Literatura e gênero em Dez mulheres, de Marcela Serrano

Propaganda
Literatura e gênero em Dez mulheres,
de Marcela Serrano
Bruno Brizotto*
Lisana Teresinha Bertussi**
Resumo
Partindo de proposições da Crítica Feminista e dos Estudos Culturais de Gênero, o presente
artigo examina questões relativas à literatura e ao gênero a partir da personagem Simona,
integrante do romance Dez mulheres, escrito pela romancista chilena Marcela Serrano e publicado em 2011.
Palavras-chave: Literatura chilena. Gênero. Mulher. Dez mulheres. Marcela Serrano.
O papel e a função da mulher na sociedade muitas vezes foram relegados a um segundo plano na literatura produzida por escritores masculinos
nos diferentes sistemas literários. A figura feminina era construída pelo
autor e apresentada pelo narrador (ou por ela mesma, como nos casos de romances que apresentem uma narradora-protagonista) como frágil, dependente do marido e da família, absorta em leituras românticas. É na estética
romântica que essa visão da mulher alcança o ápice. Ainda que nem todos
os romancistas retratassem a mulher dessa forma, era a perspectiva que
predominava (veja-se, como exemplo, a literatura brasileira do período).
Some-se a isso o fato de ter sido imputado à mulher o estereótipo de ser
inferior ao homem, especialmente quando vista enquanto autora de textos
literários. Isso se devia pelo fato de a literatura ser
escrita para leitores que pensavam como ele [o homem] e,
portanto, a concepção de boa obra explicitada pelos críticos
também partia de um determinado ponto de vista. Falava-se
muito em “visão de mundo”, mas sempre se esquecia de incluir
*
**
Mestrando em Letras, na área de Letras, Cultura e Regionalidade, pela Universidade de
Caxias do Sul – UCS. Bolsista CAPES. (E-mail: [email protected]).
Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul – PUCRS, com estágio pós-doutoral pela mesma instituição. Professora e pesquisadora
na Universidade de Caxias do Sul – UCS. (E-mail: [email protected]).
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
149
o outro nesta percepção “do mundo”. Por quê? Porque as
mulheres, os negros, os índios, os pobres, não liam, não escreviam e, conseqüentemente, não eram críticos literários.
De modo geral, o que se escrevia era por e para os homens
brancos da classe dominante, o que criava e mantinha uma
concepção discrepante e enganosa do mundo como um todo. (NAVARRO, 2005, p. 199, grifo do autor)
Duarte (1997, p. 54-55) também aponta para as dificuldades e as tentativas das mulheres no que concerne à autoria feminina ao longo da história, ainda que algumas mulheres escrevessem e publicassem:
Muitas filhas, mães, esposas ou amantes [...] escreveram à
sombra de grandes homens e se deixaram sufocar por essa
sombra. As relações familiares, hierarquizadas e funcionais,
não incentivavam o surgimento de um outro escritor na família, principalmente se a concorrência vinha de uma mulher.
As pesquisas voltadas para o resgate de produções de escritoras brasileiras oitocentistas, por exemplo, começaram a minar a visão da mulher como o Outro do homem. Além disso, incitam um profundo questionamento
do que pode e deve ser considerado como obra literária canônica dentro de
determinado sistema literário. Tais estudos mostram que a história da literatura de uma nação pode abarcar tanto produções literárias masculinas
quanto femininas, em considerável harmonia. Nesse sentido, “tais escritoras
nos legaram uma tradição de cultura feminina que, muito embora desenvolvida dentro da cultura dominante, força a abertura de um espaço dialógico de tensões e contrastes que desequilibra as representações simbólicas
congeladas pelo ponto de vista masculino” (SCHMIDT, 1995, p. 187). Não
se trata, assim, de destruir a literatura produzida pelo segmento masculino,
mas de dialogar com ela, instaurando uma rede de relações entre distintas
obras, situação que só enriquece a literatura nacional, seja de que país for.
Contextualizemos, ainda que brevemente, o papel desempenhado
pela categoria gênero a partir das proposições da Crítica Feminista e dos
Estudos Culturais de Gênero. Essa noção e seus correlatos ganharam destaque a partir do trabalho de diversas pesquisadoras.1 Fundamental nesse sentido é o ensaio “A tecnologia do gênero”, de Teresa de Lauretis (1994), no
qual “a autora questiona o conceito de gênero como diferença sexual, pre1
A título de exemplo, citamos: BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão
da identidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; SCHMIDT, Rita Terezinha
(Org.). Mulheres e literatura: (trans) formando identidades. Porto Alegre: Palloti, 1997;
FUNCK, Susana Bornéo. Da questão da mulher à questão do gênero. In: ______. (Org.).
Trocando ideias sobre a mulher e a literatura. Florianópolis: UFSC, 1994; NAVARRO, Márcia
Hoppe (Org.). Rompendo o silêncio: gênero e literatura na América Latina. Porto Alegre:
Ed. da UFRGS, 1995; MATOS, Maria Izilda S. de; SOLER, Maria Angélica (Org.). Gênero
em debate: trajetória e perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo: Educ, 1997;
ZINANI, Cecil J. A. Literatura e gênero: a construção da identidade feminina. Caxias do Sul:
Educs, 2006.
150
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
sente nas diferentes epistemologias e nos diversos campos cognitivos [...].”
(ZINANI, 2010, p. 61). A partir de tal posicionamento, duas questões fundamentais podem ser feitas:
a) É admissível a ideia de que sexo é igual a gênero?
b) Pode-se, a partir do dado biológico, convencionar papeis sociais
para as mulheres e para os homens?
A resposta é, definitivamente, não. A teoria feminista afirma enfaticamente que gênero não é igual a sexo, visto que enquadrar gênero e sexo
como equivalentes é uma “formulação patriarcal que cumpriu a função de
naturalizar assimetrias, estabelecendo uma prática social que serviu aos
interesses do homem” (SANTOS, 2010, p. 78). Pode-se então afirmar que o
sexo, atributo biológico inato, não é fator suficiente para elucidar o comportamento diferencial do feminino e do masculino.
Decorre daí que “gênero é um produto construído no social, assimilado, figurado, instituído, transmitido de geração a geração” (SANTOS, 2010, p.
78, grifo nosso). Na esteira dessa questão, Funck (1994, p. 21) destaca que
gênero implica necessariamente uma questão de poder, na qual impera a
“assimetria e a desigualdade, com a dominação do feminino pelo masculino.” Tal assimetria e desigualdade, bem como a subordinação da mulher ao
homem, encontram respaldo no posicionamento de Auguste Comte2, por
exemplo. O pai do Positivismo “considera a mulher como radicalmente
inapta ao governo, sequer capaz de administrar uma simples família, em
virtude de uma espécie de estado infantil contínuo que distingue o sexo feminino.” (SANTOS, 2010, p. 77).
Schmidt (1994, p. 24, 31-32, grifo do autor) assinala que o termo gênero introduz
a noção relacional de definições normativas do feminino/masculino em nosso vocabulário crítico e analítico. [...] Enquanto
o termo sexo se refere ao dado biológico, o termo gênero
constitui um sistema social, cultural, psicológico e literário
construído a partir de ideias, comportamentos, valores e atitudes associados aos sexos, através do qual se inscreve o homem na categoria de masculino e a mulher na do feminino.
2
Auguste Comte (1798-1857), filósofo francês, fundador da Sociologia e do Positivismo. Sua
doutrina positivista influenciou grandemente as teorias ligadas à literatura, especialmente
as do século XIX, que partiam suas análises baseadas em “uma pesquisa historicista e de
pretensões científicas que, pouco interessada no texto, visava à explicação da literatura
através de causas exteriores supostamente determinantes dela, identificadas com a vida e a
personalidade do escritor ou com o contexto social da obra” (SOUZA, 2007, p. 35-36). Entre
suas obras destacam-se Opúsculos de Filosofia Social (1816-1828) – republicados em conjunto, em 1854, como apêndice ao volume IV do Sistema de política positiva; Curso de filosofia
positiva, em 6 volumes (1830-1842) – que em 1848 foi renomeado para Sistema de filosofia
positiva; Discurso sobre o espírito positivo (1848); Catecismo positivista (1852).
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
151
Lauretis (1994, p. 208, grifo do autor), por sua vez, ao instituir os
parâmetros para discorrer sobre a questão do gênero, parte
de uma visão teórica foucaultiana, que vê a sexualidade como uma “tecnologia sexual”; desta forma, propor-se-ia que
também o gênero, como representação e como auto-representação, é produto de diferentes tecnologias sociais, como
o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da
vida cotidiana.
Levando em conta os posicionamentos de Lauretis (1994), Santos
(2010) e Schmidt (1994), podemos afirmar sem hesitações que gênero é um
produto constituído no social, que se encontra intrinsecamente vinculado
ao sexo, sem, contudo ser igual a ele. Nesse sentido, Santos (2010, p. 79) assinala que “pensar a questão de gênero, sem levar em conta o fato de a história das mulheres ter sido escrita por homens, até algum tempo atrás,
torna-se uma tarefa inviável”. A história das mulheres foi escrita/pautada
pelos ditames masculinos durante muito tempo, conforme visualizamos no
argumento de Comte.
Se quisermos avançar nessa história, devemos realizar todo um percurso marcado por exclusões, subjugações e silenciamentos, os quais permearam várias esferas, seja na da política, da família ou da literatura. Pensar
as questões de gênero com ênfase no papel desempenhado pela mulher nos
faz acreditar na luta engendrada por essas mulheres ao longo do tempo,
nas diferentes searas nas quais elas atuaram. Diante disso, pode-se afirmar
que os desenvolvimentos (tomando como ponto de partida os trabalhos de
Virginia Woolf e Simone de Beauvoir) da Crítica Feminista e dos Estudos
Culturais de Gênero no âmbito da teoria, da história e da crítica literárias
contribuíram substancialmente para a consolidação dos estudos relativos à
mulher enquanto escritora, leitora e personagem, bem como demonstraram
que as mulheres possuem condições de lutar pelo seu espaço em searas que
antes eram exclusivamente masculinas, como as universidades, as fábricas,
os escritórios de advocacia, as delegacias de polícia.
Os pesquisadores e as pesquisadoras que se dedicam aos estudos
voltados para as questões de gênero oferecem não somente novas interpretações de ideias já clássicas. Proporcionam novas possibilidades de estudos,
como
a) o resgate de autoras que ficaram à margem, isto é, não foram consideradas como dignas de integrar o cânone;
b) a escrita de histórias da literatura baseadas em obras de autoria
feminina;
c) a análise arguta de textos escritos por mulheres de origem latinoamericana;
d) a proposição de diferentes pontos de vista teóricos, etc.
152
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
Observe-se, também, que as abordagens orientadas para a mulher
ganharam reconhecimento de duas importantes instituições: de um lado,
por parte da crítica literária, disciplina à qual compete comparar, classificar
e julgar as produções literárias, dos mais variados sistemas literários, e, de
outro, pelas mãos da academia, instituição a que cabe o ensino e, mais importante, a produção e divulgação de um conhecimento tão significativo,
que deve ser conhecido por todo indivíduo que se preocupe com questões
relativas à evolução dos estudos literários.
A época em que vivemos testemunha uma significativa e rica produção de ensaios, artigos, dissertações de mestrado, teses de doutorado,
matérias jornalísticas, que tratam, a partir de distintos matizes teóricos, da
figura feminina enquanto objeto central de análise. Constituindo uma espécie de alicerce dessas modalidades de estudo, estão os Grupos de Pesquisa3,
associados às universidades e aos programas de pós-graduação pertencentes a elas, voltados para a tematização e problematização das questões
anteriormente citadas. É nesse meio que o presente artigo se insere: tomando como objeto de análise o romance Diez mujeres (Dez mulheres), redigido
pela escritora chilena Marcela Serrano4 e publicado em 2011, buscaremos
examinar a representação da figura feminina através de Simona, uma das
dez mulheres que compõem o livro.
No que diz respeito à escritura literária de Serrano, Zinani (2012, p.
310) a sintetiza com as seguintes considerações:
Preocupada com as questões do feminino, Marcela Serrano
[...], escritora chilena contemporânea, produz uma literatura
que coloca em evidência a personagem feminina. Em suas
obras, constata-se o cuidado em dar voz à mulher e também
em fazer uma revisão da história da América Latina da
atualidade.
É nesse sentido que o romance Dez mulheres é construído: apresentando nove mulheres distintas entre si, que nunca se viram antes, mas que
passam a compartilhar suas histórias de vida graças à reunião proposta
pela terapeuta Natasha, a décima personagem dessa história. Esta acredita
que as feridas presentes nas demais mulheres poderão começar a sarar quando as cadeias de silêncio forem efetivamente rompidas. Essa modalidade
de construção da narrativa efetuada por Serrano constitui um dos artifícios
3
4
Cf. o Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq para maiores informações.
Escritora chilena, nascida em Santiago do Chile em 1951, Marcela Serrano é filha do ensaísta
Horacio Serrano e da romancista Elisa Pérez Walker, sendo a quarta de cinco irmãs (Elena,
advogada; Paula, psicóloga; Margarita, jornalista; e Sol, historiadora). É casada com o político socialista e diplomata Luis Maira, com quem vive desde meados dos anos 1980. Atualmente, moram em apartamentos separados, em Providencia, Chile. Além disso, ela comprou
uma casa em Quillota, onde passa longas temporadas escrevendo seus romances, dos quais
destacamos alguns: Nosotras que nos queremos tanto (1991), El albergue de las mujeres tristes
(1998), Nuestra Señora de la Soledad (1999), Lo que está en mi corazón (2001), La llorona (2008),
Diez mujeres (2011). Lembramos ainda que parte de suas obras foram traduzidas para várias
línguas e adaptadas para o cinema.
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
153
literários sofisticados empregados em especial pelas escritoras latino-americanas contemporâneas: “a transposição do foco narrativo, possibilitando
a circulação da palavra por diversas instâncias [...].” (ZINANI, 2010, p. 46).5
Veja-se a descrição da chegada das nove mulheres no momento em que
chegam ao instituto no qual ocorrerá a sessão coordenada por Natasha:
Sem pudor, os homens pararam de trabalhar e, apoiando-se
nas ferramentas, ficaram olhando para elas. Há para todos
os gostos. Os que preferem morenas têm mais o que escolher. Baixas, altas, jovens, velhas, magras e cheias de carne.
São nove mulheres. São muitas mulheres. A relva já foi cortada, os sacos plásticos pretos cheios de grama estão nos troncos de dois abacateiros enormes. O aroma fresco chega até a
casa principal do instituto e para Natasha o cheiro de grama
se mistura com o da cordilheira. Quando lhe emprestou o
lugar, o diretor tinha avisado: aos sábados fazem a manutenção do jardim. (SERRANO, 2012, p. 11)
Apresentemos as nove mulheres citadas. Francisca, que odeia a mãe,
ou a si mesma, nem ela mesma sabe direito: “Acho que é por isso que estou
aqui. O ódio cansa. E acostumar-se com ele não resolve nada.” (SERRANO,
2012, p. 17). Mané, que se considera a mais linda, apesar de ter completado setenta e cinco anos, e que acha uma “pena ter que falar do passado.”
(SERRANO, 2012, p. 43). Juana, a depiladora, mãe solteira, e que “gostaria
de ter um homem, não sei como marido, mas como companheiro de vida. E
de cama.” (SERRANO, 2012, p. 69). Simona, militante dos diretos das mulheres no Chile, detentora da seguinte obsessão: “estou por aqui de testemunhar as mulheres cedendo tudo para manter seu homem ao lado.” (SERRANO, 2012, p. 101). Layla, jornalista, alcoólatra: “de origem árabe, minha
geração é a segunda do Chile. E, árabe como sou, a vida me tornou desconfiada e paranoica como um judeu.” (SERRANO, 2012, p. 131). Luisa, camponesa do sul do Chile, que quer “mais é falar dele, do Carlos” (SERRANO,
2012, p. 155), um operário de construção que conheceu em sua juventude.
Guadalupe, jovem de dezenove anos, com uma vida complexa e confusa
pelo fato de ser lésbica: “sempre fui e não me envergonho de ser, muito pelo contrário” (SERRANO, 2012, p. 175), e que possui uma cabeça muito rápida, no que toca ao seu funcionamento: “minha cabeça funciona tão rápido
que nem chego a captar toda a quantidade de coisas que passam por ela.
Sempre está mais à frente e eu pulo as palavras, não porque não saiba
falar, mas porque lá dentro é um turbilhão, tudo é rápido e fugaz.” (SERRANO, 2012, p. 175). Andrea, jornalista, bastante famosa e rica, mas que de
vez em quando precisa fugir. E por quê? “Porque, aparentemente, estava irritada.” (SERRANO, 2012, p. 200). A irritação surge de tempos em tempos,
ainda que tudo esteja indo bem em sua vida. Ana Rosa, mulher de trinta e
um anos, que trabalha “como secretária num grande magazine do centro da
5
Zinani (2010, p. 46) lembra que essa e outras técnicas não constituem uso exclusivo de escritoras, podendo ser utilizadas também por escritores.
154
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
cidade”, onde foi apresentar-se quando leu “no jornal que precisavam de
vendedoras.” (SERRANO, 2012, p. 223). E, finalmente, Natasha, a terapeuta,
que é apresentada por sua assistente: “Natasha está descansando. Mais tarde virá se despedir de vocês.” (SERRANO, 2012, p. 243). A assistente revela
que Natasha nasceu em 1940, em Minsk, Bielorrúsia, e que sofreu com as
agruras do bombardeio nazista, mas que, graças aos seus pais, “imbuídos
dos valores da época”, teve uma boa educação, já que, para eles, “a educação dos filhos era o grande estandarte e a ferramenta que os faria progredir
na vida” (SERRANO, 2012, p. 248). As demais informações fornecidas pela
assistente de Natasha sumarizam o late style, o estilo tardio da terapeuta:
Edward Said, esse escritor palestino tão admirável, falou
do late style, o estilo tardio. É aplicável aos artistas em geral:
trata-se da etapa final, quando o criador se solta e começa a
fazer o que bem entende, sem nenhuma consideração nem
coerência com sua obra anterior. Dessa ruptura às vezes
nascem obras muito valiosas.
Acho que Natasha entrou no seu late style como psiquiatra e
vai viver isso como quiser (uma boa prova é que me permitiu contar sua história a vocês). Está indo para o Vietnã e só
voltará depois de enterrar os ossos de Hanna. O hospital,
suas pesquisas, seu consultório, seus pacientes, tudo se relativiza a partir de agora. A ideia fixa por fim encontrou sua
ondulação. Ela fará o que tem que fazer. E fará com a solenidade que corresponde. (SERRANO, 2012, p. 264, grifo do
autor)
Tomamos emprestadas as palavras de Navarro (2005, p. 197-198)
para caracterizar a nossa investigação:
Enfatiza-se aqui o sentido de feminino que aparece não como algo pejorativo, que se opõe à feminista, mas sim como
algo que soma, recupera e adiciona um lado esquecido da
história. Essa perspectiva renovada, que incorpora dimensões sempre abafadas, esquecidas e marginalizadas, assume
o ponto de vista do gênero antes excluído de qualquer subjetividade no discurso ideológico hegemônico, marcado pela
negação das alteridades, sejam elas de gênero, de raça, ou de
classe social, o que tem historicamente significado o desaparecimento de outras identidades culturais que não sejam a
do homem branco, heterossexual, pertencente à elite social.
Antes de iniciar a sessão com as nove mulheres, Natasha registra o
seu posicionamento frente à questão da mulher: “Como me comovem as
mulheres. Como me entristecem. Por que metade da humanidade suportou um peso tão grande e deixou a outra descansar? Não tenho medo de
ser boba, pensa Natasha, sei o que digo. Sei por que estou dizendo.” (SERRANO, 2012, p. 13-14). De acordo com a terapeuta, Francisca e Simona são
as duas pacientes mais antigas que possui, e como ela “gostaria que tivessem contato além deste dia, que uma pudesse contar com a outra.” (SERCiências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
155
RANO, 2012, p. 12). Mais do que uma sessão de terapia: assim pode ser
descrito o encontro entre essas mulheres. O espaço no qual elas estão inseridas revela um locus em que experiências são compartilhadas, visões de
mundo bastante diferentes são postas lado a lado; enfim, são mulheres que
acreditam no diálogo como forma de posicionar-se frente ao mundo, de
compreenderem-se enquanto seres humanos complexos e contraditórios,
e, acima de tudo, compreenderem a si mesmas como mulheres, capazes de
falarem por si, não mais dependendo da figura masculina para tal. Nesse
sentido, Schneider (2000, p. 121) afirma que se faz “necessário [...] que as
mulheres continuem desconstruindo conceitos tradicionais de gênero a fim
de poderem construir mais livremente suas identidades e atuar mais diretamente em seus grupos sociais”.
Examinemos agora a personagem Simona. Retomemos a obsessão
dessa mulher: “estou por aqui de testemunhar as mulheres cedendo tudo
para manter seu homem ao lado” (SERRANO, 2012, p. 101). E mais: “Os
homens não passam de um objeto simbólico e, acreditem, é possível viver
sem esse emblema. [...] Fico angustiada quando vejo as mulheres sangrando
para não ficar sozinhas. Quem foi que inventou que ser solteira é uma
tragédia?” (SERRANO, 2012, p. 101). Se essas palavras fossem proferidas
diante de um contexto oitocentista, patriarcal e androcêntrico, por exemplo,
certamente a pessoa que as enunciou seria execrada da sociedade. Podemos
ir ainda mais longe: na Bíblia, São Paulo, na “Epístola aos Efésios” (5: 22-24),
defende: “Mulheres, sejam submissas a seus maridos, como o Senhor. De fato,
o marido é a cabeça da sua esposa, assim como Cristo, salvador do Corpo, é a
cabeça da Igreja. E assim com a Igreja está submissa a Cristo, assim também
as mulheres sejam submissas em tudo a seus maridos.” Ocorre, assim, a naturalização do casamento, conforme explica Foucault (1999, p. 153):
[...] a naturalidade do casamento, embora fosse contestada
por algumas escolas filosóficas, e nos cínicos em particular,
tinha sido habitualmente fundamentada sobre uma série
de razões; o encontro indispensável do macho com a fêmea
para a procriação; a necessidade de prolongar essa conjunção numa ligação estável para assegurar a educação da
progenitura; o conjunto das ajudas, comodidades e prazeres
que a vida a dois, com seus serviços e suas obrigações, pode
proporcionar; e finalmente, a formação da família como o
elemento de base para a cidade.
Pode parecer que hoje, em pleno século XXI, a opção da mulher
em não se casar, de permanecer solteira (ou, no caso de Simona: de ter-se
casado e ter tido filhas, mas, após um casamento que não a fez feliz, optar
pela solteirice) seja consenso em todas as culturas. Estaríamos sobejamente
errados se defendêssemos esse ponto de vista. Isso ocorre não só por causa
de fatores culturais, mas também pelo fato de muitas mulheres (jovens, inclusive) terem como um de seus objetivos o de casar-se, ser “rainha do lar”
e cuidar do marido, situação totalmente cabível no contexto atual. Simona,
156
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
em contrapartida, representa o grupo de mulheres que tomou o caminho
oposto, considerando as circunstâncias pelas quais passou em seu casamento,
como o fato de seu marido ser obcecado por televisão e não dar a devida
atenção a ela e ao casamento deles.
No momento em que se apresenta, Simona revela traços de sua personalidade que indicam uma militante pelos direitos da mulher e pioneira
dos estudos de gênero em seu país:
Meu nome é Simona: minha mãe era devota de São Simão,
não pensem que ela teve um ataque de lucidez depois de ler
O segundo sexo. Tenho sessenta e um anos, estudei sociologia
na Universidade Católica, sou uma pessoa de esquerda e
passei mais da metade da minha vida lutando pela igualdade de direitos da mulher, pelo respeito à diversidade. Participei dos primeiros grupos que se formaram neste país
para discutir a questão, analisar e escrever e publicar sobre
ela. Pode-se dizer que aquilo foi o verdadeiro nascimento do
Women’s Lib no Chile, embora algumas historiadoras discutam o fato. Antes disso houve movimentos de mulheres
que lentamente foram construindo uma vontade decidida,
mas nós fomos as primeiras a considerar e estudar a teoria
de gênero como tal. (SERRANO, 2012, p. 101)
Quando relata a introdução do termo feminismo no Chile, graças às
ações de seu grupo, Simona afirma que foram qualificadas de “quase umas
desnaturadas” (SERRANO, 2012, p. 101). Contudo, foi a significação que o
termo sofreu após a sua “entrada” no país de Simona (significação que não
se efetivou dessa forma só ali) que merece destaque: “Depois virou uma
palavra feia, satanizada, mal-usada, desgastada, puída. E é uma coisa tão
básica e tão simples: lutar por uma vida mais humana, em que toda mulher
tenha o mesmo espaço e os mesmos direitos que um homem.” (SERRANO,
2012, p. 101). Se o termo feminismo sofreu esse preconceito, o mesmo se
deu com “feminino”, cujo resgate deve constituir uma tarefa imediata da
crítica feminista:
O resgate do termo “feminino” de um contexto semântico
eivado de preconceitos e estereótipos equivale a reescrevê-lo
dentro de uma prática libertadora que objetiva tornar visível
a expressão do que foi silenciado e colocado em plano secundário em termos culturais, histórico e político. (SCHMIDT,
1995, p. 188, grifo do autor)
Entretanto, Simona afirma (sarcasticamente) que não é tarefa tão
simples para a mulher conquistar o seu espaço e direitos iguais aos dos homens: “Simples, até parece!, romper um esquema milenar, mudar as regras
do poder... Uma tarefa titânica!” (SERRANO, 2012, p. 101). Ainda que tal
empreitada seja árdua, ela merece ser posta em prática, como vêm mostrando os movimentos feministas e de gênero que se efetivaram nas últimas
décadas. Os estudos realizados no âmbito da universidade, ainda que sob
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
157
alguns aspectos circunscritos apenas à sua zona de atuação, constituem
importantes estratégias para marcar o espaço da mulher no contexto em
que os seres humanos estão localizados. Eventos acadêmicos como o “Fazendo Gênero”, realizado a cada dois anos na Universidade Federal de Santa Catarina, por exemplo, são sintomáticos nesse sentido, pois congregam
pesquisadores de diversas instituições de ensino superior do país e do
mundo, com o intuito maior de discutir os desdobramentos dos estudos
de gênero, bem como lançar novas questões para que o debate só venha a
enriquecer-se.
O fato de Simona declarar que não foi simples pôr em prática em
seu país uma tarefa como a desejada por ela e por seu grupo ocorreu pelas
seguintes razões:
Não chegamos a ir para a rua com o sutiã numa das mãos e
uma tesoura na outra, não fomos tão gritonas porque – num
país pobre como o nosso na época – chegamos atrasadas na
festa, o mundo ainda não tinha se globalizado e nós aprendemos com as norte-americanas e as europeias quando elas
já tinham avançado várias etapas na própria luta. Lemos
Betty Friedan quando A mística da feminilidade já era um livro
manuseado e sublinhado mil vezes nos outros continentes.
Chegamos tarde, e na época já vivíamos na ditadura. Não
preciso explicar, imagino, até onde pode chegar o machismo
numa ditadura militar. (SERRANO, 2012, p. 101-102)
Simona alude a diversos fatos importantes para o estabelecimento
das teorias feministas. Em primeiro lugar, menciona um caso em que mulheres foram às ruas com os sutiãs numa das mãos e a tesoura na outra,
situação que lembra a manifestação feminista de queima de sutiãs ocorrida em 1968, em Atlantic City, contra a realização do mais tradicional concurso de beleza, o Miss América. Em segundo, lembra um fato que está
incorporado à realidade latino-americana há muito tempo: o atraso com
que as novas ideias, os movimentos e as tendências chegam ao continente
sul-americano. Enquanto, na Europa e nos Estados Unidos, a teoria feminista
já estava bem desenvolvida (consideremos, nesse sentido, as duas primeiras
ondas, com nomes como Virginia Woolf, Simone de Beauvoir, Kate Millett,
Carol Hanisch, a citada Betty Friedan, e as feministas francesas, como, por
exemplo, Julia Kristeva, Luce Irigaray, Bracha Ettinger e Hélène Cixous),
aqui, na América do Sul, pairava um clima de incerteza, em que as ideias
não eram bem recebidas pela sociedade patriarcal, pelo fato de apresentarem
tendências feministas. Em terceiro, esse clima de incerteza recrudesceu na
América Latina, graças aos movimentos ditatoriais que aqui se instalaram.
O contexto no qual Simona e seu grupo agiu já estava marcado pela ditadura de Augusto Pinochet, e, como a personagem observa muito bem, o
machismo atinge níveis astronômicos em um regime dessa modalidade.
Nesse sentido, a primeira fase da ditadura chilena “foi marcada pelas medidas de atrocidade do governo, como os julgamentos militares, as persegui-
158
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
ções e extermínio dos opositores, prisões e campos de concentração e inclusive atentados no exterior” (GUAZZELLI, 2004, p. 61). De acordo com Zinani
(2010, p. 39), “as consequências do modelo de ditadura militar que se instalou
no continente foram desastrosas, uma vez que foram desestimulados projetos políticos que, de certa forma, atendiam às camadas populares”. Fica claro que tais regimes, apesar de professarem uma ideologia que visava ao melhoramento das condições de vida das populações mais pobres, só o faziam
no plano teórico, das ideias, não colocando em prática os verdadeiros princípios da revolução, como gostavam de chamar os golpes de estado dados
em seus respectivos países. O leitor que examinar o presente contexto com
o olhar direcionado para a literatura verá que esse foi um locus fértil para
muitos escritores e escritoras, apesar dos fatores de dominação operados
por aqueles que estavam no poder, especialmente os que se viam sob a influência do capital internacional:
Esses fatores de dominação, independentemente do país
a que se refiram, foram transformados em matéria literária
tanto por autores representativos do boom, tais como Vargas
Llosa, Roa Bastos e Gabriel García Márquez, que trabalharam com a imagem do ditador, quanto por escritoras que
iniciaram a publicação de suas obras a partir da década de
80 (século XX), focalizando, preferencialmente, a ditadura.
Essa temática constitui um traço da literatura contemporânea da América Latina. (ZINANI, 2010, p. 38)
Passemos agora para um ponto da vida de Simona, que é contado
por ela durante a sessão com Natasha e as outras mulheres: trata-se da sexualidade vista por uma Simona adolescente. Esta resume a sua adolescência nos seguintes termos: “Bem, [...] fui feliz quando era pequena, tive uma
adolescência muito, muito boa, estudava muito, mas sempre havia espaço
para as festas, as amigas, os namoros. Eu era bastante bonita e atrevida. Escolhi os homens que quis, era bastante namoradeira.” (SERRANO, 2012, p.
105). Apesar de possuir uma relativa liberdade, Simona adverte que quando ela e outras moças estavam numa casa de dança, por exemplo, elas só
iam dançar “se um homem convidasse, por nada deste mundo uma mulher
poderia ir sozinha, seria tão bizarro como aparecer pelada na praça das Armas” (SERRANO, 2012, p. 106). Quando menciona o sexo, afirma que este
“não tinha qualquer papel: a protagonista número um de nossa vida social
era a castidade” (SERRANO, 2012, p. 106). Corrobora tal declaração explicando que
nos namoros só se segurava na mão e somente algum tempo depois vinham os beijos. O que fazíamos com o tesão? Eu
bem que gostaria de saber... O conceito não existia. Quando já
estávamos um pouco mais velhos, pouco antes de sair do colégio, os beijos foram ficando mais apaixonados e tínhamos
que imobilizar as mãos do parceiro para evitar a tentação.
Sabíamos – de uma forma ou de outra – que os homens ti-
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
159
nham as suas histórias, mas com mulheres que não eram como nós. E isso era aceito: eles tinham o direito de se aliviar!
Sem falar da virgindade: não só ela era o estado natural
que todo mundo – além de você mesma – pressupunha, mas
jamais nos passaria pela cabeça não chegar intactas ao casamento. A virgindade era tão importante que conseguiu se envolver em músculos e nervos para que fosse quase impossível
libertá-la. (SERRANO, 2012, p. 106, grifo do autor)
Percebe-se que os conceitos de sexo, excitação e virgindade sofrem
um processo de naturalização, como o casamento, já citado anteriormente.
Ao sexo feminino não era dada a possibilidade de questionar essa naturalização, visto que ela já estava entranhada no corpo, como ocorre com a virgindade, o “selo de qualidade” da mulher. Além disso, somente os homens
poderiam “se aliviar”, mas não com mulheres da classe de Simona, apenas
com prostitutas. Vê-se, assim, que a iniciação erótica da figura feminina não
é fácil. Sobre isso, Beauvoir (2009, p. 491, grifo do autor) assevera que
de uma maneira geral, toda “passagem” é angustiante por
causa de seu caráter definitivo, irreversível: tornar-se mulher é romper sem apelo com o passado, mas essa passagem
é a mais dramática; não cria somente um hiato entre o ontem e o amanhã, mas arranca também a jovem do mundo
imaginário em que se desenrolava parte importante de sua
existência e a joga no mundo real.
Passados muitos anos, então contando sessenta e um anos (época em
que participa das sessões de Natasha), Simona se questiona sobre a falta de
sexo, afirmando: “Não sei, realmente.” (SERRANO, 2012, p. 126). E completa:
Para ser sincera, a menopausa foi um alívio imenso para
mim. Quem disse que é uma tragédia? Claro, uns calores e
umas dores de cabeça, alguma alteração na temperatura do
corpo, mas... pensem nos benefícios! Nunca mais os malditos dias de sangue no mês, nunca mais uma pílula anticoncepcional... Que enorme libertação!
O sexo. Do que sinto falta às vezes é de determinada intimidade com um homem, uma forma de apertar a mão, de inclinar-se sobre um corpo seguro, de esconder o rosto num
ombro, gestos tipicamente femininos, com milhares de anos
de aprendizagem atrás de si. (SERRANO, 2012, p. 126)
Mais adiante, Simona enfatiza que conseguiu transcender o jugo da
sociedade patriarcal a que foi imposta: “não permanecemos, graças a Deus,
na adolescência; esse é um momento em que aprendemos, quase sempre apanhando, a crescer. [...] eu sou, para usar a linguagem da minha profissão, das que passaram da ética da convicção à ética da responsabilidade.”
(SERRANO, 2012, p. 107). A personagem diz isso pelo fato de ter sido uma
menina grã-fina rebelde que abandona sua classe social para fazer a revolução. Uma história muito batida, em sua opinião.
160
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
Quando já está casada com Octavio, o amor de sua vida, Simona declara que a relação deles foi marcada por “fogo puro nos dois lados” (SERRANO, 2012, p. 109), pelo fato de ambos serem de Leão: “Nós nos adorávamos, odiávamos, brigávamos como dois napolitanos dos bairros pobres,
trepávamos às mil maravilhas, viajávamos, conversávamos, líamos os mesmos livros e nos dávamos imensamente bem.” (SERRANO, 2012, p. 109). O
motivo para o fracasso de seu casamento se deu graças a uma banalidade:
“Octavio tinha mau gênio e era viciado em televisão. Ou em futebol. Ou nas
duas coisas. Como o aparelho que venerava, ele tinha no cérebro uma tecla
que dizia On/Off e quando o On estava ligado, que Deus nos acuda.” (SERRANO, 2012, p. 109). Um aspecto que Simona percebe graças à convivência
com o seu marido é o problema dos remédios – “uma importante questão de
gênero” (SERRANO, 2012, p. 112), segundo a sua perspectiva. Surge, de fato,
uma distinção entre sexo masculino e feminino, permitindo uma considerável discussão nos meios acadêmicos. Veja-se a explicação de Simona:
Os homens se sentem muito viris por “superar os problemas
sozinhos”. Sozinho significa sem medicação nem terapia. Consideram uma grande aventura da masculinidade enfrentar
seus problemas sem a química. De onde vem tanta estupidez? Já vi homens contando que ficaram orgulhosos por sair
sozinhos de uma depressão, sem ajuda. Como não entendem
que a química pode ser a salvação, que um comprimido por
dia, um estúpido e pequeno comprimido, pode abrir os véus
negros que escondem o sol? Aliás, Octavio considerava um
horror tudo o que tivesse a ver com terapia ou com psicotrópicos. (SERRANO, 2012, p. 112, grifo do autor)
Essa visão vigora até hoje em nossa sociedade. Homens não precisam de remédios para curar determinado problema. Mulheres precisam de
inúmeras medicações para curar os seus. É claro que isso varia de cultura
para cultura. Todavia, o ponto que gostaríamos de frisar é este: não há motivos para realizar uma divisão de gênero tão absurda como essa, como defende Simona. Remédios podem ser utilizados tanto por homens quanto
por mulheres, mesmo que, em alguns casos, impere uma visão antiterapia
ou antimedicativa por parte da figura masculina.
Após separar-se de Octavio, Simona toma uma importante decisão
em sua vida: já que “a função de mãe não ocupava um papel central”6
(SERRANO, 2012, p. 118), põe à venda sua casa de Santiago, e, enquanto os
corretores a mostram para os interessados, decide percorrer de carro a costa
chilena. Coroa essa decisão comprando “um apartamento na praia mais
bonita do Chile” (SERRANO, 2012, p. 120). Eis o que Simona perseguia nessa nova fase de sua vida: “O que eu perseguia agora com o pensamento não
era a verdade e sim a imaginação.” (SERRANO, 2012, p. 118, grifo do autor). A
maior recompensa que Simona ganhou com essa resolução foi o fato de tomar
conta de si mesma, sem depender de outrem para governar a própria vida:
6
“[...] Lucía, minha filha mais velha, já estava casada e Florencia fazia uma pós-graduação
na Inglaterra.” (SERRANO, 2012, p. 118).
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
161
Não amasso o pão todas as manhãs como fazia a Yourcenar,
hoje compro do meu próprio pão até viver em meu próprio
horário. Tudo está nas minhas mãos. [...] Não pensem que
levo uma vida estoica ou sacrificada, muito pelo contrário.
Quando estou com preguiça de cozinhar como pão e queijo
[...] e penso que vou dar uma caminhada pela praia na
manhã seguinte e perder as calorias da noite. [...] Às vezes
fico no terraço ao entardecer com um drinque na mão, sem
fazer nada. Só olhando. Fiquei contemplativa. A inação me
atrai, e para mim isso é novo. Aprendi a meditar, pratico
diariamente com disciplina e o resultado é inesperadamente
positivo. Como não aprendi antes? (SERRANO, 2012, p. 122)
Fica bastante clara a mudança de ares pela qual passa Simona:
de um casamento com traços de infelicidade (ainda que marcado com alguns traços de felicidade) para uma vida independente. Sendo feminista
convicta, esse é o modelo de vida escolhido por ela para passar essa etapa
de sua vida. Sentindo-se bem assim, Simona sente pena “de todas as mulheres que estão vendendo a alma para não perder o objeto simbólico. Tenho
vontade de gritar-lhes: a vida pode ser plena sem um homem, chega!” (SERRANO,
2012, p. 123, grifo nosso). E arremata com maestria: “Eu não estou sozinha
quando estou sozinha.” (SERRANO, 2012, p. 123). Ao final de seu relato, sintetiza o seu projeto de vida: “Não lamento ter sessenta e um anos. Quase
diria o contrário: essa idade me deu quietude, uma nova quietude. O passado não importa, já aconteceu. O futuro não existe. Brindo então à única
coisa que temos de verdade: o presente.” (SERRANO, 2012, p. 128).
A análise encetada no presente artigo permite afirmar que Marcela
Serrano está inscrita naquilo que Schmidt (1995, p. 189) chama de “escrita
feminina”, isto é, “texto de autoria feminina escrito do ponto de vista da
mulher e em função de representação particularizada e especificada no eixo
da diferença”. A autora também torna visível a função dessa modalidade
de escrita: “Ela é uma forma de contestar o caráter misógino ainda presente
em critérios de avaliação de textos literários e que levam críticos a referir-se
a escritoras usando paradigmas masculinos.” (SCHMIDT, 1995, p. 189).
Por fim, cabe dizer que escritoras como Marcela Serrano tornam a
literatura chilena e, consequentemente, a latino-americana, um profícuo foco de discussões, permitindo que diferentes interpretações possam emergir
sobre o fenômeno da literatura produzida por mulheres. A posição que
defendemos não é pela exclusividade da escritura literária feminina, mas
o seu constante diálogo com a escritura literária masculina. Sem isso, leitores(as) de todos os cantos do planeta perderiam muito em termos do verdadeiro objetivo que a obra de arte literária carrega consigo: o prazer estético.
Recebido em março de 2013.
Aprovado em abril de 2013.
162
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
Literature and Genre in Dez Mulheres by Marcela Serrano
Abstract
Based on the proposition of the Feminist Criticism and Cultural Studies of Gender Role, the
present essay examines issues related to literature and gender from the character of Simona,
in the novel Dez Mulheres (Ten Women) written by a Chilean novelist Marcela Serrano and
published in 2011.
Keywords: Chilean literature. Gender. Woman. Dez Mulheres. Marcela Serrano.
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 2. ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
BÍBLIA SAGRADA. Tradução de Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin.
São Paulo: Paulus, 1990.
DUARTE, Constância Lima. O cânone e a autoria feminina. In: SCHMIDT,
Rita Terezinha (Org.). Mulheres e literatura: (trans)formando identidades.
Porto Alegre: Palloti, 1997.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o cuidado de si. Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999. v. 3.
FUNCK, Susana Bornéo. Da questão da mulher à questão do gênero. In:
______. Trocando idéias sobre a mulher e a literatura. Florianópolis: UFSC,
1994.
GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. História contemporânea da América
Latina: 1960-1990. 2. ed. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 2004.
LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa
Buarque de. (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da
cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
NAVARRO, Márcia Hoppe. Re-escrevendo o feminino: a literatura latino-americana atual em perspectiva. In: LIMA, Tereza Marques de Oliveira;
MONTEIRO, Maria Conceição (Org.). Figurações do feminino nas manifestações literárias. Rio de Janeiro: Caetés, 2005.
SANTOS, Salete Rosa Pezzi dos. Duas mulheres de letras: representações da
condição feminina. Caxias do Sul: Educs, 2010.
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
163
SCHMIDT, Rita Terezinha. Da ginolatria à genologia: sobre a função teórica
e a prática feminista. In: FUNCK, Susana Bornéo (Org.). Trocando idéias sobre
a mulher e a literatura. Florianópolis: UFSC, 1994.
______. Repensando a cultura, a literatura e o espaço da autoria feminina.
In: NAVARRO, Márcia Hoppe (Org.). Rompendo o silêncio: gênero e literatura na América Latina. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1995.
SCHNEIDER, Liane. A representação do feminino como política de resistência. In: PETERSON, Michel; NEIS, Ignacio Antonio (Org.). As armas do texto:
a literatura e a resistência da literatura. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2000.
SERRANO, Marcela. Dez mulheres. Tradução de Paulina Wacht e Ari
Roitman. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. 10. ed. São Paulo: Ática,
2007.
ZINANI, Cecil Jeanine Albert. História da literatura: questões contemporâneas. Caxias do Sul: Educs, 2010.
______. Escritura e leitura: o gênero em questão. In: ______; SANTOS, Salete
Rosa Pezzi dos (Org.). Da tessitura ao texto: percursos de crítica feminista.
Caxias do Sul: Educs, 2012.
164
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 149-164, jul./dez. 2013
Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos>
Download