das minorias às massas: a tatuagem sob a ótica social e

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DAS MINORIAS ÀS MASSAS: A TATUAGEM SOB A ÓTICA SOCIAL E
PSICANALÍTICA
Paulo Ramsés Costa*
Maria Helena Touro Beluque**
RESUMO: O presente artigo busca refletir as contribuições da psicanálise acerca das tatuagens,
enfatizando o ato de ferir corpo e as inscrições corporais pigmentadas na pele como forma indentitária,
integradora e de linguagem que estabelecem a comunicação entre o mundo interno e externo dos
sujeitos. Para tanto, utiliza-se a pesquisa bibliográfica, tendo como base os referenciais da psicanálise
sobre o conceito de corpo. Com essa teoria foi possível observar a corporeidade humana como conjunto
simbólico, como fenômeno social e cultural, e como objeto de representação. Assim, há uma relação
entre sujeito, corpo e identidade,de forma que o corpo pode ser expressão de transformações internas e
externas da psique.
Abstract: The present article tries to reflect the contributions of psychoanalysis about the tattoos,
emphasizing the act of hurting body and the bodily inscriptions in pigmented skin as form identity,
inclusive and of language establishing the communication between the internal and external world of the
subjects. For this, we use the bibliographical research, taking as a basis the frameworks of
psychoanalysis the concept of the body. Therefore, the literature is used, based on the reference of
psychoanalysis on the body concept. With this theory was possible to observe the human corporeality as
symbolic set, as a social and cultural phenomenon, and as a representation of object. Thus, there is a
relation between the subject, body and identity so that the body can be the expression of internal and
external changes of the psyche.
PALAVRAS-CHAVE:corpo,tatuagem, psicanálise.
KEYWORDS: body, tattoo, psychoanalysis.
INTRODUÇÃO
É possível encontrar diversos tatuados em nosso cotidiano, tanto em âmbito escolar e
acadêmico, quanto em empresas e grupos sociais. Segundo Alvarenga (2005), a
tatuagem não possui mais rótulos nem gêneros ligados somente a um grupo específico
de sujeitos sexo, idade, classe social ou modismo, pois é possível encontrar pessoas
tatuadas em todos os lugares e o número de tatuados aumenta cada vez mais.
Assim, esse assunto é amplo e recebe estudos de diferentes abordagens como a
sociológica, a psicológica e a psicanalítica. Melman (2008) afirma que na clínica
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psicanalítica, há uma recorrência de sujeitos expostos, frágeis e deprimidos, que
possuem a necessidade de autoafirmação incessantemente. Para o autor, estes sujeitos
possuem carências das identificações simbólicas, que deixam como recurso uma luta
constante para renovar e conservar suas insígnias que marcaram a constituição de sua
identidade. Segundo Moreira, Teixeira e Nicolau (2010) as manifestações corporais
como a tatuagem, marcas voluntariamente impressas no corpo, são tomadas na
psicanálise como formas de linguagem implicadas com a busca de identidade e
expressão do sujeito.
Já a sociologia tem estudado os conceitos do corpo humano, dedicando as noções de
corporeidade humana como conjuntos simbólicos, fenômenos sociais e culturais, e
objeto de representação. Sendo assim, o corpo tem sido o lugar de transformações que
evidenciam como a relação com o mundo é formada. Antes de qualquer coisa, para a
sociologia, as representações, as simbolizações e as interações do ser humano, em sua
existência, são corporais (LE BRETON, 2007).
Como a pele do tatuado é um lugar de grande investimento psíquico é preciso
estabelecer um maior aprofundamento no tema, pois para além dos tribais e das rosas, a
tatuagem pode revelar importantes elementos do sujeito e do grupo social. E, neste
sentido, este estudo pretende abordar a tatuagem para além dos símbolos representados
nos desenhos, objetivando, então, refletir sobre o ato de marcar o corpoe sua
importância na constituição da identidade do sujeito, por um viés sociológico e
psicanalítico.
1 A TATUAGEM NA PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA
Ribeiro (2007), em uma pesquisa sobre a tatuagem, identificou os períodos em que ela
esteve mais presente na sociedade, caracterizando alguns significados para cada época.
A tatuagem, segundo ele (2007), é milenar, tendo seus indícios de início no Egito, em
que algumas múmias, datadas com idade de quatro mil anos, possuíam traços inscritos
no corpo.
Assim, nessa época, a tatuagem esteve ligada a significações de poder, de distinção,
ritual de iniciação. Já na era cristã, passou a ser vista como possessão demoníaca e, na
Idade Média, as pessoas tatuadas eram perseguidas e queimadas na fogueira. No século
XIX, na Europa e na América, as tatuagens no corpo inteiro faziam parte de atrações
circenses, e só em 1920 que a tatuagem ganha popularidade comercial, nos anos 70 e 80
ela ganha fama com os movimentos hippie e com os surfistas (RIBEIRO, 2007).
Deste modo, a tatuagem do sujeito pós-moderno possui sua gênese relacionada à
marginalidade (que vive fora do âmbito da sociedade ou da lei) tanto como a
marginalidade política, marginalidade econômica e social. Essa ligação sempre foi
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muito presente, a partir das décadas de 50 e 60 ela era usada por membros gangues,
onde os desenhos identificavam a gangue e expressavam a identidade de cada uma. As
gangues estadunidenses e latinas utilizam, ainda, a tatuagem para a identificação
(ALVARENGA, 2005).
Neste mesmo período, surgia também o movimento hippie, que introduziu a tatuagem
em seus integrantes como forma de protesto. No Brasil, no final da década de 60, o
movimento hippie é inserido no país, trazendo consigo a tatuagem. Alguns anos depois
o movimento punk é introduzido também no país, carregando consigo também a
tatuagem como marca de identidade e protesto contra a sociedade (ALVARENGA,
2005).
Assim, as visões associadas à tatuagem aparecem e mudam em diferentes culturas e
épocas. A maneira como a sociedade tem percebido e aceitado este ato decorreu, a partir
das mudanças sociológicas, da mudança da relação do sujeito com o corpo, pois, é a
partir da década de 60, que a preocupação com o corpo revoluciona as visões anteriores,
trazendo, para as atribuições físicas, novas ideias, como as tatuagens – bodyart (LE
BRETON, 2007).
No final dos anos de 1960, a crise da legitimidade das modalidades físicas da
relação do homem com outros e com o mundo amplia-se consideravelmente
com o feminismo, a “revolução sexual”, a expressão corporal, o bodyart, a
crítica do esporte, a emergência de novas terapias, proclamando bem alto a
ambição de se associar somente ao corpo (LE BRETON, 2007, p.9).
Conforme Le Breton (2007), a sociologia emprega quatro pontos de vista distintos,
acerca do corpo, conforme a evolução e aos fatos históricos. A primeira visão é a de que
o corpo é produto da condição social; a segunda é que a condição social é o produto do
corpo (condição biológica); a terceira é que a corporeidade humana é vista somente pela
competência da medicina; e, por fim, ela vê o corpo como matéria modelada pelas
relações sociais e, sendo assim, o corpo introduz o homem de maneira ativa no espaço
social e cultural.
Este último ponto de vista nos leva a refletir, que se o corpo introduz o homem de
maneira ativa no espaço social e cultural, é possível que a tatuagem seja uma expressão
social e cultural do ambiente, em que o sujeito está inserido ou queira se inserir, e a
tatuagem seria uma forma de auto identificação e identificação dentro do espaço social.
A formação da identidade ocorre ao longo da história do sujeito, por processos
conscientes e inconscientes. Assim, existe sempre algo imaginário ou fantasiado sobre
sua unidade e ela está em constante formação. Segundo Hall (2006), a formação da
identidade é vista de maneira descentralizada, pois o sujeito se caracteriza por
influências das mudanças de pensamento social e das relações com os outros.
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[...] de acordo com alguns teóricos, o “sujeito” do Iluminismo, visto como
tendo uma identidade fixa e estável, foi descentrado, resultando nas
identidades abertas, contraditórias, fragmentadas, do sujeito pós-moderno
[...]. Assim, a moldagem e a remoldagem de relações espaço-tempo no
interior de diferentes sistemas de representações têm efeitos profundos sobre
a forma como as identidades são localizadas e representadas (HALL, 2006, p.
46/71).
Nesse sentido, o homem sofre grande influência da cultura e sua compreensão da
mesma traz incontáveis traços que são selecionados e se conectam à sua conduta,
formando um aglomerado de ideias e comportamentos instituídos a um sistema social,
seja esse sistema macro ou micro, dentro de uma sociedade inteira ou dentro de uma
família, onde os indivíduos se relacionam entre si e ao ambiente, utilizando diversos
meios para isso, como o próprio corpo (HALL, 2006). Deste modo, pensando que essas
mudanças sociais influenciam a constituição da personalidade do sujeito, podemos
relacionar a tatuagem, na sociedade atual, como uma manifestação social e cultural de
grande importância.
Segundo Moreira, Teixeira e Nicolau (2010), o homem pré-moderno voltava-se para seu
passado e encontrava nele referência para seu presente. O homem moderno volta-se
para o futuro e busca neste as referências normativas de sua vida, e o homem pósmoderno rompe o vínculo temporal com o passado e o futuro, restando-lhe ao seu corpo
uma realidade incontestável na vacuidade do presente, sendo assim, o sujeito pósmoderno busca maneiras de afirmação e propriedades de identificação, muitas vezes
buscando em seu corpo vias de autoafirmação, realizando cirurgias plásticas, implantes,
piercings, tatuagens e várias outras formas.
Segundo Hall (2006) e Le Breton (2007), a psicanálise de Freud rompe a barreira
epistemológica sobre a corporeidade humana e o corpo não é mais visto apenas
biologicamente, mas revelador de uma linguagem, por meio da qual, o homem pode
expressar suas relações individuais e sociais, além dos anseios e desejos. Com base
nisso, é possível propor que a tatuagem é uma forma de linguagem corporal, que pode
revelar traços internos e externos do sujeito.
[...] A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentre
nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a
partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser
vistos por outros (LACAN, 1977apud HALL, 2006, p. 39).
Podemos perceber, através do histórico social da tatuagem, suas relações culturais e de
constituição de identidades, que o corpo do sujeito representa e comporta características
das relações sociais do indivíduo. Segundo Le Breton (2007), o corpo é um elemento do
imaginário social, é um instrumento de ligação de energia coletiva, pois através do
corpo o homem é introduzido no cerne do grupo.
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A designação do corpo, quando é possível, traduz de imediato um fato do
imaginário social. De uma sociedade para outra, a caracterização da relação
do homem com o corpo e a definição dos constituintes da carne do indivíduo
são dados culturais cuja variabilidade é infinita (LE BRETON, 2007, p.30).
Nas fundamentações das práticas sociais, o ponto chave para as atribuições simbólicas é
o corpo, seu campo de pesquisas é de primordial importância as ciências sociais,
primeiramente, é preciso saber com qual corpo estamos lidando, a sociologia precisa
verificar através do corpo quais as lógicas sociais e culturais que pretende questionar
(LE BRETON, 2007).
Através dos estudos da Sociologia e da Psicanálise sobre o corpo, encontramos nas
relações humanas fortes influências sobre as culturas e as identidades dos indivíduos
que a compõem. A maneira como uma cultura e uma sociedade se comporta e pensa,
incorporam nos indivíduos características crucias para as formações de suas identidades
(LE BRETON, 2007).
Conforme Hall (2006), vivemos uma cultura de identidades e pensamentos sobre o
homem, que foi descentrado através do avanço nos campos de pesquisas científicas. A
era globalizada atual faz todos os sujeitos moradores de uma aldeia global, onde seus
moradores perderam suas identificações, pois todas as barreiras de fronteira foram
quebradas, formando uma única cultura, introduzindo novos traços as diferentes culturas
que possuíamos.
Melman (2008) refere-se a uma nova economia psíquica, em que não há mais uma
divisão subjetiva. Para ele, estamos num ponto de passagem de uma cultura, cuja
religião obrigava aos seguidores o recalque dos desejos e da neurose para outra em que
se propaga o direito de sua livre expressão e de uma plena satisfação. Esta mutação
radical traz consigo uma desvalorização que a tradição moral e política transmitiam. Os
jovens gostam desta mutação, que, aliás, parece com a deles, afirma Melman
(2008).Sendo assim, conseguimos satisfazer muito de nossos desejos e buscar novas
maneiras de agir e procurar prazer, inserindo novos hábitos, sendo um deles a tatuagem.
Atualmente, uma mídia globalizante possui um grande foco no corpo humano,
favorecendo a visão de uma superfície corporal marcada e vista como a principal
identificação do sujeito, como as roupas, a forma do corpo e seus adornos estéticos.
Desta maneira, as identidades pós-modernas são influenciadas também pelo processo
globalizante, que são exteriorizadas através do corpo (ROSO et al, 2002).
Sendo assim, não podemos mais restringir as modificações corporais e a inserção de
marcas no corpo – tatuagens – a determinados grupos, gêneros, idades e classe social,
pois ela está presente em vários âmbitos da sociedade (ROSO et al, 2002).
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2 A TATUAGEM SOB A ÓTICA PSICANALÍTICA
A proposta deste capítulo é pensar o conceito de corpo na psicanálise e a possível
relação que existe entre este conceito e a tatuagem. Segundo Nasio (2009), através do
corpo, o indivíduo é introduzido no mundo e estabelece relacionamento com o outro.
Através do corpo biológico o ser humano se integra ao mundo e estabelece seus
primeiros contatos com outro. A psicanálise vê este corpo como um organismo
biológico e também como um organismo cheio de significantes que se comunicam entre
si (NASIO, 1993).
Existem dois parâmetros fundamentais que delimitam o corpo como significante dentro
da esfera psicanalítica, sendo eles, a linguagem e o sexual. Nesse sentido, este corpo
fala e goza (NASIO, 1993). A perspectiva do corpo como sexual compreende o corpo
como pura tensão, sintetizado em um órgão ou em vários órgãos. O gozo só pode ser
sexual, pois a sua meta é inegavelmente o prazer. Portanto, uma ação, uma fantasia,
uma palavra ou um dado órgão pode tornar-se erógeno. Já a perspectiva do corpo como
linguagem considera o corpo como cheio de elementos significantes (NASIO, 1993).
Não podemos esquecer que, no psiquismo, o corpo é percebido por uma imagem
deformada e essas imagens psíquicas que formamos de nosso corpo é um substrato de
nossa identidade. Assim, o eu é uma imagem mental do corpo que sentimos, o eu é a
fusão da imagem mental do corpo – o que sinto – e da imagem especular –o que vejo. O
eu definido pela psicanálise é a imagem mental das sensações, juntamente com os
atributos do desejo e do gozo. O nosso eu é uma abundância das imagens corporais
internas e externas marcadas ao longo de toda nossa existência (NASIO, 2009).
Pensando nisso, estes três pontos de vista são complementares um ao outro, pois em
primeiro lugar temos o corpo do ponto vista Real, onde o corpo é sinônimo de gozo;
depois temos o corpo do ponto de vista Simbólico, quando temos o corpo significante,
ou seja, um corpo com um conjunto de elementos diferenciados entre si e que
determinam um ato no outro; e por último, temos o corpo Imaginário, identificado com
uma imagem externa e interna que desperta sentido no sujeito (NASIO, 1993).
Através destas três perspectivas apontadas por Nasio (1993), é possível relacioná-las a
tatuagem, caracterizando-a como um ato prazeroso (sinônimo de gozo/real), uma
imagem que dá nome e/ou designa algo (simbólico) e, por fim, um símbolo ou uma
imagem indentitária que reflete os aspectos internos e externos do sujeito (imaginário).
Ainda no âmbito do imaginário, podemos pensar a tatuagem, atrelado ao conceito de eu,
na psicanálise, e que à grosso modo nos reporta à concepção de identidade. Segundo
Nasio (2009), para psicanálise, o nosso eu é composto de duas imagens corporais
distintas e indissociáveis, as imagens mentais de nossas sensações corporais e a imagem
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especular das aparências de nosso corpo. Sentir e viver o corpo, e vê-lo mexer dá a
sensação de que ele está vivo, e, assim, tem-se a sensação inegável de ser eu.
Então, as imagens mentais que formamos de nosso corpo, são substratos de nossa
identidade, são imagens subjetivas que deformam a percepção que temos de nós
mesmos. Na verdade, nosso eu é um conjunto de imagens contraditórias e mutantes, de
interpretação pessoal e afetiva, e tais imagens que temos de nosso corpo distorcem
nosso eu, pois abundância de imagens corporais internas e externas, registradas,
impregnadas e impressas ao longo de nossa existência, que se sobrepõem, e não
podemos identificar onde uma começa e outra termina (NASIO, 2009). Assim podemos
considerar a tatuagem como constituinte do eu, pois ela abrange as instâncias
identitárias, perceptivas e imaginárias.
No processo de constituição do sujeito, para se situar no mundo e encontrar uma
imagem do corpo é preciso que ela se manifeste como um dito. Dolto (apud NASIO,
2009) apresenta a imagem do corpo como uma palavra a ser decodificada, é preciso que
o sujeito ressalte e coloque palavras em suas emoções ou experiências. Nesse âmbito, a
tatuagem é uma linguagem.
Além disso, a percepção que possuímos do corpo será deformada pela influência dos
sentimentos de amor e ódio, conscientes ou inconscientes. As imagens que construímos
de nosso corpo serão deformadas pelo ressurgimento de uma emoção infantil e pela
presença do outro, segundo Nasio (2009). A tatuagem, então, pode ser uma forma de
externalizar as sensações que foram vividas na infância e construídas ao longo do
tempo, podendo expressar o amor, o desejo e o carinho associado simbolicamente aos
pais e/ou a angústia e a rejeição.
Falamos destes afetos infantis como, pois todos estes sentimentos conscientes e
inconscientes, e os fatos marcados pela história afetiva, formam as fantasias
inconscientes. A fantasia inconsciente não nos fará ver as coisas como elas são, mas
como desejamos que elas sejam. Desse modo, mais uma vez, “a imagem do ser ou da
coisa que amo, odeio, temo ou desejo é sempre falsa” (NASIO, 2009, p.60). Nesse
sentido, a tatuagem pode ser resultado de uma fantasia inconsciente, que fará com as
imagens inscritas no corpo sejam percebidas como nós desejamos que elas sejam.
Através das contribuições psicanalíticas, é possível afirmar que o ser humano sempre
percebe o corpo como o imagina e o fantasia por seus investimentos, e esta percepção
estará ligada aos sentimentos do sujeito e submetido ao julgamento do Outro
interiorizado. Deste modo, a percepção do corpo é deformada por quatro lentes, sendo o
sentimento, a lembrança, o grande Outro e a imagem antiga (NASIO, 2009).
Resta-nos a pergunta: o que seria esta imagem deformada do corpo, para a psicanálise?
De todos os significados para o termo imagem, a psicanálise utiliza a definição proposta
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pelos matemáticos, onde dois objetos pertencentes a dois espaços distintos, diremos que
o objeto B é a imagem do objeto A se a todo ponto ou grupo de pontos de B
corresponder a um ponto de A. Esta equação consegue nos fazer compreender que uma
imagem é o duplo exato ou aproximado de algo. A imagem pode ser uma representação
consciente ou inconsciente, ou ainda um comportamento significativo (NASIO, 2009).
Nesse sentido, quando a imagem se desdobra e se transforma em um comportamento é
denominada como uma imagem-ação, em que a imagem se torna uma expressão
corporal de uma emoção, a qual o sujeito não possui consciência. A imagem visual é o
duplo, da aparência do corpo, a imagem mental é o duplo de uma sensação, e a imagemação é o duplo de uma emoção inconsciente (NASIO, 2009).
Além disso, quando falamos em corpo, precisamos nos remeter ao corpo significante,
que nem é uma imagem consciente ou inconsciente do corpo, nem uma imagem-ação
(motora). A imagem do corpo significante é uma imagem nominativa, que designa a
particularidade física e que singulariza determinado corpo (NASIO, 2009).
Portanto, conforme o significado da imagem para a psicanálise, da imagem-ação e do
corpo significante referidos por Nasio (2009), é possível equiparar a tatuagem como um
limite entre o que é equivalente e o exato de algo que represente consciente ou
inconscientemente uma expressão corporal de uma emoção sentida e de como ela é
percebida, pertencendo à singularidade física de um corpo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O corpo físico do homem depende de um conjunto de sistemas simbólicos, pois a partir
do corpo as significações surgem e se propagam, alicerçando a existência individual e
coletiva. O corpo humano é uma superfície de projeção, sujeito a experimentar emoções
e sensações das mais variadas formas culturais (LE BRETON, 2007).
Segundo Alvarenga (2005), o corpo, mais precisamente a pele, quando nos referimos à
tatuagem, é o que separa o mundo interno do mundo externo. Através do corpo a
existência pode ser reconhecida, sendo a visão do outro necessária para este
reconhecimento. Seguindo este mesmo pensamento, Alvarenga (2005) considera o
corpo como um instrumento que pode ser aproveitado para entender o sujeito. É preciso
e importante explorar os significados que o sujeito dá ao seu próprio corpo, a relação
que o sujeito tem consigo mesmo e a maneira como ele se mostra dentro da sociedade
pode facilitar a compreensão do sujeito.
Deste modo, percebemos que o corpo transformou-se em um signo dos sujeitos, sendo
um suporte para a existência dos indivíduos. Tornou-se, ainda, um local de afirmação e
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reconhecimento do sujeito quanto um ser singular ou um sujeito no espaço social
(FERREIRA, 2006).
Desde seu início, a tatuagem já recebeu diversas conotações, já serviu de rituais,
significação de poder, marginalidade e rebeldia, atualmente é vista como atributo de
grande influência social, cultural e midiática. A tatuagem é desejada por todos os
gêneros, perdendo sua distinção de classes não podendo mais receber rótulos.
A tatuagem possui significado no próprio ato e no símbolo a ser tatuado, ela se constitui
dos traços do mundo interno e externo. Em sua forma global, a tatuagem é formada
também pelas relações sociais e é um processo caracterizado por buscas individuais e de
interação com o meio. É nesse âmbito que ganham evidência as contribuições da
sociologia e da psicanálise, que favorecem o entendimento da tatuagem atentando à
escutada comunicação corporal dos sujeitos, individual e coletivamente.
Assim, estabelecendo uma conexão com alguns conceitos da sociologia e a visão
psicanalítica, é possível compreendê-las como sendo complementares, pois os sujeitos
necessitam das relações sociais e de seus corpos para estabelecerem contato ativo no
espaço social e cultural, tanto quanto para estabelecerem sua singularidade, por meio da
linguagem. A tatuagem pode, assim, surgir ao corpo como diferenciação, constituição
de identidade, procura de uma sensação, desejo incontrolável, contato com o outro,
dentre outras expressões do mundo interno e externo do sujeito tatuado.
É possível verificar que a prática da tatuagem se relaciona com o processo de formação
da subjetividade e das relações sociais, onde existem dor, gozo, fantasias e desejos em
um processo interativo, que transforma o corpo em um livro autobiográfico, local onde
os sujeitos gravam imagens. Desta maneira, as tatuagens são produtos e produtoras da
identidade, em um processo que o sujeito (re) afirma sua existência.
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** Docente. Centro Universitário da Grande Dourados.
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