CURRÍCULO, PODER E FILOSOFIA: OS (DES) CAMINHOS DA

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CURRÍCULO, PODER E FILOSOFIA: OS (DES) CAMINHOS DA
CIDADANIA
Vilmar Malacarne
Centro de Educação, Comunicação e Artes
UNIOESTE, Cascavel - Paraná
Resumo: O artigo considera o uso da Filosofia nos currículos dos cursos de
licenciatura de nível superior para possibilitar, através das discussões as quais
ela se propõe, um movimento de resistência ao poder hegemônico na busca
pela cidadania. O texto analisa elementos pertinentes ao processo de formação
de professores conforme a estruturação dos currículos e a lógica que norteia
esta construção. Aponta, ainda, para a necessidade de aproximação entre a
cultura das ciências exatas e a das ciências humanas, a fim de alcançar uma
educação mais condizente com as necessidades tanto do mercado de trabalho
quanto da sociedade em geral.
Palavras-chave: Currículo; formação de professores; filosofia
Abstract: The article considers the use of Philosophy in undergraduate
curricula of Teacher Education to make possible, through the discussions which
it may propose, a movement of resistance to hegemonic power in the pursuit
of citizenship. The text analyzes elements that are pertinent to the process of
teacher education according to the structuring of the curricula and to the logic
that informs such construction. It also advocates the need to bring the culture
of the exact sciences closer to the humanities, so as to achieve an education
that is more coherent both with the job market and society in general.
Key words: Curriculum; teacher education; philosophy
O tema cidadania tem sido abordado constantemente na contemporaneidade.
Em sociedades como a brasileira, as discussões que circundam a cidadania são muito
ANALECTA
Guarapuava, Paraná
v. 4
no 1
p. 9-18
jan/jun. 2003
intensas, principalmente no período pós-ditadura militar e ascensão ao poder dos partidos
tidos como de esquerda. A temática está presente tanto nas rodas de intelectuais quanto
nas escolas, nestas últimas, inclusive como tema curricular.
O elevado interesse pela questão se deve, entre outros motivos, pelo total
descaso a este direito individual na sociedade brasileira no período em que o poder político
estava nas mãos das forças militares. Com o fim do chamado período de exceção, é
retomado o debate, motivado pelo retorno da democracia, que vislumbra o direito de
todos à emancipação e a possibilidade de ascensão social e, também, pela liberdade de
expressão, que permite o debate franco e a luta pelos direitos a que cada indivíduo almeja.
Esse debate, por outro lado, não carrega no seu bojo, necessariamente, a
atitude concreta de efetiva ação para a cidadania, principalmente para aquele menos
assistido. Sendo assim, apesar de efetivamente o país ter ampliado o leque de possibilidades
para que o indivíduo construa e conquiste sua cidadania, a maioria da população continua
à margem de qualquer tipo de direito, mesmo que seus deveres continuem a ser cobrados.
A lógica de progresso nacional, enquanto uma conquista da nação que pretende estar
inserida nos debates dos países democráticos e em crescimento, esbarra nesta falta de
condições e exclusão do projeto de desenvolvimento, do conjunto da sociedade.
Para Pedro Demo, a cidadania é “ ...definida como competência humana
de fazer-se sujeito, para fazer história própria e coletivamente organizada” (DEMO,
1995, p. 1). Ao afirmarmos que nem todos têm conseguido se inserir no processo de
conquista da cidadania para “fazer-se sujeito”, questionamo-nos sobre o que tem impedido
tal inserção. Uma das respostas mais pontuais nos remete à discussão sobre o poder.
Uma definição de poder pode ser encontrada em Hannah Arendt, que o denomina como
... uma habilidade humana não precisamente de agir mas de agir em concerto.
O poder nunca é a propriedade dum indivíduo, pertence a um grupo e permanece
existindo até quando ele como grupo se mantêm junto. Quando dizemos de
alguém que está no poder de fato estamos nos referindo ao ato, por parte dum
certo número de pessoas, que lhe empresta o poder de agir em nome delas. A
partir do momento em que desaparece o grupo, em relação ao qual o poder
começa a existir, (...) também desaparece seu poder (Citado por GIANNOTTI,
1983, p. 178).
Uma das características mais marcantes na definição do Brasil enquanto nação
soberana foi a concentração de poder nas mãos de uma minoria que, de um lado, tomou
as rédeas da política e, de outro, concentrou a renda. Como conseqüência deste tipo de
estrutura, as maiorias sempre passaram à margem de toda forma de conquista de cidadania.
Com a concentração do poder nas mãos de poucos e, geralmente, os mesmos, geração
após geração, as estratégias governamentais acabaram se resumindo a interesses
particularizados. Estes interesses, quando praticados em consonância com interesses tidos
como que “para todos”, foram disfarçados em políticas de cunho assistencial. Com algumas
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poucas migalhas, o poder aplacava a ira das maiorias sem despender do recurso que
objetivava seus interesses de classe hegemônica.
Para manter-se no poder, as classes dominantes sempre se utilizaram de outro
instrumento como forma de, disfarçando os reais interesses, manter a sociedade e o
indivíduo “sob controle”. A ideologia, aqui entendida como “ idéias erradas, incompletas,
distorcidas, falsas, sobre fatos e a realidade” (GUARESCHI, 1990, p. 14), sempre teve
papel preponderante na manutenção de um status quo voltado à hierarquização da
sociedade em classes sociais, separadas com escassa possibilidade de ascensão dos
indivíduos. Dessa forma, a busca pela cidadania sempre foi objeto de luta, porém, nem
sempre se sustentando como possibilidade real.
Para suplantar essa disparidade, o poder faz uso da ideologia nas suas mais
diversas formas. Inserindo sua maneira de pensar em todos os setores da sociedade,
criando a ilusão de que seu modelo de sociedade é para todos e que basta “boa vontade”
e “esforço pessoal” para que sejamos, enfim, todos cidadãos. Esta forma, edificada no
pensamento liberal – hoje neoliberal –, remete ao sujeito a responsabilidade pela situação
criada pelo grupo que, de posse do poder necessário para mudar uma lógica de diferenças,
não o fez, mas se isenta da culpa.
Como romper com esta lógica que afasta o indivíduo do acesso aos meios
fundamentais para conquistar sua cidadania? A resposta não é das mais fáceis. Muitas são
as ferramentas necessárias para alguém se considerar cidadão no uso real de seus direitos
e no cumprimento de seus deveres. Para tal há que se pensar em políticas de renda justa
e equânime, liberdade real de expressão, democracia plena, educação para todos, trabalho,
entre outros. Neste momento, é objeto de nosso interesse e discussão apenas a questão
da educação, não apenas enquanto ferramenta constitutiva de uma cidadania real, mas
também enquanto instrumento capaz de fomentar no sujeito algumas das pré-condições
de tomada de consciência da possibilidade de acesso à cidadania e de formação cidadã.
A escola também é refém do poder e da ideologia. Como tal, ela também
busca alternativas, num mar de falácias pré-concebidas e aplicadas em seu meio pelas
instâncias definidoras das políticas educacionais, de formação libertadora de si própria,
enquanto instância de poder e de preparação das novas gerações. Esta tarefa também
não tem sido de todo fácil. Constituída por pessoas, como quaisquer outras, inseridas
num mesmo momento histórico, onde o poder promove a lógica do “pão e circo”, libertarse e ajudar a libertar compreende uma tarefa hérculea. Porém, um dos setores da sociedade
com maiores condições para, de alguma forma, conseguir propiciar ao indivíduo acesso
às ferramentas de conquista da cidadania, ainda é a escola. É ponto pacífico que uma
sociedade consegue se superar só com o auxílio da educação, talvez não com aquela que
hoje é difundida, mas com uma nova forma de se educar, porém, pelos caminhos da
educação.
Objeto de críticas contundentes e constantes, a escola sobrevive. Adaptandose aos novos tempos, que por vezes a atropelam em seu fazer constante, a escola ainda
ensina, ainda promove cidadania. Na sua tarefa de educar, a escola, ao suplantar suas
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próprias carências, precisa buscar alternativas capazes de, de certa forma, burlar o poder
dominante, sob pena de ser, ela também, coagida. Se consegue reunir um número desejável
de profissionais com condições mínimas de trabalhar em prol da cidadania, já que seus
quadros são formados por pessoas que tiveram acesso a um certo grau de escolaridade,
então consegue colocar-se como instância formadora para a libertação das “garras” do
poder. Mesmo aliciada pelo poder, mesmo que vigiada constantemente, a escola consegue
alguns avanços, marcados também por retrocessos, no processo de edificação da cidadania
individual.
Sabemos que hoje o poder está efetivamente mais preocupado com o
mercado do que com a escola. No mercado ele encontra, ou forja, condições mais eficientes
de controle social do que na escola. Porém, ainda é facilmente detectável sua presença na
educação. A escola ainda não está livre da vigilância do poder para planejar um novo tipo
de educação – lembramos que dialogamos aqui com uma noção de escola composta por
pessoas inseridas num mesmo tempo e, portanto, sujeitas a uma mesma lógica estrutural.
Se, neste sentido, também ela é refém, como pode querer fazer a diferença libertando-se
da vigilância? A escola tem sido uma instância de resistência há muito tempo e, como tal,
apresenta indícios, que são próprios de quem resiste – persistência, enfrentamento, doses,
ainda que leves, de criatividade, entre outros – de quem pode colaborar em muito para a
implementação de um processo formativo, condizente com a lógica que a criou e a mantém,
enquanto princípio, na sociedade.
Que tipos de elementos, presentes na escola, nos ajudam a vislumbrar a
presença do poder em seu meio? Para citarmos alguns, basta observarmos a deficiência
de recursos aplicados à educação, o desrespeito à categoria dos professores, a ingerência
constante por parte do Estado nas escolas, etc. Aqui nos deteremos no aspecto currículo
e, mais especificamente, no ensino superior com ênfase na formação de professores, pois
mesmo o ensino superior tem encontrado dificuldades em cumprir seu papel. Sendo o
mercado o local onde cada vez mais o poder tenta afirmar suas raízes e se alastrar para o
conjunto da sociedade e, sendo das universidades que saem – não apenas, mas
principalmente, é nelas que se formam as cabeças “pensantes” – as pessoas que ocuparão
os postos de comando e controle do mercado, é para elas que o poder volta sua atenção
com afinco. Os currículos dos cursos superiores, estruturados de forma rígida e bitolada à
mera técnica, demonstram isto e é nesta direção que voltamos nossa atenção a seguir.
Currículo e ensino superior
A opção por este nível de ensino se deve ao fato de que entendemos que é
nele que encontramos a base de formação para os profissionais que irão trabalhar nas
escolas de ensino básico, berço para um novo tipo de sociedade.
O ensino superior também se insere neste mesmo contexto. Também na
universidade o poder mostra sua presença constante. Talvez a única diferença esteja no
fato de que seus profissionais tiveram, e têm, acesso a um tipo de formação mais constante
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e aprofundada, que lhes permite maiores condições de construção de uma personalidade
capaz de libertação.
Quando falamos em cursos de formação de professores, as famosas
licenciaturas, também falamos em problemas. Talvez a primeira grande pergunta se volte
para a questão da escolha profissional dos jovens que ingressam na universidade. Quem
tem coragem de ser professor nos dias de hoje, principalmente para o ensino básico
(fundamental e médio)? Basta observarmos o que se passa nas escolas, principalmente as
públicas, deste país. Como se não bastassem os problemas de estrutura e recursos, elas
estão “entupidas de alunos”, e os professores, além de suas (muitas) aulas, precisam
desempenhar múltiplos papéis. Em uma sociedade desestruturada, onde a família
praticamente não consegue mais acompanhar o desenvolvimento de seus filhos por
conseqüência das múltiplas jornadas de trabalho, é a escola que acaba suprindo muitos
dos papéis cuja responsabilidade é fundamentalmente da família. Neste sentido, o professor
é que acaba por desempenhar? e é cobrado para tal? os papéis dos pais e sendo
responsabilizado pela formação múltipla em aspectos em que a família falha. Para somarse a tudo isso, resta a questão salarial e de reconhecimento social (até mesmo de status).
Professores que investiram em média quatro anos em sua formação básica,
acrescidos de possíveis especializações, além do investimento de recursos financeiros,
recebem, após a conclusão do curso superior, entre um e três salários mínimos mensais
por quarenta horas de serviço semanais. Se compararmos esta com a maioria das outras
categorias profissionais de nível superior, veremos o quanto não é valorizado “ser professor”
no Brasil. Se, até pouco tempo atrás, ser professor era sinônimo de status social, hoje
poucos são aqueles que ainda sentem orgulho da profissão e encontram reconhecimento
social. Neste quadro, retornamos a nos questionar, ainda sem resposta: Quem ainda escolhe
um curso de licenciatura para se tornar profissional?
Considerando o quadro apontado, o que faz com que os professores resistam
a tal situação e, até mesmo, o que os impede de mudar esta realidade? Para tanto,
analisemos como se tem dado a formação destes professores na universidade. A base
para tal estudo é o currículo.
Segundo Moreira e Silva:
O currículo é considerado um artefato social e cultural. Isso significa que ele é
colocado na moldura mais ampla de suas determinações sociais, de sua história,
de sua produção contextual. O currículo não é um elemento inocente e neutro
de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo está
implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares
e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares.
O currículo não é um elemento transcendente e atemporal – ele tem uma história,
vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e
da educação (MOREIRA e SILVA, 1995, p. 7-8).
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Neste sentido, a busca pela sua definição, em que subjaz uma concepção de
mundo e de formação, juntamente com a sua implementação, sempre traz no seu bojo
ganhos e perdas, até mesmo porque há limites de ordem temporal na definição de um
curso de graduação. As Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de formação de
professores, no mesmo tempo que ampliam o leque de possibilidades para uma formação
consistente, definindo múltiplos aspectos que devem estar presentes na construção dos
currículos, permitem, e não creio que deveria ser de outra forma, que cada universidade
defina o seu perfil de formação. Se, por um lado, isto permite que se implementem muitos
olhares, por outro lado, retorna-se à questão de interesses particularizados de grupos
hegemônicos dentro dos cursos que, mesmo na “melhor das boas intenções”, acabam
formando profissionais com visões limitadas ou distorcidas – às vezes inclusive com uma
formação aligeirada como forma de baratear os custos. Como conseqüência, é na escola,
e mais especificamente na sala de aula, que encontraremos profissionais com dificuldades
de ensinar e até mesmo de compreender seu objeto de estudo. Como solucionar este
problema? Como sempre, a resposta não é de todo simples e nem definitiva. Talvez o
melhor seja acreditar que estes interesses sejam suplantados pela necessidade urgente de
se repensar a formação de professores e pelas pressões que a própria sociedade tende a
exercer quando situações chegam ao limite da tolerância; a escola está próxima deste
limite.
A implementação dos currículos nos cursos nem sempre é uma tarefa simples
e harmônica. Interesses, nem sempre de caráter pedagógico ou de formação, se somam
aos problemas comuns e específicos de qualquer curso de graduação. Como já citamos
anteriormente, a escola, e a universidade, não são locais isentos e protegidos das garras
do poder e da ideologia dominante. Portanto, lá também há enfrentamentos.
Como constituir um currículo para uma formação ampla e sólida de
profissionais que pretendem ensinar as futuras gerações? Referimo-nos a uma formação
que precisa considerar os tempos de múltiplas tecnologias e onde a escola possui muitas
formas de concorrência, no que tange a instrumentos de informação e de formação para
todos, inclusive e principalmente para os jovens. Que tipo de conhecimento tem mais
valor para uma boa formação de professores, já que não há espaço para abordar tudo o
que a ciência produziu até hoje?
Uma das defesas que propomos neste artigo está voltada para a Filosofia e
para seu papel na formação da personalidade dos jovens. Nesse sentido, propomos sua
inclusão nos currículos de formação de professores – também defendemos sua presença
nas escolas fundamentais e médias – como forma de, dado seu caráter, colaborar na
ampliação das possibilidades de uma formação mais ampla e menos técnica desses futuros
professores. Apontamos também para a possibilidade e necessidade de sua presença nos
currículos dos cursos das mais diversas áreas de formação como forma de ampliar o
leque de formação humanizada.
Contudo, nossa proposta não tem apenas um caráter aditivo, ela deseja que
a experiência colabore para a ampliação das discussões que envolvem a lógica hoje presente
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nesses currículos. Neste sentido é a concepção de escola que está em jogo e é na definição
desses currículos que isso se faz presente de forma mais imediata. Aponta-se, assim, para
a necessidade premente de revisão da perspectiva que subjaz às questões que dizem do
papel profissional desejado para o nosso tempo e para o modelo de sociedade que se
está construindo.
Por que a defesa específica da Filosofia? Algumas das questões que podem
ajudar a entender esta defesa se voltam para, por exemplo, o que é a Filosofia? Qual a sua
função? Qual o seu objeto de estudo?
A Filosofia nos currículos dos cursos de formação superior
A Filosofia, segundo Maria L.S. Teles, “ seria antes de tudo ensinar a perguntar
o porquê: o início do conhecimento é o perguntar” (TELES, 1999, p. 07). Se esta máxima
for verdadeira, e não nos parece ser diferente, e, se somarmos a isso a busca constante
por respostas às questões existenciais que tanto assolam o ser humano, além das discussões
éticas sempre presentes na Filosofia, entre outras tantas questões com as quais ela se
envolve, então a resposta começa a se descortinar.
A Filosofia, diferentemente de outras áreas do conhecimento ligadas às
humanidades, trabalha com um objeto voltado para a construção de espíritos curiosos e
críticos e não com tentativas de compreensão de suas atitudes ou da sua forma de vida, no
sentido mais específico e objeto de estudo de outras áreas do conhecimento como a
Psicologia e a Sociologia, entre outras. As demais áreas do conhecimento também podem,
e fazem, este tipo de trabalho, com seus objetos de estudo. A grande diferença delas para
com a Filosofia está no fato de que a Filosofia faz disso a sua constante. É este seu ponto
de partida e sua tentativa de chegada. Sendo assim, está constantemente instigando, levando
seus alunos a pensar de forma objetiva e específica com vistas a olhar “o outro lado da
moeda”. Desta forma ela não apenas se sustenta em seu objeto, mas também serve de
suporte para as demais disciplinas das grades curriculares que pretendam algo a mais do
que o mero repassar de conteúdos.
Formar um profissional de nível superior com condições de pensar sua atitude
profissional e sua condição cidadã não é uma tarefa de todo fácil. Ser capaz de construir
uma personalidade própria em tempos de pré-conceitos dados, de valores pré-definidos
e de agendas de discussão – leia-se aqui das preocupações que nos perseguem – já
dadas, requer muito mais do que o mero saber técnico, requer que se resgate o sentido de
humanidade já meio que esquecido na lógica da tecnologia. Nesse sentido, na tentativa de
romper com o poder que se instala nos corredores escolares, o auxílio da Filosofia é bemvindo. Sendo assim, possibilitar que a Filosofia volte a transitar pelos cursos universitários
não é apenas inserir uma determinada disciplina a mais nos currículos, mas permitir que os
acadêmicos tenham contato com esta área do conhecimento, e com seu objeto de estudo,
que lhes pode permitir repensar, entre outras coisas, sua própria formação e sua relação
com a cidadania.
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A pergunta que surge desta defesa se volta para a dúvida sobre os resultados
efetivos desta inclusão. Que diferença faz uma ou duas disciplinas de Filosofia (por exemplo,
Introdução ao Pensamento Filosófico e Ética) no conjunto de um currículo de um curso
voltado para a formação de professores? E de um currículo da área de exatas ou da
saúde, entre outros, voltada principalmente para questões mais empíricas? A resposta é
que talvez não exista diferença imediata na formação final deste aluno, porém, certamente
se estará dando a ele a oportunidade de, por alguns momentos, pensar em coisas das
quais geralmente ele nem ao menos seria capaz de problematizar; estaria submisso ao
poder da ideologia que esconde o “outro lado da moeda”. Enquanto não se alcança o
ideal, que seria mudar toda a forma de se pensar a formação superior, esta poderia ser
uma das formas de permitir algo a mais na formação e uma nova ferramenta para
implementar currículos que, de fato, possam preparar os jovens para o mercado de
trabalho, que quer deles competência profissional e habilidades de inter-relacionamento,
e para uma sociedade que espera deles algo mais do que apenas trabalho formal.
Será que estamos esperando muito da Filosofia, muito mais do que ela é
capaz de dar? Não. A Filosofia não está sendo apresentada como “salvadora da pátria”.
Ela apenas pode contribuir com o processo que deseja repensar a função da escola em
um tempo que requer mudanças. Para tal, faz-se necessário restituir-lhe o papel e o espaço
que, em tempos tidos como de exceção, lhe foi tomado no processo de formação das
novas gerações. O poder que cerceia o livre pensar, mesmo que a chamada democracia
diga que não, permitindo a todos dizer o que bem entendem mesmo que, de fato, isolando
pensamentos diferentes ou libertários – no sentido de livre, inclusive da lógica do mercado
–, sempre isolou a Filosofia, permitindo ou excluindo-a dos currículos escolares (em todos
os níveis) conforme lhes foi conveniente. Tais atitudes, já de antemão, nos causam a suspeita
de que talvez a Filosofia pudesse, de fato, ser capaz de instigar nas pessoas algo contrário
aos interesses desse poder.
Como tentativa de concluir nossa linha de raciocínio, reafirmamos nossa tese
de que inserir a Filosofia nos currículos escolares, inclusive na universidade – foco principal
deste artigo – é uma tentativa de permitir que a formação superior inicial de nossos jovens
se dê de uma forma mais completa. Assim, além da formação técnica, lhes será permitido
contato com a formação humana, algo pouco presente em tempos de domínio tecnológico.
Tal tipo de formação mais completa, pode ser entendida como uma forma de a nova
geração, pelo menos em parte, romper um pouco com o domínio do poder e instituir uma
personalidade menos pré-definida e condicionada.
Considerações finais
A discussão que circunda a questão da cidadania continua em aberto. O
poder não deixará de pressionar os setores da sociedade que julgar necessários para a
manutenção de determinado status quo. A educação continuará a se digladiar com as
instâncias por onde passe seu fazer diário. Quanto à Filosofia, é torcer para que continue
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a buscar rigor em seu processo de reflexão das coisas que nos atormentam e que a justificam
enquanto ramo específico do conhecimento e das ciências.
A busca por respostas que nos ajudem a repensar uma nova sociedade
continua uma constante em nossas vidas. Esta problemática também já está presente na
universidade. A defesa da presença da Filosofia nos currículos universitários é uma tentativa
de ampliar estas discussões, permitindo, entre outras coisas, aquilo que Snow denomina
de diálogo das “duas culturas” (SNOW, 1995). Somente a partir do momento em que as
várias áreas do conhecimento dialogarem é que efetivamente será possível pensar uma
nova sociedade. Pensar um determinado tipo de conhecimento que possa estar para além
dos muros das universidades e, assim, ser capaz de, ao se enfrentar com o poder que
cerceia a liberdade e a formação de personalidades independentes e voltadas para objetivos
comuns, colaborar na efetivação da cidadania de cada sujeito.
Quanto às questões que ficaram em aberto, elas representam o início de uma
reflexão que, ao defender a inclusão da Filosofia nas salas de aula das universidades,
busca exercitar o papel daquele que, ao menos, se pergunta.
Repensar o currículo dos cursos de formação superior se coloca assim como
uma forma de questionar o poder e, com o auxílio e presença da Filosofia, elencar os
elementos indispensáveis para o processo de reflexão na busca pela cidadania.
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