A poesia realista de Bernardino Lopes Bernardino Lopes` realistic

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Doi: 10.5212/Uniletras.v.33i1.0004
CDD 869.04
A poesia realista de Bernardino Lopes
Bernardino Lopes’ realistic poetry
∗
Danglei de Castro Pereira
Resumo: Bernardino Lopes (1859-1906) é visto, neste trabalho, como autor heterogêneo por trazer
influências parnasianas, simbolistas e realistas. O aproveitamento de temas prosaicos e cotidianos
são formas de reorganizar a tradição lírica nos poemas de Bernardino Lopes e, em nossa leitura,
índices de traços realistas em sua obra. Cabe lembrar que não pretendemos classificar o poeta nos
limites do realismo; antes, defenderemos, por meio de poemas extraídos de Cromos (1881), Brasões
(1885), Val de lírios (1900) e Helenos (1901), a heterogeneidade da poesia de Lopes e, nesse percurso,
apresentaremos sua poesia. A investigação, portanto, entra em consonância com a necessidade de
uma constante revisão dos padrões canônicos associados ao percurso historiográfico de avaliação do
literário. Apresentar a poesia de Lopes é, por isso, uma forma de diálogo tensivo com os valores do
cânone literário ao propor sua revisão via ampliação de limites fixos.
Palavras-chave: Poesia realista. Bernardino Lopes. Poesia brasileira.
Abstract: In this paper Bernardino Lopes (1859-1906) is seen as a heterogeneous author as he presents Parnassian, symbolist and realist influences. The use of prosaic and daily themes is a form of
reorganizing the lyrical tradition in Bernardino Lopes’ poems and examples of realistic traces in his
work. It is important to point out that there is no intention in classifying the poet within the limits of
Realism; on the contrary, it will be shown with poems from Cromos (1881), Brasões (1885), Val de
lírios (1900) and Helenos (1901), the heterogeneity of Lopes’ poetry. The investigation, therefore
demonstrates the need of constant revision of the canonical patterns associated to the historiographic
evaluation of literary works. Presenting Lopes’ poetry is a form of dialogue with the values of the
literary canon as it proposes its revision through the increase of fixed boundaries.
Keywords: Realistic poetry. Bernardino Lopes. Brazilian poetry.
Introdução
Ao discutir os limites da poesia realista brasileira, muitas vezes,
deparamo-nos com uma confusão crítica que toma o parnasianismo como
sinônimo de poesia realista. Tal confusão é ampliada, no caso do Brasil, pela
∗
Doutor em Letras. Professor de Literatura e Cultura Brasileira na Universidade Estadual de Mato
Grosso do Sul (UEMS). <[email protected]>
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força adquirida pela escola parnasiana em nossa pátria. Poetas como Olavo
Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Corrêa, Francisca Julia, Guilherme de
Almeida, entre outros, são compreendidos como representantes indeléveis
do parnasianismo no Brasil e, muitas vezes, vistos como exemplos da poesia
realista.
Bernardino Lopes é classificado dentro dos principais compêndios
literários nacionais – para citar duas obras, História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi (1993) e A literatura no Brasil, de Afranio Coutinho
(1994) – como poeta de inclinações parnasianas e, por vezes, detentor de traços
simbolistas. Essa avaliação é coerente, por exemplo, na leitura do poema que
segue, retirado de Brasões:
X
Fim/ de/ tar/de/ se/re/na e /vio/len/ta/da ...
No/ cé/u/ — du/as es/ter/las/, e a/rre/pi/os
Na/ as/fi/ra /do/ mar/, to/da/ coa/lha/da
De e/ma/ra/nha/dos/ mas/tros/ de/ na/vi/os.
(A)
(B)
(A)
(B)
Lon/ge, em/ter/ né/voas,/ tra/ços/ fu/gi/di/os
De u/ma/ ci/da/de/ bran/ca/ de/rra/ma/da
— Ca/sas/, to/rres/ e /co/ru/ches/ es/gui/os,
Por/ to/da a/ cla/ra/ fi/ta/ da em/se/a/da.
(B)
(A)
(B)
(A)
A/qui/ bem/ per/to, a/qui/, na ar/gen/tea/ pra/ia, (C)
Com/tra um/ ro/che/do /nu,/ cal/cá/reo e/ ru/do, (D)
Do/ poen/te a/ frou/xa/ cla/ri/da/de es/tam/pa, (E)
Ba/lan/çan/do/-se/ n’á/gua/, uma/ ca/trai/a;
(C)
E, a/ga/sa/lha/dos/ no/ gi/bão/ fel/pu/do,
(D)
Pés/ca/do/res/ que/ vão/ su/bin/do a/ ram/pa ... (E)
Neste poema, percebe-se o olhar enigmáico do eu-lírico sobre a tarde,
descrita de forma adjetival como “serena e violenta”. A esta descrição o eu-lírico evoca uma sequência de adjetivos que “entre névoas” e “traços fugidios”
vão diluindo o efeito concreto associado ao entardecer em direção a uma visão
confusa que perde-se em meio ao jogo de palavras que ora focaliza o entardecer
em uma “argêntea praia”, ora capta sensações advindas do olhar do eu-lírico
diante dos pescadores que “vão subindo uma rampa”. O efeito de alienação via
projeção de sensações confusas e a utilização de um vocabbulário rebuscado
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aproximam o poema das “sensações insólitas do simbolismo”. Imerso no real,
porém, a reorganização sensitiva do entardecer conduz a visão objetiva face
à praia, fato significativo dentro da estética realista.
Ao mesmo tempo, o poeta evoca a tradição poética parnasiana via
utilização do decassílabo heroico e do soneto com padrão rítmico definido
e tradicional, como pode ser visto na escanção. Essas observações indicam
um esvaziamento da mensagem poética que foge do processo individual de
interiorização de sensações na lírica via utilização do percurso mimético na
interação do eu-lírico com o espaço no qual está inserido. Fica então um
questionamento quando da leitura da poesia de Bernardino Lopes: a descrição
espacial assume sempre o esvaziamento enunciativo via rebuscamento formal
e acúmulo insólito de sensações?
Acreditamos, como hipótese deste trabalho, que a poesia de Bernardino
oscila entre a utilização preciosista da linguagem dentro do que podemos
denominar por esvaziamento da tradição parnasiana e simbolista e a utilização
descritiva do espaço real, enquano ponto de questionamento da realidade
imediata e, por correlação, da situação humana neste espaço. Entendemos
que em alguns poemas, os quais utilizaremos neste trabalho, a descrição do
real imediato conduz a um sentido mais amplo de interação entre o homem e
o mundo e, nesses poemas, é possível verificar traços realistas em sua poesia.
Fazemos, entretanto, uma advertência crítica que julgamos necessária. Não desvalorizamos ou negligenciamos a importância estética e o valor
artístico da poesia parnasiana ou simbolista. Entendemos sua relevância no
contexto literário brasileiro e o valor intrínseco dessas produções. Poemas
como “Vila Rica”, “Profissão de fé”, o conjunto de poemas que compõe “Via
láctea”, de Olavo Bilac; “Fantástica”, “As pombas”, de Raimundo Côrreia,
“Vaso grego”, “Vaso chinês”, de Alberto de Oliveira, entre outros poemas, são
índices do valor poético do parnasianismo. Quanto ao simbolismo basta citar
a obra poética de Cruz e Sousa, Pedro Kilkerry, Alphonsus de Guimaraens ou
Mário Pederneiras, também para ficarmos em poetas importantes, para deixar
claro o valor poético da lírica de fim de século. Fazemos esta advertência para
evitar leituras preciptadas que julgam a poesia parnasiana e simbolista pelo
estereótipo construído pela literatura modernista, propensa a vê-la pela ótica
de poemas como “Poética” e “Os sapos”, de Manuel Bandeira.
Feita esta advertência, lembramos, neste momento, as colocações de
Hênio Tavares (2002, p. 75) para quem a poesia realista sem confundir-se com
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a poesia parnasiana assume um caráter de observação do real de onde retira
reflexões sociais e ontológicas
sem a efusão derradeiramente sentimental dos românticos. Certos temas
por estes [os poetas realistas] tratados discretamente, são visualizados
de modo objetivo e muitas vezes chocante, como, por exemplo, o amor,
que não raramente descamba para a sexualidade.
Ao pensar Bernardido Lopes como um poeta que apresenta traços
realistas em seu fazer poético, reconhecemos que, muitas vezes, o poeta foge
do enfrentamento introspectivo do real para adotar um percurso preciosista, no
qual traços parnasianos esvaziam a análise do real observáveis em sua melhor
poesia, aqui entendida como os poemas que compõem o livro Cromos. Quando, no entanto, percebe-se a presença dos aspectos realistas e a focalização e
descrição do real filtrado em direção a um sentido mais íntimo, seus poemas
ganham em densidade significativa. Nesses momentos seu lírismo produz uma
poesia que expressa a fragmentação do sujeito ao final do século, fato que o
alinha aos valores contestadores da poesia realista.
Um exemplo deste processo pode ser colhido no “Cromo XXV”.
CROMO XXV
Na alcova sombria e quente
Pobre demais, se não erro,
Repousa um moço doente
Sobre uma cama de ferro.
Pede-lhe baixo inclinada
Sua mulher — que adormeça,
Em cuja perna curvada
Ele reclina a cabeça.
Vem uma loira figura
Com a colher da tintura,
Que ele recusa, num ai!
Mas o solícito anjinho
Diz-lhe com riso e carinho:
— Bebe que é doce, papai!
Neste poema a “alcova sombria e quente”, leito de um moço doente
é descrita de forma mimética na medida em que as referências concretas, tais
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como“cama de ferro”, a mulher inclinada “em cuja perna curvada/ele reclina
a cabeça”, solicitam ao enfermo um espaço de tranquilidade, de segurança
familiar. A indicação de desfalecimento e fragilidade do personagem evocado
no poema é suplantada por uma imagem concreta: a criança loira ou “solícito
anjinho”, que traz “uma colher de tintura” para aplacar a doença do enfermo
e, com isto, apresenta uma saída objetiva para a sensação de fragilidade apresentada inicialmente pelo poema.
A descrição da cena – homem doente entregue à figura feminina que
acalenta – foge do cenário romântico de transcendência pela morte. Antes é
a descrição de uma cena cotidiana, na qual o “papai” descança na cama ao
receber a atenção familiar da esposa e do filho. Esta cena descrita sob a égide
da tranquilidade doméstica conduz a sensação de quietude do sujeito em um
espaço de conforto, fato que amplia a sensação de proteção evocada no poema
e conduz à percepção concreta de uma cena familiar, mesmo com a indicação
da doença.
Salientamos, ainda, que o propósito deste texto é apresentar Bernardino Lopes e não classificá-lo como poeta realista, parnasiano ou simbolista.
Pelo contrário, partimos do pressuposto de que seua poesia é resultado de um
precurso híbrio que mescla tendências contemporâneas em sua época e, por
isto, traços parnasianos, simbolistas e realistas seriam inerentes ao seu fazer
literário.
Feitas as colocações iniciais, passamos à apresentação do poeta.
1. Considerações sobre a poesia de fim de século XIX
Um dos traços inquestionáves quando da verificação da poesia produzida no Brasil no período entre-séculos (XIX e XX) é o caráter heterogêneo
das produções. Augusto dos Anjos, Guilherme de Almeida, Olavo Bilac,
Mário Pederneiras, Pedro Kylkerry, Machado de Assis (poeta), Cruz e Souza,
Alphosus de Guimaraens, entre tantos outros são exemplos dessa diversidade.
Concordando com Manuel Bandeira (1972), compreendemos a predominância da poesia parnasiana neste período. O parnasianismo pode ser
entendido, então, como tendência predominante na lírica deste período, mas
convive com o realismo, simbolismo e, por que não dizer, pré-modernistas e os
primeiros modernistas. Como resultado de um conjunto de aspectos estéticos
que retomam a tradição poética clássica, o parnasianismo, ainda seguindo as
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colocações de Bandeira (1972), mantém-se hegemônico até meados da segunda
metade do século XX.
Ao adotar o abstrato em detrimento da realidade imediata os poemas
parnasianos apresentam um teor clássico que prima pelo rebuscamento formal
e organiza procedimentos estéticos altamente rebuscados. O ritmo helênico, a
utilização do alexandrino e do decassílabo, a evocação do soneto e de formas
fixas tradicionais como o madrigal, a elegia, a lira, entre outras são marcas
preponderantes do que podemos indentificar como negação ao real imediato
no processo de organização lírica do parnasianismo. Outro aspecto interessante
da poética parnasiana é um sentido de atemporalidade e anti-sentimentalismo,
via adoção do detalhe poético e do verso perfeito rítmica e estruturalmente.
Essas marcas estilísticas indeléveis ao parnasianismo criam um espaço
favorável ao verso “martelado” de “toaneiro aguado”, nas plavras irônicas do
já célebre “Os sapos”, de Manuel Bandeira. Para Moisés (2010, p. 223)
[...] ao longo da época realista, floresceu a poesia parnasiana, caracterizada por seu antissentimentalismo e a consequente reposição de ideais
clássicos de Arte, como a impassibilidade, o racionalismo, o culto à
forma, o sensualismo, o esteticismo, o universalismo. Desta distingue-se
a poesia realista afeita ao mundo real e a visão grostesca à Baudelaire.
A poesia parnasiana condensa um olhar abstrato diante do real e, por
vezes, sua negação, fato percebível em poemas como “Vaso chinês” e “Vaso
grego”, de Alberto de Oliveira, “Fantástica”, de Raimundo Corrêa ou, nos
também célebres, “Profissão de fé” e “Vila rica”, de Olavo Bilac, para ficarmos
em alguns exemplos inquestionáveis da estética parnasiana.
Ao produzirem uma poesia hermética que filtra as influências sociais
via isolamento temático e preciosismo linguístico, organizado em um conjunto formal altamente elaborado que retoma formas fixas e uma tradição sob
forte influência Clássica; os parnasianos establecem uma estética de gosto
refinado que, celebrada pela expressão francesa de L’art pur l’art,concebe um
tipo textual de elevado valor artístico. Esta poeisa altamente elaborada é, no
entanto, abstrata em sua relação com a realidade imediata, sobretudo, quando
da aproximação à prosa e poesia realista, propensa a focalizar a realidade de
maineira mimética e, por vezes, objetiva como, por exemplo, nos romances
de Machado de Assis, Eça de Queiroz ou na poesia de Antero de Quental
e, para darmos um exemplo brasileiro, no poema “Suave Mari Magno”, de
Machado de Assis.
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O resultado é uma poesia do espaço abstrato que nega o contato da
lírica com o real imediato, visto muitas vezes, como contaminado pelos excessos emotivos de um certo romantismo epigonal e impregnado pelo verso
grotesco e descritivista da poesia realista. Entendido, entretanto, como escola
de resistência aos dissabores da vida cotidiana – tema impregnado na lírica
realista de um Cesário Verde, por exemplo – a poesia do parnasianismo busca
em seu movimento de abstração a tentativa de descontaminação dos temas
artísticos advindos do contato cada vez mais evidente da arte com o mundo
concreto. Esta resistência ao contato com o real e sua consequente sublimação
via retorno ao mundo clássico, na focalização do fragmento ou no detalhe em
detrimento do enfrentamento aos dissabores do mundo concreto são argumentos favoráveis ao que identificamos como resistência aos temas mundanos na
estética do Parnaso.
O distanciamento face ao real é, em nosso ponto de vista, uma das
principais evidências do distanciamento temático entre a poesia parnasiana
e a poesia realista. Saraiva e Lopes (1946) comentam que a poesia de fim de
século em Portugal é heterogênea por abrigar poetas como Cesário Verde,
Antero de Quental, Camilo Pessanha, entre outros. A chamada “Questão
Coimbrã” é lembrada como comprovação dos novos caminhos trilhados pela
lírica de fim-de-século justamente por questionar os excessos românticos e
sua sentimentalidade decadente para propor uma poesia de questionamento.
Em substituição ao esvaziamento emotivo surge, então, a crítica
social e a descrição mimética do real. Este olhar social perceptível nas descrições imagéticas de Cesário Verde retiradas das cenas do cotidiano criam,
via sentido de observação plausível do real, um fator de reorganização das
convenções artísticas ao final do século XIX em Portugal, fato que amplia o
horizonte temático da poesia realista quando pensada como paralelo da poesia
romântica e realista. Influenciados por Baudelaire os poetas de fim-de-século
– brasileiros e portugueses – procuram tangentes para a situação fragmentada
e alienda do homem deste período. Um dos caminhos é a focalização do real
e sua interpretação via análise social na poesia realista. Outro é a alienação ao
subconsiente e a busca por transcendência – entendida como negação do real
e sua reoganização via insólito nos simbolistas. No caso parnasiano ocorre
um percurso alienante, mas materializado na eleição do detalhe e na volta ao
passado Clássico.
Dessas considerações extraímos a ideia de que tanto Simbolismo
quanto Paranasianismo são movimentos de ressistência à alienação emotiva
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dos últimos românticos e, também, ao contato da lírica de final de século XIX,
com o mundo concreto, grotesco e bestializado expresso pelos realistas. Esse
mundo grotesco – cerne da visão contestadora da poesia realista – implica em
uma objetivação dos temas líricos via contato com a realidade. Ao deflagrar a
fragilidade da “torre de babel”, para usarmos uma expressão que compreende
o isolamento parnasiano em um percurso altamente estético e alienante, os
realistas compreenderiam o sentido de questionamento imposto à lírica tradicional após a publicação de As flores do mal, de Charles Baudelaire.
A presença de marcas interpretativas do real via exposição concreta
das dificuldades enfrentadas pelo homem no entre-séculos é evidência de outra
distinção possível entre poesia realista e parnasiana. Tal distinção inviabiliza
a proximidade unilateral proposta em muitos compêndios literários. Cabe
lembrar, entretanto, que a observação do real e sua interiorização via percurso
lírico são um dos maiores legados da lírica realista como fonte de influência
para a poesia do século XX. Este fato é verificavél, por exemplo, em poemas
como “As cismas do destino”, de Augusto dos Anjos; “Descobrimento”
e “Inspiração”, de Mário de Andrade; “Evocação de Recife”, de Manuel
Bandeira; e “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, apenas
para citarmos exemplos deste procedimento.
Antonio Candido (2006, p. 40), quando da discussão da diversidade
lírica realista no Brasil, comenta que
[...]seria errado pensar que estes poetas, movidos por um senso estreito
de realismo, tenham feito a equiparação pura e simples de Baudelaire a
um “descompassado amor à carne”. Para começar, vimos que o erotismo
para eles foi revolta e desmitificação, tanto assim que os seus poemas
realistas ombreavam com as suas violentas diabrites políticas, em prosa
e verso. (Grifo do autor)
Poesia do cotidiano e do burlesco, a lírica realista toma como tema a
descrição do real como material poético. A lírica descritiva de Cesário Verde
ou o tom crítico de Antero de Quental e, no Brasil, “As cismas do destino”, de
Augusto do Anjos seriam exemplos substanciais da lírica realista. Ao abordar
a realidade imediata de forma a percorrer caminhos expressivos retirados das
impressões colhidas diretamente da realidade, a lírica realista filtra do real
os temas líricos, promovendo o contato da poesia com a rua e com aspectos
grotescos da natureza humana.
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Dessa concretude o poeta realista retira material para a reflexão
poética. O questionamento da situação fragmentada do ser humano, já
deslocado do espaço burguês, a visão crítica face à cobiça e a deterioração
moral da sociedade em transformação são temas recorrentes nesta poesia de
questionamentos, fato que comprovaria a influência de Baudelaire como uma
de suas fontes.
2. O realismo enigmático de Bernardino Lopes
1
Bernardino da Costa Lopes(1859- 1916) é um poeta desconhecido na
tradição literária brasileira. Mulato e funcionário público o poeta perambulou
com alguma ressonância literária ao final do século XIX e início do século
XX, porém conheceu o ostracismo legado a muitos de seus coetâneos após a
segunda década do século XX. Amigo pessoal de Olavo Bilac é, muitas vezes,
visto como um poeta parnasiano, sem contudo atingir o brilho de seus contemporânos. Fundador da Folha Popular em 1891, um dos berços do simbolismo
no Brasil, conheceu notoriedade com apublicação de Cromos, em 1881, livro
reeditado em 1886. Alfredo Bosi (1993, p. 229) comenta que Lopes produziu
uma poesia “das coisas domésticas, dos ritmos do cotidiano”.
As pricipais obras do poeta são Cromos (1881), Pizzicatos: comédia
elegante (1886), Brasões (1895), Sinhá Flor (1899), Val de lírios (1900),
Helenos (1901), Plumário (1905). O poeta teve suas Poesias completas
reunidas em 1945, livro do qual retiramos os poemas selecionados para as
discussões deste artigo.
No poema “VIII” de Brasões visualizamos o processo descritivo
já aludido na discussão do “Cromo XXV” no início deste trabalho. O poeta
2
apresenta como principal caracterísitca realista a singularização dos referentes
poéticos rumo à objetivação das cenas líricas descritas nos poemas. Este percurso crítico face ao real imediato descrito nos poemas conduziria a uma das
caracteríticas realistas perceptíveis na poética de Bernardino Lopes. No poema
“VIII” temos a descrição do entardecer em uma praia, imagem recorrente na
1
A data da morte do poeta é controversa. Afrânio Coutinho (1994) menciona o ano de 1906. Outros
críticos, entre eles Alfredo Bosi (1993), informam o ano de 1916. Essa confusão, não interfere no desenvolvimento do trabalho e, por isto, fica como informação o ano de 1916 como sendo o da morte do poeta.
2
Utilizamos o conceito de singularização e estranhamento apresentado por Victor Chiklovisk em
“A arte como procedimento” (1976).
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poeisa do autor. Na janela, a nudez de uma figura feminina debruçada à janela
oferece uma visão enigmática para o eu-lírico.
VIII
Abrem duas janelas para a rua,
Com trepadeira em arcos de taquara;
A cortina de renda, larga e clara,
Alveja ao fundo da vidraça nua.
Em frente o mar, e sobre o mar a lua,
A estrelejar a onda que não pára (sic);
Aflam asas por cima e solta a vara,
N’água brilhante, o mestre da fauna.
Ecos noturnos e o rumor estranho
Da meninada trêfega no banho
Voam da praia ao chalezinho dela;
Move-se um corpo de mulher, no escuro;
Gira, após, o caixilho; e o luar puro
Ilumina-lhe o busto na janela!
O poema segue uma descrição objetiva da realidade que reorganiza as
sensações enigmáticas percebidas à primeira vista em direção à descrição de
uma cena concreta: a mulher nua debruçada à janela. Da cena inicial “abertura
de duas janelas para a rua” rodeada de trepadeiras e com cortinas de “renda,
larga e clara”, ocorre a indicação de uma “vidraça nua”. Após descrever a
vidraça e as janelas o poema foca o mar e, sobre ele, a “lua” em uma cena
natural de caráter altamente descritivo e mimético. Segue-se a essas descrições
do cenário a ambientação local via sons de crianças brincando e pequenos
rumores “noturnos”. A esta descrição, entretanto, o observador é levado ao
centro do “chalezinho”, no qual a figura da mulher nua debruçada à janela
move-se no escuro.
O eu-lírico então parece contemplar a figura, tomado por um devaneio
erotizado. Esta associação do cenário natural a um espaço de desejo e sensualidade implica na exposição do erótico associado à figura feminina descrita no
poema. Ampliadas pela sensualidade da cena as sensações descritas no texto
promovem a impossibilidade do onírico em direção ao concreto e palpável. A
cena é objetivada e o caráter erótico imprime à figura feminina uma compleição
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A poesia realista de Bernardino Lopes
objetiva: é uma mulher nua vista pela janela e no escuro que tenta o eu-lírico
despertando seu desejo. Esse despertar, no entanto, cria uma sensação de
humanidade ao eu-lírico e faz das cenas descritas nas três primeiras estrofes
pano de fundo para a exposição do caráter humano e erótico que se corporifica
no poema via focalização no concreto.
A percepção da mulher nua à janela remete ao desejo e estilisticamente
confunde-se ao murmurar das ondas e ao contraste entre os matizes claro e
escuro no poema. Esse procedimento contamina a função apenas ornamental
do espaço descrito para ampliar o erotismo no texto. Os sons da noite e os
gritos da “meninada trêfega no banho” confluem para o aspecto sensual, porém
as relações de confluência e desejo são construídas sob a égide do concreto.
Essas correlações compreendem a concretude da imagem feminina. Tal imagem é ampliada pelo desejo sugerido pela agitação do primeiro terceto e pela
alusão fálica ao “caixilho”, no décimo terceiro verso, como forma de impedir
a contemplação passiva da figura feminina nua aos olhos do eu-lírico.
Este contemplar um objeto concreto e não a imagem de uma musa
insólita e intocada, comum aos parnasianos, implica na inversão consciente da
imagem poética aludida como característica realista em Bernardino Lopes. É
do concreto que o poema evoca a figura feminina. Em outros termos, é o busto
feminino iluminado pelo luar que provoca a inquietação no último verso do
poema. Teríamos aqui o “erotismo” que conduz à “revolta e desmitificação”
da tardição, comentada por Candido (2006).
O mesmo olhar em busca de uma imagem concreta é visto no poema
que segue.
PER PURA
Clara manhã; rutilante
Ascende o sol no horizonte;
Corre uma aragem fragrante
Por vale, planície e monte,
Trazendo nas frias asas
Um lindo som de cantigas.
De cima daquelas casas,
Casinhas brancas e amigas,
Sobem fumos azulados;
E há pombos pelos telhados.
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Cresce o rumor das cantigas...
Surge um farrancho de gente
Alegre, farta e contente,
De samburás e de gigas.
Andam colhendo as espigas
Do milharal pardo e seco;
É dali que vem o eco
De tão bonitas cantigas...
Cantai, cantai, raparigas!
Neste poema a presença do objetivo face ao real fica mais evidente.
As cenas apresentam uma identidade entre a manhã construída pela sobreposição de um ritmo sonoro que evoca um sentido idílico de rumores matinais.
O encadeamento de ruídos no plano sonoro do poema é conseguido pela
sobreposição de fonemas como /r/ contrapostos a /s/ e dos vocálicos /e/ e /i/,
criando um efeito mimético para a ampliação sonora do plano rítmico. Deste
espaço sonoro surge a alusão às “bonitas cantigas” que, no entanto, não surgem apenas do titilar do vento, mas da busca objetiva do som, são cantigas
humanas, portanto, concretas.
A alusão na segunda e terceira estrofe a pássaros e à “aragem fragrante”
do vento reafirma a presença de algo concreto na imagem bucólica evocada.
O som advém de vozes femininas que cantam no fazer cotidiano da colheita.
A referência aos “samburás” e às “gigas” confirma o aspecto concreto da cena,
provocando sua objetivação.
Não é permitido ao eu-lírico permanecer no devaneio bucólico, os
sons são objetivados e associados ao percurso mimético da colheita de milho
feita ao amanhecer. Essa objetivação confirmada pelo último verso do poema
identifica o som das cantigas. O poema apenas descreve uma cena e, neste
percurso, apresenta um aspecto concreto do cotidiano, o trabalho matinal.
Essa busca pelo real via visão concreta e objetiva é vista também no
poema “O berço”.
O BERÇO
Recordo: um largo verde e uma igrejinha,
Um sino, um rio, um pontilhão, e um carro
De três juntas bovinas que ia e vinha
Rinchando alegre, carregando barro.
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A poesia realista de Bernardino Lopes
Havia a escola, que era azul e tinha
Um mestre mau, de assustador pigarro...
(Meu Deus! que é isto? que emoção a minha
Quando estas cousas tão singelas narro?)
Seu Alexandre, um bom velhinho rico
Que me acordava de manhã, e a serra...
Com seu nome de amor Boa Esperança,
Eis tudo quanto guardo na lembrança
De minha pobre e pequenina terra!
Nele a ideia do locus amenus parnasiano e neoclássico perde a efusão
utópica para imprimir um aspecto concreto à memória. Este percurso é conseguido por uma reorganização da fragmentação memorialista, algo inovador
dentro da perspectiva remissiva própria da memória. Dela o eu-lírico evoca
apenas aspectos concretos retirados da memória: “a igrejinha”, “as três juntas
bovinas” que carregam o barro na alusão mimética ao carro de boi. A escola
com seu “mestre mau” e a negação entre parênteses da emotividade advinda
destas “memórias singelas” indicam uma intenção pelo concreto, pelo não
emotivo via objetivação da memória, das lembranças.
Esse perfil de adesão ao concreto imprime a observação do mundo.
É do olhar que advêm as sensações descritas nos poemas comentados neste
trabalho. Embora os comentários funcionem como apresentação do poeta,
fica evidente que o tom prosaico e a objetivação do mundo são características
importantes em sua poesia. Delas emerge um eu-lírico que opta pelo concreto
em detrimento da abstração parnasiana.
Considerações finais
Bernardino Lopes é, pelas considerações aqui apresentadas, um exemplo de traços realistas dentro da tradição poética brasileira. Procuramos, neste
trabalho, apresentar alguns aspectos de sua poesia. Porém, o que fica evidente
é o trato objetivo face à tradição lírica de seu tempo. O poeta remete a uma
acomodação dos valores parnasianos, porém introduz uma visão objetiva aos
processos de organização lírica do final do século XIX.
É verdade que o preciosismo formal e a presença de marcas parnasianas prejudicam uma reorganização mais contundente da tradição, porém
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Danglei de Castro Pereira
é um poeta que merece um olhar detido da crítica. Nossa principal intenção
com este texto é, por isso, apresentar sua poética e, neste percurso, apontar
para a necessidade de uma melhor discussão dos caminhos da lírica realista
na tradição brasileira.
Referências
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Recebido para publicação em 2 jun. 2011.
Aceito para publicação em 17 jul. 2011
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