KIERKEGAARD

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KIERKEGAARD: PENSADOR DA EXISTÊNCIA
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Dr. Jorge Miranda de Almeida
Resumo:O objetivo desse artigo é demonstrar a originalidade da crítica estabelecida por
Kierkegaard à filosofia em sua forma tradicional, lógica e metafísica. O pensador dinamarquês
estabelece como condição de validade da existência, desenvolver estratégias para que o existente
e a existência sejam constituídos como obras de arte, em sua unicidade e singularidade. O
concretizar da síntese existencial é ao mesmo tempo o estabelecimento da indissociabilidade
entre ética e estética.
Palavras chave: existência, ética, filosofia primeira.
K
ierkegaard é um enigma-gåde. Seu pensamento é extremamente enigmático-
gådefuld, e contraditório-modstridende, como ele mesmo afirma: “por toda a vida me
encontrarei
sempre
(KIERKEGAARD,1980,
na
contradição,
p.132).
A
porque
contradição
a
vida
mesma
existencial
e
é
o
contradição”
apresentar-se
enigmaticamente, através da pseudonimia, constituem uma estratégia fundamental e, ao
mesmo tempo, intencional de Kierkegaard em demonstrar a impotência da Filosofia
especulativa diante da realidade concreta, pois “a especulação não é uma comunicação
de existência: nisto consiste o seu erro, enquanto pretende explicar a existência”
(KIERKEGAARD, 1993, p.577).
O enigma se constitui no jogo de pseudônimos, utilizado como retórica existencial na
comunicação direta - indireta, com o objetivo explícito de demonstrar os limites da
Filosofia especulativa, em sua forma padrão de comunicação de saber. É nesse contexto
que Wittgenstein desenvolveu na obra Tractatus Logico-philosophicus os limites da
linguagem entre o que é possível demonstrar e o que é do alcance do indizível.
Kierkegaard, antecipando Sartre, Levinas, Wittgenstein pretende demarcar a insuficiência
da pretensão filosófica em decifrar o τέλος último da existência e no Diário realiza a
distinção entre a Filosofia sistemática e a Filosofia existencial com a ironia que deve
permear toda a reflexão existencial.
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Doutor em Filosofia pela Pontifícia Università Gregoriana, Roma. Prof. Adjunto da UESB-BA, autor e coautor dos livros Kierkegaard pela editora Jorge Zahar (2007) e Kierkegaard no Brasil, pela editora Idéia,
Sergipe (2007). Presidente da SOBRESKI – Sociedade Brasileira de Estudos Kierkegaardianos nos anos
2006-2007.
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Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007
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O fato que a filosofia deva começar com um pressuposto não deve ser
considerado um defeito mas uma “benção”; por isso, também este “na
sich” permanece uma maldição, do qual ela não pode se liberar. É esta
discórdia entre a consciência, como forma vazia, e a imaginação retida
do objeto fugaz, que tem o seu correspondente no problema da liberdade
(KIERKEGAARD, 1980, 18).
Se a Filosofia começa com a dúvida, o começo é sempre um pressuposto e não implica o
engajamento radical do indivíduo singular, de forma que a reduplicação entre o saber e o
agir não ocorra, mas permaneça no campo da conceitualização. Pensamos que toda a
produção kierkegaardiana está contida enigmaticamente nesse enunciado. Em primeiro
lugar, demonstra que a filosofia permanece no campo do puro conceito, das proposições
e probabilidades e não se concretiza em uma situação e, portanto, é incapaz de uma
ética verdadeira, porque não existe ética separada da realidade de fato.
Em segundo lugar, porque através do método filosófico, a reflexão não se contextualiza e
no campo do puro pensar não existem os conflitos e contradições reais entre
necessidade e liberdade, finito e infinito, temporal e eterno. O objetivo é claro: “como
pode a ilusão ser dissipada?” (KIERKEGAARD, 1993, p.43). A Filosofia, quando se limita
a trabalhar com categorias do pensamento, não encontra dificuldade e elas podem ser
mediatizadas, mas, enquanto fatos, existentes e existências, o conceito é impotente
perante o contemporaneizar dessas realidades, exatamente, porque são realidades
contraditórias que não se deixam apreender em um conceito, mas permitem a
apropriação em uma relação.
Em terceiro lugar, porque a Filosofia com sua pretensão de saber universal não
concretizou a vida digna de ser vivida, a vida digna do homem. Simplesmente, porque, no
universal, o indivíduo é dissolvido, despersonalizado de sua estrutura íntima. Isto é, não
existe uma responsabilidade pessoal, o que é o mesmo que afirmar que não existe uma
existência autêntica. Nesse sentido, a uma Filosofia do conceito, Kierkegaard propõe
uma Filosofia da situação-tensionada; a uma Filosofia da objetividade pura e da redução
da diferença à identidade do mesmo, opõe uma Filosofia da subjetividade responsável e
da alteridade do primeiro Tu, como é desenvolvido na primeira série de Obras do Amor,
no item B, intitulado Tu deves amar o próximo.
Dessa forma, a uma Filosofia conclusiva e sistemática, é proposta uma filosofia da
descontinuidade – Afbrydelse- e da inconclusividade – Uvidenskabelig - em que a
coerência da reflexão não é comprovar a universalidade do conceito, mas reduplicá-lo
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existencial e coerentemente na própria existência. É no interior dessa conjuntura que se
estabelece a retomada da maiêutica socrática, como reduplicação, visando estabelecer
uma nova possibilidade de se fazer filosofia.
No Diário se encontra o núcleo da tese kierkegaardiana: “cada vida individual é
incomensurável para o conceito, porque a coisa suprema não se pode viver na qualidade
de filósofo. Onde se realiza esta incomensurabilidade? – Na ação –. O lugar em que
todos os homens se encontram é na ação” (KIERKEGAARD, 1980, p. 117). O filósofo
dinamarquês entende por ação, exatamente o movimento do concretizar o dom e a
tarefa, o que é de domínio da realidade histórica e, portanto, ética, e não metafísica ou
ontológica.
Kierkegaard distingue a Ética da Ontologia, ao separar a realidade situacionada, da qual
fazem parte todas as contradições e mistérios que constituem o ser humano, da realidade
do conceito que se satisfaz com fórmulas e enunciados da razão, como é expresso:
as diversas ciências se deveriam ordenar, segundo o modo em que se
acentua o ser e como a relação com o ser dá a recíproca vantagem.
Ontologia e Matemática:a certeza é absoluta – aqui o pensamento e o
ser se identificam, mas para um encontro estas ciências são hipóteses.
Ciência do existencial (KIERKEGAARD, 1980, p. 117).
O argumento utilizado é nitidamente contra a pretensão de Hegel em querer explicar a
2
existência, reduzindo-a à existência de conceitos . A existência não pode ser explicada
de fora da própria existência e o erro fundamental do sistema é abstrair da existência a
própria existência, ou reduzindo a existência a uma existência de passado, eliminando a
contemporaneidade e os dramas existências. É por isto que Kierkegaard argumenta que
toda a sua produção tem como objetivo retirar o indivíduo da multidão.
Segundo Kierkegaard: “a especulação abstrai da existência: para ela o ser se torna o ser
existido (o passado), e a existência um momento evanescente e dissolvido no puro ser do
eterno. A especulação não pode, como abstração, se tornar contemporânea da existência
e não pode conceber a existência como existência” (KIERKEGAARD, 1993, p.577). A
conclusividade do pensamento objetivo é incapaz de apreender o atualizar-se do eterno
no tempo, é impotente em abranger o dinamismo da síntese eterno e temporal,
2
Para Hegel a existência imediata (Dasein) do puro aparecer (Schein) se dissipa na essência (Wesen), a
qual por sua vez se torna o fundamento (Grund) da existência (Existentz) como aparição (Erscheinung) da
essência mesma. (nota de Kierkegaard, à Wissenschaft der Logik, II. Buch, I. Abschn., Kap.1).
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eternidade e temporalidade, liberdade absoluta e liberdade histórica, no ato em que ela
está se instituindo.
A Filosofia, enquanto objetividade pura, se desviou de sua origem e se perdeu no
emaranhado de conceitos que construiu a partir de uma premissa falsa: “o puro homem
não existe”. A crítica de Kierkegaard é contundente: “a linguagem da abstração não deixa
verdadeiramente transparecer a dificuldade do existente na existência” (KIERKEGAARD,
1993, p. 425); e ainda: “como tudo aquilo que diz respeito aos problemas da existência, o
pensamento abstrato faz uma incursão na esfera do cômico, de forma que o considerado
pensamento puro em geral é uma curiosidade psicológica que existe só no meio da
fantasia” (KIERKEGAARD, 1993, 425).
A principal diferença entre o pensador existencial e o filósofo sistemático consiste em que
o primeiro não define do externo, está mergulhado até a medula nos dramas e conflitos
existenciais, porque ele é ciente de si mesmo “como um determinado indivíduo, com
determinados dotes, inclinações, impulsos, paixões, influenciado de determinado
ambiente, produto de um determinado mundo exterior” (KIERKEGAARD, 2001, 141).
Enquanto o pensador sistemático é completamente indiferente a sua própria existência e
3
ao processo histórico-cultural, desde que realize o sistema .
A tarefa do pensador existencial é evitar a pretensão de identificar a inteligibilidade com a
especulação pura, a racionalidade com o racionalismo que reduz todos os problemas
existenciais a problemas de conceitos, esquivando-se do essencial. Isto é: que o
pensamento possa se traduzir em qualidade de existência, chave para a possibilidade de
identificar a ética como filosofia primeira e que, para Kierkegaard, é definido a partir da
categoria da Reduplicação.
O pensador existencial insere a razão como faculdade fundamental no processo de
fundamentar o sentido da existência, mas não como única faculdade, desconsiderando
outras faculdades, como a paixão, a vontade, o amor, a abnegação, que contribuem
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Kierkegaard no Diário, usa a seguinte metáfora contra o filósofo sistemático: “certo pensador eleva uma
construção imensa, um sistema, um sistema universal que abraça toda a existência e história do mundo, etc.,
- mas se alguém atentar na sua vida privada, descobre com pasmo este enorme ridículo: que ele próprio não
habita esse vasto palácio de elevadas abóbadas, mas um barracão lateral, uma pocilga, na melhor das
hipóteses o cacifo do porteiro! E zanga-se se alguém ousa uma palavra para lhe fazer mostrar essa
contradição. Pois que lhe importa viver no erro, logo que construa o seu sistema...com a ajuda desse erro”.
Consultar também a obra A Doença Mortal. São Paulo: Abril Cultural,1974, p. 359
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igualmente para a construção do sentido último. É imprescindível explicitar de início esta
constatação. Para o pensador existencial, a existência não pode ser analisada nos
moldes científicos. Ela não é uma ciência, é uma história, que envolve personalidades,
relações e contradições paradoxais, que não se esgota em definições e demonstrações
lógicas.
É importante estabelecer a diferença fundamental entre o pensador subjetivo e o
pensador objetivo, para compreender a dinâmica da Filosofia da Existência e a força da
crítica à Filosofia de sistema. Segundo Kierkegaard:
a distinção entre o pensador objetivo é indiferente com respeito ao
sujeito pensante e à sua existência, o pensador subjetivo, como
existente essencialmente interessado ao seu próprio pensamento, é
existente nele. Portanto, o seu pensamento tem uma outra espécie de
reflexão, isto é, aquela da interioridade, do domínio, com que ele
pertence ao sujeito pensante e a nenhum outro. Enquanto o pensador
objetivo coloca tudo em resultado, e estimula a inteira humanidade a
trapacear copiando resultados e fatos, o pensador subjetivo, põe tudo
em devir e omite o resultado, em parte, propriamente porque esta é a
tarefa do pensador existencial, porque possui o caminho, em parte,
porque como existente ele é sempre em devir. A reflexão da
interioridade é a reflexão-dupla do pensar subjetivo. Pensando o
pensador pensa o universal; mas como existente neste pensamento,
ele o apropria em sua interioridade e existe (KIERKEGAARD, 1993,
p.226).
Para diferenciar o pensador existencial do filósofo objetivo, o pensador dinamarquês
distingue entre o que –Hvad-“é” e o como – hvorledes-
“é”, utilizando a seguinte
metáfora:
se alguém que vive em meio ao cristianismo entra na casa do verdadeiro
Deus, com a verdadeira idéia de Deus, e se coloca a pregar , mas prega
em não-verdade; e se um vive em uma terra idólatra, mas prega com
toda a paixão da infinitude,se bem que os seus olhos se põem sobre o
simulacro de um ídolo: onde tem mais verdade? Um prega Deus em
verdade, embora, adore um ídolo, o outro prega em não-verdade, o
verdadeiro Deus e portanto, adora, em verdade um ídolo
(KIERKEGAARD, 1993, p. 367).
O que se pretende esclarecer com a metáfora é a diferença entre o pensamento objetivo
que reflete apenas sobre o que se comunica, ou seja, “se Deus é uma maçã ou uma
pêra, pouca diferença faz, contanto que se fale que a pêra é Deus” (KIERKEGAARD,
1980, p.16). O que é determinante para o pensador existencial é ter plena consciência
que ele não pode determinar Deus, ou o que venha a ser a realidade última, mas deve se
colocar em relação, de forma que a sua relação exprima em verdade a relação para com
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Deus e dessa forma Deus se deixe apropriar pelo existente no interior da própria
existência.
Kierkegaard, como Kant, também admite um imperativo: “certamente não nego que eu
admito ainda um imperativo do conhecimento e que por via de tal imperativo poderei agir
sobre a vida dos seres humanos” (KIERKKEGAARD, 1980, p. 46). No domínio do
conhecimento científico, a razão é absoluta, e o pensador não precisa tornar-se uma
equação matemática para ser coerente com o seu ofício, mas, no que diz respeito ao
saber existencial, é prerrogativa ética que o pensador exista coerentemente com o que
diz e no como diz, entre a forma e o conteúdo.
O pensador subjetivo permanece aberto ao Mistério, enquanto o pensador sistemático,
em sua pretensão de domesticar e decifrar o mistério, não fundamenta a verdade última,
mas hipotetiza
sobre a
verdade, absolutizando a hipótese e, dessa forma,
fundamentando uma possibilidade, sem, contudo, provar a veracidade da hipótese.
Nessa perspectiva é justificada a crítica de Kierkegaard quando denuncia que a verdade
do sistema é somente uma verdade de aproximação porque no que diz respeito ao
sentido último, ao Paradoxo Absoluto, a única certeza que a razão pode emitir é que “ela
deve compreender que não se pode compreender” (KIERKEGAARD, 1993, p. 376)
Em uma nota do Diário, é realizada a distinção entre compreender com a razão e
compreender com a razão inserida na existência:
o conceito de absurdo reside exatamente em compreender que não se
pode e não se deve compreender; é uma categoria negativa, mas
igualmente dialética, como qualquer princípio positivo. O absurdo, o
paradoxo, é construído de tal modo que a razão não pode sozinha
resolvê-lo e mostrar que não tem sentido. Não, ele é um sinal, um
enigma, um enigma de síntese, do qual a razão deve dizer: é
irredutível, incompreensível, mão não por isto, um não-sentido. (...) É
um erro fundamental crer que não existam conceitos negativos. Os
princípios mais elevados de todo pensar, ou seja, as provas deles, são
negativos. Os combatimentos são negativos. A razão humana tem
confins; é ali que estão os conceitos negativos. A razão absoluta é um
produto da fantasia e isto explica aquela fantástica falta de limite pelo
qual não exista algum conceito negativo, mas deve compreender tudo,
como a feiticeira da fábula que termina por alimentar-se com o próprio
estômago. (KIERKEGAARD, 1980)
O reconhecimento da importância da razão na caminhada do ser humano está presente
em toda a produção kierkegaardiana: “não é necessário pensar mal do paradoxo, porque
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o paradoxo é a paixão do pensamento e os pensadores privados do paradoxo são como
amantes sem paixão: medíocres companheiros de jogo” (KIERKEGAARD, 1993, p.219).
Afirmar que o paradoxo é a paixão mais alta da razão significa afirmar exatamente que a
razão deve dar conta de tudo aquilo que corresponde à existência enquanto finitude;
significa estabelecer, reconhecer a tensão existencial no máximo de sua força, porque só
quando ela está rigorosamente tesa é que se constrói a certeza militante, “que não se
pode atingir quando a luta se atenua, mas somente quando ela se torna mais forte”
(KIERKEGAARD, 1993, p. 381)
O sentido da existência humana não está em reconhecer uma finalidade última, não é
primeiramente admitir a existência de Deus, mas é, na lógica kierkegaardiana, tornar-se
morada do próprio Deus, é assumir a tarefa de ser o co-construtor e colaboradorMedarbejder do projeto de Deus, assumindo na própria carne a responsabilidade de
concretizar o projeto e, dessa forma, antecipar a plenitude dos tempos no agora
existencial.
Para Kierkegaard, é a reduplicação que permite a atualização do projeto de Deus. É pela
categoria da repetição, entendida no sentido de recuperação, que o projeto se torna
atual, e cada ser humano, tão essencialmente atual quanto Adão, tão necessariamente
desafiado quando Abraão, tão provocador e amado quanto Jó. É com a categoria da
reduplicação que a razão atinge a sua plenitude, ao exigir que o indivíduo se reduplique
coerentemente, entre o que é expresso conceitualmente e a realidade concreta em que
está inserido. Para o pensador existencial, é no interior dessa categoria que a éticasegunda pode ser fundamentada. É ela que norteia a relação intrínseca entre todas as
outras categorias existenciais, como a seriedade, a paixão essencial, a verdadesubjetiva, enquanto testemunho da verdade, a comunicação ética, a alteridade como
fundamento do direito, o edificante e o ato de edificar etc.
É com a categoria da reduplicação que o pensador existencial se diferencia do pensador
objetivo e conclusivo, porque a tarefa e a relação entre finito e infinito, temporal e eterno
e liberdade absoluta e a liberdade relativa não são dados prontos, não podem ser
expressos através de conceitos. A reduplicação impossibilita a conclusividade, a
sistematização entendida especulativamente, porque o ato de existir não se deixa
apreender especulativamente; o estádio seguinte não é o resultado puro e simples do
precedente e não se procede através de um encadeamento lógico; mas através da
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descontinuidade, de interrupções existenciais, porque a própria existência é plena de
conflitos e incertezas.
A escolha da reduplicação como eixo norteador nos permite confrontar o pensador
existencial Kierkegaard com o homem Kierkegaard e se sua principal tese estiver correta,
a saber, a reduplicação na vida entre aquilo que se sabe e o que se pratica, não teremos
alternativa a não ser investigar o universo de Kierkegaard a partir de dentro do próprio
Kierkegaard, sem, contudo, nos fundirmos em Kierkegaard, como pretendem alguns
estudiosos. Sua obra não está separada de suas entranhas, como ele mesmo
testemunha: “todo conhecimento em que o indivíduo esvaece de si mesmo, assim como
qualquer explanação fornecida por um conhecimento desta espécie é equívoco”
(KIERKEGAARD, 2000, p. 67)
A reduplicação possibilita uma outra compreensão da realidade do ser humano e
introduz, novamente, a tarefa da sabedoria como auto-domínio, sem cair nos domínios
esotéricos, mas no sentido existencial de seriedade, que significa um compromisso
intransferível e inalienável do existente, no interior da existência, ou como expressa
Kierkegaard: “desta forma o indivíduo singular tem a si mesmo como tarefa de modo que
ela consiste em organizar, formar, temperar, acender como um fogo, isolar como um
fogo, em suma, produzir uma simetria na alma, uma harmonia que é fruto das virtudes
pessoais” (KIERKEGAARD, 2001, p. 156). Somente com a maturidade existencial é
possível que o indivíduo esteja habilitado a desenvolver a tarefa por excelência que
compete a cada homem em sua singularidade, a tarefa de transformar a si mesmo no
indivíduo universal.
A reduplicação é a pedra angular da filosofia da existência e da Ética-segunda. Ela é
fundamentalmente a coerência entre o saber e o concretizar o saber; coerência entre o
discurso e a ação; coerência entre a teoria e a prática. Por isso, a Ética-segunda é um
constante exercício de sabedoria: o verdadeiro saber se concretiza em ação e esta em
prática de vida. É isto o que constatamos em Prática do Cristianismo, quando
Kierkegaard afirma: “existir no que se compreende, isto é, reduplicar” (KIERKEGAARD,
1961, p. 194). O conhecimento do o bem, da verdade, da justiça, da transparência, da lei,
da responsabilidade, do amor e da seriedade não significa que o indivíduo viva,
necessariamente, estes valores. Expressa somente que ele conhece a sua realidade.
Neste sentido, não se ultrapassa o dualismo entre a norma e ação, o mandamento e a
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prática, mas permanece prisioneiro da esquizofrenia entre a norma e a ação. A Éticasegunda supera esta dicotomia, porque internaliza na ação a exigência ética e neste ato
supera a diferença entre o enunciado e a exigência.
A exigência da Ética-segunda recupera a dimensão da responsabilidade e do
compromisso individual. Cada indivíduo singular é responsável pela concretização da
ética e pela construção de um mundo melhor. Kierkegaard no Diário, na Recensão
Literária: Duas Épocas e na polêmica Revista O Instante, ao demonstrar que o mundo
vive na ilusão e que quer ser enganado, está, ao mesmo tempo, denunciando uma
situação indigna e propondo uma outra possibilidade de existir autêntico, o que ocorreria
a partir da reduplicação que é sinônimo da Ética-segunda.
O decisivo é empenhar-se em ser ético. Porém, ser ético não é obedecer a normas e
princípios estereotipados de um código rígido imposto. É fazer com que cada existente,
em cada ato, se reduplique em uma ação ética. É assumir-se enquanto agente, porque,
“aquele que não compreende o infinito valor da ética, mesmo se esta exigência dissesse
respeito a ele somente em todo o mundo, este não compreende verdadeiramente a ética”
(KIERKEGAARD, 1993, p. 335). É preciso assumir a Ética-segunda com originalidade,
caso contrário, ela se tornará uma abstração, uma “viseira, uma máscara e será ensinada
somente aos seminaristas e sacristãos” (KIERKEGAARD, 1993, p. 335).
Estamos no interior da exigência e da existência ética. Quais são as condições e
fundamentos que guiarão a ação do indivíduo singular para que elas se tornem éticas?
Ou a Ética-segunda se torna sinônimo de transparência, coerência, autenticidade entre o
que se pensa e o que se executa, entre o que se crê e o que se vivencia, entre o que se
discursa e o que se pratica, entre a teoria e a prática, ou ela não conseguirá ter
ultrapassado a Ética-primeira e se tornará apenas mais uma teoria ética indiferente à
existência concreta do indivíduo e do gênero humano.
A Ética-segunda poderá concretizar o tão sonhado acordo entre Ética e Estética, ao
4
educar e desenvolver no indivíduo singular o cultivo pela interioridade que deve
4
Evidentemente se a existência é a concretização de um contínuo devir, que se traduz em ações de uma
liberdade histórica em meio a uma comunidade, a educação desempenha um papel extremamente relevante
na formação da personalidade, no cultivo do homem interior, na prática e na vivência das virtudes ou do
caráter. Embora Kierkegaard não tenha sistematizado uma pedagogia da educação, tinha consciência que a
maior necessidade para tornar-se ético é, primeiramente, educar-se. Não à toa demonstrava tanta admiração
por Sócrates e pela “dieta de socratismo” desenvolvida na Doença para a Morte. Em seu Diário, constatamos
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expressar-se em ações nobres e na valorização da transparência, na vivência do amor e
da justiça que se traduzirão em ações que poderão resultar em um mundo mais
harmonioso e, por isto, mais belo. É nesse sentido que Wittgenstein afirma no Tractatus
que “Ética e Estética são uma só”. (WITTGENSTEIN, 1994, no 6421)
Esta é talvez a grande utopia da Ética-segunda. Decididamente, não é fácil ser ético. Por
isto, Kierkegaard denomina como sendo o extraordinário quem consegue superar o nível
do homem-cópia, do homem-verme (KIERKEGAARD, 2001, p.155), do animal-sensitivo,
para edificar-se em uma singularidade que traduz em cada ação o compromisso e
responsabilidade com todo o gênero humano. Se é muito mais fácil e prazeroso viver no
erro, no trivial, no fugaz, por que, então, o ser humano precisaria se esforçar tanto,
sacrificar-se tanto para ser ético?
Ser ético implica, necessariamente, entrar em colisão - Anstö- com o mundo
estabelecido, porque o mundo atual é “um mundo de porco, é um mundo gentil, formado
por velhacos, mesquinhos e hipócritas, uma gente sem caráter” (KIERKEGAARD, 2001,
p. 172). A falta de caráter expressa a falta de ética, pode ser constatada em cada número
da Revista O Instante: “um aspecto é característico da Cristandade (Estado): a falta de
virilidade, o fato de haver nos truques, na falsidade e nas mentiras o próprio ponto de
força” (KIERKEGAARD, 2001, p.187). Kierkegaard fotografa a realidade atual com
lucidez através da “radiografia desta fantástica miragem, desta mascarada-Maskerad-,
deste jogo de sociedade, desta palhaçada” (KIERKEGAAD, 2001, p. 187).
A partir da reflexão existencial que é sempre inconclusa, o ponto de partida para a
Filosofia não é determinar conceitualmente o ser humano, “transformando o sujeito
existente em qualquer coisa de acidental e, portanto, reduzindo a existência a qualquer
coisa de indiferente, de evanescente” (KIERKEGAARD, 1993, p. 362). É claro que é
muito mais fácil desenvolver uma reflexão filosófica asséptica, como faz o pensamento
puro, porque é uma reflexão isenta da contradição e que reduz todos os conflitos e
dificuldades, através da mediação abstrata, a uma realidade de conceitos, mas não a
uma realidade de existência e, por isto mesmo, uma realidade real.
esta preocupação: “Não! Educação, educação: Eis o que o mundo mais tem necessidade. Este sempre foi o
contínuo tema dos meus escritos, o argumento dos meus colóquios com Cristiano VIII (Rei da Noruega, foi rei
da Dinamarca antes de Frederico VII –1839-1848)”. VIII A 186. De certa forma, todos os discursos edificantes
têm esta preocupação: edificar como sinônimo de educação.
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KIERKEGAARD: PENSADOR DA EXISTÊNCIA
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O projeto de Kierkegaard é explicitado no Post-Scriptum: “é sobre este ponto do existir e
da exigência ética em confronto com a existência, que é necessário insistir, quando uma
filosofia abstrata e um pensamento puro querem explicar tudo, evitando, contudo,
esclarecer o ponto essencial” (KIERKEGAARD, 1993, p. 428). O projeto existencial
consiste exatamente em “esclarecer a relação entre a ética e a individualidade existente”
(KIERKEGAARD, 1993, p. 428).
Kierkegaard não desenvolveu uma concepção sistemática da ética, pois segundo a
orientação aristotélica, a ética não é primeiramente um saber, é um poder de agir e
concretizar o bem ou o mal. Esta é a primeira grande dificuldade para qualquer pensador
que pretenda enveredar pelas tortuosas vias dos dilemas existenciais.
O fato da ética não ter sido desenvolvida em uma obra específica exige um estudo
minucioso e analítico de todas obras escritas por Kierkegaard e suas múltiplas vozes.
Estudar Kierkegaard, ler Kierkegaard implica uma outra ótica de interpretação para a
atividade filosófica: a reduplicação dialética - dialektik Fordoblelse. Esta nova
interpretação requer que o leitor possa se colocar no papel interlocutor de Kierkegaard,
se apropriando do conteúdo edificante para edificar a própria existência.
O pensador existencial se apresenta ironicamente como não tendo autoridade - uden
Myndighed. É a utilização da ironia que torna a conclusividade imprópria para o que diz
respeito à atividade filosófica, porque o objetivo do pensador não é demonstrar que
possui um saber, mas conduzir o outro a manifestar-se e concretizar-se. Eticamente “a
decisão está no sujeito, a apropriação é a interioridade paradoxal” (KIERKEGAARD,
1993, p. 601) que deve traduzir em sua ação o sentido do seu existir, isto é, “a liberdade
subjetiva” em que agindo ele transforma a si mesmo e o meio em que está inserido e na
qualidade da ação,concretiza positiva ou negativamente o dom e a tarefa que são
atribuídos a todo ser humano.
A utilização da ironia no interior da reduplicação faz com que o leitor reduplique, na
existência, a coerência ou descarte a superficialidade do objeto pensado. É superada a
dialética do senhor e do escravo, do filósofo como detentor de um saber e do discípulo
como ignorante e passivo no processo de ensino e aprendizagem. O processo é
construído em uma dinâmica que envolve personalidades reais. Dessa forma, o leitor não
é um anônimo, ele se constitui no essencial da reflexão existencial. Por isto, Kierkegaard
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considerava seus escritos endereçados a uma personalidade concreta, ao seu leitor. Os
termos utilizados e que justificam a reduplicação são: meu leitor - Min Læser, meu
próximo - Min Næste, meu ouvinte - Min Tilhører e têm como objetivo despertar,
conscientizar e educar o indivíduo singular - den Enkelte para que ele possa interferir e
transformar as estruturas da Ordem dominante.
A nova perspectiva filosófica inverte a proposição hegeliana do interior como sendo
idêntico ao exterior e vice-versa. O interior é a subjetividade existencial e é o decisivo
para o existente, o existir e a existência. A interioridade não corresponde a um saber
descomprometido e desinteressado e, por isto mesmo, um saber insuficiente e
inadequado no que diz respeito às questões essenciais do existir humano. Para
Kierkegaard o que é fundamental na existência é que o saber seja reduplicado no agir
cotidiano. Um agir consciente e que concretize, ao mesmo tempo, a realidade que quer
ser realizada.
A objetividade se concretiza, não por uma conjunção filosófica e-e-både-og, como
pensam os hegelianos, mas por uma disjunção existencial enten-eller como expressão da
escolha ética: o assumir eticamente a responsabilidade de concretizar o projeto
existencial de Deus no tempo. A partir da disjunção qualitativa, é possível afirmar que não
é a objetividade que determina a subjetividade, é a subjetividade, quando se traduz em
responsabilidade, que legitima e concretiza a objetividade.
O pensador existencial utilizando a comunicação direta-indireta e a disjunção qualitativa –
Enten Eller - se posiciona clara e criticamente contra o discurso filosófico que não se
dirige ao indivíduo singular e que, em sua pretensão de universalidade, anula o indivíduo
e o Absoluto em suas realidades específicas; transformando Deus em um fantoche, em
uma causa necessária sem personalidade e incapaz de doar-se, de relacionar-se.
Transforma o indivíduo singular, em um ser desprovido de personalidade, individualidade
e singularidade, condições indispensáveis para a realização da tarefa existencial.
A novidade introduzida por Kierkegaard no contexto filosófico é que o pathos existencial,
ao mesmo tempo que representa o limite da filosofia e de todo saber diante do paradoxo
e do enigma, incita a razão a penetrar até as vísceras do existente, para que a ação seja
conseqüência de uma resolução de consciência em que o resultado de cada ação tenha
um valor eterno e para a eternidade.
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KIERKEGAARD: PENSADOR DA EXISTÊNCIA
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A Filosofia do limite consiste primeiramente na impossibilidade de se fundamentar
linearmente uma tese filosófica que requer encadeamentos precisos, lógicos e
necessários, mas lidando com conteúdos existenciais que em seu bojo são disjuntivos,
contraditórios, paradoxais e não se deixam definir em conceitos estanques e
cristalizados. A Filosofia em sua forma padrão exige a identidade entre o conceito e o ser.
O método adequado consiste, então, em demonstrar coerentemente essa relação.
Porém, no que diz respeito ao existente, ao existir e à existência, a identidade não pode
ser conciliada em uma síntese, porque é próprio da condição da existência realizar a
separação entre pensamento e ser, como é expresso pelo próprio Kierkegaard; “a idéia
do sistema é a identidade do sujeito-objeto, a unidade do pensamento e ser; a existência,
ao contrário, é precisamente a separação” (KIERKEGAARD, 1993, p.324).
A existência não é desprovida de pensamento, é precisamente o oposto. É um
pensamento que abarca a totalidade do ser humano e tudo aquilo que o constitui. O que
se propõe não é anular a identidade entre ser e pensamento, mas distinguir que o ser
não pode ser conceitualmente reduzido ao pensamento, porque seria uma leitura
reducionista e determinista. Kierkegaard estabelece um intervalo que distingue o sujeito
do objeto, o pensamento do ser, como condição de superar a tautologia do ser e do
pensamento.
O intervalo que distingue o ser e o pensamento é exatamente o devir da liberdade
enquanto possibilidade que se concretiza em um ato de liberdade. Porém, não é uma
liberdade de pensamento, mas uma ação que produz o próprio existente, de forma que
ser livre é ser ético. Existir é concretizar escolhas éticas, que respondam positivamente
ao convite do doador do dom. Quando Kierkegaard em Enten-eller afirma que o indivíduo
singular “não cria si mesmo quando escolhe si mesmo” (KIERKEGAARD, 2001, p. 95)
está realizando uma distinção fundamental entre o indivíduo singular e todo o restante da
natureza, pois “enquanto a natureza é criada do nada, enquanto eu mesmo como
personalidade imediata sou criado do nada, se bem, como espírito livre eu sou gerado do
princípio de contradição, ou, gerado graças ao fato que escolhi a mim mesmo”
(KIERKEGAARD, 2001, p. 95).
O que Kierkegaard compreende por princípio de contradição oferece duas possibilidades
de leitura: Por um lado, a eternidade que se apresenta no tempo, isto é, “a eternidade
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toca o eterno do homem no tempo” (KIERKEGAARD, 1983, p. 442), o que faz com que a
possibilidade enquanto o futuro possa constituir um sentido. Por outro lado, o princípio de
contradição estabelece a separação radical em que o Absoluto “criando se retira, criando
Ele comunica, de forma da dar independência ao indivíduo com relação a si”
(KIERKEGAARD, 1993, p. 400).
O distanciamento de Deus para com O indivíduo estabelece um dever ético a ser
desenvolvido no interior da tríade vontade, liberdade e responsabilidade. Por isto, ele não
se cansa de repetir que “a tarefa ética é por sua vez, a origem de todas as tarefas”
(KIERKEGAARD, 1983, p. 203); “a ética é e continua sendo a tarefa suprema que é
colocada para cada ser humano” (KIERKEGAARD, 1993, p.339); e ainda: “a vitória da
ética sobre a vida e sobre todas as ilusões” (KIERKEGAARD, 1993, p.445) consiste
essencialmente em tornar-se um indivíduo singular. É dessa forma que é possível
compreender que não existe entre o indivíduo singular e Deus nada que não seja a ética,
isto é, “o único meio através do qual Deus quer comunicar com o homem, e o único meio
do qual o indivíduo pode falar com ele, é o empenho ético” (KIERKEGAAD, 1980, p. 148).
A inconclusividade da reflexão filosófica e a reduplicação dialética são os elementos da
nova Filosofia inaugurada por Kierkegaard. A este respeito Karl Jaspers na conferência
sobre Kierkegaard realizada em fevereiro de 1951, no Cub Pen de Basiléa, nos oferece
uma demonstração da crítica e ao mesmo tempo da atualidade do dilema filosófico,
iniciado com Kierkegaard:
Ao se fazer filosofia na hora presente, com consciência do momento
histórico em que estamos inseridos, ao darmo-nos conta de que
aconteceu algo irreparável e que transformou definitivamente a
existência humana. Ao constatarmos que não houve uma pessoa ou uma
nação que tenha conseguido dominar a turbulência deste acontecimento
e que não existe uma realidade ética ou religiosa que seja capaz de
tomar as rédeas e salvar da catástrofe, oferecendo, por sua vez, uma
ascensão para novas possibilidades, quando cremos que em um mundo
cada vez mais frio está sucedendo o ocaso da filosofia ocidental na
forma como se legitimou desde Parmênides até Hegel...nos damos conta
que os avatares desta época de transição, da pureza de complexão que
tem os pensadores como Nietzsche e Kierkegaard, que com as mesmas
ferramentas discursivas herdadas da tradição escapam da órbita secular
para novas latitudes e contudo, são capazes de assinalar uma nova
orientação...Se a filosofia perde cada dia sua importância em um mundo
marcado por cataclismos espirituais e materiais pelos quais estamos
passando em direção a um futuro desconhecido, isto se deve ao fato de
não se saber mais como manejá-la. A filosofia é algo tão próprio do
homem e está pedindo uma nova configuração...Kierkegaard e Nietzsche
nos têm aberto os olhos. Quando os sentimos obrar sobre nós se tem a
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impressão de que nosso olhar vai ganhando luz. O problema está em
saber como vamos usar estes olhos, como vamos viver e o que vamos
fazer (JASPERS,1995, pronunciamento a Rádio de Basiléia).
Kierkegaard inaugura uma nova configuração para a Filosofia, ao introduzir na reflexão
filosófica a descontinuidade, o paradoxo, a contradição existencial, isto é, o fato de que o
homem, enquanto síntese de finito e infinito, temporal e eterno, necessidade e liberdade,
é inconciliável em uma mediação ou uma apreensão conceitual. A ética existencial, a
verdade subjetiva, a responsabilidade radical, a certeza militante são todas categorias
que encontram na interioridade do indivíduo singular a sua força e razão de ser. Não são
categorias objetivas que castram a vontade, o desejo, mas, uma nova forma de
racionalidade que não se reduz aos imperativos da razão positivista, da razão empíricoanalítica das ciências naturais.
O novo ponto de partida do filosofar implica uma nova racionalidade, em que sua
coerência é testada não do exterior, mas de dentro da própria situação; racionalidade que
é sinônimo do próprio agir ético, porque os preceitos éticos existem para serem atuados.
Racionalidade que supera a esquizofrenia da subjetividade e objetividade puras, porque o
indivíduo singular ao se apropriar da verdade, enquanto subjetividade, exprime na ação
responsável a objetividade necessária à construção da dignidade humana.
As decisões são subjetivas e, portanto, éticas. Do contrário não seriam ações éticas e
sim tirania do dever, como realizado nas sociedades comunistas, “em que o ético era
considerado como qualquer coisa de estranho à própria personalidade” (KIERKEGAARD,
2001, p.145). Por outro lado, o princípio do dever é objetivo, pois “unicamente quando é o
indivíduo mesmo o universal, unicamente dessa forma, o ético se deixa realizar em
concreto” (KIERKEGAARD, 2001, p. 148). Isto é, o indivíduo ético assume, com
maturidade e responsabilidade, exprimir com tudo o que constitui o seu ser, o “individual
e o universal. É esse o segredo que tem a vida individual de ser ao mesmo tempo, o
individual e o universal, pois quem vive eticamente se esforça em se tornar o homem
universal”. (KIERKEGAARD, 2001, p. 148)
A Filosofia deve recuperar a sua fonte, orientando-se ao homem em sua condição
humana e existencial e colocar-se a serviço desta condição. A inconclusividade da
Filosofia encontra nessa tarefa a sua razão de ser, pois ela não deve impor, deve
convidar; ela não pode possuir uma verdade, deve ser apenas meio para que o indivíduo
possa construir, com a sua ajuda, a verdade.
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Pensamos que é tarefa da razão encontrar uma justa medida que possa direcionar a
contradição da existência e no seu interior as contradições entre o direito e a justiça, a
história e a natureza, o indivíduo singular e a comunidade, o público e o privado etc.
Cada indivíduo singular é filho de um tempo, de uma história, portanto, de uma cultura
determinada, de um espaço físico-geográfico situado, não é uma ilha deserta. A razão é
soberana neste território.
Qual seria a justa medida da razão? O que Kierkegaard entende por razão? Qual é a
pertinência da compreensão da faculdade da razão por Kierkegaard? A primeira
dificuldade em determinar o conceito de razão para Kierkegaard é que ele utiliza Fornuft
e Forstand como sinônimos e são traduzidos nos diversos idiomas como entendimento,
inteligência, compreensão, intelectualidade etc. O termo Fornuft em língua dinamarquesa
significa: razão, bom senso, capacidade de juízo; enquanto Forstand significa intelecto,
capacidade mental, raciocínio, inteligência, discernimento, critério, sentido.
Kierkegaard não desenvolve uma análise da faculdade da razão. Ele prefere aprofundar a
utilização da razão por parte do indivíduo singular em direção a concretização de si
mesmo e da tarefa existencial. O que se constata no interior de sua obra não é um
desmerecimento da razão. Pelo contrário, na prática, ele a eleva à condição capital para
tornar-se indivíduo. A diferença básica é que para ele a razão não pode atingir o
absoluto, sem cair no domínio da possibilidade, do pressuposto. Não existe uma razão
absoluta. Mas é preciso desenvolver “um esforço diuturno no extremo recesso da
interioridade” (KIERKEGAARD, 1993, p. 575) para estabelecer “uma distinção ao interno
do âmbito total da razão: que existe uma razão mais alta, é também, uma razão”
(KIERKEGAARD, 1993, p. 574).
Em Migalhas Filosóficas, se constata novamente a importância da razão para
diagnosticar-lhe os limites: “assim o maior paradoxo do pensamento é querer descobrir
algo que ele próprio não possa pensar” (KIERKEGAARD, 1993, p. 62). A razão é limitada
do paradigma da entrada de Deus no tempo, sem contudo, alterar o percurso da história.
Para Kierkegaard “Cristo é o paradigma da situação da contemporaneidade em que cada
geração tem a tarefa de recomeçar em Cristo e de expor a sua vida como um paradigma”
(KIERKEGAARD, 1993, p. 744). É este o paradigma que “supera o intelecto” e diante
dele não tem outra opção que a disjunção: enten-eller- ou...ou...
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KIERKEGAARD: PENSADOR DA EXISTÊNCIA
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Referências Bibliográficas:
KIERKEGAARD. Diario. Brescia: Morcelliana, 1980
_________Post-scriptum conclusivo não científico às migalhas filosóficas. Milano: Sansoni Editori,
1993
_________Enten-Eller. 6ª edição. V volumes. Milano: Adelphi Edizioni, 2001
_________A Doença Mortal. São Paulo: Abril Cultural, 1974
_________Escola do Cristianismo. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1961
_________O Fortalecimento do homem interior. Rio de Janeiro: edição do autor, 2000
_________Prática do Cristianismo. Madri: Ediciones Guadarrama, 1961
_________Gli Atti dell’amore. Milano: Rusconi, 1983
_________Migalhas Filosóficas. Petrópolis, RJ : Vozes, 1993
WITTGENSTEIN, Tractatus Logico-philosophicus, São Paulo: Edusp, 1994
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