, a tecnologias
adaptadas às necessidades (e voltadas para diminuir a carga de trabalho das
mulheres), à formação profissional, à educação, aos serviços de saúde, ao
trabalho remunerado e à plena participação social.
As possibilidades colocadas pela confluência entre agroecologia,
gênero e SAN
O conceito de segurança alimentar e nutricional permite dar visibilidade
para um leque de atividades exercidas pelas mulheres, habitualmente ignoradas
pela lógica produtivista hegemônica de agricultura: conservação e
experimentação com sementes nativas, hortas, pomares, plantas medicinais,
pequenos animais, produção de mel, agroindústria caseira, agricultura urbana.
Nesse sentido, mostra afinidades com experiências práticas que vêm sendo
adotadas por muitas organizações, de promoção da agroecologia, enquanto
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uma nova forma de produzir que, ao mesmo tempo, seja ambientalmente
sustentável e fundada em conceitos éticos de respeito aos produtores e aos
consumidores.
As mulheres, como comentamos acima, tanto urbanas como rurais,
desempenham um papel fundamental em todas as etapas da segurança
alimentar e nutricional: produção, pesquisas de preço, seleção, preparação,
beneficiamento e consumo dos alimentos. O conceito de segurança alimentar
e nutricional abrange as múltiplas funções exercidas pelas mulheres no dia-adia das comunidades, tanto os trabalhos considerados reprodutivos, quanto os
trabalhos considerados produtivos.
A agroecologia, ao considerar todos os componentes do sistema de
produção, também busca criar relações sociais mais igualitárias, contrapondose à naturalização da situação de opressão das mulheres na sociedade, se
aproximando das políticas que promovem a igualdade de gênero. O conceito
da agroecologia considera os diferentes usos do espaço, do tempo, das
atividades produtivas e reprodutivas dentro de um sistema mais amplo que
integra aspectos agronômicos, ecológicos e socioeconômicos. Neste sentido,
também torna visível o trabalho desenvolvido pelas mulheres, que é
fundamental para a sustentabilidade e para a reprodução familiar.
Parece
estar
claro
que
o
envolvimento
em
experiências
“agroecológicas”, ainda que localizado, permite, ao mesmo tempo, que se dê
destaque tanto para as questões de melhoria das condições de alimentação da
família, como da própria comunidade, e dos mercados em que essas
experiências estão inseridas (ver, por exemplo, o efeito da existência de feiras
ecológicas em pequenos municípios; os debates quanto à qualidade da
alimentação escolar, etc.).
As experiências agroecológicas têm ajudado, por outro lado, a dar
visibilidade a projetos de mudanças sociais que abarcam o conjunto da
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sociedade. As lutas ambientais e por um modelo de desenvolvimento mais
sustentável vêm sendo assumidas como uma luta de todos – inclusive das
mulheres urbanas e rurais. Elas participam ativamente, muitas vezes estando
na liderança - de campanhas pela não utilização de agrotóxicos, contra o uso
de
organismos
geneticamente
modificados,
pela
manutenção
da
biodiversidade, contra práticas agrícolas agressivas ao meio ambiente, pela
ampliação do uso de fitoterápicos e de medicamentos naturais, por exemplo.
Muito do que se avançou na incorporação das lutas ambientais e por
soberania alimentar nas pautas dos movimentos internacionais se deve à
organização das mulheres camponesas e indígenas, articuladas no movimento
Via Campesina. Desde 1996, elas vêm se posicionando no debate sobre
Soberania Alimentar, defendendo os direitos das mulheres como produtoras e
mantenedoras de um modelo de alimentação respeitador dos costumes locais.
Suas posições manifestas, relativamente à OMC, à soberania alimentar e às
questões de gênero, apontam para a necessidade de que as mulheres
participem em igualdade de condições nas instâncias onde se definem essas
políticas.
Em nível nacional, cabe registrar a existência de movimentos de
mulheres rurais como o MMC (Movimento de Mulheres Camponesas, ligado
à Via); o MMTR-NE (Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do
Nordeste); a Comissão Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da
Contag; e os setores de mulheres dos Movimentos dos Pequenos Agricultores
(MPA), do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e da FETRAF
(Federação da Agricultura Familiar). Mesmo com diferenças internas, estes
vários movimentos de mulheres colocam nos seus programas de ação a
questão da construção de um outro modo de produção e consumo que
contemple relações menos agressivas com o meio natural. As mulheres rurais
têm ainda se organizado em inúmeras associações, cooperativas e grupos
informais de produção e comercialização de produtos agroecológicos, além de
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participarem das organizações de quilombolas e indígenas. Com grande
destaque no campo ambiental, atua no norte do país o Movimento das
Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu, assim como as seringueiras e
castanheiras, em seus movimentos mistos.
No entanto, nos estudos existentes sobre os movimentos ambientais e
ecológicos, raramente se dá destaque à contribuição trazida pelas mulheres a
essas lutas, seja quanto às elaborações teóricas, seja nas experiências práticas.
Também pouco se sabe sobre as mudanças que possam ter ocorrido nas
relações entre os gêneros, a partir dessa participação. A participação mudou a
vida das mulheres e dos homens envolvidos? Teriam as mulheres aumentado
a sua autonomia? Teriam tido o seu espaço de atuação ampliado, mais acesso
a informações, a bens materiais, a oportunidades de capacitação? Teria havido
mudanças na divisão sexual do trabalho, na propriedade, na comunidade, na
família?
E em que medida essas atividades têm sido acompanhadas de
mudanças nos padrões de gênero dentro da agricultura familiar, diminuindo as
desigualdades entre mulheres e homens? Essas são questões que ainda
permanecem em aberto, e devem estar na pauta de todos e todas que
acreditam que é possível construir outros modelos de desenvolvimento em
que os seres humanos interajam de forma mais igualitária e respeitosa entre si
e também com o meio natural.
Referências Bibliográficas
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social; a escola na promoção da saúde infantil. São Paulo: Instituto Polis, 2002.
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2000.
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__________ O que se pensa, o que se faz, o que se diz: discursos sobre as mulheres rurais.
Educação em Debate, v.2, n 44, p 106-110, 2002.
__________ Políticas de alimentação e papéis de gênero: desafios para uma maior equidade. In: FARIA, Nalu e
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__________ Ecofeminismos: mulher, natureza e outros tipos de opressão. Brasília, 2005
(mimeo).
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