Plano de Ensino DISCIPLINA: Teoria das Ciências Humanas III PRÉ-REQUISITOS: HF390 PROFESSOR: Marco Antonio Valentim CÓDIGO: HF392 SEMESTRE: 1 / 2015 C.H. TOTAL: 60 C.H. SEMANAL: 04 EMENTA (parte permanente) Discussões mais aprofundadas concernentes à teoria das Ciências Humanas (Historicismo de Dilthey, Manheim e a Sociologia do Conhecimento, Crítica da Cultura em abordagens interdisciplinares). PROGRAMA (parte variável) Título: Metafísica Guarani "O grito do pássaro kui-kui / Me assusta infalivelmente / Eu matei o rapaz / Que foi simplório / Eu percebo minhas pegadas / Sobre todos os caminhos humanos" (“A canção do Jaguar”, poema Chiripá). Resumo: Pretende-se realizar um estudo introdutório daquilo que Pierre Clastres, no célebre ensaio “Do Um sem o múltiplo”, chamou de “metafísica guarani”, a propósito das palavras proferidas por Soria, “velho xamã guarani, no fundo de uma floresta do Paraguai”: “As coisas em sua totalidade são uma: e para nós que não desejamos isso, elas são más”. Segundo Clastres, Soria propõe com isso uma “articulação inesperada” entre unidade e incompletude, que faz “tremer até à vertigem a mais longínqua aurora do pensamento ocidental”, por referir um contexto ontológico em que “nada do que existe pode ser dito Um”, ou ainda, onde “um homem é um homem, sem dúvida, mas também o outro do homem, um deus”: a “Terra sem Mal” como “região do não-Um”. Essa sentença guarani encerra várias tensões. Contrastada à tradição que se inicia com a metafísica grega, ela põe o problema de como é possível “uma existência desdobrada sobre um horizonte liberto do Um”, ou seja, transcendência sem unidade focal, completude por contradição ou duplicidade. De outro lado, porém, comparada à inflexão amazônica do “perspectivismo cosmológico ameríndio” (Viveiros de Castro), a concepção expressa pela sentença parece implicar uma verticalização hierárquica, contrária a um regime de relações horizontais e recíprocas entre humanos e extrahumanos. Se a humanidade é uma condição ontologicamente instável e provisória, qual será, na metafísica guarani, o seu estatuto cosmológico frente à divindidade e à animalidade? Se “outro do homem” é um deus, ele o será por exclusão do animal enquanto sub-humano? A busca da Terra sem Mal, será ela um processo de “desjaguarificação” (Fausto), oposto a um “devir-jaguar” como seu reverso? Será o Jaguar a razão do mal da terra? Qual é, afinal, o lugar da predação na cosmologia guarani? A partir disso, como situar a metafísica guarani diante da “doutrina platônica da verdade” (Heidegger) e do perspectivismo ameríndio enquanto “cosmologia contra o Estado” (Viveiros de Castro)? Será pertinente a obscura indicação de Clastres sobre a proximidade entre a ideia heideggeriana da linguagem como “morada [propriamente humana] do ser” e a “fala sagrada” dos Guarani? Ou, pelo contrário, a ideia da continuidade virtual entre os humanos e seus outros, sejam divinos e/ou animais, implica uma cosmopolítica radicalmente divergente do (teo-)antropocentrismo característico da metafísica ocidental? Com o desenvolvimento de tais indagações visase preparar a questão a respeito de como essa possível divergência de mundo se relaciona com o problema político da territorialidade, proeminente no pensamento guarani. Pode-se entender a busca da Terra sem Mal como fuga resistente à “terra ocidental que os gregos chamaram de Ser” (Deleuze & Guattari)? Qual é, segundo a “cataclismologia guarani” (Nimuendaju, Pierri), o sentido metafísico da expropriação territorial causada pela ação predatória dos Brancos? Ao longo do estudo, recorrer-se-á a um triplo procedimento metodológico: (i) estudo de interpretações clássicas (Nimuendaju, Schaden, Pierre e Helene Clastres, Viveiros de Castro) e recentes (Chamorro, Fausto, Godoy & Carid, Pierri); (ii) comparação com referenciais filosóficos (Parmênides, Platão, Aristóteles, Heidegger); (iii) interpretação de trechos selecionados de Ayvu Rapyta (Cadogan, Clastres, Jecupé, Baptista). PROCEDIMENTOS DIDÁTICOS Aulas expositivas, com leitura, interpretação e discussão de textos selecionados. FORMAS DE AVALIAÇÃO Trabalho monográfico sobre o tema do curso, a ser apresentado no final do semestre. BIBLIOGRAFIA MÍNIMA Clastres, P. “Do Um sem o múltiplo”. In: P. Clastres, A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. Tradução de T. Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2012. Nimuendaju, C. Apontamentos sobre os Guarani. Tellus, 24: 311-360, 2013. _____. As lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani. Tradução de C. Emmerich e E. Viveiros de Castro. São Paulo: HUCITEC/USP, 1987. _____. Nimongaraí. Mana, 7(2): 143-149, 2001. Schaden, E. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: EDUSP, 1974. _____. A mitologia heróica de tribos indígenas do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1989. Clastres, H. Terra sem mal. Tradução de R. J. Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1978. Viveiros de Castro, E. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Zahar/ANPOCS, 1986. Chamorro, G. La buena palavra: experiências y reflexiones religiosas de los grupos guaraníes. Revista de Indias, LXIV(230): 117-140, 2004. Fausto, C. Se Deus fosse jaguar: canibalismo e cristianismo entre os Guarani (séculos XVI-XX). Mana, 11(2): 385-418, 2005. Godoy, G. & Carid, M. A diferença que faz a diferença: os originais e as cópias, o caso guarani-mbya. 2013. [No prelo.] Pierri, D. C. O perecível e o imperecível: lógica do sensível e corporalidade no pensamento guarani-mbya. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2013a. _____. Como acabará essa terra? Reflexões sobre a cataclismologia Guarani-Mbya, à luz da obra de Nimuendajú. Tellus, 24: 159-188, 2013b. _____. O dono da figueira e a origem de Jesus: uma crítica xamânica ao cristianismo. Revista de Antropologia, 57(1): 265-301, 2014. Platão. “Timeu”, “Crítias”. In: Platão, Timeu - Crítias - O Segundo Alcibíades - Hípias Menor. Tradução de C. A. Nunes. Belém: EDUFPA, 2001. Heidegger, M. “A teoria platônica da verdade”. Tradução de E. Stein. In: M. Heidegger, Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008. Viveiros de Castro, E. “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. In: E. Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem, e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002. Lima, T. S. Para uma cartografia do poder e da diferença nas cosmopolíticas ameríndias. Revista de Antropologia, 54(2): 601-646, 2011. Cadogan, L. Ayvu Rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1959. Clastres, P. A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios Guarani. Tradução de N. A. Bonatti. Campinas: Papirus, 1990. Jecupé, K. W. Tupã Tenondé: a criação do universo, da terra e do homem segundo a tradição oral Guarani. São Paulo: Peirópolis, 2001. Baptista, J. V. “Três cantos sagrados dos Mbyá-Guarani do Guairá”. In: J. V. Baptista, Roça barroca. São Paulo: Cosac Naify, 2011. BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR Aristóteles. Metafísica. Edición trilingüe por V. G. Yebra. Madrid: Gredos, 1998. Beaufret, J. “O poema de Parmênides”. Tradução de H. L. de Barros e M. A. L. de Barros. In: J. C. de Souza (org.) Os pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1973. Benites, T. Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (Rezando e lutando): o tekoha. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2014. Chamorro, G. Terra madura - Yvy araguyje: fundamento da palavra guarani. Dourados: Editora UFGD, 2008. Clastres, P. Crônica dos índios guayaki: o que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai. Tradução de T. S. Lima e J. Caiafa. São Paulo: Editora 34, 1995. _____. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. Tradução de T. Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2012. Cornford, F. M. P Hackett, 1997. ’ C g : Timaeus of Plato. Indianapolis, Cambridge: Danowski, D. & Viveiros de Castro, E. Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie/Instituto Socioambiental, 2014. Deleuze, G. & Guattari, F. O que é a filosofia? Tradução de B. Prado Jr. e A. A. Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. Ladeira, M. I. Yvy marãey: renovar o eterno. Suplemento Antropológico, 34(2): 81-100, 1999. Lévi-Strauss, C. História de Lince. Tradução de B. Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Loraux, N. 1987. “Notes sobre l’un, le deux et le multiple”. In: M. Abensour (dir.), L’ g :P C g politique. Paris: Éditions du Seuil, 1987. Mello, F. C. de. - Entre deuses e animais: xamanismo, C . Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: 2006. Moosburger, L. de B. “ g ” H gg : , comentário e notas. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2007. Oliveira, D. de. : g , g -C C . Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: 2011. Pimental, S. K. Kuarahy e Jasy em busca da origem: um olhar sobre o mito dos gêmeos entre os Guarani-Kaiowa e as relações de contato. Comunicação apresentada no 26o. Encontro da ABA. Porto Seguro: 2008. [Manuscrito.] Pissolato, E. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: Editora UNESP/ISA; Rio de de Janeiro: NuTI, 2007. Platão. “Sofista”. Tradução de J. Paleikat e J. C. Costa. In: Platão, Diálogos: O Banquete - Fédon - Sofista - Político. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1972. Silva, V. H. O. Ressonâncias de Ñanderu: um estudo sobre três diferentes versões de Ayvu Rapyta. Monografia de conclusão de curso. Curso de Graduação em Ciências Sociais, Departamento de Antropologia, da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2013. Sztutman, R. O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens. São Paulo: EDUSP, FAPESP, 2011. Vernant, J.-P. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. Tradução de H. Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. _____. Mito e religião na Grécia Antiga. Tradução de J. A. D’Ávila Melo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Viveiros de Castro, E. A inconstância da alma selvagem, e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002. _____. Métaphysiques cannibales. Traduit par O. Bonilla. Paris: Presses Universitaires de France, 2009.