introdução à defesa da amazônia

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INTRODUÇÃO À DEFESA DA AMAZÔNIA*
Geraldo Lesbat Cavagnari Filho**
O início da presença militar na Amazônia coincide com a sua conquista, em 1616,
quando foi erguido o Forte do Presépio, que deu origem a Belém do Pará. Mas a
primeira colônia militar só viria a se estabelecer em 1840, na região do rio Araguari —
seguindo-se a instalação de outras em São João do Araguaia, São Pedro de Alcântara,
Óbidos, Oiapoque e Tabatinga. Na perspectiva da construção do território brasileiro, a
Amazônia era tão importante quanto o Prata, já que o Império enfrentava as ambições
francesas e britânicas de acesso ao vale amazônico, assim como as pressões dos
Estados Unidos para o estabelecimento da livre navegação internacional dos rios
amazônicos — que seria efetivada em 1866i[1]. Os contenciosos com a França (Questão
do Amapá) e Grã-Bretanha (Questão do Pirara) só viriam a ser resolvidos no início da
República. No entanto, o aprofundamento da defesa da Amazônia só seria iniciado no
século seguinte, quando aquelas colônias foram substituídas por pelotões de fronteira.
Se bem que, aprofundamento lento e intermitente.
Às Forças Armadas coube a iniciativa da articulação da Amazônia com as áreas
mais avançadas da economia brasileira, com o propósito de defendê-la da cobiça
internacional — porque já estavam presentes, segundo o discurso militar, as ameaças de
sua internacionalização. Na década seguinte, na década de 80, com a introdução dos
direitos humanos e do meio ambiente na agenda internacional, pareceu aos militares que
o futuro da Amazônia estava novamente ameaçado, agora agravado pela intenção (mais
aparente que real) das grandes potências de legitimar o “direito de ingerência”. Ou seja:
legitimar um pretenso “direito” auto-outorgado por elas, para ser exercido conforme seus
próprios interesses e os ditames do realismo políticoii[2]. Assim, em face de ameaça de
tal magnitude, alguns setores militares foram induzidos a reintroduzir a “teoria da
conspiração” no discurso de defesa da Amazônia.
Grande parte das acusações contra o Brasil estava apoiada em provas
inconsistentes — havia exageros nas denúncias. Mesmo assim, qualquer ameaça que se
insinuasse já seria motivo para justificar o fortalecimento do dispositivo militar na região.
A ampliação e o fortalecimento da presença militar na Amazônia foram determinados, de
certo modo, segundo a lógica que enfatizava a “hipótese da conquista” do espaço
amazônico pelas grandes potências — o que implicaria, obviamente, ocupação efetiva
do território. Essa “hipótese” teve algum relevo quando os Estados Unidos realizavam
exercícios militares na Guiana, como se eles fossem o prelúdio da aplicação da “teoria
do cerco” — do “cerco” da Amazônia brasileira. Em face da possibilidade de configuração
de tal “hipótese”, impunha-se então às Forças Armadas empregar a “estratégia da
resistência” — que visaria, em tese, negar ou dificultar a ocupação do território
amazônico pelo “invasor”, de modo que o levasse a repensar a continuidade da guerra,
dado o pressuposto de que é possível resistir a uma ação militar na Amazônia.
O teatro de operações amazônico não se presta ao emprego centralizado de
grandes unidades, de grandes efetivos. As operações realizadas são descentralizadas, a
unidade tática de emprego é de pequeno efetivo. Nele não se configuram linhas de
contato, e o controle do território é o controle de núcleos populacionais e de suas vias de
acesso. A articulação das forças em terra ou é pelos rios ou é pelo ar, o que restringe a
logística de grandes unidades. O teatro amazônico é, não há dúvida, o espaço adequado
para uma guerra prolongada. Considerando as características inóspitas do terreno, que
criam óbices consideráveis à logística, a dimensão continental de tal teatro e as
condições climáticas e sanitárias desfavoráveis, uma intervenção militar na Amazônia
demandaria uma mobilização de recursos de tal magnitude que uma grande potência
não teria a certeza se alcançaria resultados compensadores — aliás, só a admitiria se
estivesse em jogo algum interesse considerado vitaliii[3]. Ou seja: se essa grande
potência estivesse disposta a enfrentar uma guerra prolongada. Até agora, não apareceu
nenhuma disposta a enfrentá-la.
Entre as grandes potências somente os Estados Unidos têm a capacidade para
realizar unilateralmente uma intervenção militar, seguida de ocupação, na Amazônia.
Mas uma ação militar só terá sentido se algum interesse vital deles for violado, ou
mesmo se estiver ameaçado, induzindo o apoio da opinião pública norte-americana à
sua defesa. Depois da Guerra do Vietnã, qualquer envolvimento militar numa guerra
prolongada só se justifica com esse apoio — porque ele pressupõe a defesa de algum
interesse vital. Se a opinião pública norte-americana se convencer de que algum
interesse de tal natureza poderá ser afetado — por exemplo, pela devastação do meio
ambiente amazônico —, não há dúvida de que os EUA intervirão militarmente na região,
mesmo correndo o risco de se envolver numa guerra prolongadaiv[4]. Todavia, tudo
indica que essa devastação não deverá se apresentar como fato consumado num futuro
não muito distante. Aliás, os Estados Unidos poderão empregar outros meios para
pressionar o Brasil, mais eficazes e que lhes oferecem menos riscos — porque, se
empregados, eliminarão a possibilidade de configuração da “hipótese da intervenção
militar”. Uma intervenção militar na Amazônia não é uma possibilidade real, é apenas
uma possibilidade teórica que deve, no entanto, ser considerada no planejamento
estratégico-militar — bem como a estratégia da resistência.
Convém esclarecer que desde a década de 70 o governo brasileiro já estava
empenhado em encontrar uma solução para o problema de segurança da Amazônia,
mas uma solução fundada na cooperação com os demais países amazônicos. Com o
Tratado de Cooperação Amazônica, em vigor desde o início da década de 80, ele visou à
integração física e ao desenvolvimento da Amazônia continental. Com essa iniciativa
pretendia afastar qualquer tentativa de controle internacional sobre a região.
Regionalizando a solução daquele problema os países signatários (Bolívia, Brasil,
Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela) estariam resguardando sua
capacidade de decisão na Amazônia continental. Solução que garantiria, não há dúvida,
segurança pela cooperação, sem o recurso aos meios militares — se o Pacto produzisse
resultados concretos no marco dessa cooperação. Explica-se porque ele não foi bemsucedido: o rápido desenvolvimento do Brasil na Amazônia fez ressurgir entre os
vizinhos amazônicos o fantasma do expansionismo brasileiro.
O Projeto Calha Norte surgiu, em 1985, como reação unilateral ao imobilismo
deliberado dos demais signatários em executar o Tratado de Cooperação Amazônica.
Foi elaborado como plano de ação governamental com a finalidade de intensificar a
presença do Estado ao norte dos rios Solimões e Amazonas, abrangendo uma área
praticamente inexplorada, que corresponde a 14% do território nacional, com mais de 6,7
mil quilômetros de fronteiras terrestres — que se estendem de Tabatinga à foz do
Oiapoque. Pelo planejamento original, ele deveria estar concluído até o final de 1997,
mas a partir do governo Collor ele foi sendo esvaziado — isto é, sabotado — pelos
governos que se sucederam até o atual, governo Fernando Henrique Cardoso. Desde o
início, só os então ministérios militares realizaram a sua parte — se não a concluíram, foi
por falta de recursos. O empenho desses ministérios — e, em parte, por ter sido uma
iniciativa da extinta Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional — serviu de
pretexto para a denúncia de pretensa militarização do Calha Norte. Até recentemente,
consideravam-no um “projeto de guerra” falido. Porém, fatos recentes demonstram a
importância dele para a segurança e defesa da Amazônia.
A partir de 1986, recursos militares foram empregados na criação de novas
organizações militares e na ampliação de outras já existentes. É claro que as já
instaladas — com exceção das brigadas de infantaria de selva e seus batalhões e dos
fuzileiros navais — não são aptas a combates prolongados, mas apenas às atividades de
vigilância e controle das fronteiras. Por enquanto, as organizações militares aptas a
esses combates não possuem ainda um nível de prontidão e operacionalidade que
atenda a uma necessidade de defesa imediata. Se esse nível for alcançado, o dispositivo
militar atual poderá ter uma capacidade de pronta resposta (oportuna e eficaz) na defesa
da Amazônia. A preocupação com a defesa stricto sensu dessa região não se reduz ao
atendimento das necessidades na fronteira Norte do País, não se limita ao Calha Norte.
Ou seja: se a preocupação é com toda a Amazônia brasileira, para sua defesa deverão
concorrer necessariamente elementos de combate dotados de mobilidade tática e
eficientes apoios logístico e aéreo.
Para a defesa nacional, segundo estimativas divulgadas, o Brasil deverá gastar
cerca de US$ 10 bilhões para modernizar suas Forças Armadas no período de uma
década, até 2010. Além desses recursos, deverão ser destinados US$ 1,2 bilhão para
iniciar e concluir a parte civil e concluir a parte militar do Calha Norte, e US$ 1,4 bilhão
para pagar o Sistema de Vigilância da Amazônia, Sivam, cuja conclusão está prevista
para julho de 2002 — com atraso de dois anos. Atualmente, o dispositivo militar na
Amazônia abrange 25.000 combatentes, sendo o maior efetivo o do Exército — cerca de
23.000. Deverão integrar-se a esse dispositivo, num prazo inferior a dois anos, 99 aviões
turboélice ALX de ataque leve, que atuarão de forma conjunta com cinco sofisticados
jatos EMB-145 — na versão de alerta avançado e vigilância eletrônica — e três, também
EMB-145, de sensoriamento remoto. Além dessas aeronaves, farão parte do Sivam: 70
estações meteorológicas terrestres, 13 estações meteorológicas de altitude, seis radares
transportáveis, 14 radares fixos, 10 sensores de transmissão clandestina e quatro
estações de recepção de satélites meteorológicos. Para completar essa estrutura,
aguarda-se a regulamentação da Lei do Abate — instrumento imprescindível à defesa do
espaço aéreo amazônico.
Todavia, tais gastos não são credencial de um governo exemplar com a defesa
nacional. Ao contrário. Foi a iniciativa conjunta dos Estados Unidos e da Colômbia de
regionalizar a guerra civil colombiana que despertou no governo brasileiro maior
interesse com a segurança e a defesa militar da Amazônia. Os Estados Unidos e a
Colômbia tentaram usar o Plano Colômbia como um primeiro exercício concreto de
cooperação regional diante de uma ameaça comum, o narcotráfico — e não,
aparentemente, a guerrilha de esquerda. Essa tentativa, porém, foi rechaçada na IV
Conferência de Ministros de Defesa das Américas realizada em Manaus. O Plano foi
elaborado sem levar em consideração a opinião dos países vizinhos que terão de lidar
com as conseqüências de uma escalada do conflito na Colômbia. A ameaça comum, não
há dúvida, é o narcotráfico e não as forças insurgentes. Mas qualquer intervenção
realizada por países da região na Colômbia resultará em envolvimento em todas as
frentes da guerra civil — na frente do narcotráfico, assim como na frente das forças
insurgentes.
O conflito colombiano já se estende por quatro décadas. Até há pouco tempo,
era manejável pelo governo: a guerrilha de esquerda, em nenhum momento, durante a
Guerra Fria, chegou a ameaçar a estabilidade do país. Na última década, na década de
90, quando ela e os paramilitares de direita passaram a ser financiados pelo narcotráfico,
a situação escapou ao controle desse governo. Com esse apoio financeiro regular e
substancioso, tais forças insurgentes — Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia,
Farc, Exército de Libertação Nacional, ELN, e Autodefesas Unidas da Colômbia
(confederação de exércitos privados formados pelos paramilitares de direita), AUC —
assumiram um protagonismo significativo na política colombiana, apresentaram-se como
alternativa de poder. Obviamente, indesejável tanto para o governo — e, por extensão,
para a oligarquia colombiana — quanto para os Estados Unidos. O Plano Colômbia
poderá reduzir significativamente a produção colombiana, mas não reduzirá a produção
global de drogas. Se a demanda persistir no mercado americano, ela será atendida por
outras fontes produtoras. Na realidade, conscientes de que os resultados obtidos na
frente do narcotráfico não influirão no consumo norte-americano, os EUA estão
determinados a eliminar as forças insurgentes como alternativa de poder no conturbado
processo político colombiano. Ou melhor, estão determinados a eliminar a guerrilha de
esquerda como alternativa de poder.
É claro que na ótica de Washington a ameaça principal à segurança regional não
reside nem no narcotráfico nem nos paramilitares de direita, mas no precedente perigoso
que poderá representar uma guerrilha de esquerda bem-sucedida na América do Sul.
Daí a determinação dos Estados Unidos em demonstrar à opinião pública mundial que
as forças de guerrilha — tanto as Farc quanto o ELN — “estão se afastando cada vez
mais de sua origem política para envolver-se plenamente no mercado de drogas ilícitas”.v
[5] Ou seja, elas em si já se constituem em cartel de drogas. Segundo essa visão, estão
desqualificadas para participar do poder político colombiano. Mas, na ótica dos países
amazônicos, no conflito colombiano impõe-se a solução negociada. Solução que exige,
por sua vez, a qualificação da guerrilha de esquerda como alternativa de poder, apesar
de os EUA buscarem o oposto. Desqualificados devem ser considerados os paramilitares
de direita — que, na realidade, constituem uma organização tão criminosa quanto os
cartéis da droga.
Por enquanto, não há ameaças à Amazônia que exijam resposta militar. Nem
mesmo o conflito colombiano representa ameaça dessa natureza. Ou seja: nem a
transferência das unidades de transformação da coca e da papoula, respectivamente,
em cocaína e heroína, nem a fixação da guerrilha de esquerda em “santuários” na
Amazônia brasileira atentarão contra a soberania nacional ou contra a integridade do
território brasileiro. Aliás, nada indica que num futuro imediato ameaças de natureza
militar venham a se apresentar no cenário amazônico. Mas, de qualquer modo, o Brasil
deve investir na busca da capacidade de pronta resposta de suas forças singulares
presentes na região amazônica. No entanto, nada obriga que em termos de defesa
stricto sensu, em termos de defesa militar, deva ser atribuída prioridade maior à
Amazônia que ao Atlântico Sul e à região que concentra efetivamente o poder e a
riqueza do País. Aliás, a essa região e ao Atlântico Sul é que deve ser atribuída a mais
alta prioridade de defesa. Nem a “teoria da conspiração” nem o seu corolário, a “teoria do
cerco”, são referenciais recomendáveis ao planejamento estratégico-militar.
5 O Estado de São Paulo, edição de 12 de março de 2001.
* Artigo originalmente publicado em Carta Internacional, Funag-USP, ano X, nº 107/108,
janeiro/fevereiro de 2002, pp.19-21.
**Fundador e coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp e professor convidado do
Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP.
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NOTAS
1 Demétrio Magnoli, O corpo da Pátria: imaginação geográfica e política externa do Brasil,
São Paulo, Editora da Unesp – Editora Moderna, 1997, pp. 175 a 184.
ii2 Luiz A. P. Souto Maior, “O dever de ingerência”, in Carta Internacional, Funag-USP, ano
VIII, nº 86, abril de 2000, p.2.
iii3 José Luiz Machado e Costa, “Balanço estratégico na América do Sul e o papel do Brasil
na construção de uma visão sul-americana de defesa: condicionantes, singularidades e
parâmetros”, in Política Externa, São Paulo, Paz e Terra – USP, 7(4), mar-abr-mai 1999, pp.
74-75.
iv4 Esta hipótese apresentei originalmente durante o debate do tema “Amazônia no contexto
internacional”, no V Encontro Nacional dos Estudantes de Relações Internacionais, realizado,
em 29 de abril de 2000, no Auditório Simon Bolívar do Memorial da América Latina.
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