a ciencia do obvio

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A CIÊNCIA DO ÓBVIO
Arnaldo Lemos Filho
Professor de Sociologia Geral e do Direito
O titulo deste artigo é o resultado de uma brincadeira que o Prof. Heitor
Regina faz comigo. Muitas vezes, ao nos encontrarmos na sala dos
professores, ele brincando e com certa ironia, me questiona, já sabendo a
minha resposta: “O que é Sociologia?”. Eu, também brincando e com
ironia, respondo, lembrando uma afirmação de Nelson Rodrigues, que, na
época da ditadura militar, criticava os “padres de passeatas” e os
“sociólogos subversivos”: “ a sociologia é a ciência do obvio”. E
acrescentava : do “óbvio ululante”.
Na realidade, a brincadeira parece ter sentido. Afinal, para que estudar
sociologia? Por que estudar a sociedade em que vivemos? Não basta
vivê-la? É possível conhecer a sociedade cientificamente? A Sociologia
serve para quê?
Essas são perguntas que muitos alunos fazem quando encontram essa
disciplina na grade curricular, principalmente os alunos do curso de
Direito. Ao ingressar na Universidade, muitos alunos esperam encontrar
um conjunto de disciplinas voltado inteiramente para o estudo
estritamente jurídico. São imediatistas, pois acham que tendo ingressado
no Direito, já são juristas e querem aprender fórmulas e receitas prontas.
Na época em que Nelson Rodrigues criticava a sociologia, Darcy Ribeiro,
um dos maiores cientistas sociais brasileiros, indignado, escreveu um
texto, que hoje é um clássico nas ciências sociais: “Sobre o Obvio”. Diz
ele que o negocio dos cientistas é mesmo lidar com o obvio.
Aparentemente, diz ele, Deus é também muito brincalhão. Faz as coisas
de forma tão recôndita e disfarçada que se precisa desta categoria de
gente - os cientistas - para ir tirando os véus, desvendando, a fim de
revelar a obviedade do óbvio. O ruim deste procedimento é que parece
um jogo sem fim. De fato, só conseguimos desmascarar uma obviedade
para descobrir outras, mais óbvias ainda.
Darci Ribeiro apresenta algumas obviedades . É óbvio, por exemplo, que
todo dia o sol nasce, se levanta, dá sua volta pelo céu, e se põe. Sabemos
hoje muito bem que isto não é verdade. Mas foi preciso muita astúcia e
gana para mostrar que a aurora e o crepúsculo são brincadeiras de Deus.
Não é assim? Gerações de sábios passaram por sacrifícios, recordados
por todos, porque disseram que Deus estava nos enganando com aquele
espetáculo diário. Demonstrar que a coisa não era como parecia, além de
muito difícil, foi penoso, todos sabemos.
Outra obviedade, tão óbvia quanto esta ou mais óbvia ainda, é que os
pobres vivem dos ricos. Sem os ricos o que é que seria dos pobres?
Quem é que poderia fazer uma caridade? Os ricos é que dão empregos
para os pobres. Seria impossível arranjar qualquer ajuda. Sem rico o
mundo estaria incompleto, os pobres estariam perdidos. Mas veio um
barbudo dizendo que não, e atrapalhou tudo. Tirou aquela obviedade e
colocou outra oposta no lugar. Aliás, uma obviedade subversiva.
Uma terceira obviedade que vocês conhecem bem, por ser patente, é que
os negros são inferiores aos brancos. Basta olhar! Eles fazem um esforço
danado para ganhar a vida, mas não ascendem como a gente. Sua
situação é de uma inferioridade social e cultural tão visível, tão evidente,
que é óbvia. Pois não é assim, dizem os cientistas. Não é assim, não. É
diferente! Os negros foram inferiorizados. Foram e continuam sendo
postos nessa posição de inferioridade por tais e quais razões históricas.
Razões que nada têm a ver com suas capacidades e aptidões inatas, mas,
sim, tendo que ver com certos interesses muito concretos.
A quarta obviedade, mais difícil de admitir, é a obviedade de que nós,
brasileiros, somos um povo de segunda classe, um povo inferior,
vagabundo. Somos 100 anos mais velhos que os estadunidenses, e
estamos com meio século de atraso com relação a eles. A verdade, todos
sabemos, é que a colonização da América no Norte começou 100 anos
depois da nossa, mas eles hoje estão muito adiante. Durante anos, essa
obviedade que foi e continua sendo óbvia para muita gente nos
amargurou. Mas não conseguíamos fugir dela, ainda não. A própria
ciência, por longo tempo, parecia existir somente para sustentar essa
obviedade. As ciências humanas, por exemplo, por demasiado tempo,,
não foram mais do que uma doutrina racista, sobre a superioridade do
homem branco, europeu e cristão, a destinação civilizatória que pesava
sobre seus ombros como um encargo histórico e sagrado.
O mais grave, porém, é que além de ser um povo mestiço - e, portanto,
inferior e inapto para o progresso - nós somos também um povo tropical.
E tropical não dá!, comenta Darcy Ribeiro. Civilização nos trópicos, não
dá! Tropical, é demais. Mas isto não é tudo. Além de mestiço e tropical,
outra razão de nossa inferioridade evidente - demonstrada pelo
desempenho histórico medíocre dos brasileiros - além dessas razões,
havia a de sermos católicos, de um catolicismo barroco. E a nossa
ancestralidade portuguesa, indígena e africana, em lugar de avós
ingleses, holandeses?
Há muitas outras obviedades que poderíamos citar aqui. Como por
exemplo, de que o brasileiro é um povo pacifico, de que há harmonia
entre as classes sociais, de que os movimentos sociais são criminosos.
Estas eram as obviedades com que vivemos muito tempo. Mas as
ciências sociais, a partir de suas pesquisas, começaram a mostrar que
nenhuma se mantinha de pé. Segundo Darcy Ribeiro, demos uma virada
prodigiosa na roleta da ciência. Todas aquelas obviedades caíram por
terra. Eram como a brincadeira diária do sol que todo dia faz de conta
que nasce e se põe. “As coisas não são como parecem ser” é o que digo
nas minhas primeiras aulas. A realidade social sempre nos é
apresentada revestida de uma roupagem, de tal modo que nunca a vejo
como ela é, mas sim por meio de sua roupagem. Quem colocou esta
roupagem? Quem tem interesse e poder. Mas isto não é tão obvio.
No direito, Isto tem uma explicação. Como lembra Olney Queiróz Assis, a
partir do século XX, como resultado da positivação do direito, a ciência
jurídica passou a ser concebida como uma ciência dogmática. Essa
ciência enxerga seu objeto, o direito, posto e dado previamente pelo
Estado, como um conjunto compacto de normas que lhe compete
sistematizar ou classificar, tendo em vista a decisão de possíveis
conflitos. A partir desse modelo teórico, o direito é visto como um
fenômeno burocratizado, um instrumento de poder, e o saber jurídico
como um saber dogmático (uma tecnologia), motivo pelo qual o ensino
jurídico tem negligenciado as contribuições da sociologia na
compreensão do fenômeno jurídico ( Manual de Sociologia Geral e
Jurídica, Lex Editora, 2010).
Como conseqüência, há no estudo do direito uma inclinação bastante
forte para identificar a ciência jurídica como um tipo de tecnologia
destinada apenas a atender às necessidades do profissional do direito no
desempenho imediato de suas funções. Não percebem o direito como
instrumento de mudança e gestão social, não compreendem o direito
como um saber que também serve à luta e transformação social exigida
pelo mundo em que vivemos.
Este tipo de estudo, fechado, técnico e formalista, é implementado na
maioria das Faculdades de Direito. Essas instituições de ensino, diz
Olney, passam a formar profissionais que não questionam os pontos de
partida (dogmas) e, com isso, as normas são consideradas convenientes,
adequadas, justas e irrepreensíveis. As disciplinas que poderiam
provocar o questionamento crítico (sociologia, economia, filosofia) não
raras vezes, são designadas por muitos alunos como “perfumarias”.
Uma obviedade “obvia”: diante da alta complexidade que o mundo
contemporâneo imprimiu à vida social, não há como isolar os problemas
jurídicos dos seus aspectos sociológicos, antropológicos, econômicos,
políticos, filosóficos, éticos, históricos. Debates sobre temas jurídicos
como o imigrante ilegal, o aborto, a união homo afetiva, a deficiência, a
eutanásia, a demarcação da terra dos índios, a “ocupação”(ou invasão)
de terras,o reconhecimento dos quilombos, as ações afirmativas e outros
exigem do jurista algumas incursões na sociologia tendo em vista a
construção de respostas que possam fundamentar decisões que
“impliquem um mínimo de perturbação social”(Olney, obra citada).
Na Faculdade de Direito da PUC de Campinas, há para os professores de
sociologia, economia, filosofia, toda liberdade no desenvolvimento de
suas disciplinas que são valorizadas como as outras mais específicas.
Isto tem levado ao desenvolvimento da consciência social dos alunos,
inclusive ao longo de muitos anos na formação de grupos de estudo que
buscam ação e critica social.
Obs. Quem quiser ler o texto de Darcy Ribeiro, na integra, acesse :
http://www.olobo.net/index.php?pg=colunista&id=296
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