Promovendo Saúde na Contemporaneidade: desafios de

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Promovendo Saúde na Contemporaneidade:
desafios de pesquisa, ensino e extensão
Santa Maria, RS, 08 a 11 de junho de 2010
SOBRE O PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR: UM DISPOSITIVO CLÍNICO OU UM
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PROCEDIMENTO BUROCRÁTICO?
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Cadore, C. ; Palma, C. M. de S. ; Dassoler, V. A.
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Trabalho de Iniciação Científica
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Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil
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Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil
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Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil
E-mail: [email protected] ; [email protected]; [email protected]
RESUMO
O Projeto Terapêutico Singular é um dispositivo clínico que propõe ações integradas e
dispositivos específicos ao tratamento realizado nos serviços de Atenção Psicossocial, valorizando a
singularidade do paciente. Diante do exposto, o objetivo desse trabalho é apresentar a pesquisa
realizada, no ano de 2009, num CAPSad, através da análise documental de Prontuários de pacientes
do referido serviço. Procurou-se verificar se o PTS e o Prontuário estão sendo utilizados pelos
profissionais do CAPS como um dispositivo clínico que contempla a singularidade do paciente ou
como um procedimento burocrático. A análise documental revelou que o PTS não está sendo
utilizado como dispositivo clínico e que os prontuários encontram-se incompletos ou ilegíveis, faltando
informações relevantes que serviriam à eleição das ações terapêuticas singulares destinadas ao
usuário. Considera-se, assim, que há no CAPS investigado uma utilização predominantemente
burocrática do PTS.
Palavras-chave: Projeto Terapêutico Singular. Análise Documental*. Burocracia. CAPSad.
Psicanálise.
1. INTRODUÇÃO
A criação do dispositivo Projeto Terapêutico Singular (PTS) surgiu para dar conta de desafios
impostos pela Reforma Psiquiátrica e pelo SUS no que diz respeito à superação do antigo modelo
manicomial e a conseqüente reestruturação da assistência à Saúde Mental a partir da organização
dos serviços substitutivos, entre eles os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Isto porque a
forma de conceber e tratar os transtornos psíquicos sofreu alterações significativas, já que o novo
modelo é dirigido pela lógica extra-hospitalar e requer a superação de práticas e criação de outras
formas de intervenções terapêuticas nas instituições públicas.
Nessa via, a construção da concepção de Projeto Terapêutico Singular vem ocorrendo no
Brasil, segundo Oliveira (2007, 2008), ao longo dos últimos vinte anos e está atrelada ao movimento
da Reforma Psiquiátrica e da constituição e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). O autor
aponta que tal dispositivo, utilizado no tratamento oferecido pelos serviços de Atenção Psicossocial,
assume uma função relevante na integração e organização das equipes de profissionais inseridos no
campo da saúde mental. Além disso, destaca que a utilização deste dispositivo já apresenta alguns
resultados advindos de reflexões e experiências práticas de planejamento de processos terapêuticos.
Com efeito, o Projeto Terapêutico Singular (PTS), de acordo com a Cartilha Clínica Ampliada,
Equipe de Referência e Projeto Terapêutico Singular (Ministério da Saúde, 2007), é um conjunto de
condutas terapêuticas destinadas aos usuários dos serviços de Atenção Psicossocial. De acordo com
o Ministério da Saúde (2007), a proposta do PTS foi desenvolvida com a intenção de proporcionar
uma atuação integrada da equipe,* em que os diferentes saberes dos profissionais possam auxiliar
na definição de propostas de ações para um sujeito individual dentro da coletividade da instituição.
Isto permite que o planejamento do tratamento supere os aspectos do diagnóstico psiquiátrico e da
medicação, e inclua a dimensão política, a garantia de direitos, o resgate da cidadania e a reinserção
social, como também a dimensão subjetiva e clínica na condução das práticas dirigidas ao usuário do
serviço.
A partir das contribuições da Psicanálise e das recomendações do Ministério da Saúde,
entende-se que a construção do PTS deve atentar para a singularidade do sujeito. Além disso, deve
ser realizado de acordo com as condições disponibilizadas pelo paciente, suas preferências e
características, contando com sua participação nesse processo, e discutido pela equipe
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interdisciplinar do serviço. Isso permite que se possa pensar em ações e dispositivos específicos para
o tratamento do paciente em questão, valorizando sua singularidade.
De acordo com as diretrizes do Ministério da Saúde (2007), o PTS é composto por quatro
momentos: o primeiro momento é o do diagnóstico, em que é necessário realizar uma avaliação
orgânica, psicológica e social com a intenção de apreender os elementos biológicos, subjetivos e
comportamentais do paciente, além de compreender sua rede social, familiar, cultural, funcional
(trabalho) e sócio-econômica. Isto é, pretende delimitar como o sujeito se coloca diante de sua vida e
de seu sofrimento, a demanda pelo tratamento e quais os objetivos e expectativas referentes a esse
processo. O segundo momento é o de definição de metas, produto da avaliação diagnóstica feita pela
equipe e que propõe intervenções e ferramentas terapêuticas de curto, médio e longo prazo, as quais
serão negociadas com o paciente. O terceiro momento é a divisão de responsabilidades, dentro da
própria equipe, em relação à condução e acompanhamento do caso. O quarto momento é o de
reavaliação do PTS construído. Nessa etapa, a intenção é de que se realize uma discussão sobre a
evolução do paciente em seu tratamento, refletindo se as ações ofertadas ao usuário estão
beneficiando-lhe e contemplando os objetivos das intervenções propostas. Além disso, possibilita
que novos rumos sejam tomados no tratamento, bem como, concebe a importância de que a equipe
esteja constantemente questionando sua prática e a própria organização da instituição.
Oliveira, desenvolvendo a concepção de PTS, argumenta a relevância da responsabilização
entre os protagonistas (profissionais e paciente) para a realização efetiva do PTS, ou seja, a
necessidade de engajamento e apropriação pelo paciente de seu tratamento e com o seu sintoma; e
dos profissionais com a proposta do tratamento. Descreve que
A formulação do PTS pode ser entendida como um processo de construção
coletiva envolvendo, necessariamente, o profissional/equipe de saúde e o(s)
usuário(s) em torno de uma situação de interesse comum. Nesse sentido,
entende-se que deve haver uma formação de compromisso, como modo de
responsabilização, entre os sujeitos do PTS. (2008, p. 286)
2. A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE NA UTILIZAÇÃO DO PTS
Parte-se da aposta de que a construção de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) possa
servir como um dispositivo articulador, no campo da Saúde Mental, entre as dimensões clínica
(Psicanálise) e política (Atenção Psicossocial) nos serviços de saúde, especificamente o interesse se
assenta no atendimento a usuários de álcool e outras drogas: CAPSad. Através do PTS, presume-se
que os objetivos de reinserção social, autonomia e cidadania, marca da Reforma Psiquiátrica
Brasileira e dos serviços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico sejam alcançados, aliados aos
objetivos da teoria e prática psicanalítica, a qual contempla o singular e muitas vezes o mais
incomodativo aos parâmetros institucionais, partindo do discurso do paciente para que se operem
efeitos subjetivos necessários à efetividade de um tratamento. Além disso, propõe-se o dispositivo do
PTS enquanto uma ferramenta ao engajamento e implicação do sujeito toxicômano em seu
tratamento, já que a indicação é de que o PTS seja realizado pela equipe do serviço juntamente com
o usuário em tratamento.
Dessa forma, propõe-se a contribuição da Psicanálise para a discussão e problematização
em relação à possibilidade de utilização do PTS como um dispositivo clínico, a partir dos tratamentos
oferecidos num CAPSad. Tal contribuição visa produzir uma resposta a questão que norteia este
trabalho: o Projeto Terapêutico Singular se apresenta como um dispositivo clínico ou um
procedimento burocrático realizado pelos profissionais que atuam nos serviços de Atenção
Psicossocial?
Nessa vertente, Bezerra e Rinaldi (2009) propõem que o modo de intervenção da Psicanálise
no âmbito do serviço público “aponta sempre para o sujeito como ponto de onde devem partir todas
as ações efetuadas, invertendo a noção de que as propostas terapêuticas devem estar prontas
previamente em um projeto instituído” (p. 351). Assim, a teoria e clínica psicanalítica, a partir de sua
ética, concebem que é o sujeito o agente de seu tratamento a partir de sua singularidade e dos
elementos que ele fornece, até de forma inconsciente, e não a instituição que deve previemente
conduzir o sujeito. Em outras palavras, como destaca Figueiredo (2005), o profissional deve propor a
direção do tratamento e não a direção do sujeito.
O que se costuma chamar de “projeto terapêutico” deve ir na direção
contrária à hierarquia dos saberes e funções que designam o que é
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necessário ou melhor para o paciente/usuário, e ir em busca das boas
perguntas. Em vez de nos perguntarmos o que podemos fazer por ele, a
pergunta deve ser feita de outro modo: o que ele pode fazer para sair de tal
ou tal situação com nosso suporte. Isso significa de temos que suportar, no
sentido mais radical da palavra, as ações do sujeito e chamá-lo à sua
responsabilidade a cada vez, a cada ato. (Figueiredo, 2004, p. 81)
Ademais, concebem o PTS como um “projeto individualizado”. Assim, poderíamos dizer que é
uma proposta de tratamento que “cabe” ao sujeito e não que o sujeito “caiba” nela. Isto quer dizer que
na construção do PTS não se pode partir de condutas padronizadas e universalizantes, dadas a
priori. As autoras observam que muitas vezes existe uma conduta burocratizada na construção do
PTS, em que se utilizam as diretrizes do Ministério como uma “aplicação” do que está na Lei de modo
literal, suprimindo a singularidade dos casos. Em outras palavras, o PTS é compreendido como um
roteiro a ser apresentado aos usuários e uma série de “papéis que devem ser preenchidos” pelos
profissionais em sua atuação nos serviços de Atenção Psicossocial, sem o questionamento em
relação às contribuições, a relevância e a adequação dessa proposta para a condução e objetivos do
tratamento nos CAPS.
Dessa forma, o PTS utilizado como um dispositivo de tratamento pode ser um indicativo do
olhar específico que se dá ao sujeito que ingressa nessas instituições, promovendo práticas
singulares em contraposição às concepções universalizantes que predominam na organização do
tratamento prestado ao usuário da rede pública de saúde. E é justamente esse impasse institucional
que se percebe na prática nos CAPS, já que freqüentemente as ações dos profissionais acabam por
tutelar o paciente ao serviço, no momento em que decidem por ele e lhe “aplicam” um tratamento,
colocando-o numa posição passiva perante a instituição e sua própria condição subjetiva.
Campos (1998), discutindo o modo como as instituições organizam o trabalho, principalmente
inspiradas pelo modelo taylorista, assinala que as práticas têm como finalidade “administrar pessoas
como se elas fossem instrumentos, coisas ou recursos destituídos de vontade ou de projeto próprio”
(p.865). E ainda, destaca que a pretensão desse modelo é de produzir ações que disciplinem e
controlem o comportamento e também modifiquem a subjetividade dos sujeitos, dessa forma,
ganhando-lhe a alma.
Atualmente afirma-se a importância do trabalho interdisciplinar e multiprofissional para a
efetividade dos tratamentos empreendidos pelos serviços de Atenção Psicossocial. Porém, como
destaca Campos, “as organizações de saúde são todas recortadas por outra lógica” (p. 864). Isto é,
estão divididas em departamentos, núcleos de saberes, de acordo com as especificidades de cada
profissão. Desta consideração se impõe um questionamento: quais as interferências desse modelo
organizativo no tratamento destinado aos pacientes dos CAPSad?
As práticas muitas vezes não encontram um ponto em comum que as una, enlaçando seus
objetivos, ficando, assim, dissociadas, fragmentadas e segmentadas, desnudando a burocratização
do processo. Uma burocratização que imobiliza, não permitindo a mudança das ações instituídas, já
dadas; silenciando o questionamento, por parte dos profissionais, de suas práticas dentro da
instituição de saúde. (Costa, 1991).
Aposta-se que um ponto em comum, que pode enlaçar as ações dos trabalhadores no campo
da Saúde Mental, se orienta pela lógica da teoria e clínica psicanalítica, isto é, alicerçada no estatuto
do sujeito do inconsciente e sua singularidade. Tal lógica é mais bem compreendida quando situa-se
a especificidade desse sujeito. De acordo com Figueiredo (2005), o sujeito do qual trata a Psicanálise
é diferente de “indíviduo‟, „pessoa‟, „personalidade‟ ou qualquer outro termo que signifique unidade ou
todo. O sujeito não é todo; ele é, antes de tudo, um efeito. Um efeito da intervenção do Outro” (p. 4849).
A autora estabelece outro ponto que deve ser considerado na condução dos tratamentos no
campo da saúde mental, em função de sua característica multiprofissional de organização: a
transferência de trabalho, concebida a partir do conceito de transferência da Psicanálise. Figueiredo
(2005) situa que a transferência “seria a condição do estabelecimento de um laço produtivo entre
pares visando, por um lado, o fazer clínico e, por outro, a produção de saber que lhe é conseqüente”
(p. 47). Aponta ainda para o fato de que “a transferência que deve operar no trabalho em equipe deve
ser norteada pelo fato de que há um objetivo comum às diferentes profissões, que é uma
determinada concepção da clínica pautada no sujeito” (p.48).
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Em consonância com as idéias de Campos, pode-se destacar as reflexões de Abadi Oliveira
(2009) acerca dos discursos institucionais demarcados pela burocracia e seus efeitos no trabalho em
serviços públicos. A autora aponta que o funcionamento institucional burocratizado acaba por
proporcionar “o encobrimento da posição de sujeito e estratégias de dominação do Outro. Dessa
forma, há um comprometimento de um saber a ser construído acerca do sujeito do inconsciente”(p.
2). O resultado de práticas burocratizadas é a “anulação do indivíduo”, já que este se vê preso a uma
“obediência cega a regulamentos”, ficando determinado a uma condição de objeto.
Tais configurações burocráticas acabam por impedir que o sujeito possa advir a uma
condição desejante, pois submete o paciente a posição de objeto. Não autoriza que tal sujeito se
responsabilize pelo seu sintoma e se implique no tratamento. E ainda, retira a possibilidade de
considerar o saber que o paciente tem se si e pode construir sobre si, já que as práticas institucionais
burocratizantes “achatam” o sujeito do desejo, no momento em que o saber dos técnicos é impresso
sobre o paciente, no momento em que o tratamento é decidido à revelia do próprio usuário do serviço
de Atenção Psicossocial.
3. METODOLOGIA
Diante do exposto, o objetivo que se delineou com este estudo transversal de abordagem
qualitativa foi o de pesquisar, através de uma análise documental, se o Projeto Terapêutico Singular
está sendo utilizado como um dispositivo clínico ou como um procedimento burocrático realizado
pelos profissionais que atuam nos serviços de Atenção Psicossocial. Além disso, pretendeu-se
conhecer como são realizados os PTS dos pacientes atendidos no CAPS e se essa prática articula as
dimensões política e clínica no tratamento oferecido na referida instituição.
Nessa via, almejou-se verificar, através da análise dos Prontuários Transdiciplinares, como
são registrados os dados pessoais e clínicos dos pacientes, sua evolução e trajetória no tratamento
no CAPS, bem como, realizar um levantamento das modalidades terapêuticas oferecidas pelo CAPS
para o tratamento do usuário do serviço.
Esperáva-se, a partir do levantamento dos dados, verificar como a organização e as práticas
realizadas pelos profissionais no CAPS, contemplam a dimensão subjetiva através de um olhar
singular ao usuário da instituição, agregada aos objetivos políticos e sociais pretendidos pelos
serviços de Atenção Psicossocial. Além disso, identificar se a realização dos registros nos Prontuários
Transdiciplinares e a construção do PTS ocorrem de forma burocratizada, como uma aplicação literal
do que está prescrito pelo Ministério da Saúde.
A realização da coleta de dados foi realizada em um CAPSad do interior do Rio Grande do
Sul, no ano de 2009, através da verificação direta dos prontuários pela pesquisadora. Para
contemplar os objetivos propostos, utilizou-se três procedimentos para a coleta de dados seguindo
um roteiro pré-estabelecido. O primeiro procedimento foi o levantamento de todos os dispositivos
terapêuticos e atividades disponibilizadas para o tratamento dos pacientes no serviço (avaliação
clínica, psiquiátrica, psicológica; grupos e oficinas; visitas domiciliares; assistência social;
alimentação, entre outros). O segundo foi a análise de 20 Prontuários Transdiciplinares (Brasil, 2004)
de pacientes, escolhidos de forma aleatória, contemplando dados de 10 usuários do sistema intensivo
e 10 do semi-intensivo em tratamento em um CAPSad, afim de avaliarem-se as construções dos
PTS. A opção pela realização da pesquisa utilizando os Prontuários e Projetos Terapêuticos de tais
pacientes justifica-se pelo fato desses permanecerem por um tempo maior no serviço. E o último
procedimento utilizado foi a verificação se são realizados, e de que maneira, os Projetos Terapêuticos
Singulares para o tratamento desses pacientes. Os dois últimos procedimentos foram realizados
utilizando-se um roteiro construído para esse estudo com base no Formulário para extração de dados
dos prontuários. Tal formulário é um instrumento de coleta de dados do Projeto de Pesquisa: Os
CAPs e os cuidados psicossociais em Pelotas (http://www.capspelotas.com.br/index.php).
A análise dos dados foi realizada a partir da leitura de todas as informações coletadas e do
agrupamento e ordenação dessas informações nas seguintes temáticas: organização dos
prontuários; sinalizadores de singularidade; entrevista de acolhimento; registro de eventos e
prescrições.
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4. RESULTADOS E DISCUSSÕES
A partir da coleta dos dados procurou-se contemplar os objetivos desse estudo. Considera-se
que os objetivos foram alcançados, isto é, foi possível avaliar através dos dados dos Prontuários
Transdiciplinares dos pacientes de um CAPSad do interior do Rio Grande do Sul, a maneira como o
PTS está sendo utilizado no tratamento de tais usuários. Observou-se que este dispositivo clínico não
está sendo usado no referido serviço, conforme as orientações do Ministério da Saúde, pois verificouse que em apenas um dos 20 prontuários pesquisados há Projeto Terapêutico Singular. Dessa forma,
considera-se que há no CAPS a tendência por uma prática burocrática configurada no preenchimento
da Entrevista de Acolhimento utilizada no referido serviço e nos registros dos prontuários, mesmo que
o propósito da equipe se apresente avesso a esta direção.
A seguir, são apresentadas as principais inferências decorrentes do processo de pesquisa
documental e que permitiram a discussão dos resultados deste estudo:
Organização dos prontuários:
Foram coletados dados de 20 Prontuários Transdiciplinares de pacientes que estão em
tratamento em um CAPSad, nas modalidades intensiva e semi-intensiva. No referido serviço, não há
sistema informatizado de organização dos dados dos pacientes em tratamento, portanto, os
prontuários contêm, em folhas impressas, a Ficha da Entrevista de Acolhimento; folhas em que são
realizados os registros; e também, encontram-se exames; atestado de freqüência no serviço;
referência de egresso de internação hospitalar; encaminhamento para o CAPS advindos de outros
serviços do município e plano de tratamento. O plano de tratamento possui uma semelhança com a
concepção de PTS aqui apresentada, pois nele são descritas as atividades que o paciente freqüenta
no CAPS, prognóstico, planejamento futuro e a maneira com que o CAPS pode ajudar neste
planejamento. Porém, este plano de tratamento foi encontrado em apenas 2 prontuários. Além disso,
encontra-se desatualizado ou suas orientações não são consideradas para a condução das
intervenções destinadas aos pacientes. Dos 20 prontuários pesquisados, 7 deles possuem aspecto
antigo e má conservação, correspondendo aos pacientes que estão há mais tempo em tratamento no
CAPS. Em 10 dos prontuários constam informações ilegíveis. Em nenhum dos 20 prontuários há
registro de reavaliação periódica com relação ao que nele contém. Constatou-se que em somente um
deles há realização de PTS, compreendido como um dispositivo que orienta o direção do tratamento
do paciente e as intervenções dos profissionais da equipe. Porém, da mesma forma que nos outros
19 prontuários, não se encontram registrada a maneira com que a equipe propõe e conduz o
tratamento e as ações psicossocias dirigidas ao paciente. Vale destacar que na Ficha da Entrevista
de Acolhimento utilizada pelo serviço há um item que se refere ao Plano Terapêutico do paciente.
Contudo, esse item encontrava-se parcialmente preenchido em 19 prontuários. Outro ponto a ser
destacado é que a distinção de condução de tratamento para pacientes Intensivos e Semi-intensivos
não está especificada nos registros dos prontuários. Podemos dizer que as intervenções acabam
ocorrendo de forma massificada e coletiva, sem considerar, na redação do prontuário, algo da
singularidade do paciente. Contudo considera-se importante que existam intervenções que atendam a
particularidade do sintoma do paciente. Ademais, considera-se relevante que as ações clínicas levem
em conta o tempo que os pacientes devem permanecer no serviço, já que isto caracteriza a
gravidade do caso ou a necessidade do sujeito em tratamento.
Sinalizadores de singularidade:
Observou-se que não é possível destacar a dimensão de subjetividade e particularidade no
tratamento destinado a cada paciente. Este dado aponta para o fato de que não há sinalizadores de
singularidade, isto é, não há diferenciação entre o tratamento de um paciente e outro, não há clareza
quanto à definição das atividades que compõe o tratamento dos pacientes, tornando as condutas
terapêuticas padronizadas, principalmente para pacientes do Sistema Intensivo, em que todas as
atividades do CAPS são ofertadas para o tratamento. Disso decorre a prevalência de intervenções
clínicas e terapêuticas que não consideram o sujeito em sua singularidade. Nesse sentido, pode-se
retomar a distinção realizada anteriormente, entre sujeito e indivíduo (Figueiredo, 2005) e concluir
que os tratamentos são conduzidos por meio do viés do indivíduo. Porém, apoiados nos pressupostos
da teoria e clínica psicanalítica, pondera-se que não contemplar a dimensão do sujeito pode
inviabilizar os efeitos esperados no tratamento. Uma informação relevante e que merece ser
destacada foi obtida por meio da participação em reuniões de equipe do CAPS. Trata-se do fato de
que nas reuniões constatou-se a presença de ações singulares destinadas aos pacientes. Entretanto,
tais condutas clínicas não são registradas nos prontuários, apesar de ocorrerem. Dessa forma,
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considera-se que as informações registradas no prontuário, por serem acessíveis a todos os
profissionais do serviço, serviriam para a construção do PTS do paciente e para a discussão do caso,
em que todos contribuiriam com sua especificidade profissional propondo ações ao tratamento do
paciente. Ademais, destaca-se a importância do registro das intervenções para avaliar os efeitos e a
evolução do caso e, assim, repensar as propostas terapêuticas. Figueiredo (2005) contribui nesse
sentido ao referir que
O que se partilha é o que se recolhe de cada caso, a cada intervenção, para
se tecer um saber. Como mais uma indicação da psicanálise, o que se
recolhe são os elementos fornecidos pelo sujeito, como pistas para a
direção do tratamento, para o chamado „projeto terapêutico‟. Essa tessitura
é que aponta o caminho a seguir a cada caso, a cada tempo, pois há
retificações a fazer freqüentemente, dependendo do rumo do caso, a partir
de novas indicações do sujeito (p. 45)
Constatou-se também a equivalência entre modalidade de tratamento e Projeto Terapêutico.
Esse dado aparece descrito nos prontuários pesquisados ao referir mudança de plano terapêutico
quando se alteram os dias e a modalidade que o paciente freqüenta o serviço. Infere-se que o
preenchimento da Entrevista de Acolhimento e do prontuário torna-se prática burocrática, pois
considera-se que faltam muitas informações relevantes e não há clareza quanto aos objetivos e
utilidade em relação ao que é registrado. A falta des informações nos prontuários sobre a história
pregressa dos pacientes indica uma limitação à condução clínica de tais usuários, pois não há
registro de ações clínico-terapêuticas já realizadas, o que permitiria dar continuidade ao processo
terapêutico podendo-se avaliar o que já foi feito com o paciente e o que se pode fazer futuramente.
Avalia-se que essas informações são importantes como dados para um novo tratamento e para a
construção do PTS dos pacientes atendidos pelo CAPS, além de contribuir para a eleição das ações
terapêuticas no tratamento do usuário. Oliveira (2007) assinala a relevância em se considerar as
ações clínicas já realizadas, apontando que se deve
Olhar retrospectivamente, perceber que caminhos a equipe tomou, que
outras possibilidades seriam possíveis. Avaliar o processo e propor, quando
conveniente, desvios ou correções de trajetórias para ampliar as
possibilidades de sucesso deste ponto em diante.”( p. 97)
Entrevista de Acolhimento:
A Ficha da Entrevista de Acolhimento compõe o prontuário do paciente e nela são
contempladas informações referentes aos dados pessoais do paciente; motivo do encaminhamento
para o serviço; história familiar; história pessoal, escolar e ocupacional; história social; história do uso
de álcool e/ou drogas; internações; plano terapêutico. Conforme relatado anteriormente, muitas das
informações encontradas na ficha de Entrevista de Acolhimento estão incompletas ou são sucintas.
Ao deparar-se com esses dados, surgiram algumas problematizações em relação ao acolhimento: o
que se acolhe? Para quê e para quem os dados da ficha e do acolhimento servem? De que forma as
informações obtidas nessa entrevista podem ser utilizadas para a construção do PTS? Como evitar
que esse procedimento torne-se burocratizado? Diante dessas questões e dos dados coletados é
possível pensar que a condução da entrevista do acolhimento pode estar ocorrendo de maneira a não
contemplar informações importantes para a contrução de uma proposta de tratamento. Acredita-se
que esse contato inicial do paciente com a instituição é um procedimento relevante, se bem utilizado,
para a adesão do usuário ao tratamento, bem como para a eleição de condutas terapêuticas para o
tratamento do paciente. Sugere-se que a equipe possa discutir tal procedimento para que ele não se
configure em um simples preenchimento de papéis.
Registro de eventos e prescrições:
Constatou-se que os registros nos prontuários referem-se a eventos e prescrições, por
exemplo, neles estão descritos as consultas que o paciente realiza, recaídas durante o tratamento,
internações realizadas, porém esses dados registrados são diferentes de evolução e análise do
prognóstico. Assim, o que são registrados nos prontuários referem-se a acontecimentos e não a
evolução clínica e subjetiva do paciente no seu tratamento. Aponta-se que seria interessante se
houvesse registro da condição psíquica e orgânica do paciente no decorrer de seu tratamento, de
forma que se pudesse registrar a melhora ou agravo do quadro, bem como, favorecer a análise das
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ações propostas para o tratamento. Esses registros servem para que diferentes profissionais possam
ter acesso à conduta do caso, otimizando o tratamento ao verificar as anotações no prontuário,
criando um ponto em comum de que partem as ações dos profissionais na condução dos tratamentos
e na construção do caso clínico, isto é, do PTS. Figueiredo (2004) sugere que
Um estudo de caso, então, não pode mais ser um relato compilado de
acontecimentos e procedimentos dispostos em uma seqüência com critérios
pré-estabelecidos a serem preenchidos. Este é o caso da anamnese, que
resulta na súmula psicopatológica padronizada que viceja nas sessões
clínicas da psiquiatria. Aqui está a diferença, todo o esforço diagnóstico
deve se deslocar dessa assepsia para trazer à cena o sujeito e suas
produções. E este só aparece pela via do discurso, no qual podemos
localizar seu sintoma ou seu delírio. (p. 78)
5. CONCLUSÃO
Esta pesquisa buscou verificar, através de análise documental, de que forma um CAPSad
está utilizando o dispositivo Projeto Terapêutico Singular, já que se aposta que o PTS pode servir
como uma ferramenta que possibilita a condução do tratamento pelo viés do sujeito, isto é, colocando
ênfase na dimensão clínica das intervenções. Conclui-se que tal dispositivo não é utilizado pelo
referido serviço e indica-se que este recurso poderia ser incorporado pela equipe de profissionais
para conduzir os tratamentos dos pacientes.
Os dados revelam a dificuldade destacada por Oliveira (2007) no que tange à utilização desse
recurso
A garantia de continuidade, de avaliação e de reavaliação do processo
terapêutico sem que, no entanto, isso implique burocratização do cuidado,
do acesso e da organização do serviço representam grandes dificuldades e
desafios para os serviços e para as equipes de saúde que se propõe a fazer
PTS (p. 293).
Então, com a intenção de superar tais impasses, sugere-se, baseados nas orientações de
Figueiredo (2004, 2005), do Ministério da Saúde (2004, 2007) e de Oliveira (2007, 2008) algumas
recomendações, tais como: supervisão clínico-institucional semanal; reuniões de PTS;
implementação do profissional de referência, rotina de discussões de caso, agenda de formulação e
de revisão dos PTS; reuniões para discussão do acolhimento.
Além disso, com base na contribuição de Figueiredo (2004) reitera-se a aposta na utilização
do PTS como um possível solo comum que orientaria as ações dos profissionais dos serviços de
atenção psicossocial. Para a autora
No campo da saúde mental teríamos ainda uma questão de fundo, a saber:
como constituir um solo comum de trabalho para diferentes profissionais
que não teriam qualquer compromisso com uma formação em psicanálise,
mas poderiam se valer de sua contribuição? (p. 77)
E por fim, assinala-se um limite da pesquisa realizada: análise documental. Dessa forma,
considera-se relevante a realização de outro estudo para aprofundamento do assunto, principalmente
com referência as práticas dos profissionais de CAPS, já que são elas que definem o modo de
organização do serviço e o atendimento prestado aos usuários.
REFERÊNCIAS
ABADI OLIVEIRA, I. M. A servidão mais que voluntária: dispositivos burocráticos em instituição
de saúde mental. 2009 (no prelo)
BEZERRA, D. S.; RINALDI, D. L. A transferência como articuladora entre a clínica e a política
nos serviços de atenção psicossocial. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 2, p.
342-355, junho 2009.
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BRASIL. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: Prontuário Transdiciplinar e Projeto Terapêutico.
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