Modelo Brasileiro de Proteção Social não Contributiva: concepções fundantes1 Aldaíza Sposati2 Desconstruir/reconstruir o modelo social público brasileiro de proteção social não contributiva, em bases crítico-conceituais, supõe múltiplos recortes em seus elementos constitutivos, mas também, um alerta quanto à perspectiva histórica que a concepção de modelo contém. Refiro-me ao fato de que um modelo indica sempre uma relação do presente com o futuro. Como conceito ele é um vir a ser. É sua aplicação real que vai lhe dar a forma para além do conceito. Assim, aplicar um modelo na realidade tem relação direta com a capacidade estratégica em enfrentar condicionantes, determinantes e impactos nos elementos do presente, e do passado, que não condizem com o modelo que se deseja concretizar como futuro. Portanto, a aplicação do modelo supõe a alteração do que já vinha ocorrendo e ainda, a mudança do modo de realizar a leitura dos fatos e elementos em mutação. Um modelo não tem aplicação quando é concebido sob o estranhamento do real. Sua aplicação supõe conhecer fatos e fatores do real que podem fragilizá-lo, isto é, que retiram a força dos fatores que estrategicamente lhe dão mais força. Tudo isto, a proposta e o conhecimento dos fatores que aceleram ou interditam, são parte do pré-desenho do futuro desejado. O exemplo, usar uma bússola para ter claro o ponto aonde se quer chegar, não significa ignorar os acidentes de percurso, as armadilhas, os obstáculos postos no caminho apesar de que a rota, com esse instrumento, tenha sempre o “norte orientador”. O modelo de proteção social não contributivo é uma direção (ou um norte 1 Este paper foi formulado para o ENAP – Escola Nacional de Administração Pública com o objetivo de subsidiar conceitualmente cursos de capacitação de gestores públicos 2 Professora titular da PUC/SP de Pós Graduação em Serviço Social, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas de Seguridade e Assistência Social da PUC/SP – NEPSAS, coordenadora do CEDEST – Centro de Estudos das Desigualdades Socioterritoriais (INPE-PUC/SP) 1 histórico) de um caminho em construção na sociedade brasileira. Isto supõe conhecer e enfrentar obstáculos nesse percurso e também, não desistir da chegada pelo fato de ter que realizar mudanças durante o processo. Portanto, um modelo por si só não altera o real, pelo contrário, ele pode até ser condicionado e deformado pelo real caso não se tenha domínio dos elementos constitutivos do modelo e das dificuldades a enfrentar. É preciso ter claro também, que a realidade, e a concretude dos fatos que lhe conforma, não são males ou empecilhos e sim, as efetivas configurações ou condições com que se deve lidar. Nesse sentido se o modelo não dá conta (em seus elementos de base) das configurações do real ele se transforma em uma ideologia ou em um discurso como mero arranjo de palavras impactantes, mas isto não significa o efetivo alcance de mudanças e resultados esperados. Ter um modelo brasileiro de proteção social não significa que ele já exista ou esteja pronto, mas que ele é uma construção que exige muitos esforços de mudanças. Este texto busca explicar, de modo conceitual e programático, os elementos que constituem o modelo brasileiro de proteção social não contributiva. É preciso atentar que por vivermos em uma federação, por mais que se tente captar diversidades, a tendência é a de construir certa generalização que, certamente, terá que ser adequada às particularidades das regiões do país, dos Estados, dos municípios e das micro-regiões a que estes pertencem, especialmente nas áreas metropolitanas. A concretização do modelo de proteção social sofre forte influência da territorialidade, pois ele só se instala, e opera, a partir de forças vivas e de ações com sujeitos reais. Ele não flui de uma fórmula matemática, ou laboratorial, mas de um conjunto de relações e de forças em movimento. Quando se inicia este texto com estas ressalvas se quer aclarar o topo, ou o lugar escolhido (e possível) para análise do tema. Não se realizará aqui um tratado acadêmico sobre a(s) teoria(s) dos elementos constitutivos do 2 modelo de proteção social não contributivo. O limite é o de realizar o exame do modo de aplicação de conceitos nesse modelo. Portanto, serão realizadas releituras de teorias para sua aplicação em um tempo histórico e sob um dado ângulo que é o de uma política pública no início do terceiro milênio. A heterogeneidade de público e a diversidade de realidades regionais ao qual este texto se destina exige essas relativizações. Para melhor compreensão das idéias aqui tratadas o texto foi dividido em três partes. Na primeira chamada pontos de partida para exame do tema, faz-se um recorte do significado de modelo de proteção social não contributiva. A seguir demonstra-se como ele é tratado pela CF88, faz-se uma rápida abordagem diferencial entre proteção social e desenvolvimento social e por último uma reflexão sobre riscos e vulnerabilidades sociais. Na segunda parte destacam-se os elementos que constituem o modelo brasileiro de proteção social não contributiva. A terceira parte flui do conceito de modelo adotado como uma construção histórica e nela se aborda o que se denomina de “idéiasforça” que operam a transição do modelo de um conceito para um fato real. 1 - pontos de partida para exame do tema Afirmar a existência do campo de proteção social não contributiva no Brasil, como área de gestão pública, significa delimitar uma área da ação estatal, para os três entes federativos, mas significa também, entender que essa área se instala em um campo social constituído por iniciativas históricas advindas da paixão, mais particularmente da compaixão, do altruísmo e de práticas religiosas voltadas ao exercício do amor ao próximo e à caridade. O primeiro passo supõe separar o campo público de práticas privadas, para 3 depois serem reconstruídas novas formas de relação entre um e outro (leia-se a respeito Mestriner, 2001). As práticas privadas, cuja validade não se contesta, são por natureza individualizadas já que se vinculam às missões estatutárias de suas organizações, e são dirigidas a algumas pessoas. A ação pública a partir dos princípios públicos é dirigida a todos, e tem a responsabilidade em resolver, suprir, prover determinadas necessidades sociais apresentadas pela população. Desse modo o gestor público desloca sua preocupação e ação do processo de ajuda às entidades sociais para se responsabilizar diretamente em criar soluções e respostas para as necessidades de proteção social da população. A primeira mudança que o modelo exige está no âmbito da responsabilidade do órgão público. Está é uma mudança forte na maioria das cidades. Trata-se, portanto, do exercício racional de gestão estatal fundada em princípios e valores sociais enquanto direitos sociais, cidadania e dever de Estado que não fazem parte do escopo que compõe culturalmente as práticas sociais no Brasil em seus 500 anos de existência. Por isso desde a LOAS é preciso que cada ente governamental tenha um plano de ação e pense racionalmente no todo das necessidades de proteção social propondo o que vai realizar e submeta essa decisão à aprovação de um conselho de constituição paritária entre representantes do governo e da sociedade. Um modelo de proteção social não contributiva para o Brasil não resulta simplesmente da implantação de novos programas de governo, mas de uma mudança mais forte que exige do gestor público assumir um novo papel baseado na noção de usuário (e não no carente ou assistido), de seus direitos e da responsabilidade do Estado em se comprometer com a capacidade das famílias educarem seus filhos tratando-as como núcleos básicos de proteção social. Portanto, antes de debater a implantação, a eficiência deste ou daquele novo programa federal é preciso, que cada ente federativo, consolide um novo formato de relação com as necessidades de proteção social da população 4 daquela cidade, estado, país. O modelo de proteção social não contributiva não é o continuísmo de velhas práticas assistencialistas, do modo de gestão tecnocrático que não leva em conta direitos sociais da população e a democracia na gestão. A CF88 é um marco histórico “ao ampliar legalmente a proteção social para além da vinculação com o emprego formal. Trata-se de uma mudança qualitativa na concepção de proteção que vigorou no país até então, pois inseriu no marco jurídico da cidadania os princípios da seguridade social e da garantia de direitos mínimos e vitais à reprodução social. Nesse sentido, houve uma verdadeira transformação quanto ao status das políticas sociais relativamente e suas condições pretéritas de funcionamento. Em primeiro lugar, as novas regras constitucionais romperam com a necessidade do vínculo empregatício-contributivo na estruturação e concessão de benefícios previdenciários aos trabalhadores oriundos do mundo rural. Em segundo lugar, transformaram o conjunto de ações assistencialistas do passado em um embrião para a construção de uma política de assistência social amplamente inclusiva. Em terceiro, estabeleceram o marco institucional inicial para a construção de uma estratégia de universalização no que se refere às políticas de saúde e à educação básica. Além disso, ao propor novas e mais amplas fontes de financiamento – alteração esta consagrada na criação do Orçamento da Seguridade Social – estabeleceu condições materiais objetivas para a efetivação e preservação dos novos direitos de cidadania inscritos na idéia de seguridade e na prática da universalização” (IPEA, 2007:8). 1.1 significado de modelo de proteção social não contributivo 5 um modelo – assim como se olha em um figurino ou em uma foto, os recortes e as pences que demarcam o estilo de uma roupa, isto é, os detalhes que compõem o todo do figurino, aqui se tentará criar um olhar, ou um modo de olhar, que permita atentar para detalhes do modelo de proteção social não contributivo concebido para o Brasil. É bom lembrar que entre o modelo da roupa em uma revista e sua transformação em vestimenta (para um dado corpo, com dado tecido e um dado domínio do corte e da costura) faz grande diferença. A idéia de modelo é a de um pré-desenho, uma referência a ser reproduzida, uma representação do que se pretende executar. Trata-se da explicação do arranjo de um conjunto de elementos e de relações que juntos criam um sistema de referências que simula e prevê aonde se quer chegar. É um meio de dar coerência e comunicar uma concepção, uma idéia a ser concretizada. social – no caso esse modelo diz respeito às necessidades e objetivos sociais que se constituem nas relações em sociedade, ou sociais, ocupa-se, portanto, das condições objetivas de acesso a modos de reprodução social (condições de reprodução das condições de vida) como componentes da dignidade humana, da justiça social e dos direitos sociais e vigilância social. proteção social - o sentido de proteção (protectione do latim) supõe antes de mais nada tomar a defesa de algo, impedir sua destruição, sua alteração. Nesse sentido a idéia de proteção contém um caráter preservacionista – não da precariedade, mas da vida – supõe apoio, guarda, socorro e amparo. Este sentido preservacionista é que exige tanto as noções de segurança social como de direitos sociais. A Política Nacional de Assistência Social – PNAS-2004 afirma que a proteção social a que ela deve responder deve afiançar: segurança de sobrevivência o de rendimento o de autonomia segurança de acolhida segurança de convívio o de vivência familiar 6 “A segurança é uma exigência antropológica de todo indivíduo, mas sua satisfação não pode ser resolvida exclusivamente no âmbito individual. É também uma necessidade da sociedade que se assegure em determinada medida a ordem social e se garanta uma ordem segura a todos seus membros. As políticas sociais representam um dos instrumentos especializados para cumprir essa função.” (Villa Lobos, 2000: 58). Confunde-se por vezes o sentido de amparo com o de proteção até porque a CF88 usa as duas expressões. É fato que amparo (anteparare do latim) também significa proteção como escora, arrimo, auxílio ou ajuda para impedir algo de cair ou de ter uma queda. Supõe abrigo, refúgio, resguardo. A noção de amparo indica um estancamento da condição de deterioração e a noção de proteção indica, por sua vez, o impedimento de que ocorra a destruição. Diríamos que a proteção é mais vigilante por isso mais preservacionista, pró-ativa desenvolvendo ações para que alguma destruição não venha a ocorrer, enquanto o amparo já ocorre a partir de um risco. A idéia de proteção social exige forte mudança na organização das atenções, pois implica em superar a concepção de que se atua nas situações só após instaladas, isto é, depois que ocorre uma “desproteção”. Ela exige que se desenvolvam ações preventivas. Por decorrência, deste entendimento é que a assistência social no modelo brasileiro de proteção social não contributiva passa a ter três funções conforme explica a Política Nacional de Assistência Social – PNAS-2004. Para além da proteção ela deve manter a vigilância social e a defesa de direitos. Uma política de proteção social compõe o conjunto de direitos de civilização de uma sociedade e/ou o elenco das manifestações e das decisões de solidariedade de uma sociedade para com todos os seus membros. Ela é uma política estabelecida para a preservação, a segurança e respeito à dignidade de todos os cidadãos. não contributivo - o sentido de não contributivo é aplicado na proteção social como forma de distinção da previdência social ou do seguro social. Os 7 benefícios previdenciários ou do seguro só são acessíveis quando alguém se filia à previdência e recolhe ou paga uma quantia mensal. Portanto essa proteção é contributiva porque é pré-paga e só se destina aos filiados e não, a toda população. O caráter não contributivo quer dizer que não há um pagamento específico para obter a atenção daquele serviço. É o mesmo que ocorre no atendimento em uma unidade básica de saúde ou numa escola. O acesso é custeado pelo financiamento público cuja receita vem de taxas e impostos. Assim é um rateio de custos e custeio entre todos os cidadãos. O campo da proteção social não contributiva significa que os acessos a serviços e benefícios devem independer de pagamento antecipado ou no ato da atenção. Há aqui uma polêmica. Para alguns o acesso a esses serviços só poderiam ocorrer se a pessoa demonstrar que ganha pouco e que não tem como “comprar” atenções na oferta privada. Para outros, do qual faço parte, entendemos que a Constituição brasileira ao estabelecer o direito à seguridade determina que não deve ser necessário a um brasileiro primeiro mostrar que não tem renda para depois ter acesso a um serviço público. Este modo de gestão do serviço público seria vexatório por exigir que ele se mostre como necessitado e assim, é negador da cidadania, ou do direito de todo brasileiro ser incluído no serviço a partir de sua necessidade. Há ainda no Brasil serviços e benefícios dos dois tipos. Alguns ainda exigem teste de meios, isto é, demonstração de quanto ganha aquele que pretende ser atendido por um benefício ou um serviço de proteção social. No caso esses testes transformam os cidadãos em necessitados sociais, ou em não-cidadãos. Outros serviços já se voltam para a necessidade expressa pelo cidadão sem exigir comprovação de renda. Há aqui uma tensão ainda não resolvida no modelo brasileiro, com “gente puxando a corda dos dois lados”. Alguns acham que a proteção deve 8 ser vínculada com a miséria propondo ações focalistas e outros, que o vínculo da proteção deva ter atenções baseadas em direitos. A complexidade desta discussão é atravessada por algumas sérias questões. Primeiro pelo fato do Brasil ser um país campeão (perversamente) da desigualdade social, isto é, os ricos são poucos e muito ricos e os pobres são muitos e diferenciados entre indigentes, miseráveis, remediados, etc. Qualquer ação que se faça no Brasil para os pobres, ou mesmo aos mais pobres, significa muita gente. Somos uma grande população com alto percentual de vida precária. Dizer focalização fica parecendo um contra senso. Como posso dizer que focalizo (direciono minha ação para um pequeno grupo) se o que ocorre é um grande grupo. Sabemos que a quantidade transforma-se em qualidade. Trinta, quarenta, cinqüenta milhões de pessoas como as abrangidas pelo Programa Bolsa Família (PBF) não pode ser um foco quando há países como o Uruguai que não chegam a 4 milhões de habitantes. O dilema é que órgãos ainda usam a referência à focalização como critério para aprovar financiamentos de programas e projetos. O tema focalizado também adquire o contra sentido a universal. Ao ser focalizado não seria universal, isto é, não seria para todos. Ocorre que a CF88 diz claramente que a proteção social no caso de assistência social é para todos que dela necessitarem. Enquanto a educação e a saúde como políticas universais partem do pressuposto de um objetivo a atingir - a educação para todos, saúde como completo bem estar de todos - como bens públicos sociais, não se tem a mesma leitura da proteção social. O ECA é claro em atribuir, como valor universal, a proteção integral a toda a criança e adolescente enquanto seres em desenvolvimento. No caso, a proteção social não é demandada pelo fato de que essas crianças e adolescentes sejam pobres ou ricas, mas como valor de uma sociedade que se quer justa, solidária e voltada para o avanço social em seu futuro. 9 Alguns consideram que a proteção social não contributiva é necessária por que as pessoas são pobres e que a pobreza é que gera a desproteção. Seguramente, a pobreza agrava vulnerabilidades, riscos e fragilidades, mas não significa que todas as vulnerabilidades, riscos e fragilidades existam pela causalidade da pobreza. Esta é uma grande polêmica que merece ser debatida. Cabe ainda um outro aclaramento para o sentido de não contributivo, Ele é relativo à sociedade de mercado. Neste tipo de sociedade, que é a que vivemos (diferente da sociedade indígena, por exemplo) o acesso ao que precisamos é feito por uma relação de compra e venda de mercadorias. No caso, é uma sociedade regida pelo dinheiro e pela mercadoria. O sentido de não contributivo significa do ponto de vista econômico, o acesso a algo fora das relações de mercado, isto é, desmercantilizado ou desmercadorizado. Para Esping-Andersen é o caráter do acesso desmercantilizado que caracteriza uma política pública. No caso, não se está comprando uma atenção social pública. Em alguns países, como os escandinavos, um conjunto de serviços são desmercantilizados para todos os cidadãos. No caso brasileiro alguns entendem que a desmercantilização é uma concessão aos pobres e não um direito de todos. Este duplo entendimento tem traços que permanecem no modelo brasileiro de proteção social não contributiva ainda que com intensidades diversas – uns mais fortes que outros. 1.2 o âmbito da proteção social não contributiva pela CF88 A discussão sobre proteção social é relativamente nova na sociedade brasileira quando desagregada da legislação social do trabalho, embora ambas sejam direitos sociais explicitamente tratados nos artigos 6º e 7º da CF88. A condição de proteção – desproteção no âmbito do trabalho é regulada pela legislação do trabalho, pela aplicação dos direitos trabalhistas, pela formalização de contrato de trabalho e pelo seguro público, na forma da 10 previdência social. Trata-se, portanto, de campo bastante regulado cuja dinâmica (no campo privado ou no campo público) tem processualidade jurídica de monta além de sujeitos coletivos representativos nas formas de centrais sindicais e de sindicatos, entre outras. O trabalho, o trabalhador, a relação de emprego supõe um conjunto de dispositivos reguladores mas todos eles só se aplicam a partir de uma dada relação formalizada. No caso não se aplica a todos os brasileiros, mas a uma parte deles. A proteção social não contributiva nasce, antes de mais nada, do princípio de preservação da vida e, sobretudo, no terceiro fundamento da república brasileira: a dignidade de pessoa humana (artigo 1º inciso III). Dentre os direitos sociais: a segurança, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados (art. 6º CF88). No artigo 203, relativo à assistência social estende essa proteção a: proteção à família proteção à maternidade proteção ao ciclo de vida (infância, adolescência e velhice) e neste último caso acesso a benefício de 1 salário mínimo proteção a pessoas com deficiência (promoção, habitação, reabilitação, acesso a benefício de 1 salário mínimo). Este artigo particulariza o amparo a crianças e adolescentes carentes o que acentua a perspectiva da proteção integral à criança e ao adolescente regulados pelo ECA. Mas ao redigir o adjetivo de carente junto à condição de criança e adolescente, em uma sociedade de mercado, a CF88 passa a referir os níveis de fragilidade para além de sociais também econômicos. A CF88, em seu capítulo VII – da ordem social e no artigo 227 aplica o princípio da subsidiariedade no trato da criança e do adolescente. Primeiro cabe à família, depois a sociedade, e por fim, ao Estado assegurar um conjunto de direitos à criança e ao adolescente. No caso não deixa de ser um respeito ao direito da privacidade entre pais e filhos. 11 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocálos a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência e enfermidade. A CF88, do mesmo modo, usa do princípio da subsidiariedade ao considerar o dever de “amparar pessoas idosas” cuja atenção deve ser executada preferencialmente em seus lares (§ 1º artigo 230). Aqui não parece haver uma razão para usar a subsidiariedade, o Estatuto do Idoso clareia esta questão. Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. § 1º Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares. É interessante constatar que o princípio de subsidiariedade aplicado na proteção ao ciclo de vida não ocorre no caso da pessoa com deficiência onde o inciso II do artigo 23 torna específica a responsabilidade das três instâncias de poder de Estado no Brasil para com os deficientes. 12 Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: Inciso II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência. Vale destaque ainda o inciso X do mesmo artigo que coloca como âmbito do Estado: “combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos”. Este breve percurso pela lei maior do país mostra que: a) o modelo brasileiro tem por particularidade configurar o campo da seguridade social como aquele destinado “a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Todavia, a CF88 limita-se a apontar como elemento integrador dessas três áreas/campos de direitos um conjunto de objetivos. Especifica o modelo de gestão da saúde e suas competências sem demonstrar quais direitos atende; detalha o conteúdo da previdência social a partir de direitos previdenciários. No caso da assistência social limita-se a falar do campo de trabalho e das diretrizes organizativas, não especifica nem o sistema como na saúde, nem os direitos como na previdência. Portanto, a regulação da assistência social vai ocorrer em legislação pós CF88. Não há também qualquer indicação sobre o modo de relação das três áreas sob o âmbito da seguridade, para além dos objetivos estabelecidos no parágrafo único do artigo 194: 13 Parágrafo Único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: I – universalidade da cobertura e do atendimento II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços IV – irredutibiidade do valor dos benefícios V – equidade na forma de participação no custeio VI – diversidade da base de financiamento VII – caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados. Pelo que aqui se resgata da CF88 percebe-se que o grau de consistência das diferentes políticas protetivas é diferenciado enquanto seu detalhamento como parte do texto constitucional. Esta heterogeneidade reflete mais a ausência de maturidade de conteúdos à época, do que um quadro de importâncias primárias e secundárias entre elas. Percebe-se também, a dupla presença do princípio da subsidiariedade e o princípio republicano a reger as atenções de acordo com a matéria e não com a precedência da concepção da seguridade do dever de Estado. Este duplo movimento que, aliás, marca nossa sociedade tem como forma de “ataque estratégico” a efetivação da vigilância social. É preciso saber onde estão e quanto são os demandatários de proteção e, de outro lado, qual é a capacidade da rede instalada em suprir suas necessidades. 14 Esta visão de totalidade é fundamental para definir responsabilidades dos entes federativos no modelo de proteção social. 1.3 a relação proteção social, desenvolvimento social e pobreza A princípio pode-se afirmar que a existência, eficiência e efetividade, da proteção social compõem os indicadores de desenvolvimento social de uma população. Com isto se quer afirmar que: a) a proteção social não é imediatamente igual a desenvolvimento social; b) que desenvolvimento social supõe um complexo modelo intersetorial de ações e metas que envolve acesso à infra-estrutura, modelo econômico redistributivo, além dos acessos a trabalho, habitação, transporte, educação, segurança alimentar, saúde, cultura entre outros bens necessários ao desenvolvimento humano. Perda de dinamismo da economia e deterioração do social são fatores de antidesenvolvimento social. Essa ponderação é bastante importante já que, por vezes, pré-conceitos consideram que a proteção social é antítese do desenvolvimento por a entenderem como ação tuteladora que leva à estagnação, bloqueia o crescimento principalmente, o econômico. Para além dos antagonistas da proteção social existem os que aceitam a proteção social desde que seu horizonte seja a inserção na ocupação e renda. Assim trabalhar proteção seria uma política auxiliar da Política de Trabalho ou um modo secundário de inserir, de forma precária, os brasileiros em uma condição de renda, chamando esse procedimento de inserção social. A mera exposição da idéia já permite constatar que os que assim pensam e agem apóiam a idéia de proteção na desproteção e escondem o caráter de incerteza do trabalho precário. Existe nesse modo de ver um entendimento dúbio. De fato, o desemprego é, na sociedade de mercado, um fator de risco para as condições de vida ou para a reprodução social. Todavia, a ocupação precária não é a resolução ao desemprego. A permanência da incerteza no sustento não permite o horizonte de sustentabilidade e, com isso, 15 a desproteção. Há analistas que afirmam ser necessário dar um “choque de capitalismo” nos pobres, como se sua situação não resultassem do próprio choque gerado pelo capitalismo em sua pobre vida. A proteção social não é resolvida pelo mercado de trabalho, ainda que, ter salário e renda amplie as condições da família realizar sua reprodução social e de seus membros, em quantidade e qualidade mais significativa ressalvado sempre que, este significado depende da cobertura que o valor do salário proporciona face ao poder de compra no mercado. Os riscos e vulnerabilidades sociais decorrem de contingências humanas, do próprio ciclo de vida, de contingências geradas por deficiências, como também, decorrem de fatores relacionais e do convívio humano desde o núcleo familiar até o societário. Aqui ocorrem violações de várias montas e significados como: transgressões, agressões, expropriações, discriminações, apartações, exclusões, marginalizações, desfiliações, desagregações, privações, contingências enfim, um múltiplo de situações que vão da sociabilidade à segurança e respeito à dignidade humana e à cidadania. O próprio trabalho é uma forma de relação social e societária e, nele também, estão contidas possibilidades de ocorrências dessas desproteções além das específicas do mundo do trabalho como insalubridade, não descanso, acidentes, etc. Entende-se, e defende-se, nessa discussão que proteção social precisa ser compreendida como política com finalidade específica, que produz resultantes para o desenvolvimento social e que não é meramente compensação da conformação desigual da sociedade, ainda que a desigualdade seja, em si, uma injustiça, uma agressão e para alguns sua prática seja considerada até um crime a merecer punição. A perspectiva de desenvolvimento social e humano tem sido tomada em âmbito restrito e sem um necessário pacto de forças para sua propulsão. Falase em crescimento econômico, mas quase nada em perfil de redistribuição e distribuição de renda. 16 Um programa de transferência de renda que opera o direito ao benefício, não é, e não pode ser por si só, agente do desenvolvimento social. Ele oferece sustento, mas não sustentabilidade. Esta tem que ser alcançada por um conjunto de ações sociais e econômicas. O Brasil não dispõe de duas grandes ferramentas para o desenvolvimento social: a ausente incorporação da exigência para a sociedade brasileira em afiançar mínimos sociais a todos; a ausência de reconhecimento universal da cidadania, reforçada por concepções conservadoras que se mesclam ao pensamento liberal e neoliberal Persiste a falsa noção de que o desenvolvimento social é resultante automático do crescimento econômico. Outros relacionam o desenvolvimento social à superação do binômio - fome e pobreza - que já identificou pelo Mapa da Fome de 1995 que 32 milhões de brasileiros recebiam menos do que o valor de uma cesta básica de alimentos. O Programa Fome Zero deslocou a discussão da relação fome e pobreza para o campo da segurança alimentar e nutricional como campo de direitos e dever de Estado e não como solução de pobreza. Nesse caso, a segurança alimentar e nutricional é também política de proteção cujo resultado e indicadores são parte do desenvolvimento social. O critério identificador da pobreza no Brasil permanece sem uma posição explícita: ora converge para as referências do Banco Mundial 1 dólar/dia per capita (indigência) e 2 dólares/dia per capita (pobreza); ora referindo ao salário mínimo adotando ¼ do salário mínimo per capita para indigência e ½ salário mínimo per capita para a pobreza. Nesse meio existem ainda medidas programáticas da pobreza como a do Bolsa Família com o valor de 120 reais per capita, com aproximação ao índice do Banco Mundial em 2 dólares dia . A óbvia questão brasileira, como se sabe, é da alta e desenfreada desigualdade social que precisa ser incorporada nas medidas de pobreza. Tenho sempre contraposto a idéia de medir pobreza à concepção de 17 caracterizar o que é a não pobreza que entendo como padrões básicos de inclusão social fugindo assim, de análises minimalistas de mínimos sociais. No Brasil a noção de desenvolvimento está diretamente relacionada com a redução de desigualdade, portanto, tem relação direta com o modelo econômico. Por ora o que temos são Indicadores de Desenvolvimento Humano – IDH ou IDHM (por município) que medem a precariedade da vida humana, todavia não medem o oposto: a opulência do modo de vida de alguns. (www.pnud.org.br). Definir pobreza através de uma “linha” contribui para a persistência de formas de tratamento e atenção segregadas que operam por teste de meios (seleção de renda) e não pela necessidade. Define-se, na linha da pobreza, um limite do ganho do pobre que passa a ser teto de alcance para ser aplicado como horizonte a programas seletivos. Base e teto passam a ter o mesmo significado. Por vezes por centavos a mais no per capita o “programa de computador” rejeita a inclusão do demandatário no Peti, no Bolsa Família, no BPC, embora esteja vivendo situação de efetiva gravidade. Os desligamentos também são “in limine”. Nem sempre há um processo de redução paulatina do benefício até o desligamento. Este modo de operar orienta as ações em relação à pobreza como manutenção e não como superação. Quando o beneficiário chega à linha de pobreza é consolidado que já está “sarado” e pode ser desligado. Via de regra a linha de pobreza é de construção unidimensional e deveria migrar do enfoque do déficit de renda para o campo dos direitos humanos, isto é, da não pobreza, para os padrões básicos de cidadania. A renda declarada só mostra a destituição pessoal e as medidas de condições e qualidade de vida deveriam envolver o território de vida através do georeferenciamento de modo a explicar o conjunto de fatores condicionantes da precariedade da qualidade de vida. É preciso desenvolver a concepção de padrões de vida e de viver. É preciso construir um alcance ampliado da noção de precarização da vida para além da renda, incluindo, por exemplo: 18 tempo de informalidade idade dos chefes da família incidência de filhos menores de 14 anos incidência de doenças crônicas na família e de deficiências acesso a crédito incidência do custo de transporte no orçamento doméstico qualidade do acesso a serviços/atenções de saúde pelos membros da família qualidade do acesso à habitação padrão de convivência familiar incidência de mortalidade infantil, na infância, juvenil, materna. É preciso se pautar em um conjunto de elementos que demonstrem as certezas sociais na vida de uma família e assim, a concepção de pobreza passará a incluir indicadores de vivência de vulnerabilidade social, risco social e por conseqüência, possibilidades de acesso à proteção social. Examinar a pobreza só pela renda descarta a política de assistência social enquanto campo de trabalho com potencialidades, ativos sociais, ações socioeducativas e a reduz a aplicação de dispositivos de medição de renda para justificar benefícios em espécie. Aliás, os programas de computador já fazem isto, dispensando a relação existencial pela técnica virtual. A persistência, própria do mercado, em analisar a sociedade a partir da renda entende que segurança e proteção social devem ser compradas como mercadorias, no mercado. No caso, a sociedade é enxergada pela lente do consumo e de consumidores e não de cidadãos que convivem com ofertas públicas desmercadorizadas e privadas mercadorizadas. A proteção social não contributiva como já assinalado exige enxergar as desproteções e não, a capacidade de comprar proteções. Este é um dos fortes motivos pelos quais se afirma que o fundamento de uma política de proteção social não contributiva não é a pobreza, ainda que esta possa agravar a desproteção. Enfrentar pobreza é matéria de política econômica e social através de modelos redistributivos. A política de proteção social produz 19 resultados que seguramente colaboram na redução da miséria/pobreza como tem mostrado as análises de resultados do Programa Bolsa Família. Mas esse resultado tem um limite, que decorre do próprio limite desse programa. Ultrapassar esse limite exige a efetiva articulação do conjunto das políticas sociais e a adoção do modelo econômico distributivo e de consumo de massa. Combater, erradicar pobreza num país de alta desigualdade, como já dito, implica em estratégia intersetorial. A proteção social não contributiva pode “cutucar” a presença dessa estratégia pela sua efetividade, mas não pelo abandono de sua finalidade. É a eficiência e efetividade da proteção na vigilância e atenção aos riscos sociais tratando essa proteção como direito que traz elementos efetivos para estratégia intersetorial, quando existente, de enfrentamento da pobreza. 1.4 vulnerabilidade, risco social e proteção social É preciso destacar que embora riscos e contingências sociais afetem, ou possam afetar todos os cidadãos, as condições para enfrentá-los e superá-los é diferenciada entre esses cidadãos por decorrência da sua condição de vida e da ocorrência da cidadania precária que lhe retira condições de enfrentamento a tais riscos com próprios recursos. Por conseqüência as seqüelas da vivência desses riscos e vulnerabilidades podem ser mais ampliadas para uns do que outros. Parte-se da afirmação que é preciso desenvolver conhecimentos, dados, metodologias de ação enfim, um saber sobre riscos e vulnerabilidades sociais. Este propósito para ser atingido precisa, antes de mais nada, ter claro de que riscos e vulnerabilidades sociais se está referindo. A mudança para a visão social de proteção foi tornada explícita na Política Nacional de Assistência Social de 2004, a PNAS-2004. 20 Temos que considerar aqui, as expressões de risco e vulnerabilidade social a partir de seguranças sociais que estão afetas à proteção social não contributiva. Muitas inseguranças e riscos estarão afetas ao trabalho, a habitação, a educação, a saúde, ao transporte, entre tantas outras áreas em que se setorizam as respostas às necessidades humanas. Não são todas as necessidades humanas de proteção que estão em questão, como também, não são as necessidades de proteção social dos pobres que aqui se consideram como específicas da proteção social não contributiva. Já foi abordado no início deste texto o significado da proteção social e seguranças sociais a serem afiançadas e que constam detalhadamente da PNAS-2004. A noção de riscos tem um conteúdo substantivo, um adjetivo e outro temporal. O conteúdo substantivo diz explicitamente o que é o risco. Esta noção imediatamente leva a sua abordagem temporal: o antes, que se ocupa das causas do risco e o depois, os danos, as seqüelas, as perdas dos riscos. Há, porém uma questão adjetiva que vai se tornar fundamental para o desenho da política que diz respeito à gradualidade do risco. A vivência do risco pode ter seqüelas mais ou menos intensas por decorrência da vulnerabilidade/resistência dos que sofrem o risco como também do grau de agressão vital do próprio risco. Portanto, trabalhar situações de risco supõe conhecer: - incidências - causalidades - dimensões dos danos para estimar a possibilidade de reparação e superação - grau de agressão do risco - grau de vulnerabilidade/resistência ao risco 21 Como proteção significa prevenção a fragilidades e a vulnerabilidades (que podem ser permanentes ou temporárias) passam a fazer parte do exame da questão. Os riscos provocam padecimentos, perdas enquanto privações e danos enquanto ofensas à integridade e a dignidade pessoal e familiar. 1.4.1 risco social Um dos autores que tem se dedicado à discussão do risco na sociedade contemporânea é Ulrich Beck. Ela afirma que a produção social da riqueza é sistematicamente acompanhada da produção social de riscos produzidos técnico-cientificamente. A globalização como modelo econômico é um fator de risco principalmente para a população que vive nos países não pertencentes ao grupo econômico de Davos ou o G7 ou G8. Pode-se afirmar, portanto, que a sociedade industrial tem um comportamento predatório, onde o risco do aquecimento global é seqüela, fragilizadora da vida humana e da natureza. A desigualdade sócio-econômica é também fator de forte risco. Autores como Patrick Viveret, Jean Gadrey, mostram os riscos contidos no desenvolvimento econômico e de como o indicador do PIB per capita esconde em sua média os riscos de degradação humana. Conhecer os riscos societários nos quais os riscos sociais se assentam é seguramente matéria de conhecimento crítico daqueles que trabalham com proteção social. Nesse sentido até se pode aproximar dos chamados “ambientalistas” por protegerem a vida. Por certo análises marxianas desta questão afirmarão o caráter predatório do sistema capitalista, pautado na lógica da expropriação (do homem e da natureza) para proporcionar a acumulação de riqueza. Seus debatedores dirão que isto é próprio do capitalismo selvagem e 22 que a responsabilidade social de empresas reduz esse efeito nocivo. As manifestações dos riscos vão ocorrer no cotidiano das pessoas, nos territórios onde vivem e que podem sujeitá-las a maior ou menor exposição ao risco social. Desse modo diz-se que a “segregação espacial”, isto é, a vida em territórios precários enquanto infra-estrutura e acessos, sejam urbanos ou rurais, são fatores de risco e/ou agravadores de vulnerabilidades de famílias e de pessoas. Outro campo de risco está nos padrões de coesão e convivência familiar comunitária e social. Os fenômenos de isolamento, desagregação, desfiliação, ausência de pertencimento, discriminação, apartação, exclusão são todos provocadores de seqüelas e danos ou de privações e fragilidades. As contingências de natureza como enchentes, desabamentos também são vitimizadoras. Aqui as populações que vivem em áreas ribeirinhas ou com moradores de regiões sujeitas a deslizamentos são destacadas. Há ainda um campo polêmico para alguns que é o da etnia, gênero, religião, opção sexual como fator de risco. Do ponto de vista da etnia e no caso brasileiro dos indígenas, afrodescendentes, quilombolas e ainda, os pomeranos têm recebido destaque como grupos populacionais mais sujeitados a risco pessoal e social. Deve-se também dizer que a população infanto-juvenil e adulta que vive nas ruas constitui um grupo de risco social a merecer atenção especial. 1.4.2 vulnerabilidade social e proteção social O exame da vulnerabilidade social diz respeito à densidade e intensidade de condições que portam pessoas e famílias para reagirem e enfrentarem um risco, ou mesmo, de sofrer menos danos face a um risco. Para alguns seria até a vivência às situações de quase risco. 23 A vulnerabilidade como o risco também tem gradualidades, ao considerar os mais e os menos vulneráveis, isto é, os mais e os menos sujeitados a um risco; ou a serem mais, ou menos, afetados quando expostos a um risco. Portanto, podem-se identificar dois planos aqui: o das fragilidades e o da incapacidade em operar potencialidades. No caso atuar com vulnerabilidades significa reduzir fragilidades e capacitar potencialidades. Este é o sentido educativo da proteção social que faz parte das aquisições sociais dos serviços de proteção social. No caso, e como é abordado por Kaztman (1998) está se falando da falta de sincronia entre possibilidades e oportunidades. Esta noção leva a aproximar da idéia de economistas em trabalhar a relação de debilidade e força dos ativos que pessoas, famílias possuem para enfrentar riscos ou mesmo sua fragilidade. Neste caso é que o trabalho social com vulnerabilidades favorece aquisições no campo da autonomia ampliando a capacidade de respostas. Por decorrência destas idéias (já defendidas por Dirce Koga quando fala em “enclaves de potências” no livro Medidas de Cidades e por José Marcos Pinto da Cunha no livro Novas Metrópoles Paulistas. População, Vulnerabilidade e Segregação), o olhar da vulnerabilidade não pode ser só a precariedade, mas também, o dimensionamento da capacidade ou, como tenho preferido, da resiliência, isto é, da capacidade de resistência a confrontos e conflitos. Para efeito do planejamento da política de proteção social não contributiva tem sido utilizado o exame territorial de vulnerabilidade pela conjugação de alguns dados de precarização de famílias agregadas por domicílio. O primeiro exercício nesse sentido foi realizado pelo CEM/CEBRAP contratado pela Secretaria de Assistência Social da Cidade de São Paulo em 2003. Posteriormente, essa metodologia foi divulgada e estendida a todo Estado de São Paulo pela Fundação Seade como o IPVS – Índice Paulista de 24 Vulnerabilidade Social. Mas essa análise se prende mais aos “passivos” do que aos “ativos” da vulnerabilidade (site: www.seade.gov.br). A precariedade da vida é o primeiro fator que hierarquiza as famílias por setor censitário (agregados de 1000 famílias) pela renda, escolaridade dos chefes de família, número de filhos, famílias chefiadas por mulheres. O segundo fator é a vulnerabilidade pela idade dos chefes de família, pois famílias mais jovens estariam em período de procriação e com mais dependentes. A esse estudo que mostra territorialmente e em micro escala de setor censitário, as famílias de uma cidade, diferenciadas por graus de vulnerabilidade, podem e devem ser agregados e georeferenciados os acessos à infra-estrutura e serviços que possuem, de modo a entender os agravamentos que as condições do território lhes trazem. Esta ferramenta do estudo territorial das vulnerabilidades das famílias tem se mostrado como ferramenta básica que permite o desenho da topografia social da cidade a partir do grau de vulnerabilidade de famílias por domicílios. O cuidado necessário ao trabalhar as “potencialidades” ou os “ativos” é o de entender que ativos não resultam só de pessoas, mas envolvem acessos a condições objetivas de vida o que depende de políticas públicas e modelos econômicos distributivos. O crescimento do conhecimento sobre os fatores que provocam fragilidade a identificação de potencialidades pode levar, portanto, à possibilidade de introduzir ações de “manejo de risco” com direção ao fortalecimento, empoderamento e autonomia. O trabalho com vulnerabilidades reduz os danos provocados pela presença de riscos, isto é, diminui o possível efeito de deterioração que poderá causar uma futura vivência de risco. 25 A presença e a gradualidade do risco, e o trabalho preventivo às vulnerabilidades levam a adoção da hierarquização das atenções de proteção social em níveis básicos e especial e ainda, em média e alta complexidade. É, portanto, a escala do agravamento e o grau do vínculo de pertencimento ao convívio familiar que poderá propor o trabalho com a família a partir do seu domicílio ou a adoção de espaços substitutos, permanentes ou temporários, desse convívio quando irremediavelmente precário. Esta hierarquia se concretiza a partir de eixos protetivos. O paradigma de proteção social (básica e especial) rompe com a noção dos cidadãos como massa abstrata e os reconstrói a partir da realidade de suas vidas. Opera a partir de potencialidades, talentos, desejos, capacidades de cada um, dos grupos e segmentos sociais. A proteção social da assistência social opera sob três situações: proteção às vulnerabilidades próprias ao ciclo de vida; proteção às fragilidades da convivência familiar; proteção à dignidade humana e combate às suas violações. A proteção social da assistência social tem por primeiro eixo protetivo a proteção ao ciclo da vida do cidadão, isto é, a oferta de apoios às fragilidades dos diversos momentos da vida humana como também de apoios aos impactos dos eventos humanos que provocam rupturas e vulnerabilidades sociais. A assistência social ao ter por eixo protetivo as fragilidades e vulnerabilidades etárias próprias ao ciclo da vida, a coloca em diálogo com os direitos de crianças, adolescentes, jovens e idosos. Opera sob as matrizes dos direitos ao desenvolvimento humano e a experiência humana. O segundo eixo protetivo da assistência social decorre do direito à dignidade humana expresso pela conquista da eqüidade, isto é, o respeito à heterogeneidade e à diferença sem discriminação e apartações. No caso, a ruptura com as discriminações para com mulheres, índios, afrodescendente entre outros são centrais na dinâmica dessa política. Inclui ainda, a proteção especial contra as formas predatórias da dignidade e cidadania em qualquer momento da vida e que causam privação, vitimização, violência e, até mesmo, 26 o extermínio. As pessoas em desvantagens pessoais, em abandono ou em deficiência, são possíveis vítimas dessa predação, além de crianças, jovens vítimas da violência sexual, drogadição, ameaças de morte. O terceiro eixo protetivo está no enfrentamento de fragilidades na convivência familiar como núcleo afetivo e de proteção básica de todo cidadão. Aqui a ampliação das condições de equilíbrio e resiliência do arranjo-familiar são fundamentais na reconstituição do tecido social e no reforço do núcleo afetivo de referência de cada pessoa. 2 – eixos do modelo de proteção social não contributiva O modelo de proteção social não contributiva no Brasil é parte da seguridade social e tem centralidade na política de assistência social como dever de Estado e direito de cidadania. Esta é a primeira particularidade do caso brasileiro: ter a assistência social como política de direitos que opera através de serviços e benefícios e não só uma área de ação, em geral de governos locais, baseada em dispositivos de transferência de renda ou de benefícios. A segurança de renda é parte da política de assistência social como garantia de sobrevivência. A segunda característica do modelo brasileiro é o seu caráter federalista, isto é, ele supõe a ação integrada de três níveis de gestão federal, estadual e municipal. Por terceira característica é a de operar através de um sistema único como outras políticas sociais brasileiras. No caso a referência e o SUAS – Sistema Único de Assistência Social implantado em 2005 (NOB/SUAS-2005). 27 Uma quarta característica que é própria das políticas sociais brasileiras pelo vínculo entre democracia social e política, criado pelas lutas sociais na busca da democratização do Estado, é a de combinar o processo de gestão com sistemas de participação e controle social. No caso a referência é a de Conselhos, Planos e Fundos financeiros nas três instâncias de poder como regulamento fundamental para pertencimento ao sistema único. A quinta é o modelo pactuado de gestão entre os entes federativos, operado por coletivos representativos de gestores (municipais e estaduais) através de comissões intergestores, as CIB’s - comissões intergestores bipartites (representação estadual e municipal) e a CIT’s – comissões intergestores tripartes (federal, estadual e municipal). Outras categorias correlatas que lhe dão singularidade são a de: - mesclar benefícios e serviços o que supõem uma rede hierarquizada de serviços organizada por níveis de proteção social; além de modalidades diferenciadas de benefícios; e da perspectiva de vincular beneficiários a serviços permitindo a completude do processo protetivo; - atuar de forma intersetorial entre sistemas com políticas como segurança alimentar e nutricional, educação e saúde vinculando acessos aos beneficiários e usuários das redes de serviços de cada política; - engajar-se no esforço intersetorial de desenvolvimento social e através dele partilhar das metas de enfrentamento de desigualdades sociais, econômicas, regionais e nelas do enfrentamento da pobreza. A política de assistência social é concebida de acordo com o PNAS2004 como responsável por três funções: funções da assistência social como política de proteção social vigilância social – capacidade de detectar, monitorar as ocorrências de vulnerabilidades e fragilidades que possam causar a desproteção, além da 28 ocorrência de riscos e vitimizações. Esta é uma área nova que exige novos conhecimentos, capacidades e ferramentas de trabalho. defesa de direitos – trata-se de uma preocupação com os direitos dos usuários nos procedimentos dos serviços, no alcance de direitos socioassistenciais e na criação de espaços de defesa de direitos para além dos conselhos de gestão da política; proteção social – que inclui a rede hierarquizada de serviços e benefícios. Trata-se aqui de duas formas complementares de atenção: - benefícios – transferência em espécie ou em dinheiro fora da relação de trabalho ou da legislação social do trabalho para atender a determinadas situações de vulnerabilidade operando como substitutivo ou complementar à remuneração vinda da ocupação/renda da família. O acesso aos benefícios no Brasil é submetido a teste de meios (renda da família). Alguns países superam essa conduta e consideram o benefício como de direito a determinadas situações de vulnerabilidade ou fragilidade sem necessitar passar por um processo seletivo. - serviços – conjunto de atividades prestadas em um determinado local de trabalho que se destinam a prover determinadas atenções, desenvolver procedimentos com e para pessoas, afiançar aquisições. Os serviços produzem bens e se caracterizam em modalidades a partir desses bens que atendem a determinadas necessidades com este objetivo os serviços agregam competências técnicas e especialidades profissionais para o desenvolvimento desses bens. No caso da proteção social seus serviços devem afiançar: acesso a bens materiais, fora da relação de mercado, quando necessários à redução das seqüelas do risco ou a desproteção vivida; aquisições sociais que resultam do desenvolvimento de capacidades e conhecimentos de si e das relações que vivencia através de metodologias de trabalho social e trabalho socioeducativo. O modelo de proteção social não contributiva é assentado nos princípios de: 29 a) universalidade significando que ele pode ser acessado por todos os cidadãos que dele necessitem independente do território onde vivam e sob a diretriz ética de ser portador do direito à proteção social. Alcançar à universalidade para além do respeito ao princípio ético significa ter capacidade concreta de resposta institucional expressa por: instalação de infra-estrutura de dispositivos de atenção e de qualidade técnica de ação. b) matricialidade sócio-familiar que parte da concepção de que a família é o núcleo protetivo integeracional, presente no cotidiano e que opera tanto o circuito de relações afetivas, como de acessos materiais e sociais. Fundamenta-se no direito à proteção social das famílias respeitando seu direito à vida privada. Deste ponto de vista respostas ao modelo de trabalho social com famílias exigem o aclaramento prévio sobre: o que é família protegida? E o que é família sem vulnerabilidade? Outras duas questões precisam ser analisadas: o trabalho social com famílias é em si mesmo uma das aquisições do processo de proteção social de famílias ou um administrador de acessos sociais para essas famílias? Associar apoio às famílias de baixa renda poderia ser traduzido em um programa com mulheres (ou com mães e seus filhos). Nesse caso ocorre uma visão restrita da matricialidade familiar ao não possibilitar a leitura da totalidade da dinâmica da família e seus membros. Por vezes usa-se no trabalho social, com famílias, uma agenda do tipo moral voltada para regular o comportamento de famílias de baixa renda e não, uma agenda política de construção de direitos à proteção social da família. Ainda não está plenamente equacionado (na concepção do SUAS e no interior das proteções básica e especial) o significado e implicações concretas da matricialidade sócio-familiar. Ainda ocorre o predomínio de segmentos desvinculados de suas relações familiares. 30 A concepção de benefícios na proteção social básica reduz a noção de família para a noção de renda familiar per capita. Esta leitura traduz a família como mera unidade econômica e não social. O conceito de família em vulnerabilidade social precisa ser desconstruído em seus componentes para que o objetivo família sem vulnerabilidade possa ser construído e, com ele, a operação por metodologias e estratégias que levam a sua concretização. A dimensão socioeducativa dos serviços de proteção social está articulada por ciclo de vida, e não, pelo pertencimento à vulnerabilidade familiar. No caso estão conectados à idéia de vulnerabilidade pessoal. A articulação entre matricialidade sócio-familiar com a lógica das fragilidades individuais não está ainda construída como estratégia na proteção social básica, nem na especial. Esta última tem um suposto nos serviços de alta complexidade da ausência de família o que não pode ser estabelecido como verdadeiro. c) territorialização, descentralização compartilhada e regionalização. Este princípio traz, antes de mais nada, um aporte conceitual e ético. As famílias são mais vulneráveis, ou se vulnerabilizam mais ao risco, e até vivem sob risco a partir das condições objetivas do território onde vivem. Isto supõe a concepção que é preciso ter medidas de risco dos territórios para a vida das pessoas, assim como, medidas de potencialidades. A proteção social indica, portanto, ações no território e não só em pessoas, mesmo que estas ações signifiquem o desenvolvimento do princípio da intersetorialidade. Tenho afirmado que a intersetorialidade implica em princípios de gestão que precisam ser combinados para desenvolver uma estratégia da intersetorialidade democrática que consolide direitos. 31 Um primeiro princípio é o da gradualidade. Não se consegue fazer tudo ao mesmo tempo. É preciso ter grande perspectiva, mas atuar gradualmente por etapas ou metas cujos resultados alcançados sempre produzem uma mudança na configuração anterior de uma dada situação. Diria que os resultados colocam a realidade em um novo patamar, mesmo que não seja ainda, a perspectiva última desejada. Esse movimento precisa ser objetivado e consolidado para que não se volte atrás como se nada tivesse ocorrido, ou anulando o efeito parcial com a justificativa de que o alcance do resultado ainda não foi pleno. É preciso reconhecer publicamente a alteração de patamar de uma situação mesmo que ainda não seja pleno, para que o resultado da ação se torne visível para a sociedade, para ação do governo, para os agentes institucionais e com isto seja assimilada, não se voltando a estaca zero. O segundo princípio que trago é o da valorização da heterogeneidade. É difícil combinar, na ação, heterogeneidade e homogeneidade ou, equidade e igualdade. Na política social não dá para afirmar que se está sendo bem sucedido se não houver a inclusão da particularidade da mulher, do idoso, etc., tendo a preocupação em não confundir heterogeneidade com fragmentação da ação. O terceiro princípio é o da convergência. É preciso entender que a intersetorialidade se assenta no princípio da convergência da ação. Este princípio reflete mais uma racionalidade interna da ação – no caso da ação de governo – do que um valor para a sociedade. Isto não pode ser confundido. Não se pode transformar a intersetorialidade em modo de relação política do Estado com a sociedade. Esta confusão pode levar a uma fragilização da inteligência técnica do Estado que é, sobretudo, advinda da especialização, isto é, da setorialidade ainda que referida ao interesse público. A concepção de descentralização compartilhada supera os conceitos de municipalização como prefeiturização, isto é, como o processo de “empurrar” competências federais e municipais estaduais para os municípios restringindo as responsabilidades federal e estaduais. Trata-se do chamado federalismo cooperativo. O processo de regionalização permite operar essa 32 concepção. Nesse sentido é preciso que os Estados desenvolvam a concepção de regiões intra-estaduais e os municípios de regiões intra-urbanas. d) regulação. Trata-se aqui do alcance da função de regulação dos entes privados no campo da proteção social, ainda que não lucrativos, como também de construção das referências unitárias do Sistema Único através de normas técnicas e dispositivos de operação. Isto rompe o tradicional espontaneismo que valora a ação pela sua presença esquecendo de examinar e garantir qualidade em seus resultados. e) habilitação do ente gestor. A operação do sistema de federalismo cooperativo é realizada pela adesão individual de cada município que passa a ter um grau de habilitação no SUAS a partir da infra-estrutura implantada. Os municípios que não possuem conselho, plano e fundo, não estão habilitados para pertencer ao SUAS (2,8% deles ou 158 estavam nessa situação em dezembro de 2006). A vinculação ao SUAS se dá em três níveis: inicial – 24,1% ou 1.338 municípios básico – 66,7/% ou 3.708 municípios plena – 6,6% ou 359 municípios (dados de dezembro de 2006) É preciso lembrar ainda que se aplica entre os municípios a relativização das exigências de acordo com o porte do município referido a seu contingente populacional. pequeno I (até 20 mil/hab) – 3.994 pequeno II (de 20 até 50 mil/hab) – 1.008 33 médio (de 50 a 100 mil/hab) – 309 grande (de 100 a 900 mil/hab) – 237 metrópole (+ de 900 mil/hab) – 16 (PNAS-2004) 3 – idéias-força na construção do modelo Conforme exposto na primeira parte um modelo é sempre um vir a ser. Procurou-se até aqui mostrar os detalhes do modelo (suas pences e recortes) agora se trata de analisar como esse “norte”, que é modelo, está se confrontando com o real. O modo que se encontrou para expressar esse processo de construção é o de “idéias-força”. Algumas dessas idéias-força são aqui expostas, e seguramente o debate em cada realidade acrescerá ou alternará aquelas aqui abordadas. Chamou-se de idéia-força por que se trata das mudanças, dos desafios para efetivar uma nova concepção na realidade existente. A primeira idéia-força que aparece na implantação do modelo brasileiro de proteção social não contributiva é a seguinte: - a constituição da proteção social não contributiva no Brasil embora esteja constitucionalmente assentada não está ainda plenamente aplicada. Conseguir aplicar os ditames constitucionais supõe fortes e sensíveis mudanças políticoinstitucionais e econômico-sociais nas relações e regras da sociedade 34 brasileira, dos entes federativos que compõem o Estado brasileiro e dos agentes institucionais que operam a proteção social. Dentre essas mudanças se destaca: a) deslocamento de provisão das necessidades de proteção social do âmbito de ações sociais para o âmbito da política. Fato que significa instalar nova racionalidade, continuidade e objetivação na atenção às necessidades a serem cobertas e nos modos de provê-las como campo de proteção social. b) deslocamento da centralidade de práticas privadas (leigas ou religiosas) instituindo a regulação estatal no campo da proteção social. Este movimento significa constituir o campo do dever de Estado na proteção social não contributiva quer como atenção quer como regulação o que altera o modo de destinação dos recursos financeiros do Estado a entidades sociais e a constituição do caráter público quando sua aplicação e não de subvenções a práticas privadas. c) construção de nova identidade social para os que circulam no campo da proteção social não contributiva atribuindo seu reconhecimento pelo âmbito positivo da cidadania, e não, pela discriminação que faz transitar sua necessidade para a condição vexatória de necessitado. O usuário não pode ser o carente, o pobre, o necessitado, o excluído, o despossuído, assim como o escolar não é o ignorante, analfabeto, inculto. Este giro de concepção de 360 graus é um dos mais fortes a ser realizado e significa dar centralidade aos direitos sociais. Três trânsitos fundamentais, na sociedade e no Estado brasileiro, são exigidos para efetivar o modelo de proteção social não contributiva no Brasil: - de ações sociais para política pública; 35 - de ações isoladas para a centralidade do dever de Estado como agente executivo, agende regulador e agente de defesa de direitos; - de reconhecimento do pobre e carente para construção da identidade social do usuário como cidadão com direitos a ter direitos. Estes trânsitos exigem o domínio de três conceitos e suas implicações: política pública dever de Estado como execução, como regulação e como defesa direitos de proteção social não contributiva A CF88 cria o âmbito da seguridade social e nele a proteção social como afiançadora de seguranças sócias. Esta construção é uma particularidade do modelo social no Brasil que pode ser consultada em mais detalhes no PNAS2004. A segunda idéia-força, na implantação do modelo, diz respeito à dificuldade do modelo de intersetorialidade A CF88 atribui o caráter de seguridade social à proteção social não contributiva, definindo os campos da previdência, saúde e assistência social. Todavia não existem ainda, mecanismos de articulação entre os três campos para além das condicionalidades do Programa Bolsa Família e do diálogo entre o BPC, a RMV e o INSS. Embora o modelo de seguridade social ainda não esteja consolidado, a área de segurança alimentar vem se estruturando como outra frente de proteção social. Embora a CF88 tenha elevado à assistência social ao patamar de política de seguridade social ao lado da saúde e da previdência social, persiste ainda uma resistência a esse significado permanecendo a idéia discriminadora 36 que refere o termo assistência social a assistencialismo e assistencialista. Nesses significados ela seria uma política tuteladora, prática do favor, da subalternidade, da acomodação e não do desenvolvimento de capacidades, aquisições de novas condições de sustentabilidade. A terceira idéia-força tem relação com a dificuldade de entendimento da assistência social como política pública de direitos e não como assistencialismo. Permanece no modelo de proteção social não contributiva uma interface com programas de enfrentamento da pobreza e a perspectiva de alcance do desenvolvimento social. Estas duas perspectivas fluem mais da velha relação entre fome e pobreza do que a adoção de uma política redistributiva articulada com o modelo econômico. É freqüente aparecer essa discriminação na fala de jornalistas, políticos, comentaristas. A nominação dos órgãos gestores da assistência social termina registrando uma parafernália de nomes (promoção, cidadania, desenvolvimento, bem estar, etc.) substitutivos da sua nominação explícita como assistência social, que é vista como de baixo apelo público. A concepção de proteção social como já assinalado, não é a de tutela dependência o que seria o contraponto à cidadania e ao direito à proteção constitucionalmente atribuído. A quarta idéia-força força para desconstrução/construção do modelo de proteção social não contributiva no Brasil se assenta na complexidade institucional de sua construção que se expressa: 37 - um arranjo institucional de gestão de políticas públicas cujos resultados transitam entre proteção e desenvolvimento social; - um arranjo institucional que supõe a adesão dos três entes federativos numa relação complementar de responsabilidades, coberturas e resultados; - uma relação de complementaridade entre as políticas públicas de assistência social, segurança alimentar, saúde, educação, habitação, trabalho e renda, previdência social e o sistema nacional de direitos humanos em específico o SINASE; - o formato diferenciado entre os três níveis de governo no modo como articulam; - a complementariedade entre as políticas e a estratégia de intersetorialidade; - a aplicação de territorialidade do modelo de proteção social entre os três entes federativos; - a estratégia de construção da matricialidade sócio-familiar no processo de proteção social. Trata-se de, ao mesmo tempo mudar uma concepção e introduzir, de forma participativa, um novo modo de gestão que respeite a heterogeneidade e a particularidade de cada realidade sem perda do “norte” de unidade na construção de direitos sociais. É um exercício hercúleo onde os governos estaduais têm se mostrado a reboque no posicionamento de estratégias de gestão impulsionadoras desse processo. A quinta idéia-força se fundamenta na implantação da matricialidade sócio-familiar. 38 O modelo brasileiro de proteção social não contributiva tem por eixo principal a proteção integral às famílias, isto é, o reforço às condições para que elas exerçam a proteção de seus membros. Ocorre um predomínio dos coletivos de defesa de direitos de segmentos sociais: crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, etc. que tensionam respostas a segmentos sem conexão com as características das famílias. Ainda não se tem clara a posição sobre riscos e vulnerabilidades das famílias e as formas/metodologias de trabalho. O trabalho profissional que esta matricialidade sócio-familiar exige é por vezes simplificado com agentes treinados que atuam com mulheres para que desenvolvam trabalhos precários e ampliem a renda da família. Deste modo não só se esquece a família enquanto tal, como não se respeita um trabalho de gênero com mulheres. A sexta idéia-força diz respeito à dificuldade em obter simetria entre serviços e benefícios. Os recursos financeiros na assistência social são em grande parte catalizados para benefícios com corte de renda, e de baixo investimento na rede de serviços. Em grande parte a rede de serviços é operada por entidades sociais, sem se dispor de uma regulação para essa relação. Portanto, além de significativamente inferior à capacidade dos serviços face aos benefícios há forte disparidade na forma de funcionamento dos serviços com o disposto no PNAS-2004. 39 A sétima idéia-força diz respeito à dificuldade em incorporar direitos socioassistenciais no cotidiano da política. Os direitos socioassistenciais ainda permanecem no campo das idéias sem uma legislação que abrigue sua aplicação e a instauração de uma processualidade jurídica quando de sua infringência. Ainda não se conhece, incorpora e opera sob a égide de direitos na aplicação de benefícios e nos serviços de assistência social. Trata-se de um forte trabalho de operacionalização dos direitos que exige não só a ação no Executivo como no Legislativo e no Judiciário. A estas “idéias-força” outras podem ser acrescentadas. A discussão de cada uma delas pode dar aos agentes institucionais e aos gestores uma análise crítica dos desafios a enfrentar na implantação do modelo brasileiro de proteção social não contributiva e suas múltiplas relações. bibliografia BECK, Ulrich – La sociedad del riesgo global. Madrid. Siglo Veintiuno, 2002. CUNHA, José Marcos P. (org.) Novas Metrópoles Paulista. População, Vulnerabilidade e Segregação. Campinas, UNICAMP, 2006. GADREY, Jean e Jany Catrice Florence. Os Novos Indicadores de Riqueza, Editora SENAC, São Paulo, 2006. 40 ESPING-ANDERSEN, Gosta. As três economias políticas de Welfare State. Revista Lua Nova nº 24, Centro de Estudos Contemporâneos - Cedec, São Paulo, 1991. GOUGH,Ian; DOYAL, L. O direito à satisfação das necessidades. Revista Lua Nova, São Paulo, pág. 97-121, 1991. IBANEZ, N; ELIAS P., VIANA A. (org) Proteção Social: Dilemas e Desafios. São Paulo, Hucitec, 2005. IBGE – Perfil dos Municípios Brasileiros. Assistência Social. 2005. Rio de Janeiro, 2006. 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