AZUL-CORVO: UMA RELAÇÃO ENTRE MEMÓRIA INDIVIDUAL E COLETIVA RIGO, Larissa Bortoluzzi Mestranda em Letras – Literatura Comparada Universidade Regional Integral do Alto Uruguai e das Missões – URI – [email protected] Resumo: O presente artigo pretende oferecer uma análise acerca da obra Azul-Corvo de Adriana Lisboa, com o objetivo de observar a presença da memória individual e coletiva no relato da personagem principal do romance, estabelecendo um cruzamento entre literatura e memória. Como pressupostos teóricos são utilizados os conceitos de Paul Ricouer, Joel Candau e Maurice Halbwachs, para demonstrar a predominância da memória em toda narrativa. Palavras-Chave: Memória; História; Lembranças; Passado. Considerando-se a memória como parte integrante no resgate de fatos passados, estudaremos neste artigo a presença das memórias individuais e coletivas em Azul-Corvo de Adriana Lisboa. A obra retrata um relato escrito em primeira pessoa, em que as relações de lembranças e memórias estão presentes em todas as páginas do romance. A obra, publicada em 2010, discorre sobre a história de uma adolescente com treze anos que após perder sua mãe, decide morar com o ex-padrasto nos Estados Unidos para encontrar o pai biológico. Durante essa busca, a narradora-personagem Vanja, rememora fatos ligados ao seu passado, principalmente àqueles relacionados à sua mãe. A importância deste trabalho deve-se pelo destaque que os estudos relacionados a memória estão obtendo nas últimas décadas. A obra reforça a noção de que a memória é um elemento fundamental para resgatar o passado, deixando-o vivo e ativo na lembrança das pessoas. Aportes teóricos para esse artigo são buscados nos autores Paul Ricouer, Joel Candau e Maurice Halbwachs. Assim, o trabalho está dividido em três partes: a primeira trata da origem da memória, seguido de oposições entre memória individual e coletiva. Posteriormente a análise da obra e por fim as considerações finais. As origens da Memória O conceito de memória vem sendo tema de estudos filosóficos há séculos. O termo se modificou ao longo dos anos, adequando-se a sociedade de acordo com suas utilizações e importâncias. Em cada época o conceito foi denotado de diferentes formas, girando em torno de conhecimentos que caracterizavam momentos históricos. O significado de ter uma lembrança está na origem da memória com os filósofos Platão e Aristóteles, para eles não era questão prévia saber de quem se lembra. “Atribuição a alguém suscetível de dizer ‘eu’ ou ‘nós’ permanecia implícita à conjugação dos verbos de memória e de esquecimento a pessoas gramaticais e a tempos verbais diferentes.” (RICOUER, 2007, p. 106). Dessa forma, os filósofos não se preocupavam se as lembranças seriam das pessoas gramaticais “eu” e “nós”, mas sim em buscar uma recordação. Nessa esteira, podemos entender a memória como uma tradição, cujos precursores se encontram na Antiguidade. Ricouer (2007) menciona ainda, Santo Agostinho como sendo a expressão e o precursor deste termo através de uma descoberta cristã: Santo Agostinho é ao mesmo tempo sua expressão e seu iniciador. Pode-se dizer que ele inventou a interioridade sobre o fundo da experiência cristã da conversão. A novidade dessa descoberta-criação é realçada pelo contraste com a problemática grega, e depois latina, do indivíduo e da polis, que primeiro ocupou o lugar que será progressivamente partilhado entre a filosofia, a política e a dialética da memória desdobrada, considerada aqui. Contudo, se Santo Agostinho conhece o homem interior, ele não conhece a equação entre identidade, o si e a memória. Esta é uma intervenção de John Locke no início do século XVIII. (RICOUER, 2007, p. 108) Nessa perspectiva, Santo Agostinho é lembrado neste estudo por ter relacionado a memória nos livros X e XI das Confissões. De acordo com esse preceito utilizado pelo estudioso, para haver a Confissão é necessário lembrar-se dos pecados. O estudioso ressalta ainda que o livro das Confissões ficou famoso devido à metáfora dos vastos palácios da memória, que neste contexto está associada a uma memória com aspecto de espacialidade, lugar onde serão encontradas as recordações. Seguindo os argumentos de Ricouer (2007), é posteriormente com outro autor, que a consciência aparece, dessa vez, com John Locke. “Resta que John Locke é o inventor das três noções, e da sequência que formam juntas: identity, consciousness, self 1.” (RICOUER, 2007, p. 113). A tríade Identidade-consciência-si forma-se, já que para lembrar é preciso ter a consciência de que este processo está ocorrendo. Assim, consciência e memória não se distinguem, são partes essenciais do processo que a recordação exige. “Consciência e memória são uma única e mesma coisa, independentemente de um suporte substancial. Em síntese, tratando-se da identidade pessoal, a sameness2 equivale a memória.” (RICOUER, 2007, p. 116) Em relação aos apontamentos, o que interessa para Locke é o pensamento. É através da memória, advoga Ricouer (2007), que há a permissão para a continuidade, isto é, 1 2 Identidade, Consciência e Eu Mesmice o raciocinar entre passado e futuro. Memória para John Locke é a consciência de si, mas, sem lembranças. Ele não distingue a memória das lembranças, das percepções e das operações. A invenção da consciência por Locke tornar-se-á a referência confessa ou não das teorias da consciência, na filosofia ocidental, de Leibniz e Condillac, passando por Kant e Hegel, até Bergson e Husserl. Pois se trata mesmo de uma invenção quanto aos termos consciousness e self, invenção que recai sobre a noção de identidade que lhes serve de quadro. (RICOUER, 2007, p. 113) As diferenças entre Santo Agostinho e John Locke relacionam-se então, na forma de conceber a memória. Para o primeiro, a memória é espacializada, temporalizada e não entra na consciência de si. Já para Locke é necessário ter uma consciência de si, permitindo percorrer entre passado e futuro. Além das memórias relacionadas ao espaço e a consciência de si, outras três características privativas do termo são propostas por Ricouer (2007). Primeiro, o autor aponta para o fato da memória parecer radicalmente singular: “Minhas lembranças não são as suas. Não se pode transferir as lembranças de um para a memória de outro. Enquanto minha, a memória é um modelo de minhadade, de possessão privada.” (p. 107). Em seguida, o vínculo da consciência com o passado que reside na memória. “Foi dito com Aristóteles, diz-se de novo mais especificamente com Santo Agostinho, a memória é passado, e esse passado é o de minhas impressões; nesse sentido, esse passado é meu.” (p. 107). E a terceira característica refere-se a memória e ao tempo. “A memória que está vinculando o sentido da orientação na passagem do tempo; orientação de mão dupla, do passado para o futuro, de trás para frente.” (p. 108) Com efeito, de acordo com as características expostas acima, a memória parece fazer parte da identidade pessoal, são os pensamentos e ações individuais que, determinarão o que posteriormente será armazenado e lembrado. Contudo, as discussões sobre a memória das pessoas gramaticais “eu” e “nós”, são observadas em estudos dos autores Maurice Halbwachs e Candau, sobre as oposições entre Memória Individual e Memória Coletiva. Oposições entre Memória Individual e Memória Coletiva Saber se a memória é individual ou coletiva não é um processo fácil, pois as lembranças do “eu” misturam-se com as experiências vividas com o “outro”. Eis que surge a questão proposta por Ricouer (2007): “a memória é primordialmente pessoal ou coletiva?” (p. 105) Aportes teóricos dessa indagação proposta por Ricouer (2007) podem ser obtidos com os autores Halbwachs (2006) e Candau (2011). O primeiro manifesta a ideia de que para haver a lembrança precisa-se dos outros. “É a partir de uma análise sutil da experiência individual de pertencer a um grupo, e na base do ensaio recebido dos outros, que a maioria da memória individual toma posse de si mesma.” (RICOUER, 2007, p. 130). É de Halbwachs a audaciosa decisão de atribuir a memória uma entidade coletiva, chamada de sociedade. (RICOUER, 2007). Em consonância com a memória está o testemunho; para o autor, este somente é considerado por conter informações sobre o passado. “A esse respeito, as primeiras lembranças encontradas nesse caminho são as lembranças compartilhadas, as lembranças comuns.” (RICOUER, 2007, p. 131) Para exemplificar este pensamento, Halbwachs (2006) cita as lembranças da infância, sendo que elas ocorrem em lugares socialmente marcados, como: jardins, praças, casas. “Nesse aspecto as lembranças de adulto não diferem das lembranças de infância. Elas nos fazem viajar de grupo em grupo, de âmbito em âmbito, tanto espaciais como temporais.” (RICOUER, 2007, p. 132) Já para Joel Candau (2011) a Memória Coletiva pode ser definida como um conjunto de lembranças a determinados grupos, sendo sinônimas memória pública ou memória de pensamento. Ora, se as memórias individuais são dados (não se pode, por exemplo, registrar por escrito ou suporte magnético a maneira pela qual um indivíduo tenta verbalizar sua memória), a noção de memória compartilhada é uma inferência expressa por metáforas (memória coletiva, comum, social, familiar, histórica, pública), que na melhor das hipóteses darão conta de certos aspectos da realidade social ou cultural ou, na pior delas, serão simples flatus vocis sem nenhum fundamento empírico. Essas generalizações parecem, no entanto, inevitáveis se não se quer impedir a possibilidade de qualquer teoria antropológica. (CANDAU, 2011, p. 29) O autor parte do princípio em que memória compartilhada é ilusão, já que as pessoas são subjetivas, tem sentimentos próprios e não compartilhados. Mesmo que as lembranças sejam iguais, a singularidade de cada um, faz com que elas sejam diversas. Para ele, a memória coletiva existe excluisivamente no plano discursivo, mas não no concreto. “A existência de atos de memória coletiva não é suficiente para atestar a realidade de uma memória coletiva. Um grupo pode ter os mesmos marcos memoriais sem que por isso compartilhe as mesmas representações do passado.” (CANDAU, 2011, p. 35) Na vertente diametralmente oposta está Halbawachs (2006), para o autor, a memória coletiva é constituída por grupos. Em análise oposta, Candau (2011) é veemente quanto a esta questão: Mesmo que os dados factuais que mencionamos sejam efetivamente transmitidos a todos e mesmo que suponhamos possível definir essa totalidade (são as condições mínimas para poder falar de ‘memória da comunidade’) a recordação que cada habitante da aldeia terá de Fulano, de uma linguagem desaparecida, dos descendentes da família que deixaram a região ou as relações amorosas entre X e Y diferirá em proporções menores ou maiores da memória de outro habitante em função de sua história pessoal, daquela de sua família, das características de sua própria memória biológica etc. Se a lembrança desses acontecimentos (memória factual) pode ser compartilhada, suas representações (a memória semântica relativa a esses acontecimentos) permanece idiossincrática. (CANDAU, 2011, p. 3738) O autor destaca ainda o fato de que para haver a construção da memória coletiva, são necessárias as memórias individuais, é necessário que elas dialoguem entre si. Ricouer (2007) corrobora com essa visão, ele pondera que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, “esse ponto de vista muda segundo o lugar que nele ocupo e que, por sua vez, esse lugar muda segundo as relações que mantenho com outros meios.” (p. 133-134) Podemos observar com esses diferentes pontos de vistas de Candau (2011) e Halbawachs (2006) a diferença quanto a percepção da individualidade e a coletividade das memórias. Neste prisma, encontra-se a contribuição perspicaz de Ricouer (2007), o autor manifesta a ideia de que as memórias, mesmo com todas as distinções, precisam ter uma ponte de ligação. Sob essa ótica, é possível observar que a memória individual predomina sobre a coletiva, contudo as memórias individuais estão inseridas nas coletivas. A representação das memórias em Azul-Corvo Tomando por base os conceitos dos gêneros expostos anteriormente neste estudo, a análise tem por objetivo demonstrar onde tais considerações são aplicadas no romance Azul-Corvo. A melancolia é elemento fundamental na obra de Adriana Lisboa, que narra a história de uma adolescente com treze anos chamada Evangelina, a Vanja. O principal fio condutor da obra é a perda da mãe da personagem principal, que começa narrar – em primeira pessoa – os fatos de sua vida um ano após a morte da mãe. Vanja discorre, através de relato, o que aconteceu quando ainda tinha treze anos, originando um romance de suas memórias com as lembranças destes fatos passados. Neste contexto, a forma com que o romance é apresentado ao leitor também introduz o caráter de lembrança. Ao total são quinze capítulos que compõe a obra, em que, os relatos da personagem fazem o percurso semelhante ao de uma memória, transitando em diferentes assuntos e voltando com a mesma facilidade para eles, formando uma corrente de pensamentos totalmente desequilibrados de sentido lógico. Podemos ilustrar esse formato de narrativa utilizado pela autora no primeiro capítulo. O início da obra situa o leitor no tempo. “O ano começou em julho” (LISBOA, 2010, p. 11). Vanja começa contando sua história quando ela já está morando nos Estados Unidos com o ex-marido de sua mãe, Fernando. O lugar é totalmente estranho e diferente, ela lembra que o primeiro mês do seu Ano-Novo, Fernando a levou até uma piscina pública, neste lugar ela se recorda de como era diferente no seu antigo país. “Antes, em Copacabana, havia: biquínis minúsculos.” (p. 13) Após estabelecer as diferenças de um país e outro e lembrar-se de forma minuciosa do Rio de Janeiro, a personagem volta no tempo e conta como foi que o ano começou em julho. Com essa transição de narrativas, podemos entender o sentindo das nossas memórias, não há uma recordação contínua, sem interrupções. A todo momento, quando nos lembramos dos fotos, esbarramos em outros pensamentos, que se ligam a outros, e assim sucessivamente, e é dessa forma que Adriana Lisboa conduz sua narrativa. São poucas as referências na obra, a palavras como, “lembro”, “recordo-me”, “memória”. Entretanto, há a utilização de expressões que remetem a estes termos: naquele dia, certa vez, à época, velhos tempos. Os verbos pensar e imaginar também aparecem com frequência, o que denota, que a personagem fazia uso de sua memória para pensar e imaginar as histórias que contavam para ela, principalmente da vida de sua mãe e do pai, que ainda não conhecia. Em tal perspectiva, por não conhecer o pai, as memórias de outros indivíduos transformam-se em subsídios para Vanja imaginar a identidade desta pessoa que é tão distante para ela. Assim, além de comunicar a experiência da personagem principal na obra, a memória identifica, mesmo que de forma distorcida e nem sempre verídica, a personalidade das pessoas. Podemos observar essa característica, quando Vanja relata como imagina ser a avó paterna Florence: Eu imagino o ateliê dela como um salão grande com uma mesa bem grande e suja e pedaços de jornal para todo o canto. Talvez ela tenha pregado o poema preferido na parede para se inspirar. Fernando não comentou. Não disse como imaginava que o ateliê de Florence seria. Não disse se imaginava alguma coisa ou deixava imaginar. Fui combinando mentalmente modelos de avó, como naqueles livros para crianças em que você escolhe a cabeça numa página e o corpo na outra e os pés na outra, e pode criar um caubói com corpo de bailarina e pés de marciano. (p. 167) Ainda relacionado ao primeiro capítulo da obra, a personagem faz referência a idade atual com que está escrevendo o livro. “E depois eu não fazia questão de ter sapatos de salto. Não fazia questão aos treze anos, ainda não faço aos vinte de dois.” (p. 18) Esse excerto refere-se a quando ela foi escolher o que era importante colocar na mala, no dia em que se mudou para o Colorado, nos Estados Unidos. A mudança de país, também contribui para o caráter comparativo e espacial estabelecido entre memórias. Vanja começa a fazer comparações de como era a vida em Copacabana e como é no seu atual país, ela tem muitas recordações de sua mãe, do Rio de Janeiro, da casa onde morava, até mesmo de fatos peculiares como baratas, que são diferentes de um país para outro. A autora mantém a curiosidade dos leitores, não deixando claro desde o início da obra qual é a causa da morte da mãe de Vanja, o porquê a personagem decide ir morar com Fernando, e nem mesmo o motivo pelo qual a história dele mescla-se com a dela no decorrer da narrativa. Em consonância com a procura do pai e as lembranças frequentes sobre a mãe, o fato de Fernando ter sido um dos combatentes na Guerrilha do Araguaia - uma luta de comunistas que sofreram repressões parecidas com as da ditadura militar - estimula a curiosidade de Vanja sobre a sua vida, ela queria saber se ele havia se casado ou mesmo namorado com outras mulheres além de sua mãe e o motivo de estar ainda morando nos Estados Unidos. Contudo, as respostas para as perguntas de Vanja são reveladas aos poucos em conversas informais. Como no momento no qual ele relembra que, durante o tempo em que esteve como guerrilheiro na Transamazônica, teve um caso com Manuela, que usava nessa época o codinome de Joana. A memória de Fernando volta-se para o tempo em que ainda era o Chico. No capítulo que tem como subtítulo “Peixes”, ele relembra uma carta de 1971 escrita por uma amiga, em que estão as histórias do Partido Comunista do Brasil (PC do B) contra a guerrilha que ele lutava. Como todas as outras palavras dos subtítulos do romance, o substantivo Peixes refere-se ao contexto que está sendo relatado por Vanja, essa foi a Operação Peixes I, uma alusão a rede de pescas, em que os comunistas deveriam ser “pescados”, raptados. No capítulo seguinte, May i pet your dog? Aparecem muitas metáforas e analogias. Fernando continua relembrando seu passado através da memória, que é única, mas paradoxalmente plural, já que os fatos lembrados por ele durante a Guerrilha podem também ser recordados por outros soldados que viveram esse momento. Entretanto, como discorre Candau (2011), a memória é radicalmente singular, fazendo parte da sua individualidade os fatos que o marcaram. “Quando penso em Fernando hoje, nove anos passados desde aquelas minhas primeiras semanas em Lakewood, me lembro dos braços dele.” (p. 98). Os braços que nesse contexto, representavam a personalidade, identidade dele, um homem que passou pela guerrilha, segurou armas, e que morando nos Estados Unidos, trabalha na biblioteca e em horas vagas como faxineiro. Vanja se orgulhava da personalidade deste que poderia ser seu pai. Esse sentimento de Vanja por Fernando deve-se também pela mistura de emoções que ocorrem, ao recordar-se da guerrilha. Os comunistas que chegaram a fundar o partido o partido ULDP foram torturados, mortos, submetidos até mesmo a ações desumanas. Ele relembra a Operação Marajoara, descrita por Vanja no romance. “Quem se negava a colaborar, apanhava. Às vezes era colocado de cabeça para baixo dentro de tambores cheios d’água. Enfiado dentro de um daqueles buracos do Vietnã, com arame farpado por cima. Pendurados pelos testículos.” (p. 204). Esse fragmento demonstra a presença da memória individual de Fernando, todavia ela também está inserida na coletividade, pois faz parte do contexto dos outros guerrilheiros. Possivelmente eles também devem se recordar deste fato e de outros descritos por Fernando, como nos casos, em que as cabeças dos lutadores eram enviadas ao exército para serem exibidas como troféus. Assim as histórias e os sentimentos de Fernando, tiveram importância na vida de Vanja, da mesma forma a mãe é presença constante em sua memória. Lembrar de Suzana é regastar sua história, ela aparece em praticamente todos os fragmentos do livro, mesmo que de forma indireta. É também através da lembrança que Suzana é revivida, a memória neste caso, é uma forma de não esquecer, mesmo após sua morte. Evangelina gosta de lembrar da mãe e citá-la, como quando ela diz: “como minha mãe me ensinou” (p. 78), ou, “Lembrei-me do riso da minha mãe, que era agudo e sempre fácil.” (p. 159). Nessa perspectiva, podemos entender a memória como associação, isto é, as lembranças da filha confundem-se com os fatos que estão associados à mãe. Em muitos capítulos do romance, a vida de Suzana é contada e recontada pela filha, ela lembra que sua mãe morou nos Estados Unidos por vinte e dois anos, nos estados do Texas e no Novo México. Aos nove anos de idade a sua avó materna morreu e ela foi com o pai que era geólogo, para o Texas. Eles romperam relações quando ele se mudou para o Novo México. Nessa esteira, a infância vivida com a mãe também pertence a memória de Vanja, como, ainda nos anos 90, o dia em que elas voltaram para o Brasil e Suzana votou para Presidente da República, nas sete horas de viagens em todos os verões, para o Espírito Santo, das lanchonetes e músicas que elas escutavam dentro do carro. “Lembro-me da luz, dos meus dedos cavando túneis e construindo castelos na areia molhada, pacientemente.” (p. 29) Contudo, pela memória ser responsável por uma grande carga de informações todos os dias, são os fatos mais marcantes que acabam por ser armazenados de forma mais eficaz. A personagem lembra-se de forma clara o dia em que sua mãe contou sobre sua doença. No terceiro capítulo da obra ela descreve como foi esse dia, a mãe a chamou para tomar sorvete e disse que precisava conversar seriamente com ela. Minha mãe me explicou tudo nesse dia, diante das nossas sombras esticadas sobre o calçadão de Copacabana, em direção ao mar, na entrada da baía. [...] Minha mãe me falou com calma, com cuidado e seriedade, e eu, guardei a informação com uma peça de roupa que você só usa de tempos em tempos – um cachecol, por exemplo, em pleno Rio de Janeiro – mas que sabe estar ali, no findo do armário, à sua espera. Ela sabia que eu precisava daquela informação. E ela própria não ia se perdoar se não me contasse em primeira mão o que seria evidente e autoexplicativo muito em breve. Se eu me inteirasse dos fatos não através dela mas de sua doença, aquela visita inconveniente sentada no sofá falando de assuntos desagradáveis. [...] Minha mãe sempre me respondia a todas as perguntas, de modo que a censura ficava sob minha responsabilidade: se eu não quisesse saber de alguma coisa, que não perguntasse. [...] Minha mãe morreu como avisou que ia morrer e não demorou como avisou que não ia demorar e depois disso nada mais foi como antes, como ambas sabíamos que não seria. (p. 54) Após a morte da mãe, Vanja foi morar com sua tia Elisa, ela relembra que a tia foi a única que a deixou emagrecer, não falar, dormir e ter insônia, passar o seu aniversário com os vizinhos de 80 anos, levar um pedaço de bolo a um mendigo, ligar para Fernando e ir morar nos Estados Unidos para encontrar Daniel, seu pai. Em busca da identidade de Daniel, Fernando, Vanja e Carlos – um vizinho que tornou-se amigo íntimo de Evangelina – viajam para outro estado e encontram Florencce, a avó paterna. Após conversar com ela e descobrir que o pai estava na África do Sul, o trio vai até a cidade onde Vanja nasceu em Albuquerque. Novamente o romance realça a presença da memória, neste caso, com o esquecimento, já que a personagem não lembra absolutamente de nada daquela casa. “Não tenho claro memórias da minha primeira infância em Albuquerque”. (p. 28) O último capítulo da obra é destinada para contar o restante da história de como ficou a vida da personagem principal, ela permanece morando com Fernando, eles tornamse amigos íntimos, ela volta para o Brasil somente para visitar a tia. É Vanja quem enterra Fernando, após a sua morte, ela Carlos passam a morar juntos, assim como ele havia prometido para amiga, que ficariam sempre perto. Sobre o pai, Vanja conseguiu encontrá-lo, eles até mesmo se visitam algumas vezes. Todavia, a busca por ele, que era o principal objetivo de Vanja, acaba tornando-se secundário diante de tantos fatos ocorridos. Ela termina dizendo que mudaria somente algo na história de sua vida: que Fernando e sua mãe ficassem juntos, definitivamente. Assim, podemos atestar que as memórias estão presentes em todo romance, por fazerem parte de um relato do passado da personagem. Além disso, há predominância da memória individual, já que é o ponto de vista de Vanja que está sendo relatado no romance. Considerações Finais Este estudo acompanhou as relações de memória individual e coletiva em aspectos do relato da protagonista Evangelina. Os autores Candau (2011) e Halbawachs (2006) são utilizados como arcabouços teóricos para este trabalho por divergirem quanto a individualidade e a coletividade da memória. O primeiro pontua sua explanação de que memória compartilha é ilusão, a memória coletiva não é suficiente para demonstrar a realidade, ela existe somente no plano discursivo, não no concreto. Por outro viés está Halbawachs (2006), para quem a memória coletiva é constituída por grupos. As primeiras lembranças, advoga o autor, são as compartilhadas, àquelas comuns a um grupo social. Nesse contexto, estão inseridas as recordações de infância em diferentes lugares. Já sob a luz dos entendimentos de Ricouer (2007), as memórias individuais e coletivas são diferentes, mas precisam dialogar. Conforme as pertinentes ideias dos autores, podemos identificar essas memórias no romance Azul-Corvo. Por se tratar de um relato pessoal da personagem Vanja, todas as páginas do livro são permeadas pela presença da memória. Todavia há a predominância da memória individual; o que não denota a ausência da memória coletiva, pelo contrário, ela está presente, por exemplo, quando Vanja relembra dos fatos ocorridos com a mãe, da história de Chico (que é Fernando) na Guerrilha do Araguaia. Assim como Vanja, sua mãe possivelmente poderia se lembrar dos fatos que elas passaram juntas, da mesma forma com que os outros guerrilheiros também recordam-se das torturas, da fome e do frio que passaram durante o período em que permaneceram na guerra. Contudo, a memória tanto de Vanja, quanto da mãe e de Fernando são individuais, eles lembram do que ocorreu nesses eventos, mas de forma subjetiva, em grosso modo, do jeito deles. É dessa forma que as memórias individuais inserem-se no contexto coletivo. Referências Bibliográficas CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2001 HALBAWCHS, Maurice. A memória social. São Paulo: Centauro, 2006 LIZBOA, Adriana. Azul-Corvo. Rio de Janeiro: Rocco, 2010 RICOUER, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007