Hora da Verdade

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ENTREVISTA
Artigo210 - HORA DA VERDADE
SÁ ,Fernando Luiz. A hora da verdade [entrevista].ISTO É DINHEIRO [on line].
Jan. 2000.
RESUMO: A economia brasileira formou-se com a história do próprio país e com todas as "falsidades"
que a mesma foi apresentada aos cidadãos. Precisamos reinventar nossa economia para que o país
cresça, e todos os empreendedores trabalhem para o bem comum do país e sua gente.
HORA DA VERDADE
DINHEIRO - Como o sr. analisa os 500 anos de história econômica do Brasil?
JORGE CALDEIRA - O Brasil - e a América como um todo - foi onde nasceu a idéia de que viver é
empreender. Os primeiros livros escritos sobre o País, ainda no século XVI, já diziam que aqui era um
lugar para onde o pobre vinha remediar a sua situação e enriquecer. Na Europa feudal isso era
impossível. A idéia de que o homem podia trabalhar e ganhar dinheiro com o seu trabalho, coisa que é
absolutamente corriqueira hoje, era uma novidade completa para aquela época. O Brasil foi
integralmente construído por gente que viu esse sentido para a vida. Um náufrago, como João Ramalho,
vivia basicamente de fornecer serviços e suprimento para navios, de vender produtos tropicais. Ou seja,
já era um trader poucos anos depois da chegada de Cabral. Os engenhos de açúcar eram, no século
XVI, uma antecipação da grande fábrica. A ocupação do interior do Brasil, o abastecimento com farinha,
gado etc., foi todo realizado à base de negócios. O Brasil sempre foi uma sociedade aberta, em que vai
para a frente quem dá certo. O sucesso de cada um depende apenas da sua atividade empresarial.
DINHEIRO - Durante boa parte de sua existência no Brasil nossos empresários não pensavam
prioritariamente em enriquecer e exportar suas riquezas?
CALDEIRA - De forma alguma. O tropeiro que comprava farinha em Paracatu para vender em Sabará e
levava coisas de volta para Paracatu era igualmente um empreendedor. O mercado interno brasileiro era
muito expressivo. A rigor, para entender o País é preciso rasgar a história econômica que foi escrita até
hoje. Ela está totalmente errada. Há descobertas sobre a nossa economia que mudam radicalmente o
quadro interpretativo do Brasil.
DINHEIRO - Quais são essas descobertas?
CALDEIRA - São dados impressionantes como os que revelam, por exemplo, que o Brasil foi a colônia
mais bem-sucedida economicamente da América. Em 1800 o PIB brasileiro era maior do que os Estados
Unidos. E cerca de 90% desse PIB era formado pelo mercado interno, somente o restante pela
exportação. A participação do mercado interno é crescente até o século XIX. Assim, a idéia de que o
Brasil apenas exportou suas riquezas durante o período colonial é bobagem. A economia brasileira não
levou mais do que 200 anos para ficar maior que a portuguesa, que já existia há milênios. O grande fator
de expansão era o mercado interno. E foi a partir dele que se fizeram os grandes empreendedores e as
grandes fortunas do País. As grandes fortunas nacionais até o século XIX se fizeram com tráfico de
escravos e não no setor exportador.
DINHEIRO - O sr. diria que o tráfico foi o melhor negócio da história?
CALDEIRA - Sem dúvida. Para se ter uma idéia, em 1810 a fortuna líquida - ou seja, dinheiro em caixa das cinco maiores famílias de traficantes era igual ao capital do Banco Central dos Estados Unidos.
Outro fato importante é que todas as fortunas eram de base familiar, porque aqui não era permitida a
criação de empresas. Havia uma restrição colonial, porque Portugal era dependente do Brasil e sua
política econômica, do século XVII em diante, consistiu em impedir que o Brasil crescesse muito mais
depressa. Aos olhos atuais, pode-se dizer que a política monetária portuguesa era permanentemente
recessiva, baseada em um fiscalismo burro. Ainda assim, em 500 anos, tivemos 430 anos de
desenvolvimento igual às melhores economias do mundo.
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ENTREVISTA
DINHEIRO - Mas já no final do século passado a economia brasileira era bem menor que a
americana. Onde foi que perdemos o bonde?
CALDEIRA - Tivemos, ao todo, 70 anos de desastre econômico completo. Um pedacinho no século XVII
e um pedaço grande no século XIX. É nesse segundo período que se concentra a diferença do Brasil
para os Estados Unidos. O problema, então, foi um só: o surgimento do capitalismo exigia em
transformar uma coisa implícita na sociedade brasileira, que é o espírito empreendedor, em regras
sociais gerais que favorecessem isso. Ocorre que naquele momento o País fez a opção inversa, dizendo
que esse não era um bom caminho e que precisávamos preservar a escravidão e os valores
aristocráticos. Fez isso sobre o cadáver de centenas de milhares de pessoas. Foi uma vitória militar do
conservadorismo, às custas da destruição de pedaços inteiros da economia para manter a subordinação
à elite ligada ao tráfico de escravos.
DINHEIRO - Quais foram os setores mais devastados?
CALDEIRA - O Maranhão, por exemplo, era um dos maiores exportadores de algodão do mundo em
1815. Em 1840, era zero. A economia amazônica, que tinha uma ligação muito forte com a Europa, foi
demolida integralmente depois da Cabanagem e às custas da morte de um quarto da população local.
Minas era uma região em que se tinha uma industrialização do tipo inglês, com muitos teares. Tudo isso
foi destruído em função das tarifas impostas pelo acordo da Independência. É significativo notar que a
economia patina durante boa parte do século XIX. Entretanto, logo após a abolição da escravatura, em
1888, ela retoma um bom ritmo de crescimento, saltando de 1% para 4,5% ao ano. Isso demonstra que o
desastre brasileiro foi a falta de crença no valor estratégico do mercado interno.
DINHEIRO - Esse valor parece estar sendo redescoberto somente agora...
CALDEIRA - Além de histórica, essa é uma questão atual. É o potencial do nosso mercado interno que
nos coloca numa posição muito mais favorável do que a da Argentina, por exemplo. Nós ainda temos
para onde crescer, e muito. Chega a ser espantoso notar o como é boa a economia brasileira. Num
horizonte de 500 anos, sempre foi uma das melhores economias para se apostar no mundo.
DINHEIRO - Por que, então, o Brasil nunca foi visto dessa maneira?
CALDEIRA - Somente os brasileiros não se dão conta. Que outro motivo explicaria o fato de os
investidores estrangeiros aplicarem US$ 26 bilhões ao ano aqui? Não é porque eles lêem essas
besteiras produzidas pelo mercado financeiro. Eles estão de olho é nas informações de base da
economia. Em que lugar do planeta se tem um mercado de telefonia que instala 20 milhões de aparelhos
em dois anos e tem potencial para outros 50 milhões? Isso não existe em lugar nenhum.
DINHEIRO - Por que o brasileiro em geral é pessimista quando fala em economia?
CALDEIRA - Porque aí sim o que se houve é o pensamento da elite tradicional, repetido desde o século
XVIII. É aí que está o reacionarismo no Brasil. A massa empreendedora nunca conseguiu colocar o
poder político a seu serviço.
DINHEIRO - Esse seria outro ponto que nos fez ficar atrás dos americanos?
CALDEIRA - Certamente. O que fez a diferença no século XIX é que os americanos conseguiram, no
momento em que havia a transição para o capitalismo, que o controle político fosse assumido por gente
que pensava nessa direção. No Brasil, não.
DINHEIRO - O espírito empreendedor não estaria mais difundido entre os americanos que entre
os brasileiros?
CALDEIRA - Existe, sim, uma imensa capacidade de empreender do brasileiro. O migrante que sai do
sertão e vem tentar a vida em outro lugar é movido pelo mesmo comportamento que rege o empresário.
Esse é um comportamento entranhado na nossa cultura. Temos uma sociedade aberta, violentamente
competitiva, com uma mobilidade espantosa. O grande problema interpretativo do Brasil colônia é que as
pessoas se espantavam com o grau de mobilidade, inclusive de casamento e miscigenação. Aqui
estamos trocando a estrutura de empregos total em apenas cinco anos, transformando o engenheiro em
vendedor de cachorro quente. E o sujeito aceita isso e ganha dinheiro.
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ENTREVISTA
DINHEIRO - Por que, ao contrário dos americanos, os brasileiros não cultuam seus grandes
empresários e empreendedores?
CALDEIRA - Isso aconteceu porque nossa elite sempre se preocupou em valorizar a figura do grande
dirigente e rebaixar o papel da pessoa comum, do empresário, do construtor do País, aquele que o faz
não por elevados motivos de Estado, mas por vulgar interesse pessoal. Essa necessidade está
desaparecendo nos últimos anos. Se você derruba essa visão da elite, o Brasil aparece como um País
de bons negócios e bons empreendedores o tempo todo. O problema é que nossa história oficial é
autodeprimente, miserável e vai contra os fatos. A história econômica do Brasil é ridiculamente mal
contada. E esse é um fenômeno do século XX, que foi quando se passou a priorizar a comprovação de
axiomas e teorias, quaisquer que sejam, em vez de dar importância ao que realmente se passou aqui
dentro. Quando vamos ver o que aconteceu de fato, verificamos que não tem nada a ver com o que está
escrito nos livros. Basta examinar alguns tipos que fizeram a História no Brasil.
DINHEIRO - Ela está repleta de personagens políticos, mas praticamente não se fala em
empresários. Faltam nomes de peso na história econômica brasileira?
CALDEIRA - Pelo contrário. O Brasil tem empresários multinacionais desde o século XVI. Como não
havia moeda nacional nos tempos da Colônia, para ficar rico o brasileiro tinha de andar meio mundo. O
grande negócio de mercado interno era comprar escravos em Angola, tecidos na Bahia, farinhas em São
Paulo, botar tudo no navio e ir a Buenos Aires trocar por prata vinda do Peru. Assim se criava a moeda
que abastecia a Colônia e as grandes fortunas. Outra opção era atravessar o continente a pé até as
minas do Peru. No meio do século havia seis mil brasileiros por lá, o grosso da população branca local.
Era uma aventura excepcional ser empresário nessa época. O que estabelecia uma empresa nos
primórdios da colonização era o casamento com uma índia, gerando uma aliança com a sua tribo. Era o
que dava ao empreendedor gente para trabalhar e condições de fazer negócios em paz. Todo mundo
que deu certo por aqui nos séculos XVI e XVII fez assim.
DINHEIRO - Muitos historiadores apontam a chegada de Dom João VI ao Brasil, em 1805, como
um momento decisivo para o desenvolvimento do País. Esse fato foi mesmo tão importante?
CALDEIRA - Trata-se de outro equívoco histórico. A vinda da família real não gerou nenhum surto de
desenvolvimento. Tudo já estava pronto antes. Acontece que foi autorizada a abertura de empresas por
aqui e então apareceram fortunas incríveis, como a dos traficantes de escravos, que estavam no
submundo da economia. Era um capital monumental. Houve, sim, um efeito fiscal. O grande ganho de
Portugal com o Brasil estava em cobrar muito e oferecer pouco. Lucrava-se com a diferença fiscal. Com
a vinda da corte de Dom João VI, essa diferença passou a ser picada na economia local. Então, um dos
grandes fluxos negativos da economia transformou-se em um fluxo positivo. Mas é bom que se entenda
que isso não tem nada a ver com a tão celebrada abertura dos portos. Afora em coisas muito
secundárias, como o tabaco, essa medida não mudou nada na estrutura econômica brasileira. Mais uma
vez, o que prevalece aí é a maneira das elites de contar a História, de sobrevalorizar os seus próprios
atos e de sustentar a idéia de que o País depende delas. Para fazer isso foi preciso falsificar
grosseiramente dados empíricos. Só que nos últimos 20 anos o acúmulo de dados históricos, oriundos
de pesquisas locais, torna impossível tapar o sol com a peneira.
DINHEIRO - Da mesma forma, a figura do imperador Dom Pedro II é tida como a de uma pessoa
atenta à modernidade e às inovações. Como um pessoa com esse perfil permitiu que o País
andasse na marcha à ré por tanto tempo?
CALDEIRA - Dom Pedro II era um sensato dirigente político a serviço da elite. Mas não era um dirigente
econômico e não tinha uma visão mais ampla do que acontecia no mundo naquele momento. O gosto
dele pela inovação se manifestava quando encontrava um erudito que lhe apresentava uma nova
descoberta. Agora, se lhe aparecesse um pobre mostrando uma invenção e dizendo que seria um
grande negócio no futuro ele não apostaria um tostão.
DINHEIRO - Como a revisão da história econômica brasileira pode colaborar para a solução de
problemas atuais?
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ENTREVISTA
CALDEIRA - A mudança da visão histórica pode trazer uma série de benefícios, como estimular ainda
mais o espírito empreendedor do brasileiro e até gerar fundos para o desenvolvimento. O ponto básico
disso é o sistema tributário. No Brasil, a tributação indireta é uma realidade desde o século XVIII,
gerando uma distorção absurda. Aqui, o patrimônio de pessoas físicas é relativamente livre de tributos,
mas a produção severamente tributada. Isso faz com que hoje haja um subsídio gigantesco para
transferência de capitais das empresas para os seus donos. É por esse motivo, entre outras coisas, que
o Brasil possui uma série de pessoas nas listas dos 500 homens mais ricos do mundo. Entretanto, possui
apenas uma empresa na lista das 500 maiores, que é o grupo Itaú. O sistema tributário permite que você
fique muito rico, mas não permite que você tenha uma empresa rica. Esse sistema fiscal foi extinto no
mundo em 1850, quando foi criado um sistema que, inversamente, favorecia a empresa. Nisso o Brasil
está atrasado um século e meio.
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