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IMPLANTE DE CÓRNEA HETERÓLOGA TECTÔNICA CONGELADA NO TRATAMENTO DO
SEQUESTRO CORNEANO EM FELINOS
KLEINER J.A.
VETWEB OFTALMOLOGIA VETERINÁRIA
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INTRODUÇÃO
A córnea é a parte transparente anterior da túnica fibrosa ocular (1/5 a 1/3 desta, sendo o
restante formado pela esclera). Tem como principais funções suportar o conteúdo intraocular, a
refringência da luz (devido a sua curvatura) e transmissão da luz (devido a sua transparência).
Assim como o cristalino a córnea é normalmente clara, avascular e refrativa à luz (40 – 42
dioptrias). Depende do humor aquoso e do filme lacrimal para sua nutrição e limpeza, e das
pálpebras e membrana nictitante para proteção do meio externo. Quanto a sua espessura nos
felinos pode-se dizer que esta é mais espessa centralmente (0,8 a 1,0 mm) e mais fina conforme
aproximasse do limbo (0,4 a 0,6mm). É inervada pelos nervos ciliares longos que derivam da
porção oftálmica do nervo trigêmio (V par, sensitivo). A sua camada mais superficial (epitélio) é
inervada principalmente com receptores para a dor enquanto no estroma encontram-se receptores
para pressão, isto pode explicar o porquê das lesões corneanas superficiais serem muito mais
dolorosas do que as mais profundas 1. A densidade de terminações nervosas por área no epitélio
corneano é estimada de ser 300 a 400 vezes maior do que a encontrada na epiderme. Os nervos
sensitivos da córnea possuem um reflexo axônico que sob estímulo causa miose, hiperemia,
hipertensão e aumento da proteína no humor aquoso (humor plasmóide). Ao exame microscópico,
a córnea dos animais é formada por quatro, ás vezes cinco, camadas que são (de fora para
dentro): o epitélio, camada de Bowman´s (primatas, golfinhos, baleias, girafas, etc), estroma,
membrana de descemet e endotélio 2. O epitélio corneano é do tipo estratificado, escamoso não
queratinizado e serve como uma barreira protetora prevenindo a entrada de líquido,
microorganismos e corpos estranhos 3. A transparência do tecido corneano depende de vários
fatores dentre eles podem-se citar: uma boa produção, drenagem, estabilidade e harmonia entre as
camadas do filme lacrimal. O estado de relativa desidratação corneana (75% a 85% de água) devese principalmente ao bom funcionamento e integridade do epitélio e endotélio corneano.
Experimentalmente a remoção do epitélio corneano causa um aumento de 200% na espessura da
córnea em 24 horas devido ao influxo de água (edema) e a remoção do endotélio produz um
aumento da sua espessura de 500%, ficando sua permeabilidade aumentada em seis vezes, sendo
assim o endotélio parece ser muito mais importante na manutenção da detumescência corneana do
que o epitélio 4. Qualquer dano causado ao epitélio ou ao endotélio corneano por traumas, toxinas,
agentes infecciosos ou doenças autoimunes podem causar hidratação e opacidade corneana. A
renovação completa do epitélio corneano adulto ocorre a cada 5 - 7 dias e após uma hora da lesão
corneana as células do epitélio corneano começam a se achatar, espalhar e migrar. O seqüestro
corneano é uma patologia ocular mais observada em gatos domésticos com uma predileção para
os da raça Siamês, Persa e Himalaio. Existem relatos desta oftalmopatia em cães 5 . As
características clínicas e macroscópicas são muito peculiares, sendo a biópsia raramente
necessária para confirmar-se o diagnóstico 6. A lesão microscópica é uma área pobremente
demarcada do estroma superficial axial que se torna levemente acelular e desenvolve uma
pigmentação dourada que se intensifica e muda para marrom ou preto com o passar tempo.
Geralmente restringe-se à metade anterior do estroma corneano, mas em alguns casos pode
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atingir a membrana de descemet e não raro causar perfuração do bulbo do olho. A razão para a
necrose e a natureza da pigmentação é desconhecida. Grânulos positivos ao PSA similares a
lisossomos identificados entre os queratócitos podem sugerir um processo autolítico. Uma perda do
epitélio adjacente ocorre provavelmente devido a uma desvitalização estromal 7. A maioria das
opiniões relativas à natureza da pigmentação sugere que se trata de uma decomposição da
porfirina do filme lacrimal e se isto for verdade pelo menos uma descoloração (se não
decomposição) do estroma parece necessitar de uma lesão na barreira hidrofóbica presente no
epitélio corneano para surgir 8. Estudos comprovaram através de microscopia óptica a presença de
partículas de melanina nos tecidos corneanos obtidos de gatos com seqüestro, provendo
evidências laboratoriais que caracterizam a natureza da descoloração tecidual como melanina pela
primeira vez 9. Depois de algum tempo existe uma reação inflamatória contra a área do seqüestro
corneano, com migração de vasos sanguíneos e leucócitos, particularmente macrófagos, ao redor
da lesão. Estes macrófagos tornam-se ingurgitados com pigmento e tornam-se um marcador do
seqüestro mesmo depois de este ser expelido. A extrusão da região do seqüestro é uma fase
natural da patologia e parece requerer uma reação inflamatória para acontecer. Raramente as
lesões ocorrem na conjuntiva ou na terceira pálpebra. O porquê de o seqüestro corneano afetar
mais comumente felinos e ter predileção pelas raças acima citadas não é sabido, mas pode estar
relacionada à característica braquicefálica destas raças sugerindo que uma ceratite por exposição
possa estar envolvida. A oftalmopatia pode aparecer após ulcerações corneanas crônicas e
ceratites relacionadas ao herpes vírus ou fatores irritantes como o entrópio e triquíase. A apoptose
pode ter um papel importante no seqüestro corneano felino independentemente da presença de
DNA de agentes infecciosos como Herpes vírus, Toxoplasma gondii, Chlamydophila felis e
Mycoplasma spp 10. Um estudo analisou 28 amostras de tecido corneano de Persas e Himalaios
afetados pelo seqüestro utilizando-se PCR para detectar a presença de DNA de Herpes Vírus e
apenas 18 % foram positivos, sugerindo que o vírus não é um fator incitante desta patologia 11. Os
transplantes de córnea são divididos em duas classes principais que são os ópticos e tectônicos. O
primeiro tem a finalidade de restabelecer a transparência e acuidade visual mais próxima ao normal
e para tal utiliza-se tecido corneano vivo e preservado em meios especiais (ex. transplantes de
córnea nos humanos). O segundo tem como finalidade o suporte corneano, auxílio na cicatrização
tecidual e não visam primariamente à transparência e/ou acuidade visual.
OBJETIVOS
O presente trabalho tem como objetivos demonstrar a eficácia da ceratectomia lamelar
superficial com utilização de córnea tectônica heteróloga congelada no tratamento cirúrgico do
seqüestro corneano.
MATERIAIS E MÉTODOS
Um felino da raça Persa de cinco anos de idade, macho, castrado, foi atendido pelo nosso
serviço de oftalmologia e ao exame ocular notou-se a presença de discreto desconforto ocular,
secreção conjuntival mucopurulenta, pigmentação escura centro-corneana severa corneana e
neovascularização de córnea centrípeta. A avaliação da fase aquosa do filme lacrimal através do
teste de Schirmer não se observou alteração (acima de 15 mm) e o teste de fluoresceína e rosa de
bengala não apresentou retenção do corante. Devido à característica da lesão, sinais clínicos, raça
e espécie do paciente em questão, pode-se dizer tratar-se de um quadro de seqüestro corneano
crônico unilateral e o tratamento cirúrgico foi sugerido devido à profundidade da lesão e risco de
ruptura do bulbo do olho. A técnica proposta foi a ceratectomia lamelar superficial com utilização de
enxerto de córnea tectônica heteróloga congelada. As córneas doadoras foram obtidas de cães
que foram a óbito por razões diversas e após sua colheita elas são acondicionadas em um frasco
de colírio de Tobramicina e posteriormente congeladas em freezer a – 20 oC. O paciente é
preparado para cirurgia asséptica e a anestesia induzida com propofol e mantida com isoflurano. A
ceratectomia lamelar é realizada com a utilização de um bisturi crescente de safira com auxílio do
microscópio cirúrgico em um aumento de 25 x. Deve-se tomar cuidado para a remoção completa
de todo o pigmento corneano até a visualização de tecido transparente saudável. A córnea
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heteróloga doadora, previamente descongelada em temperatura ambiente, é cortada ao meio na
sua região estromal, para obter-se um fragmento menos espesso. O lado do estroma fica em íntimo
contato com a área de ceratectomia e o epitélio para o exterior. Pontos interrompidos simples
ancorados no tecido corneano do receptor são confeccionados utilizando-se fio de nylon 8-0 e um
flap protetor escarificado de terceira pálpebra é utilizado ao final do procedimento com a finalidade
de proteção do enxerto. No pós operatório utilizou-se colírio de gatifloxacino 4 x ao dia, cetorolaco
de trometamina 0,4 % 3 x ao dia e uma lágrima artificial 3 x ao dia. Todos os medicamentos tópicos
foram utilizados durante 14 dias, e após este período procedeu-se a retirada do colar elisabetano
protetor e do flap de terceira pálpebra. O tecido corneano tectônico já havia servido de leito
cicatricial e se incorporado à córnea receptora. Iniciou-se a terapia com colírio de corticóide tópico
e lágrima artificial ambos na frequência de 3 x ao dia durante 20 dias com retirada gradativa do
primeiro.
RESULTADOS E DISCUSSSÃO
O seqüestro corneano felino é uma patologia ocular um tanto comum na clínica de
pequenos animais e alguns autores advogam o uso de tratamento terapêutico ao invés de
cirúrgico. Muitas vezes a lesão corneana atinge suas camadas mais profundas e não raro
observam-se casos de ruptura do bulbo do olho, sendo assim a maioria dos animais afetados
beneficiam-se com o tratamento cirúrgico. A transparência obtida com a cirurgia é extremamente
superior aos casos aonde uma terapia medicamentosa é instituída. A córnea heteróloga congelada
é de fácil obtenção e preservação e pode ser utilizada com finalidade tectônica em vários outros
procedimentos corneanos (ex. ulcerações profundas).
CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ceratectomia lamelar superficial com subseqüente utilização de fragmento de córnea
tectônica heteróloga congelada demonstrou ser uma técnica cirúrgica eficaz para o tratamento
cirúrgico do seqüestro corneano em felinos. Este procedimento resulta em um excelente resultado
cosmético e funcionabilidade visual em um curto espaço de tempo. No acompanhamento do caso
há mais de um ano não foi notado sinais de recidivas no olho operado.
Foto 1: Ceratectomia superficial com bisturi de safira crescente.
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Foto 2 : Excisão completa do tecido necrótico corneano.
Foto 3: Córnea congelada implantada no tecido corneano
receptor. Sutura com nylon 9-0.
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Foto 4: Flap protetor de terceira pálpebra utilizando botão para
ancoragem na pele.
Foto 5: Olho contralateral normal (OD, não
afetado) para motivos de comparação de
transparência com o olho operado (OS).
Foto 6: Olho operado (OS) 3 meses pósoperatório. Notar excelente transparência
corneana.
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REFERÊNCIAS:
1) Fawcett, D.W. Bloom and Fawcett. A textbook of histology. 12th ed., New York, Chapman Hall,
p.916 - 917, 1994.
2) Magrane Basic Science Course in Ophthalmology. Short Course on Ocular Pathology. The
Histologic Basis of Ocular Disease. University of Wisconsin – Madison. Class Notes, vol.1, p.7984, ACVO - 1998.
3) Evans, H.E.: Miller´s Anatomy of the Dog, 30 ed., Toronto: WB Saunders, p.1038-1039, 1993.
4) Watsky, M.A. et al. Cornea and sclera. Foundations of Clinical Ophthalmology. Vol. 2. Tasman
W. and Jeager EA, JB Lippincott, 1995.
5) Bouhanna L, Liscoët LB, Raymond-Letron I. Corneal stromal sequestration in a dog. Veterinary
Ophthalmology, v 11, n.4, p.211 – 214, 2008.
6) Gelatt, Kirk N. Veterinary Ophthalmology. 3o ed. Lippincott Willians & Wilkins,1998.
7) Gelatt, K.N.; Peifer, R.L.; Stevens, J. Chronic ulcerative queratitis and sequestrum in the
domestic cat. Journal of American Animal Hospital Association. Vol.9, p.204-213, 1973.
8) Ramsey, D.T. et al.: Veterinary Ophthalmology (lecture notes). 5o ed. Michigan State University,
2000.
9) Featherstone H.J, Franklin V.J, Sansom J. Feline corneal sequestrum: Laboratory analysis of
ocular samples from 12 cats. Veterinary Ophthalmology. Vol. 7 (4), 229 – 238, 2004.
10) Cullen, C.L. et al. Ultrastructural findings in feline corneal sequestra. Veterinary Ophthalmology.
Vol 8 (5), p. 295 – 303, 2005.
11) Stiles J, McDermott M, Bigsby D. Use of nested polymerase chain reaction to identify feline
herpesvirus in ocular tissue from clinically normal cats and cats with corneal sequestra or
conjunctivitis. American Journal of Veterinary Residency, n. 58, p. 338 – 342, 1997.
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