Individuação e as Dimensões do cuidado Arquetípico

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INDIVIDUAÇÃO E AS DIMENSÕES DO CUIDADO ARQUETÍPICO:
INTERFACES ENTRE JUNG E A TRADIÇÃO BUDISTA
RICARDO FRANCO DE LIMA
Psicólogo Clínico formado pela Universidade São Francisco (USF/ Itatiba)
Resumo
O presente artigo explica o conceito de Individuação de Jung estabelecendo o “Cuidado”
como dimensão ontológica e arquetípica dos seres humanos. Em seguida, define duas
dimensões pelas quais a individuação ocorre: a) Autocuidado e b) Cuidar do Outro,
complementando com referências da tradição budista.
Palavras–Chave: Individuação, Cuidado, Arquétipo, Budismo
O que é essencial para o ser humano ? Ou melhor, qual é a essência do ser humano?
Os filósofos antigos reduziam o “essencial” ao que chamaram de arqué que reside por detrás
de todas as coisas e foi associado aos quatro elementos: terra, água, fogo e ar (Oliveira et
al., 1984). Alves (2001, p.81) afirma que “o essencial é aquilo que, se nos fosse roubado,
morreríamos; o que não pode ser esquecido; substância do nosso corpo e da nossa alma”.
Boff (1999), em seu livro “Saber Cuidar”, apresenta uma fábula-mito que expõe o
Cuidado como essência do ser humano:
“Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma idéia inspirada. Tomou um
pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado
pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um
nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e
Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita
de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo
pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: Você,
Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você,
Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo por ocasião da morte da criatura. Mas
como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E
uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: essa criatura será chamada
Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.
Esta postura também foi adotada por Heidegger (apud Boff, 1999): “do ponto de vista
existencial, o cuidado se acha a priori, antes de toda atitude e situação do ser humano, o que
sempre significa dizer que ele se acha em toda atitude e situação de fato”. O Cuidado é
compreendido como fenômeno constitutivo da existência humana. Segundo May (1973,
1
p.321) "quando não cuidamos perdemos nosso ser; cuidar-se é voltar a ser. Se me preocupo
com o ser, cuidarei com atenção do seu bem-estar, caso contrário, meu ser se desintegrará".
Se observarmos nossa vida veremos que bem antes de nascermos o Cuidado já estava
presente. O bebê está sujeito a diferentes vivências dentro do útero da mãe e somente em
função dos cuidados maternos ele pode desenvolver-se até o nascimento biológico. De
acordo com Bassoli Jr. (2001) apesar da separação do nascimento, o bebê continua
dependente da mãe nos planos físico, afetivo e existencial, ou seja, o nascimento psicológico
não acompanha o biológico.
Somos seres que necessitam de cuidados constantes para que possamos crescer e,
paulatinamente, alcançarmos a autonomia, na qual também passamos a cuidar e renovamos
o ciclo do cuidado. O cuidar do outro é "(...) um estado composto do reconhecimento de
outrem, um ser humano igual a mim; da identificação de mim mesmo com a dor e a alegria
de outrem; do remorso, da pena e do conhecimento de nos originarmos de uma humanidade
comum a todos" (May, 1973, p. 320).
Além disso, o Cuidado é símbolo de um processo. Tomemos como exemplo o plantio
de uma flor: escolhemos um lugar apropriado para plantá-la, cuidamos da terra que receberá
a semente, plantamos e regamos com água. Devemos estar continuamente atentos às suas
necessidades. Se ela precisa de luz solar, de sombra, de pouca ou muita água. E assim,
acompanhamos seu crescimento oferecendo aquilo que podemos. Por sua vez, a flor se
encarrega de utilizar esses elementos da melhor forma para produzir seu próprio alimento.
No dicionário encontramos a seguinte definição para o verbo “cuidar”: “v. tr. dir. Cogitar;
meditar; pensar; supor; (...) tr. ind. Interessar-se por; preocupar-se com (...); reparar; atentar
(...); do latim cogitare” (Fernandes, Luft & Guimarães, 1993). Conforme indica Boff (1999), há
duas linhas de explicação para o termo: a) desvelo, solicitude, atenção para com um Outro;
b) estado de inquietação quando estamos envolvidos afetivamente; o que sempre ocorrerá,
já que o ser humano é um ser–no–mundo–com–outros.
É como na história de Saint–Exupéry (1967), na qual o Pequeno Príncipe sente a
necessidade de cuidar da rosa, em função de seu envolvimento puro e sincero com ela. “Mas
se você me cativas, nós teremos a necessidade um do outro. Serás para mim único no
mundo. E eu seria para ti única no mundo” (...) Tu te tornas responsável por aquilo que
cativas”. De uma forma poética, também fica claro que o cuidar implica no resgate daquilo
que é essencial em si mesmo e no Outro: “Só se vê bem com o coração. O essencial é
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invisível para os olhos” (...) “Mas os olhos são cegos, é preciso buscar com o coração”.
Cuidar implica em responsabilizar-se por aquilo que se cuida.
Diante destas colocações, se enfocarmos o Cuidado sob a ótica da psicologia
Junguiana, vemos que ele representa um conteúdo arquetípico da psiquê. Para Jung (1963)
os arquétipos são imagens primordiais herdadas e sem conteúdos determinados. Em si, são
elementos vazios, uma “facultas praeformandi” (possibilidade de pré-formação) a serem
preenchidos pelo material proveniente da experiência consciente do indivíduo. Dito de outra
forma, as imagens arquetípicas podem constelar em nossa consciência devido a uma
situação existencial. Estas imagens são preenchidas com o conteúdo proveniente da
maneira como vivenciamos a situação, incluindo nosso histórico de vida, características de
personalidade, contexto sócio–histórico, etc. Sobre a natureza arquetípica do Cuidado, Boff
(1999) afirma que a partir de uma realidade concreta, nas vivências ancestrais, comunitárias
e sócio–políticas, o Cuidado depositou-se no inconsciente coletivo da humanidade, sendo
atualizado a todo tempo em nossas vidas.
Podemos aprofundar estas considerações através do conceito de individuação de Jung
e alguns aspectos da tradição budista. A individuação é definida como o processo pelo qual o
ser humano pode tornar-se um indivíduo, uma totalidade, ou seja, representa a unicidade
interna (síntese). É um processo arquetípico que permite o surgimento lento de uma
personalidade cada vez mais ampla (Von Franz, 1964). Segundo Gorresio (1997) a
individuação é a jornada do ego na busca do aumento da consciência do Self. No entanto,
não devemos confundir a individualidade com uma busca egocêntrica. Para isso, precisamos
compreender o que é o Self na psicologia Junguiana.
O Self representa a quintessência dos arquétipos: é ao mesmo tempo a fonte da
personalidade como seu objetivo final; é o símbolo da divindade no homem (Moacanin, 1999)
o que equivale no Budismo, ao Estado de Buda existente em todos os seres.
Na configuração psíquica descrita por Jung, o Self é o representante original do Eu e
não somente o ego, colocando-o assim próximo aos princípios das psicologias orientais.
Segundo a tradição budista, ter o ego como único representante do Eu é uma ilusão. O
objetivo da prática budista, assim da psicologia junguiana, consiste no deslocamento do
centro psíquico do ego para o Self, ou seja, no reconhecimento e na vivência de nossa
budicidade (Individuação/ Iluminação).
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Apesar disso, o ego é a chave fundamental para o processo de individuação, já que é
necessária uma colaboração ativa de um ego consciente e capaz de tomar decisões
responsáveis (Gorresio, 1997).
Segundo Von Franz (1964, p. 162):
“tudo acontece como se o ego não tivesse sido produzido pela
natureza para seguir ilimitadamente os seus próprios impulsos
arbitrários, e sim para ajudar a realizar verdadeiramente a totalidade
da psique. É o ego que ilumina o sistema inteiro permitindo que
ganhe consciência e, portanto, que se torne realizado”.
A individuação implica em decisões éticas e vontade. É como se existisse uma
predisposição ou acordo internos que facilitam a emergência dos conteúdos arquetípicos à
consciência para sua posterior elaboração e assimilação. A ética na individuação consiste
numa acurada observância do ego, aos sinais (símbolos) provenientes do Self, bem como
em ser fiel a eles (Gorresio, 1997). Tenzin Gyatso (2000) chama esse auto cuidado de “ética
da virtude”, pois cultivamos e reforçamos nossa qualidades humanas ou espirituais básicas
tais como o amor, a compaixão, a paciência, tolerância, etc.
De acordo com Jung (1963, p.171), a compreensão dessas imagens (símbolos) do
inconsciente deve ser acompanhada por um senso de responsabilidade ética. “Sua
incompreensão, assim como a falta de sentido de responsabilidade ética privam a existência
de sua totalidade e conferem a muitas vidas individuais um cunho de penosa fragmentação”.
“Apenas a decisão dolorosa (...) de levar a sério os nossos sentimentos e fantasias
pode (...) evitar uma completa estagnação do processo de individuação, pois só assim o
homem há de descobrir o que significa esta figura como realidade interior” (Von Franz, 1964,
p. 188).
Sobre isso, Von Franz (1964, p.162) afirma que o ego “deve despojar-se de seus
projetos ambiciosos e à serviço do egocentrismo para entregar-se à uma fonte de existência
mais profunda e elevada, escutando atentamente o impulso interior de crescimento”.
De acordo com os princípios budistas, devemos nos desapegar do ego primitivo, para
reconhecermos porções mais profundas da nossa personalidade. Os apegos e desejos
egoístas são origens de sofrimento e, portanto obstáculos à Iluminação (1).
Porém, um perigo advindo desse movimento foi chamado por Jung (1985) de inflação.
Ele recorre a duas passagens bíblicas para explicar o termo. A primeira é a de São Paulo, na
epístola de Coríntios que diz: “o saber infla” e a outra está em Gênesis 2, 17: “(...) come de
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todos os frutos das árvores do paraíso, mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem
e do mal. Porque em qualquer dia que comeres dele, morrerás de morte”. No primeiro caso,
Jung (1985) explica que o conhecimento produz uma espécie de hipnotismo, no qual o
indivíduo acredita ter descoberto a resposta para um mistério universal. No segundo, ao
comer do fruto da árvore do conhecimento e sofrer uma ampliação de sua consciência, o
indivíduo eleva-se acima do nível humano, afastando–o dos outros. Segundo Jung (1985), o
sentimento de solidão provocado por esse afastamento seria uma espécie de vingança dos
deuses.
De acordo com Jung (1964, p.356), a inflação é “uma expansão da personalidade além
de seus próprios limites, pela identificação com um arquétipo ou com a persona”. Jung
(1985) conta em sua autobiografia que em seu período de obscuridade, onde estava
inteiramente dedicado ao contato (“confronto”) com imagens do seu inconsciente, sentia a
necessidade de encontrar elementos que o “trouxessem” ao mundo real. Jung (1985, p. 168)
afirma:
“Naturalmente, nessa época em que trabalhava em torno das
minhas fantasias, senti a necessidade de um ‘apoio neste mundo’:
ele me foi dado por minha família e pelo trabalho. Era vital e
necessário levar uma vida ordenada e racional com contrapeso à
singularidade do meu mundo interior. A família e a profissão
permaneceram para mim uma base à qual eu sempre podia
regressar, provando que eu era realmente um homem existente e
banal”.
De forma semelhante, o Budismo Tibetano também adverte sobre os perigos com a
identificação desordenada com os símbolos arquetípicos. De um modo geral, a prática da
sadhana (2) à uma divindade possui as seguintes fases: a) Estágio preliminar: toma-se
refúgio nas Três Jóias (3) e desenvolve-se a bodhichitta (4); b) Estágio de geração: constróise mentalmente a imagem da divindade e mantras (5) são recitados.
Para o Budismo, as divindades são arquétipos que simbolizam aspectos positivos e
negativos de nossa personalidade. “Nenhuma dessas forças, destas energias se perde: cada
uma delas é guarnecida e transformada em conscientização pura, essência espiritual pura”
(Moacanin, 1999, p.86).
Segundo Moacanin (1999, p. 67), através da visualização, a consciência comum é
colocada de lado e substituída pela consciência mais elevada da divindade, isto é, “o ego do
indivíduo foi sacrificado pelo Self”.
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A prática é finalizada pelo Estágio de perfeição, no qual a visualização é desfeita e
medita-se sobre a vacuidade, que representa o último nível da realidade.
Diante do que foi exposto, a individuação não é sinônimo de isolamento ou abdicação
das responsabilidades sociais e éticas. Jung (1966, p. 108) afirma que “ela leva ao
nascimento de uma consciência da comunidade humana, justamente porque nos torna
cônscios do inconsciente, que une e é comum a toda a humanidade”.
Para que esse processo não se dê de forma unilateral, ele deve implicar em uma
mudança em nossa percepção do Outro e consequentemente, em nosso modo de agir. O
Auto cuidado na individuação é acompanhado pelo Cuidar do Outro e ambos são
subsidiados pela ética.
Etimologicamente, ética vem de éthos que significa morada, local onde se vive, ou
ainda, um conjunto de valores e princípios, um jeito de ser e de se comportar. De acordo com
Tenzin Gyatso (2000), o que determina a natureza ética de uma ação é o que em tibetano é
chamado de “Kun Long” (“Kun”- “completamente”; “Long”- “das profundezas”). Kun Long é o
princípio que determina, motiva e impulsiona uma ação, ou seja, a intencionalidade. Esse
princípio equivale ao estado geral da mente e do coração. Já o ato ético “é aquele que não
prejudica a experiência ou expectativa de felicidade de outras pessoas” (p.58). Se num
determinado
momento,
nosso
Kun
Long
estiver
perturbado,
poderemos
ignorar
completamente os efeitos negativos que nossas ações podem ter em outros indivíduos.
Tenzin Gyatso (2000, p. 44) conclui que “(...) à medida que conseguimos transformar nossos
corações e mentes cultivando qualidades espirituais, passamos a ser mais capazes de lidar
com as adversidades e aumentamos as probabilidades de nossas ações serem eticamente
sadias”.
Isso quer dizer que o Cuidado Interior (Auto Cuidado) possui uma ressonância em
nossas relações, o que no Budismo é chamado de “shen–pen kyi–sem” (em tibetano), “a
idéia de ser de alguma ajuda para os outros”. Para Boff (1999) é através do cuidado que
podemos nos ligar efetivamente ao que há de essencial no mundo e nos responsabilizarmos
por ele. Quanto mais nos conhecemos, mais responsáveis somos por aqueles que nos
cercam.
Segundo Moacanin (1999, p.114), “quanto mais conscientes nos tornamos de nossos
impulsos inconscientes e agirmos de forma adequada, tanto menos nossas relações com o
mundo ficam contaminadas pelas projeções, e tanto mais abertos estaremos para entrar em
comunicação e, inclusive em comunhão com ele”.
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O resgate de nosso modo-de-ser-cuidado é o resgate daquilo que é mais essencial à
humanidade. É a tentativa de ouvir e fazer emergir nosso princípio feminino (anima) que
envolve o sentir, o amar e conciliá-lo com nosso princípio masculino (animus), racional.
A adoção desse modo–de–ser baseado na ética possui inúmeras dimensões e
ressonâncias, das quais abordaremos um delas, que considero fundamental: a compaixão.
O ideal da escola Mahayana (6) do Budismo é atingir o estado de Bodhisattva (7), ou
seja, “aquele que fez o voto de permanecer no mundo até que todos os outros seres tenham
se libertado do sofrimento” (Fadiman & Frager, 1979, p.291), sendo a compaixão sua
principal virtude. Esse ideal é um dos aspectos do caminho da Iluminação, chamado de
"Motivação Iluminada de Bodhicitta" (Yeshe & Zopa, 1993).
Com–paixão (“sofrimento–com”) é o resultado do sentir verdadeiramente como seu, o
sofrimento dos outros. Boff (1999) alerta para o fato de que ela não é o mesmo que piedade
ou algo passivo. Pelo contrário, é a capacidade de compartilhar a paixão (“pathos”–
sofrimento) do Outro e com o Outro, saindo do campo puramente individual para adentrar no
universo do Outro.
Desse modo, assume o sentido de empatia (“empathés”–“em páscho”– sentir–em;
sentir–desde–dentro) que é o primeiro nível da atitude compassiva (nying je, em tibetano).
Segundo Tenzin Gyatso (2000, p.138), o desenvolvimento da empatia pode chegar ao
ponto em que ela torna-se “incondicional, indiscriminada e de alcance universal”.
“(...) quando estimulamos nossa sensibilidade para o sofrimento dos
outros através de uma abertura pessoal deliberada, acredita-se que
sejamos capazes de ampliar gradualmente essa compaixão. Ela
atinge um ponto em que somos tão tocados pelo sofrimento alheio
mesmo em sua forma mais sutil, que se desenvolve em nós uma
irresistível noção de responsabilidade por todos os semelhantes. Isto
faz com que a pessoa compassiva se dedique inteiramente a ajudas
os outros a superarem tanto o sofrimento quanto as causas do
sofrimento” (Tenzin Gyatso, 2000, p.139).
Essa dimensão é chamada, em tibetano de “nying je chenmo”, o que significa, “grande
compaixão”. O seu desenvolvimento, no entanto, não é um pré–requisito para a conduta
ética, mas pode ser mantida como um referencial que promove um impacto em nosso
movimento interno. Seria “um lembrete constante contra o egoísmo e a parcialidade” (Tenzin
Gyatso, 2000, p.139).
7
A compaixão é uma constante fonte de energia que alimenta o indivíduo e o impulsiona
a “engajar-se em tarefas concretas no mundo histórico” (Habito, 1995, p.33).
Em japonês, o termo “compaixão” é “jihi”, que corresponde à tradução dos caracteres
chineses de dois termos hindus: “maitri”: “doação de prazer” e “karuna”: “eliminção do
sofrimento”. Por isso, muitas vezes, é utilizado o termo “bakku–yõraku”. “Bakku” é “remover a
causa fundamental do sofrimento” que inicia, como já dito, pela empatia (“doku”). Já “yõraku”
é “dar prazer”, envolvendo a alegria de viver” ou “êxtase de vida”. Partindo desses
elucidações, vemos que o caráter ativo da compaixão passa da empatia (“doku”) para o
auxílio a remoção do sofrimento (“bakku”) (Toynbee & Ikeda, 1976).
Se pensarmos na prática da psicoterapia, vemos que consiste num constante exercício
do cuidar e, consequentemente, de compaixão. Segundo Brandon, (1976, p. 49) “a
compaixão é a essência da ajuda”.
Em princípio, a escolha de tornar-se um psicoterapeuta é uma escolha de lidar com o
sofrimento e também com as mudanças, as transformações e retrocessos, do desempenho
do modo–de–ser–cuidado. Tal escolha supõe, como na prática religiosa, em sair de si
mesmo para ir ao encontro do Outro, a fim de auxiliá-lo. E neste encontro, terapeuta e cliente
saem mutuamente afetados, positiva ou negativamente.
Sobre o terapeuta, Leloup (1999, p 25) afirma:
“O terapeuta é um ser que sabe orar pela saúde do outro, isto é,
chamar sobre ele a presença e a energia do Vivente, pois só ele
pode curar toda doença e com o qual ele coopera. O terapeuta não
cura, ele cuida, é o Vivente que trata e que cura. O terapeuta está lá
apenas para por o doente nas melhores condições possíveis para
que o Vivente atue e venha a cura”.
Dentro da perspectiva junguiana, podemos chamar de Self o que Leloup (1999) atribuiu
o nome de “Vivente”. Cabe ao terapeuta auxiliar o paciente em seu contato com essa
dimensão de seu psiquismo. No setting psicoterapêutico, o cliente pode aprender como se
auto cuidar. No início, o terapeuta atua como um “ego auxiliar” e aos poucos, o paciente
aprende a seguir sozinho.
Jung (1963) observou que o ponto central da psicoterapia é a sensibilidade do
terapeuta à direção natural de desenvolvimento, indicada pelo paciente. Por esse motivo,
enfatizou que não seguia sistematicamente um método específico para análise: “cada caso
exige uma terapia diferente” (p. 120). Porém, não devemos pensar que Jung considerava
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que a aprendizagem de um método psicoterapêutico fosse secundária. O método
psicoterapêutico é uma referência fundamental, mas a prática da psicoterapia é muito mais
que a mera aplicação de um método e técnica decorados.
Isso coloca Jung em uma sutil correlação com a psicologia humanista e
fenomenológica, que preza, dentre outros princípios, o encontro, o diálogo autêntico, os
significados sentidos e a observância ao que ocorre no momento presente. Este aspecto fica
um pouco mais claro na seguinte frase de Jung (1963, p. 121): “O fato decisivo é que
enquanto ser humano, encontro-me diante de outro ser humano. A análise é um diálogo que
tem necessidade de dois interlocutores. O analista e o doente se encontram face a face,
olhos nos olhos. O médico tem alguma coisa a dizer, mas o doente também”.
Contudo, essa “fala” não é meramente um “falar–voltado–ao–outro”, mas sim um falar–
ao–outro, isto é, uma fala autêntica, onde ambos os interlocutores estão constituídos e
confirmados no encontro (Amatuzzi, 1989). Aqui, confirmar o Outro no setting terapêutico é
crer em sua possibilidade de crescimento e acompanhá-lo neste árduo caminho. Para
Holanda (1998, p. 98), prática da psicoterapia implica numa “extrema sensibilidade momento
a momento, até os significados sentidos e mutáveis que fluem na outra pessoa. Em um
sentido poético, é habitar temporariamente a vida do outro delicadamente, sem causar-lhe
prejuízos”.
Diante do exposto, vimos que o processo de individuação eqüivale ao resgate de nossa
característica ontológica e arquetípica de Cuidado, expresso em duas dimensões:
a) Autocuidado: manifesto no Cuidado com nosso o corpo, mente e espírito; no escutar
os sinais advindos do Self, sendo fiel a eles (ético); no cultivo às qualidades e
valores universais e aprendendo a reconhecer e lidar com nossa sombra. Como
lembra Gorresio (1997, p.116): “o confronto com nossa escuridão, a Sombra, tratase sem dúvida de uma luta moral onde temos que enfrentar nossos próprios
monstros, relembrando-os e, por isso, arrependendo-nos das faltas cometidas e
relação aos outros, mas, sobre maneira em relação a nós mesmos”:
b) Cuidar do outro: manifesto pela capacidade de estar em sintonia, acolher e
respeitar; pela conduta ética movida pelo sentimento de compaixão e senso de
união.
Agradeço ao Prof. Dr. Konrad Lindmeier pelo auxílio na elaboração da versão inicial deste
artigo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BOFF, L. Saber Cuidar. Petrópolis: Vozes, 1999
FADIMAN, J. & FRAGER, R. Zen – Budismo. In: FADIMAN, J. & FRAGER, R. Teorias da
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FERNANDES, F.; LUFT, C. P. & GUIMARÃES, F. M. 34ª ed. Dicionário Brasileiro Globo.
São Paulo: Globo, 1993
GORRESIO, Z. M. P. A ética da individuação: um estudo sobre a ética do ponto de vista da
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HABITO, R. L. F. O Zen e a existência humana. Concilium, 252, p. 189 – 196, 1995/ 2
HOLANDA, A. F. Diálogo e psicoterapia: correlações entre Carl Rogers e Martin Buber. São
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JUNG, C. G. Memórias, Sonhos e Reflexões. 12ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1963
JUNG, C. G. A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 1966
JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985
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MOACANIN, R. A psicologia de Jung e o Budismo tibetano: caminhos ocidentais e orientais
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TENZIN GYATSO (Dalai Lama). Uma ética para o novo milênio. 5ª ed. Rio de Janeiro:
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YESHE, Lama & ZOPA Rinponche. A energia da sabedoria: ensinamentos do budismo. 9ª
ed. São Paulo: Pensamento, 1993
NOTAS:
1. Iluminação: Atingir o Estado de Buda. A transcendência da dualidade; erradicação dos
estados mentais negativos e acumulação das qualidades positivas (MOACANIN, 1999).
2. Sadhana: termos sãnscrito derivado de sadh (chegar ao objetivo) e que pode ser traduzido
como “meio de se realizar”. São textos litúrgicos utilizados para a prática budista.
3. As Três Jóias representam os três princípios de refúgio budista: a sangha (comunidade
budista). O dharma (Lei, ensinamento, doutrina) e o Buda.
4. Bodhichitta: “atitude ou motivação iluminada que os Bodhisattvas possuem; desejo de
tornar-se um Buda, a fim de ajudar todos os seres” (MOACANIN, 1999, p. 134).
5. Os Mantras são palavras ou sílabas associadas à uma divindade ou bodhisattva e que são
entoados para a evocação de sua energia.
6. Existe no Budismo três escolas principais (Hinayana, Mahayana e Vajrayana) com suas
respectivas subdivisões.
7. Têm-se definido o termo Bodhisattva como “ser herói, guerreiro espiritual” ou “coração
iluminado e valente”.
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