Hamlet por Franco Zeffirelli.

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Setor de Ciências Humanas e Letras
Departamento de Letras Estrangeiras Modernas
HE895 ORIENTAÇÃO MONOGRÁFICA EM INGLÊS II
Márcio Eduardo Zuba
DO TEXTO DRAMÁTICO PARA A TELA: HAMLET POR FRANCO ZEFFIRELLI
Curitiba/PR, 2006.
1
Márcio Eduardo Zuba
DO TEXTO DRAMÁTICO PARA A TELA: HAMLET POR FRANCO ZEFFIRELLI
Trabalho apresentado ao Curso de Graduação
em Letras – Inglês da UNIVERSIDADE FEDERAL
DO P ARANÁ como requisito parcial para
obtenção de grau de bacharelado com ênfase
em estudos literários, sob orientação da
professora doutora LIANA DE CAMARGO LEÃO.
Curitiba/PR, 2006.
2
ÍNDICE
1. Resumo e Palavras-chave
03
2. Introdução
04
3. Desenvolvimento
3.1 Hamlet e o cinema
08
3.2 O solilóquio shakespeariano
10
3.3 O Hamlet de Zeffirelli
10
4. Considerações adicionais
15
5. Apresentação dos solilóquios de Hamlet
17
6. Análise dos solilóquios
18
7. Conclusões
33
8. Referências bibliográficas
34
9. Anexo
9.1 Opiniões da crítica sobre o Hamlet de Zeffirelli
35
3
Resumo
Criada como obra de entretenimento dentro dos moldes do teatro elisabetano, a
peça Hamlet alcança-nos em uma época, quatro séculos após sua criação, em que a
indústria da multimídia proporciona veículos de diversão mais versáteis e poderosos
que a representação teatral original. Embora haja vários trabalhos cinematográficos
baseados em Hamlet, alguns apenas utilizando o moto original da peça porém em
época e cultura distintos, há aqueles que buscam representar a peça com os
mesmos personagens, locais e ações do original manuscrito e teatralizado por
William Shakespeare, incluindo-se nesse grupo a obra de Franco Zeffirelli. A
intenção do presente trabalho é descobrir qual o efeito da versão cinematográfica,
quando comparada ao original, principalmente nas conclusões que tiramos a partir
dos notórios solilóquios elaborados por Shakespeare.
Os trabalhos escritos de Michele Willems (Video and its paradoxes), Frank Kermode
(Hamlet), Neil Taylor (The films of Hamlet) e Harry Keyishian (Shakespeare and
movie genre: the case of Hamlet) discutem a questão da dificuldade em se adaptar
as peças de Shakespeare em geral e Hamlet em particular para o cinema, uma vez
que algumas perdas de conteúdo são inevitáveis. Exceção feita ao texto de Michèle
Willems, de 1987, todos os outros foram escritos após o Hamlet de Zeffirelli,
produzido em 1990.
Palavras-chave: Shakespeare, Hamlet, Zeffirelli, solilóquio e cinema.
4
Introdução
Amplamente reconhecida como a peça mais célebre escrita por Shakespeare,
Hamlet apresenta alguns pontos obscuros em relação às suas origens. Embora seja
considerado um fato a existência de um Hamlet anterior, também chamado UrHamlet, o qual teria sido reexaminado e definitivamente ultrapassado pela peça de
Shakespeare, não há nenhuma cópia escrita desse Ur-Hamlet, assim como não se
sabe com certeza quem o teria escrito. A maioria dos estudiosos acredita que o
autor tenha sido Thomas Kyd, o mesmo de The Spanish Tragedy (A Tragédia
Espanhola), paradigma da 'peça de vingança'. Entretanto, conforme argumenta
Harold Bloom:
A Tragédia Espanhola gozava de grande popularidade, mas é uma peça ruim, tola, pessimamente escrita, o que
qualquer leitor pode logo constatar. É difícil ir além das primeiras páginas, e assim inadmissível que tal peça
tenha impressionado Shakespeare. Será mais racional supor que a primeira versão de Hamlet (por
Shakespeare) tenha influenciado A Tragédia Espanhola, e que qualquer efeito do esquálido melodrama de Kyd
encontrado no Hamlet em sua versão final apenas demonstre Shakespeare recuperando algo que sempre lhe
pertencera. (BLOOM,
2000, p.496)
O argumento do professor Bloom encontra apoio na teoria de Peter Alexander, que
inferiu que o próprio Shakespeare teria escrito Ur-Hamlet, provavelmente antes de
1589, no início de sua carreira de dramaturgo. (ALEXANDER, 1958, p.32) Contudo,
deve-se citar o fato de que a maior parte da academia apresenta-se contrária à
hipótese de Alexander, não concordando que a peça teria passado por um período
de gestação tão longo, de mais de uma década. Se provavelmente nunca será
possível provar que Peter Alexander estava certo ao defender a tese de que
Shakespeare escreveu o Ur-Hamlet, há fatos circunstanciais que reforçam sua
dedução. Por exemplo, quando Shakespeare uniu-se ao grupo teatral que, em 1594,
se tornaria a Companhia do Lorde Chamberlain, as três peças acrescentadas ao
repertório da trupe foram A Megera Domada, Tito Andrônico e Hamlet; em momento
algum a companhia encenou A Tragédia Espanhola ou qualquer outra peça de Kyd.
A peça Hamlet é imensa – sem cortes, ultrapassa a marca de quatro mil linhas e
vinte e nove mil palavras, raramente sendo encenada em toda a sua extensão. A
opinião de T. S. Eliot, publicada em 1919 e em voga no passado, de que Hamlet é,
"artisticamente, sem dúvida, um fracasso" (“So far from being Shakespeare's
masterpiece, the play is most certainly an artistic failure. In several ways the play is
puzzling, and disquieting as is none of the others.”) – e sobre a qual Harold Bloom
argumenta: “que obra literária, então, seria, artisticamente, um sucesso?” –
5
(BLOOM, 2000, p.479) parece decorrer da desproporção entre o Príncipe e a peça.
Hamlet – a personagem – teria uma consciência que não caberia em Hamlet – a
peça.
Derivada do nórdico antigo, o nome Amleth significa 'tolo', ou 'esperto que finge ser
tolo'. Passada a cena do cemitério, nada da até então atitude extravagante de
Hamlet perdura e, na referida cena, a loucura aparece transformada em intensa
ironia dirigida às mórbidas imagens da morte. Considerando o volume extraordinário
que Hamlet representa, por que teria Shakespeare escrito a cena do cemitério, visto
que a evocação a Yorick pouco contribui para o avanço da ação da peça? A
pergunta será relevante somente se a repetirmos diante de várias outras cenas
dessa peça extraordinária, que, com suas quatro mil linhas, é demasiadamente
longa para ser encenada – chega-se a duvidar que tenha sido montada sem cortes
em Londres, à época de Shakespeare, embora seja possível que produções nas
universidades de Oxford e Cambridge tenham utilizado o texto na íntegra.
Bloom propõe – embora para quase todos os shakespearianos modernos tal
suposição seja uma heresia – que, pelo menos dessa feita, Shakespeare tenha
escrito, em parte, para satisfazer algum interesse estritamente pessoal, sabendo que
precisaria cortar o texto a cada montagem. Seria esse o motivo da diferença entre as
3.800 linhas encontradas no texto do Segundo Quarto e a omissão de 230 dessas
linhas no Primeiro Fólio. O fato de o Primeiro Fólio conter 80 linhas não encontradas
no Segundo Quarto pode ser uma indicação de que Shakespeare continuava a
revisar Hamlet depois de 1604-1605, quando surgiu o Segundo Quarto. Para Bloom,
o Fólio pode ter sido a última versão teatral da peça autorizada por Shakespeare,
embora, com 3.650 linhas, o texto ainda seria longo demais para o palco londrino.
Bloom acredita que Shakespeare jamais deixou de revisar Hamlet, desde a primeira
versão, por volta de 1587-89, quase até a época de seu recolhimento em Stratford
(BLOOM, 2000, p.487 - 488). Pelo que consta, o Segundo Quarto foi impresso a
partir do próprio manuscrito do autor, enquanto o texto do Primeiro Fólio encerra a
versão final da peça, preservada por atores contemporâneos de Shakespeare.
Bloom ainda sugere que o primeiro Hamlet de Shakespeare deve ter sido marloviano
(BLOOM, 2000, p.483), um personagem capaz de superar a si mesmo, um antiMaquiavel auto-indulgente, um orador cujas metáforas incitavam os ouvintes à ação.
O Hamlet maduro é muito mais complexo. Fascinado e fascinante, Shakespeare
desvia-se das fontes, não adota o nome histórico do pai de Hamlet (Horwendil), e
6
atribui ao pai e ao filho o mesmo nome, próximo ao nome dado ao único filho do
autor. Peter Alexander observa, em Hamlet, Father and Son (1955), que o Fantasma
é guerreiro digno de uma saga islandesa, enquanto o Príncipe é um intelectual
universitário, representante de uma nova era. Dois Hamlets se confrontam, tendo
quase nada em comum, exceto os nomes. O Fantasma espera que Hamlet seja uma
nova versão do velho Hamlet, assim como Fortimbrás é uma reimpressão do velho
Fortimbrás. Ironicamente, os dois Hamlets se contemplam em uma fase de
transição: a Idade Antiga vislumbra a Renascença, com as estranhas conseqüências
que seriam de se esperar.
Como a mais pessoal e obstinada dentre as trinta e nove peças shakespearianas,
será que podemos avaliar o que Hamlet significava para Shakespeare?
Embora o bardo tenha escrito dezesseis peças depois de Hamlet – o que a
posiciona, portanto, ligeiramente após o momento central da carreira do dramaturgo
– a peça é, sem sombra de dúvida, ao mesmo tempo o alfa e o ômega do autor.
Nela encontramos toda a obra shakespeariana: “drama histórico, comédia, sátira,
tragédia, romance”, para fazermos uso da fala de Polônio na famosa cena que
antecede a encenação de Mousetrap (A Ratoeira).
Com uma grandeza em si que jamais foi discutida, Hamlet suscita, mais uma vez, a
pergunta, difícil de ser respondida: será que Shakespeare estava ciente da riqueza
com que investira o Príncipe? Seremos capazes de imaginar Hamlet presente em
qualquer outra peça de Shakespeare? Onde o localizaríamos? Que contexto poderia
abarcá-lo? Em Hamlet Shakespeare mostra-nos toda a humanidade – e ninguém –,
ao mesmo tempo. Não será exagero afirmar que Hamlet é a própria criatividade
shakespeariana, a própria arte do poeta-dramaturgo.
Nas palavras de Bloom, Hamlet parece surgir depois do próprio Shakespeare, e
ninguém ainda conseguiu ser pós-Shakespeare. Não há nessa afirmação a
pretensão de dizer que Hamlet seja Shakespeare, ou mesmo uma projeção de
Shakespeare. Mas diversos críticos já apontaram, com provável correção, paralelos
entre o relacionamento de Falstaff e Hal, e o de Shakespeare e o jovem nobre
(provavelmente, o Conde de Southampton), nos Sonetos. Para Harold Bloom, se
tivesse que especular a respeito da auto-representação em Shakespeare, o
paradigma seria Falstaff (BLOOM, 2000, p.481). No entanto, é Hamlet o filho mais
querido de Shakespeare, assim como Hal é o de Falstaff. A afirmação não é do
7
professor Bloom, mas de James Joyce1, o primeiro a identificar Hamlet, o Príncipe
da Dinamarca, com Hamnet, o único filho que Shakespeare teve, e que morreu aos
onze anos de idade, em 1596, quatro ou cinco anos antes do surgimento da versão
final de A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, na qual o pai de Hamnet
Shakespeare faria o papel do Fantasma do pai de Hamlet (por volta de 1600,
Shakespeare, provavelmente, voltou a representar o papel do Fantasma em
Hamlet). De certo, tudo o que sabemos sobre o primeiro Hamlet é que já incluía a
figura do Fantasma do pai de Hamlet. Poderia o fato de Shakespeare fazer o papel
do Fantasma sugerir um comprometimento pessoal? Stephen Dedalus, personagem
de James Joyce, assim o achava, conforme constatamos em seu brilhante devaneio
sobre Hamlet, na cena da Biblioteca, em Ulisses, a qual, segundo Richard Ellmann2,
expressa a interpretação joyciana da peça.
Quando assistimos a uma encenação de Hamlet, ou lemos o texto da peça, logo
constatamos que o Príncipe transcende a peça. Para muitos de nós, transcendência
constitui uma noção difícil, especialmente quando inserida em um contexto secular,
como no caso da dramaturgia shakespeariana.
Com muita percepção, Harry Levin3 descreve Hamlet como uma peça obcecada pela
palavra "questão" (empregada dezessete vezes), e pelo questionamento sobre "a
crença em fantasmas e sobre os códigos de vingança". Bloom prefere abordar essa
obsessão por questionamento de modo diferente. Para ele, a principal divergência
observada entre o Hamlet shakespeariano e o Hamlet histórico ou lendário advém
de uma alteração, bastante sutil, dos motivos que levam o Príncipe a agir. Tanto nos
anais compilados pelo dinamarquês Saxo Grammaticus como na lenda francesa de
Belleforest, o Príncipe Amleth, desde o início do relato, corre perigo de vida, nas
mãos do tio assassino, e, com astúcia, finge-se de tolo e louco, para sobreviver
(Bloom, 2000, p.483). É possível que em Ur-Hamlet Shakespeare tenha seguido
esse paradigma, mas pouco resta do mesmo no Hamlet final. Cláudio sente-se
plenamente satisfeito por ter o sobrinho como herdeiro – podre como está a
Dinamarca, Cláudio tem tudo o que sempre desejou: Gertrudes e o trono. Tivesse
Hamlet ficado impassível após a visita do Fantasma, não teriam sofrido mortes
violentas Polônio, Ofélia, Laertes, Rosencrantz, Guildenstern, Cláudio, Gertrudes e o
1
Citado em: BLAMIRES, Harry. The Bloomsday Book: A Guide Through Joyce's Ulysses. Methuen, 1966.
ELLMANN, Richard. James Joyce. Oxford University Press, revised edition, 1983.
3
LEVIN, Harry. The Question of Hamlet. London: Oxford UP, 1959.
2
8
próprio Príncipe. Todos os acontecimentos da peça dependem da reação de Hamlet
ao Fantasma, reação essa tão dialética quanto tudo o mais em Hamlet. A questão
em Hamlet será sempre o próprio Hamlet, pois Shakespeare construiu uma
personagem cuja consciência é a mais ambivalente e dividida que uma peça
coerente pode conter.
Ao afirmar que "Hamlet somos nós", Hazlitt4 profere uma verdade que vai além do
tom poético. Sempre poderemos ter em conta, sem precisar recorrer a qualquer
metáfora, que “nós” também compreende Dostoievsky, Nietzsche, Kierkegaard e,
depois destes, Joyce e Beckett.
Hamlet e o cinema
Compreendemos assim que Hamlet representa a própria consciência literária
ocidental, e a nós se apresenta – quatro séculos após sua criação – como algo atual
e versátil, recriado continuamente através dos meios de comunicação que foram
surgindo, entre eles o cinema e a televisão, que há muito substituíram as peças
teatrais como formas principais de entretenimento. No caso específico de
Shakespeare, 420 produções para cinema e televisão foram feitos baseados em
suas peças e poemas, de acordo com o Guinness, livro de recordes.
No começo do século 20, quando a indústria do cinema mudo começou a se
desenvolver na Europa e na América, as peças de Shakespeare formavam uma
pequena parte de seu repertório.
Na França e na Itália daquela época o cinema não era considerado uma forma de
arte em si mesma, mas sim como um meio de apresentar a arte do teatro tradicional.
Essa idéia foi chamada Film d’Art (Filme de Arte).
A situação de domínio público das peças de Shakespeare era um atrativo para os
produtores de filme, que queriam liberdade para representar versões não fiéis ao
conteúdo das peças de teatro.
Nos Estados Unidos, cerca de duas mil salas de cinema com baixo custo de acesso
(os chamados nickelodeons, com preços de ingresso de 5 centavos de dólar),
espalhados por toda a nação, guiaram os rumos da indústria de cinema. Os
produtores de filme americanos começaram então um trabalho que objetivava atrair
espectadores de classes mais altas, ao mesmo tempo em que também devem ter
9
sido influenciados pelo espírito do Film d'Art. Esses produtores trocaram os temas
de seus filmes, de histórias de trabalhadores contemporâneos, para obras clássicas.
Os produtores também respondiam aos chamados de grupos religiosos e
autoridades por uma redução na brutalidade mostrada nos filmes de então, e
escolheram as peças de Shakespeare porque elas eram amplamente respeitadas
por todas as classes da sociedade americana, e também porque a situação de
domínio público evitaria problemas relacionados com direitos autorais. As
autoridades também viam com bons olhos as peças shakespearianas, uma vez que
forneciam ferramentas capazes de construir uma nova identidade anglo-americana
em um país vasto e em grande parte formado por imigrantes. Nessa época
destacou-se o estúdio Vitagraph, em Nova Iorque, como um notável produtor de
filmes shakespearianos.
Das versões de Hamlet no cinema mudo, destacaram-se:
Le Duel d'Hamlet, produção francesa de 1900, dirigida por Clément Maurice e com a
atriz Sarah Bernhardt interpretando Hamlet, e a versão dos diretores Sven Gade e
Heinz Schall (1920, Dinamarca), com a dinamarquesa Asta Nielsen no papel do
príncipe, este reconhecido como a obra-prima do cinema mudo sobre Hamlet. A
seguir, já na era do cinema falado, tivemos, entre outros, a versão dirigida e
estrelada por Sir Laurence Olivier, ganhador dos Oscar da Academia como melhor
filme (1948) e melhor ator, e que representava a vanguarda em alguns aspectos de
cinematografia – dirigida por Desmond Dickinson, fazia uso de uma fotografia com
foco profundo, que havia sido recentemente utilizada em filmes dirigidos por William
Wyler e Orson Welles, e o Hamlet de 1996, dirigido e estrelado pelo irlandês
Kenneth Branagh. Bastante visual, a maioria dos solilóquios nesse Hamlet é
acompanhada por flashbacks silenciosos ou por seqüências de sonhos que mostram
os eventos a que são feitas referências. Por exemplo, a famosa lembrança que
Hamlet tem de Yorick é acompanhada de um flashback mostrando Yorick divertindo
o jovem Hamlet. O Hamlet de Branagh é ainda notável por ser a primeira versão em
cinema a utilizar todo o conteúdo da peça original. Na verdade, o filme contém uma
palavra adicional (“Attack!”) não encontrada nas várias fontes da peça original.
Merecem destaque ainda o Hamlet de 1964, produzido na Rússia e dirigido por
4
HAZLITT, William. Characters of Shakespeare's Plays: Hamlet. In Essays in Criticism. Second ed. Ed. Cyrus
Hoy. New York: Norton, 1992.
10
Grigori Kozintsev, com Innokenty Smoktunovsky no papel principal, e o Hamlet de
Zeffirelli, objeto deste estudo.
O solilóquio shakespeariano
Uma das características marcantes e celebradas do teatro de Shakespeare é o uso
do solilóquio, que representa uma enorme dificuldade de adaptação em sua
transposição para a tela. O solilóquio é uma convenção teatral que permite que a
platéia compartilhe dos pensamentos expressos em palavras dos personagens.
Como o cinema ocupa-se primordialmente com imagens, transpor solilóquios para a
tela constitui uma dificuldade extra a ser superada nas adaptações cinematográficas
das peças, uma vez que não há como negar que, sem ele, Hamlet, por exemplo,
seria outra peça. Conforme apresentados na obra de Shakespeare, os solilóquios
do príncipe revelam profundidade em suas emoções, permitindo que a platéia
partilhe de seus conflitos internos.
O Hamlet de Zeffirelli
Dentre as obras cinematográficas sobre o príncipe da Dinamarca, possivelmente a
que teve maior apelo junto ao público é a versão de Franco Zeffirelli (1990), com Mel
Gibson no papel principal. Com 131 minutos de duração, essa versão oferece uma
forma editada e resumida do texto, omitindo alguns detalhes e cenas inteiras.
Por exemplo, não há o jogo duplo de espionagem (Reinaldo que espionava Laertes,
Rosencrantz e Guildenstern que espionavam Hamlet) – Reinaldo simplesmente não
aparece no filme. Nada grave, se considerarmos que o Hamlet de Sir Laurence
Olivier (1948), tido por muitos e através dos anos como a rendição cinematográfica
definitiva de Hamlet, omitia Rosencrantz e Guildenstern.
A cena dos coveiros também é bastante resumida: há apenas 1 coveiro, que,
portanto, fica sem o parceiro de diálogo e assim não se expõe o problema
relacionado às exéquias de Ofélia, que mais tarde seria retomado pelo primeiro
padre (teria Ofélia cometido suicídio ou sua morte fora acidental?); em Zeffirelli
simplesmente não há a fala do primeiro padre.
Não há, ainda, qualquer menção à Fortimbrás, em nenhum momento do filme – a
última fala da peça, que pertence ao príncipe da Noruega, no filme dá lugar àquela
que originalmente é a nona última, de Horácio – “Good night, sweet prince, And
11
flights of angels sing thee to thy rest!” (“Boa noite, meu bom príncipe. Que os anjos
com seu canto ao repouso te acompanhem”).
De forma geral, as melhores falas da peça estão no filme:
•
“There are more things in heaven and earth, Horácio, Than are dreamt of in
your philosophy.” (“Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua
filosofia.”) (Hamlet a Horácio, 34 min 35 seg);
•
“Words, words, words.” (“Palavras, palavras, palavras.”) (Hamlet a Polônio,
42 min 40 seg);
•
“I could be bounded in a nutshell, and count myself a king of infinite space”
(“eu poderia estar recluso em uma casca de noz, e considerar-me rei do espaço
infinito”) (Hamlet a Rosencrantz e Guildenstern, 54 min 02 seg);
•
"What a piece of work is man! How noble in reason! how infinite in faculties! in
form and moving, how express and admirable! in action how like an angel! in
apprehension, how like a god! the beauty of the world! the paragon of animals! And
yet, to me, what is this quintessence of dust?” (“Que obra-prima, o homem! Quão
nobre pela razão! Quão infinito pelas faculdades! Como é expresso e admirável na
forma e nos movimentos! Nos atos quão semelhante aos anjos! Na apreensão, como
se aproxima dos deuses! adorno do mundo, modelo das criaturas! No entanto, que é
para mim essa quintessência de pó?”) (idem, 57 min);
•
“Not where he eats, but where he is eaten: a certain convocation of politic
worms are e'en at him. Your worm is your only emperor for diet: we fat all creatures
else to fat us, and we fat ourselves for maggots: your fat king and your lean beggar is
but variable service,--two dishes, but to one table: that's the end.” (“Não onde ele
come, mas onde é comido. Certa assembléia de vermes políticos se ocupa dele. Um
verme desse gênero é o verdadeiro imperador da dieta. Engordamos as criaturas,
para que nos engordem, e engordamo-nos para dar de comer aos vermes. Um rei
gordo e um mendigo magro são iguarias diferentes; dois pratos, mas para a mesma
mesa: eis tudo.”) (Hamlet a Cláudio, sobre Polônio, 01 h 27 min 30 seg);
•
“When sorrows come, they come not single spies, But in battalions!” (“Quando
as desditas vêm, não vêm sozinhas, mas em batalhões”) (Cláudio a Gertrudes, 01 h
36 min 27 seg);
•
“Let Hercules himself do what he may, The cat will mew, and dog will have his
day.” (“Deixai que Hércules faça como entender; o gato mia, e o cachorro também
terá seu dia.”) (Hamlet, no funeral de Ofélia, 01 h 50 min 22 seg) e
12
•
“Not a whit, we defy augury: there's a special providence in the fall of a
sparrow. If it be now, 'tis not to come; if it be not to come, it will be now; if it be not
now, yet it will come: the readiness is all: since no man has aught of what he leaves,
what is't to leave betimes?” (“De forma alguma, desafiamos os presságios. Há uma
especial providência na queda de um pardal. Se tem de ser já, não será depois; se
não for depois, é que vai ser agora; se não for agora, é que poderá ser mais tarde. A
prontidão é tudo: uma vez que ninguém sabe o que deixa, que importa que seja
logo?”) (Hamlet a Horácio, 01 h 55 min 53 seg).
Há, contudo, duas ausências dignas de nota: a primeira delas é uma das poucas
falas de Marcelo no texto original, encontrada no Ato 1 Cena 4: “Something is rotten
in the state of Denmark.” (“Há algo apodrecido no reino da Dinamarca.”). Manter tal
fala emblemática, que revela desde o início da peça a situação da corte
dinamarquesa, não acresceria quase nada em termos de duração ou ritmo no filme.
A segunda ausência é a fala que denota a impossibilidade de arrependimento de
Cláudio, no Ato 3 Cena 3: “My words fly up, my thoughts remain below: words
without thoughts never to heaven go.” (“Minhas palavras voam acima, meus
pensamentos permanecem abaixo: palavras sem pensamentos nunca chegam ao
céu.”) Cláudio não consegue rezar, pois o arrependimento significaria perder as duas
coisas que ele mais estima – a rainha e o trono da Dinamarca. Essa fala é relevante,
pois demonstra o erro de Hamlet em não vingar prontamente o pai assassinado (Ao
ver Cláudio balbuciar a reza que não se consuma, Hamlet acredita que o rei está
livre de pecados naquele momento, e assim, caso fosse naquele momento
assassinado, sua alma seria enviada diretamente ao paraíso, o que não seria de
forma alguma um castigo).
É importante registrar que Zeffirelli não teve a pretensão de mostrar a peça da
mesma maneira como ela seria encenada nos palcos. O filme recria o texto original
através de uma seqüência direta de eventos, em contraste, por exemplo, com os
flashbacks presentes no Hamlet de Kenneth Branagh (1996). Não há, porém, uma
idéia exata de cronologia, inclusive com o emprego de certas inversões na ordem de
apresentação de alguns eventos, quando comparados ao texto original: o famoso
terceiro solilóquio (“To be, or not to be: that is the question...”) acontece antes do
segundo (“O, what a rogue and peasant slave am I!...”); durante a encenação de
Mousetrap (A Ratoeira), no diálogo entre Hamlet e Ofélia, há duas falas trocadas –
“O, your only jig-maker! What should a man do but be merry? for look you how
13
cheerfully my mother looks, and my father died within 's two hours.” antes de “Get
thee to a nunnery: why wouldst thou be a breeder of sinners?”, contrastando com a
peça original. A compreensão da trama, contudo, não é afetada; pode-se inclusive
argumentar que tal recurso foi utilizado objetivando uma melhor exposição da ação,
da mesma maneira que a atribuição de uma fala de Ofélia (“You are a good chorus,
my lord.”) a Cláudio, pois o diálogo relevante neste ponto é entre Cláudio e Hamlet,
que tentará conhecer a consciência do rei através da peça que representa o
assassinato do rei, pai de Hamlet. Portanto, nada mais natural que um irado Cláudio,
e não Ofélia, se utilizasse de tal fala irônica, ante a insistência de Hamlet em ficar lhe
explicando a peça.
A necessidade de espremer uma peça de quatro horas em pouco mais de duas
acaba causando os cortes anteriormente mencionados e também algumas lacunas
na interpretação da história. Por exemplo, é preciso boa dose de atenção para saber
que Hamlet estudara em Wittenberg (aliás, a mesma instituição protestante onde
estudara e lecionara Martin Luther, naturalmente em época anterior a Shakespeare)
– algo exposto por Cláudio e Gertrudes logo no início do filme, e pelo próprio Hamlet
em seu primeiro diálogo com Horácio. Por uma questão cinematográfica, na qual o
maior apelo é visual, ao contrário do teatro, mais ligado à audição, há alguns fatos
que na peça original são apenas presumidos a partir das falas e que no filme são
encenados: o funeral do pai de Hamlet, aliás, é a cena inicial do filme, onde
observamos o pranto de Gertrudes, pranto que mais tarde – no primeiro solilóquio,
mas em uma parte ausente no filme – será questionado quanto à sua sinceridade
por Hamlet. Outro exemplo de cena criada a partir daquilo que é presumido na peça
original é a execução de Rosencrantz e Guildenstern quando chegam à Inglaterra.
As locações do Hamlet de Zeffirelli foram feitas no Castelo Blackness, próximo a
Edimburgo, na Escócia (cenas internas e apenas closes externos do castelo de
Elsinore), e também nos castelos Dunnotar (na costa leste da Escócia, com muitas
tomadas do castelo vistas apenas à distância) e Dover (sudeste da Inglaterra).
Também foi construído um cenário na vila de Muchalls, entre Aberdim e Stonehaven
(nordeste da Escócia). Alguns puristas shakespearianos consideram as tomadas dos
castelos escoceses como erros geográficos, argumentando que a região de Elsinore
na Dinamarca é uma planície, em contraste com a paisagem montanhosa mostrada
no filme. Alguns erros menores de continuidade são comentados, como o ocorrido
durante a cena do lamento de Ofélia, em que ela estende um braço para alguém e
14
no quadro seguinte aparece o outro braço levantado, bem como o furo feito na
tapeçaria quando Polônio é atingido por Hamlet, que não aparece nos quadros
seguintes da filmagem. Observadores mais atentos também encontraram uma
suposta sombra de algum membro da equipe de filmagem ou de seu equipamento
durante a cena em que Hamlet confronta Ofélia. Não pude constatar nenhum dos
dois últimos casos, a tapeçaria parece estar em um ângulo de visão desfavorável
nas cenas seguintes ao assassinato de Polônio, e talvez a sombra em questão seja
do próprio Gibson. Outro ponto rebatido é a pequena diferença de idade entre Glenn
Close (nascida em 19 de março de 1947 e na época com 43 anos) e Mel Gibson
(nascido em 03 de janeiro de 1956, e, portanto, com quase 35 anos à época).
Apenas para comparação: no aclamado Hamlet de 1948, atuou como Gertrudes a
atriz Eileen Herlie, de 28 anos, e como Hamlet Sir Laurence Olivier, de 41.
No Hamlet de Zeffirelli foi mantido o idioma original da época de Shakespeare, tal
qual indica o texto, e nota-se que os diálogos cuja compreensão é mais difícil foram
suprimidos das cenas. Algumas ações menores também foram alteradas. Por
exemplo, na versão de Zeffirelli Polônio espiona Ofélia e Hamlet, e assim fica
sabendo da estranha visita de Hamlet à sua filha e sobre a loucura de Hamlet. No
texto original dessa cena (Ato 2 Cena 1), Ofélia apenas informa Polônio da visita de
Hamlet e comenta sobre sua aparente loucura. Provavelmente o diretor escolheu
transferir o ponto de vista para Polônio porque assim a platéia poderia observar por
si própria o quão louco Hamlet parece estar. Também, naturalmente, tal mudança
pode ter sido feita objetivando poupar tempo, pois a ação se desenrolaria de
maneira mais rápida, inclusive haveria mais ação e menos palavra – novamente a
questão cinema X teatro. Comparando o Hamlet de Zeffirelli com a versão de
Kenneth Branagh, que pela primeira vez na história do cinema apresenta o texto
integral de Shakespeare, percebe-se que o primeiro é bastante enxuto. As linhas
207 a 213 no Ato 2 Cena 2, onde Polônio apresenta seu famoso e extenso
monólogo, também foram reduzidas na versão de Zeffirelli. Nesse mesmo ato, as
linhas onde Guildenstern and Rosencrantz entram em cena foram transferidas para
o Ato 3 Cena 1, em um ponto exatamente após a peça Mousetrap (A Ratoeira). Esse
e todos os outros já citados reposicionamentos de cenas dessa versão, incluindo o
famoso terceiro solilóquio “To be or not to be”, o qual foi movido para o Ato 1 Cena 2,
possivelmente
foram
efetuados
devido
à
vantagem
natural
da
versão
cinematográfica, em que é possível ao diretor mostrar em rápida seqüência várias
15
tomadas de diferentes atores e eventos, alternando a ordem entre as cenas para
frente e para trás. Isso proporciona o efeito de as cenas parecerem ocorrer
simultaneamente. Uma vez que essas cenas parecem ter ocorrido ao mesmo tempo
no filme, provavelmente faz sentido ou parece mais efetivo ao diretor mover as
cenas ou atos ao redor do que parece ser o ponto mais lógico no filme. Como
resultado dessas modificações, essa versão parece mais dinâmica, desembaraçada
e atraente. Definitivamente a versão de Zeffirelli é bastante ágil. Conforme apontou
Harry Keyishian5, o Hamlet de Zeffirelli é um Hamlet de ação e aventura, em
contraste com o Hamlet épico de Branagh e o noir de Olivier. Essa característica,
obtida em grande parte com a técnica de troca de câmeras entre atores e eventos,
proporcionando uma visão de simultaneidade, parece ser o ponto mais apreciado
dessa versão em relação às outras. A título de comparação, a versão de Branagh,
que conforme já exposto utiliza extensos flashbacks, o que mantém explícita a
ordem cronológica dos eventos. Em Zeffirelli os cenários e o guarda-roupa da peça
também são historicamente acurados em relação à época a que fazem menção. A
iluminação foi muito bem feita, sem excessos de sombra ou escuridão. A oposição
de cores e brilho é muito utilizada. A fim de contrastar o virtuosismo de Hamlet com
a corrupção de Cláudio, Zeffirelli utiliza uma câmera que se move dos bêbados
festejando no salão abaixo, com sua indumentária brilhantemente colorida (vermelha
ou alaranjada) e iluminada por tochas flamejantes, para as pedras cinzentas e frias
do castelo, e as roupas em cores quase desvanecidas que Hamlet e seus amigos
vestem. Destaque-se também o uso simbólico da indumentária branca ou preta,
indicando bem ou mal, sendo algo particularmente óbvio na última cena da peça.
Não menos importante na versão cinematográfica é a trilha sonora, do compositor
italiano Ennio Morricone, com sua experiência em mais de 500 filmes e séries de
televisão.
Considerações adicionais
Shakespeare foi o principal dramaturgo de seu tempo (possivelmente de todos os
tempos) e co-proprietário do teatro Globe, assim ele conhecia muito bem tanto suas
limitações como suas virtudes. Conforme aponta Barbara Heliodora6, a neutralidade
5
KEYISHIAN, Harry. In: The Cambridge companion to Shakespeare on film. New York: Cambridge University
Press, 2000.
6
HELIODORA, Barbara. Reflexões shakespearianas. Rio de Janeiro: Lacerda Editores Ltda., 2004.
16
do palco elisabetano, desprovido de cenários, aumenta sobremaneira o trabalho dos
intérpretes, de quem depende primordialmente o sucesso da narrativa cênica. Em
Hamlet, encontramos uma seqüência cênica relativamente esclarecedora, com dois
aspectos relevantes que merecem ser lembrados. Primeiro, a maestria com que
Shakespeare, nas primeiras três cenas, estabelece de forma forte e contrastante os
três níveis nos quais o processo de Hamlet terá lugar: o primeiro nível, na
plataforma, concentra o mundo daqueles até certo ponto ausentes à corte, o mundo
do fantasma e, de certo modo, de Horácio; no segundo nível, temos a corte, que
concentra o mundo de Cláudio, Gertrudes e Polônio; e, no terceiro, a casa de
Polônio, mundo de Ofélia e Laertes. Cada um desses níveis representa mundos
diferentes que falam línguas diferentes.
Como recurso de atenuação à neutralidade do palco, a muito admirada cena de
abertura em Hamlet está lá em parte para indicar ao público que a ação precisa ser
imaginada como tendo lugar na escuridão – lembremo-nos que de fato são duas
horas da tarde e plena luz do dia (aproximadamente o horário das exibições
elisabetanas), mas temos um fantasma que aparece pontualmente uma hora da
manhã. Tal dispositivo de indicação de tempo e espaço para a platéia é
desnecessário em um filme, e Zeffirelli cortou a cena. Como abertura, há a
seqüência (que apenas podemos presumir no original) do funeral do velho rei, pai de
Hamlet. Outra cena da peça, bastante conhecida e que foi reposicionada por
Zeffirelli, é aquela na qual o parcialmente louco Hamlet diz a Ofélia para não confiar
nos homens (Ato 3 Cena 1 do original), e para evitar a corrupção que ele vê em
todas as mulheres (especialmente sua própria mãe) através da reclusão em um
convento. No filme essa ação foi parar uma cena adiante, junto àquela onde é
representada a peça-dentro-da-peça (A Ratoeira), quando Hamlet, prestes a expor o
crime do rei, está em seu humor mais excitado, ousado, arrogante e com uma
linguagem ferina, ofensiva. Tal recurso possibilitou ao diretor deixar todo o terceiro
solilóquio (To be or not to be) exclusivamente para Hamlet, uma vez que não há o
complemento da cena com a chegada de Ofélia, como acontece no original. Além
disso, o tema do convento funciona muito bem na atmosfera de excitação doentia de
Hamlet, e essa mudança na ordem em que as cenas aparecem permite a Zeffirelli
mostrar juntas a mulher madura e a jovem, a rainha e Ofélia, cada uma delas amada
de um jeito diferente por Hamlet. Enojado pela corrupção sexual de sua mãe, Hamlet
imediatamente adverte Ofélia para evitar, mesmo que através da abstinência, o
17
horror e a corrupção que ele agora associa ao ato sexual. Esse pode ser
considerado um movimento corajoso e brilhante de Zeffirelli, e ainda uma
interpretação possível da história.
Hamlet, por causa de seus momentos de melancólica agonia a respeito de sua
própria falta de iniciativa, alguma vezes é interpretado como um fraco. Aqueles que
assistirem a performance vigorosa e irascível de Mel Gibson irão perceber facilmente
que tais leituras da peça podem estar erradas ou, no mínimo, não serem as únicas
possíveis. Zeffirelli não deixa o espectador esquecer que na claustrofóbica e
corrupta atmosfera da corte de Elsinore o introspectivo Hamlet precisa ser ativo,
inventivo e algumas vezes cruel, exatamente como Gibson representa no filme.
Contudo, há opiniões como a de Alexandra Marshall (escritora de romances e crítica
de cinema da revista americana The American Prospect, e que também escreve
para vários jornais, como The Boston Globe e The New York Times), que em seu
artigo The Prince Is Dead. Long Live the Prince. (O príncipe está morto. Longa vida
ao príncipe.) trata comparativamente das várias versões de Hamlet no cinema, e
sustenta que:
Se a versão de Oliver parece muito estilizada, a versão fílmica de Franco Zeffirelli, em contraste, é muito casual,
com Mel Gibson oferecendo pouca evidência da luta interna que está no centro da peça, o que tem o efeito
horrível de tirar substância dos grandes solilóquios. A caracterização dos solilóquios é enfraquecida por uma
atuação excessivamente fútil da parte de Mel Gibson – como quando, por exemplo, ele dá uma piscadela para a
mãe na parte cômica da cena de espada (parte final do filme), o que por sua vez torna mais difícil as
interpretações dos atores circundantes, especialmente (no caso dessa cena) a de Glenn Close (Gertrudes) e em
outras cenas a de Helena Bonham-Carter, que bravamente interpreta uma pueril Ofélia.
Em muitos aspectos, em todas as cenas a que se propõe a abordar, o Hamlet de
Zeffirelli permanece fiel ao texto original, ainda que através de uma reinterpretação
de um clássico, e cujo resultado é voltado para as platéias modernas, que
compreendem filmes e que, de maneira semelhante aos seus ancestrais, anseiam
por ver sua estrela favorita no papel de Hamlet. Esse é, afinal, o maior de todos os
papéis na tradição do teatro popular, e atualmente essa tradição parece melhor
preservada – através da acessibilidade – em filmes como esse.
Apresentação dos solilóquios de Hamlet
Considerando a hipótese já apresentada de que o primeiro Hamlet tenha sido de
aprendizado, podemos refletir ter sido esse o motivo que levou Shakespeare a não
dramatizar através de ações a essência de Hamlet. A solução, muito mais elegante,
18
foi oferecer ao público solilóquios notáveis, que, conforme sempre insiste Harold
Bloom, nada têm de sentimentalismo.
Este estudo, ao realizar uma comparação entre texto dramatúrgico e filme, procura
melhor avaliar o processo de adaptação fílmica realizado pelo cineasta.
Ao pesquisar quais linhas e cenas Zeffirelli utiliza ou deixa de utilizar em sua
produção bem como ao verificar quais solilóquios e quantos deles são incorporados
pelo cineasta, minha intenção é, em um primeiro momento, avaliar quanto do texto
de Shakespeare está incorporado ao filme. Em uma segunda etapa, apreciar os
procedimentos fílmicos que atualizam o texto.
Comparando texto e filme constata-se que Zeffirelli, de um total de 1567 palavras em
6 solilóquios (264 no primeiro, 455 no segundo, 276 no terceiro, 100 no quarto, 194
no quinto e 278 no sexto), utiliza 795 palavras, ou 50,73% do total (divididas em 155
no primeiro, 227 no segundo, 261 no terceiro, 44 no quarto, 108 no quinto e,
conforme já explicado, ausência total do sexto solilóquio).
Esse baixo percentual pode ser justificado pelo fato de o cineasta ter adotado a já
argumentada linha cinematográfica de produção, que privilegia oferecer ao público o
enredo, a ação da peça. O solilóquio, como usado por Shakespeare em Hamlet, não
avança a ação dramática, é apenas um momento de reflexão do protagonista.
Assim, Zeffirelli escolhe os trechos que melhor explicam à platéia os movimentos do
protagonista e seus conflitos internos: a desilusão com o mundo, ainda sem o objeto
da vingança, pois não sabe do crime; o plano para conhecer a consciência do rei; a
ida aos aposentos da mãe; a hesitação em matar o tio e é claro, a reflexão sobre as
vantagens e desvantagens de “ser ou não ser”, de viver ou morrer, e dispensa as
linhas que revelam simples divagações complementares.
Análise dos solilóquios e sua correlação entre a obra original e o filme
de 1990
Observações:
•
A parte sublinhada corresponde à reproduzida no filme.
•
A notação utilizada é: (Ato.Cena.Linha inicial – Linha final____hora minuto
segundo iniciais – hora minuto segundo finais), e corresponde à obra escrita
19
Hamlet, Prince of Denmark de William Shakespeare, edição Collins de
novembro de 1998 [Etext #1524] Project Gutenberg e à obra cinematográfica
Hamlet Dirigida por Franco Zeffirelli e distribuída por Warner Bros., lançada
em 19 de dezembro de 1990, com tempo de duração de aproximadamente
130 minutos, falada em língua inglesa. A contagem dos números de linhas
(entre parêntesis) informados como referência à direita dos versos inicia-se a
cada cena.
•
A ordem dos solilóquios é aquela da obra original, uma vez que o Hamlet de
Zeffirelli apresenta o terceiro solilóquio (“To be, or not to be: that is the
question”) antes do segundo (“O, what a rogue and peasant slave am I!”),
conforme já indicado.
•
A análise contempla o que pode ser deduzido em ambas as versões – peça
original e versão cinematográfica – à exceção, naturalmente, do sexto
solilóquio, analisado apenas no contexto da peça, uma vez que está ausente
no filme de 1990.
•
Os instantâneos e suas legendas são da versão em DVD da obra de Zeffirelli.
Primeiro solilóquio (1.2.131-161____00h10min15seg – 00h11min55seg)
O, that this too too solid flesh would melt
20
Thaw and resolve itself into a dew!
Or that the Everlasting had not fix'd
His canon 'gainst self-slaughter! O God! God!
How weary, stale, flat and unprofitable, (135)
Seem to me all the uses of this world!
Fie on't! ah fie! 'tis an unweeded garden,
That grows to seed; things rank and gross in nature
Possess it merely. That it should come to this!
But two months dead: nay, not so much, not two: (140)
So excellent a king; that was, to this,
Hyperion to a satyr; so loving to my mother
That he might not beteem the winds of heaven
Visit her face too roughly. Heaven and earth!
Must I remember? why, she would hang on him, (145)
As if increase of appetite had grown
By what it fed on: and yet, within a month -Let me not think on't -- Frailty, thy name is woman! -A little month, or ere those shoes were old
With which she follow'd my poor father's body, (150)
Like Niobe, all tears: -- why she, even she -O, God! a beast, that wants discourse of reason,
Would have mourn'd longer--married with my uncle,
My father's brother, but no more like my father
Than I to Hercules: within a month: (155)
Ere yet the salt of most unrighteous tears
Had left the flushing in her galled eyes,
She married. O, most wicked speed, to post
With such dexterity to incestuous sheets!
It is not nor it cannot come to good: (160)
But break, my heart; for I must hold my tongue.
Análise do primeiro solilóquio
21
Extremamente passional, esse solilóquio apresenta um contraste impressionante
comparado com o diálogo controlado e artificial que Hamlet irá manter mais tarde
com Cláudio e sua corte. A função preliminar desse solilóquio é revelar à platéia a
profunda melancolia e as razões de Hamlet para seu desespero. Em uma desconexa
corrente de aversão, raiva, pena e humanidade, Hamlet explica que, sem exceção,
tudo em seu mundo é fútil ou nefasto, e seu discurso é saturado com sugestões de
podridão e de corrupção. A natureza de seus sentimentos é exposta logo no início,
quando nos é revelado que sua mãe, Gertrudes, casou com o próprio cunhado
apenas dois meses após a morte do pai de Hamlet. Hamlet é atormentado pelas
reminiscências de afeição de Gertrudes para com seu pai, acreditando que suas
pretensas demonstrações de amor eram mero fingimento para satisfazer a seus
próprios desejos e ambições. Hamlet questiona inclusive o sentimento inicial de
Gertrudes após a perda do marido: ela chorara “lágrimas insinceras” (156), uma vez
que a compaixão demonstrada seria desmascarada logo depois por uma conduta
reprovável. Observe-se que Shakespeare faz uso da justaposição e do contraste
para realçar os sentimentos de Hamlet de rebeldia e aversão. A contraposição entre
as coisas divinas e as terrestres ou profanas são aparentes desde a abertura do
solilóquio, onde Hamlet expressa a angústia de ser prisioneiro da sua carne. Seu
desejo de se dissolver em orvalho, uma substância pouco durável, expressa o
desejo de escapar da materialidade do corpo em um processo sugestivo de
libertação espiritual. Justaposta imediatamente a essa noção, e em contraste à
“carne”, sua referência ao “Eterno”, o termo espiritual para a dualidade.
Paradoxalmente, em sua aversão à carne, Hamlet parece ter a impressão de que
seu corpo necessita possuir um estado de permanência, algo mais próximo ao
eterno do que à natureza efêmera do orvalho que Hamlet anseia se tornar. Outra
justaposição no solilóquio é o uso que Hamlet faz de Hyperion e de sátiro,
denotando respectivamente seu pai e seu tio. Hyperion, titã da luz, representa a
honra, o virtuosismo, a dignidade da realeza - todos os traços que pertenciam ao pai
de Hamlet, o verdadeiro rei da Dinamarca. Já os sátiros, companheiros do deus do
vinho Dionysus - metade humanos e metade bestas - representam a lascívia e a
permissividade, características atribuídas a Cláudio, o tio usurpador de Hamlet. Não
é nada surpreendente, assim, que Hamlet desenvolva uma aversão ao tio, e não
somente ao homem, mas também a todos os comportamentos e excessos a ele
associados.
Em outras passagens da peça fica claro que Hamlet considera
22
inaceitáveis as orgias de toda espécie, em particular aquelas envolvendo
bebedeiras. Um importante contraste final no solilóquio aparece no comentário
autodepreciativo de Hamlet, ausente no filme: “tão semelhante a meu pai (referindose a Cláudio) quanto eu a Hercules” (154-55). Embora a comparação dele próprio ao
bravo herói grego possa ser destituída de qualquer significado mais profundo, é mais
provável que a observação indique o início do desenvolvimento de uma falta de
auto-estima - um tema que será o foco do solilóquio seguinte.
Segundo solilóquio (2.2.555-612____01h00min25seg – 01h02min50seg)
Now I am alone. O, what a rogue and peasant slave am I! (555)
Is it not monstrous that this player here,
But in a fiction, in a dream of passion,
Could force his soul so to his own conceit
That from her working all his visage wann'd,
Tears in his eyes, distraction in's aspect, (560)
A broken voice, and his whole function suiting
With forms to his conceit? and all for nothing!
For Hecuba!
What's Hecuba to him, or he to Hecuba,
That he should weep for her? What would he do, (565)
Had he the motive and the cue for passion
That I have? He would drown the stage with tears
23
And cleave the general ear with horrid speech,
Make mad the guilty and appal the free,
Confound the ignorant, and amaze indeed (570)
The very faculties of eyes and ears. Yet I,
A dull and muddy-mettled rascal, peak,
Like John-a-dreams, unpregnant of my cause,
And can say nothing; no, not for a king,
Upon whose property and most dear life (575)
A damn'd defeat was made. Am I a coward?
Who calls me villain? breaks my pate across?
Plucks off my beard, and blows it in my face?
Tweaks me by the nose? gives me the lie i' the throat,
As deep as to the lungs? who does me this? (580)
Ha!
'Swounds, I should take it: for it cannot be
But I am pigeon-liver'd and lack gall
To make oppression bitter, or ere this
I should have fatted all the region kites (585)
With this slave's offal: bloody, bawdy villain!
Remorseless, treacherous, lecherous, kindless villain!
O, vengeance!
Why, what an ass am I! This is most brave,
That I, the son of a dear father murder'd, (590)
Prompted to my revenge by heaven and hell,
Must, like a whore, unpack my heart with words,
And fall a-cursing, like a very drab,
A scullion!
Fie upon't! foh! About, my brain! I have heard (595)
That guilty creatures sitting at a play
Have by the very cunning of the scene
Been struck so to the soul that presently
They have proclaim'd their malefactions;
24
For murder, though it have no tongue, will speak (600)
With most miraculous organ. I'll have these players
Play something like the murder of my father
Before mine uncle: I'll observe his looks;
I'll tent him to the quick: if he but blench,
I know my course. The spirit that I have seen (605)
May be the devil: and the devil hath power
To assume a pleasing shape; yea, and perhaps
Out of my weakness and my melancholy,
As he is very potent with such spirits,
Abuses me to damn me: I'll have grounds (610)
More relative than this: the play 's the thing
Wherein I'll catch the conscience of the king.
Análise do segundo solilóquio
Além de mostrar à platéia que haverá um plano cujo objetivo será revelar a culpa de
Cláudio, o segundo solilóquio de Hamlet manifesta a verdadeira essência do conflito
autêntico de Hamlet. Para ele é inegavelmente imperativo buscar vingança para seu
pai, contudo sente-se impedido de agir devido à própria abominação que Hamlet
sente em levar adiante tal vingança, fria e calculista:
O sentimento de ser um covarde advém de um auto-julgamento duro e simplista, que questiona sobre a
efetividade das ações tomadas por Hamlet contra o homem que assassinou seu pai. Sua auto-condenação
assume várias formas bizarras, inclusive fantasias histriônicas de insultos degradantes que ele absorve como um
covarde porque sente que não fez nada para vingar-se de Cláudio
(NEWELL, 1991, p.61)
Uma vez determinado a convencer-se a premeditar e realizar ele próprio o
assassinato do tio, Hamlet mergulha em um frenesi, cujo ápice de ação é descrito
nas linhas 594-595. Ele espera que suas paixões se sobreponham ao seu melhor
julgamento, o que o tornará hábil para matar Cláudio sem maiores hesitações. Mas
Hamlet falha uma vez mais em lidar com as apreensões sobre cometer tal
assassinato, o que lhe impede de agir de maneira imediata. Assim, trata logo a
seguir de focalizar sua atenção em um plano que assegure que Cláudio admitirá sua
própria culpa. Hamlet retoma uma idéia que passara anteriormente por sua mente encenar a peça The Mousetrap. Hamlet está convencido de que, ao assistir a
reprodução do próprio crime, Cláudio certamente revelará sua culpa. Hamlet
25
considera que não pode acreditar cegamente nas palavras do suposto fantasma do
pai, que pode ser na verdade “o diabo”, enganando-o e condenando-o à danação.
Assim, deve ter uma prova mais material antes de tirar a vida de Cláudio - deve “pôr
à mostra a consciência do rei”.
Terceiro solilóquio (3.1.64-98____00h49min05seg – 00h52min40seg)
To be, or not to be: that is the question:
Whether 'tis nobler in the mind to suffer (65)
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them? To die: to sleep;
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache and the thousand natural shocks (70)
That flesh is heir to, 'tis a consummation
Devoutly to be wish'd. To die, to sleep;
To sleep: perchance to dream: ay, there's the rub;
For in that sleep of death what dreams may come
When we have shuffled off this mortal coil, (75)
Must give us pause: there's the respect
That makes calamity of so long life;
For who would bear the whips and scorns of time,
The oppressor's wrong, the proud man's contumely,
26
The pangs of despised love, the law's delay, (80)
The insolence of office and the spurns
That patient merit of the unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? who would fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life, (85)
But that the dread of something after death,
The undiscover'd country from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of? (90)
Thus conscience does make cowards of us all;
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o'er with the pale cast of thought,
And enterprises of great pitch and moment
With this regard their currents turn awry, (95)
And lose the name of action.-- Soft you now!
The fair Ophelia! Nymph, in thy orisons
Be all my sins remember'd.
Análise do terceiro solilóquio
Ao contrário dos dois primeiros solilóquios de Hamlet, o terceiro e mais famoso é um
solilóquio que parece ser governado pela razão e não pela exaltada emoção.
Também é o único que foi mantido na íntegra por Zeffirelli. Sentindo-se incapaz de
agir e esperando a conclusão de seu plano para “pôr à mostra a consciência do rei”,
Hamlet irrompe em um debate filosófico interior sobre as vantagens e desvantagens
da existência, e se é ou não correto por fim a sua própria vida. Alguns especialistas
limitam a discussão de Hamlet à deliberação de tirar sua própria vida. “Contudo não
há nada em qualquer parte do discurso relacionado com o exemplo individual de
Hamlet. Ele usa o pronome “nós” e o indefinido “quem”, como infinitivo impessoal.
Ele fala explicitamente de “nós todos”, de o que é a real herança da “carne”, de o
que “nós” sofremos nas mãos do “tempo” ou da “sorte” – o que serve
incidentalmente para indicar o que para Hamlet significa “ser”” (JENKINS, 1982,
27
p.489). Hamlet faz uma pergunta dirigida a todos aqueles que se encontram no
mesmo estado depressivo que ele – é mais nobre viver miseravelmente ou eliminar
todas as desditas com um único golpe? Sabe que a resposta será indubitavelmente
a segunda alternativa, caso a morte seja como um sono sem sonhos. O obstáculo
que Hamlet observa é o medo de “que os sonhos possam vir”, isto é, o “terror de
algo após a morte”. Hamlet está bem ciente de que o suicídio é condenado pela
igreja como um pecado mortal. Diferentemente da peça, onde Hamlet é interrompido
por Ofélia fazendo suas orações, no filme ele profere o solilóquio ao lado da tumba
do pai, e está sozinho de fato. Na peça, Hamlet dirige-se a Ofélia chamando-a
“ninfa”, uma saudação comum à corte na Renascença. Alguns críticos argumentam
que o cumprimento de Hamlet parece forçado e friamente polido, e seu pedido para
que Ofélia lembre-se dele em suas orações é sarcástico. Entretanto, outros
reivindicam que Hamlet, emergindo de um momento de reflexão pessoal intenso,
implora sinceramente à delicada e inocente Ofélia para que ore por ele. Esse diálogo
após o solilóquio é transportado para outro ponto no filme, com Hamlet
apresentando de fato um tom de ironia.
Quarto solilóquio (3.2.380-391____01h14min40seg – 01h15min11seg)
Tis now the very witching time of night, (380)
When churchyards yawn and hell itself breathes out
Contagion to this world: now could I drink hot blood,
And do such bitter business as the day
28
Would quake to look on. Soft! now to my mother.
O heart, lose not thy nature; let not ever (385)
The soul of Nero enter this firm bosom:
Let me be cruel, not unnatural:
I will speak daggers to her, but use none;
My tongue and soul in this be hypocrites;
How in my words soever she be shent, (390)
To give them seals never, my soul, consent!
Análise do quarto solilóquio
O plano de Hamlet de “pôr à mostra a consciência do rei” é um sucesso, e Cláudio
retira-se para seus aposentos, profundamente perturbado. Excitado pelo resultado
de sua estratégia, Hamlet experimenta um aumento súbito de confiança, que
delimita a primeira metade desse curto solilóquio. Hamlet agora está certo de que
pode facilmente completar “o negócio amargo” da vingança, certo de que pode
assassinar seu tio sem hesitação. Entretanto, Cláudio está fora do alcance no
momento, e assim Hamlet volta sua atenção para a mãe, revelando na segunda
metade do solilóquio suas intenções de forçar Gertrudes a fazer uma confissão
completa. Embora Hamlet ainda ame sua mãe, deve ser cruel com ela a fim de
facilitar a admissão de sua culpa. Hamlet diz, “minha língua e alma nisto sejam
hipócritas” (389), porque sabe que deve fingir ter intenções violentas contra
Gertrudes, e suas palavras devem expressar essas falsas intenções. A constatação
transcrita a seguir, de que está se tornando como os atores que tanto lhe causaram
perplexidade no Ato II cena II, Hamlet não expressa no filme de Zeffirelli:
“Não é monstruoso que este ator aqui,
Na ficção, em um sonho de paixão,
Possa forçar sua alma assim a seu próprio capricho
Que por seu feito, todo seu semblante mude,
Lágrimas em seus olhos, perturbação em seu aspecto, (560)
Uma voz quebrada, e toda sua compostura ajustada
A seu capricho? E tudo para nada!
Para Hecuba! (556-563)”
Hamlet desejara que pudesse manipular seus emoções e comportamento como um
ator, e agora parece finalmente ser capaz disso.
29
Quinto solilóquio (3.3.77-100____01h15min38seg – 01h16min33seg)
Now might I do it pat, now he is praying;
And now I'll do't. And so he goes to heaven;
And so am I revenged. That would be scann'd:
A villain kills my father; and for that, (80)
I, his sole son, do this same villain send
To heaven.
O, this is hire and salary, not revenge.
He took my father grossly, full of bread;
With all his crimes broad blown, as flush as May; (85)
And how his audit stands who knows save heaven?
But in our circumstance and course of thought,
'Tis heavy with him. And am I then revenged,
To take him in the purging of his soul,
When he is fit and season'd for his passage? (90)
No!
Up, sword; and know thou a more horrid hent:
When he is drunk asleep, or in his rage,
Or in the incestuous pleasure of his bed;
30
At game, a-swearing, or about some act (95)
That has no relish of salvation in't;
Then trip him, that his heels may kick at heaven,
And that his soul may be as damn'd and black
As hell, whereto it goes. My mother stays:
This physic but prolongs thy sickly days.
Análise do quinto solilóquio
Hamlet imaginara-se preparado “para beber sangue quente” (3.2.382) e para
assassinar o rei com as próprias mãos. Agora, quando inicia a investida contra um
Cláudio desacompanhado, sabe que é tempo de agir, mas descobre-se incapaz de
matar. A razão de tal delonga é que Cláudio está no meio de uma oração, e para a
vingança ser completa, o rei deve estar no meio de algum ato pecaminoso como
sexo ou bebedeira, e assim fadado à danação eterna. Embora seja verdade que
raciocínio similar seja comum em outras peças de vingança, tal rigor na punição
provavelmente pareceria ao jovem príncipe, nesse ponto da peça, imerecido. Muitos
críticos acreditam que Hamlet usa a oração de Cláudio como uma desculpa para
mais um interregno em seus planos porque sua consciência ainda não permite que
cometa um assassinato premeditado. Outros reivindicam que não é a benevolência
de Hamlet que conserva Cláudio nessa cena, mas seu próprio hábito procrastinador
de “pensar demais nas coisas” (4.4.41). De qualquer forma, o primeiro argumento é
sugestivo porque a base de sua procrastinação é sua inabilidade em cometer o
assassinato de forma premeditada. Ironicamente, na peça – mas não no filme – a
preocupação de Hamlet é um erro, porque o remorso de Cláudio não é sincero,
conforme revelado na conclusão da Cena III (conclusão ausente em Zeffirelli):
“Minhas palavras voam acima, meus pensamentos permanecem abaixo:
Palavras sem pensamentos nunca chegam ao céu.” (97-8)
Sexto solilóquio (4.4.35-69____não há representação da cena IV do Ato IV no filme,
conseqüentemente não há o solilóquio)
How all occasions do inform against me, (35)
And spur my dull revenge! What is a man,
31
If his chief good and market of his time
Be but to sleep and feed? a beast, no more.
Sure, he that made us with such large discourse,
Looking before and after, gave us not (40)
That capability and god-like reason
To fust in us unused. Now, whether it be
Bestial oblivion, or some craven scruple
Of thinking too precisely on the event,
A thought which, quarter'd, hath but one part wisdom (45)
And ever three parts coward, I do not know
Why yet I live to say 'This thing's to do;'
Sith I have cause and will and strength and means
To do't. Examples gross as earth exhort me:
Witness this army of such mass and charge (50)
Led by a delicate and tender prince,
Whose spirit with divine ambition puff'd
Makes mouths at the invisible event,
Exposing what is mortal and unsure
To all that fortune, death and danger dare, (55)
Even for an egg-shell. Rightly to be great
Is not to stir without great argument,
But greatly to find quarrel in a straw
When honour's at the stake. How stand I then,
That have a father kill'd, a mother stain'd, (60)
Excitements of my reason and my blood,
And let all sleep? while, to my shame, I see
The imminent death of twenty thousand men,
That, for a fantasy and trick of fame,
Go to their graves like beds, fight for a plot (65)
Whereon the numbers cannot try the cause,
Which is not tomb enough and continent
To hide the slain? O, from this time forth,
32
My thoughts be bloody, or be nothing worth!
Análise do sexto solilóquio
O solilóquio final de Hamlet aparece no Segundo Quarto mas não no Primeiro Fólio.
Conforme explicado no início deste trabalho, alguns críticos, como Harold Bloom,
argumentam que o próprio Shakespeare cortou a passagem do fólio à medida que
fez revisões de seu trabalho através dos anos. Pode ser esse o motivo da diferença
entre as 3.800 linhas encontradas no texto do Segundo Quarto e a omissão de 230
dessas linhas no Primeiro Fólio. O fato de o Primeiro Fólio conter 80 linhas não
encontradas no Segundo Quarto pode ser uma indicação de que Shakespeare
continuava a revisar Hamlet depois de 1604-1605, quando surgiu o Segundo Quarto.
Para Bloom, o Fólio pode ter sido a última versão teatral da peça autorizada por
Shakespeare. (BLOOM, 2000, p.487 – 488) Contudo, vários outros estudiosos
argumentam que, embora seja possível que os editores do fólio tenham impresso
uma cópia de fato revisada por Shakespeare, é altamente improvável que
Shakespeare tenha mutilado seu próprio trabalho removendo uma parte tão integral
da peça. Embora ausente no filme, o último solilóquio de Hamlet é crucial à nossa
compreensão do desenvolvimento de sua personalidade. No final do solilóquio,
Hamlet interrompe sua contemplação sombria do ato imoral de vingança homicida, e
o aceita finalmente como seu necessário dever. Não que Hamlet tenha apresentado
a si mesmo argumentos sólidos e razoáveis para se convencer de sua
responsabilidade, mas sim foi levado a tal conclusão por distorcidos estados mentais
de exaltação. Hamlet acusa a si mesmo de ter esquecido do pai naquele “limbo
bestial” (43), e pensa que seu problema seria “pensar demais nas coisas” (44). Além
disso, embora Hamlet tenha visto Fortimbrás apenas por um instante, no início da
peça, e não saiba nada a respeito de seus reais motivos de guerrear, Hamlet
convence a si mesmo de que Fortimbrás está lutando para proteger sua honra. Uma
parte de Hamlet acalenta efusivamente tal convicção, embora ilógica e inconsistente,
e assim ele vê claramente a imagem de Fortimbrás conduzindo corajosamente suas
tropas. Aqui a razão de Hamlet, a parte que lhe foi dominante durante toda a peça, a
parte que questionara onde estava a “honra” no assassinato e na vingança, não
pode mais fornecer um argumento contrário suficientemente forte. O príncipe é
assim subjugado por suas obrigações de realizar a vingança. Hamlet uma vez
sentira profunda aflição por ter de exigir o pagamento pelo assassinato de seu pai,
33
mesmo quando as razões apresentadas para tal vingança eram argumentos
tremendamente válidos. Agora, contudo, Hamlet aprecia e aprova a idéia “da morte
iminente de vinte mil homens” justificada por mera “fantasia e capricho da vaidade”
(63-4).
Conclusões
Qualquer opinião generalizada sobre a obra cinematográfica será obrigatoriamente
impessoal, pois dependerá do conjunto de espectadores que gostou ou não da
versão, o que por sua vez dependerá do seu nível de conhecimento da obra original,
e que originará a opinião de ser ou não ser o filme uma maneira interessante de
apreciar Shakespeare nos dias de hoje.
Após as leituras da peça no idioma original e em português, e de textos teóricos
sobre ela, e após ter assistido a uma versão em DVD obtida de uma representação
em palco (com o ator galês Richard Burton) e também a mais algumas versões em
filme (inclusive as versões de Sir Laurence Olivier e de Kenneth Branagh) e em
desenho animado (O Rei Leão da Disney, adaptação baseada em Hamlet, e a
impagável versão dos Simpsons), e respaldado pelas opiniões apresentadas ao
longo desse trabalho, acredito que a obra de Zeffirelli apresenta uma ótima relação
entre acessibilidade, manutenção do enredo e do texto original, viabilidade comercial
e engajamento do elenco.
34
Referências bibliográficas
ALEXANDER, Peter. Introduction to Shakespeare's Tragedies. London: Collins ClearType Press, 1958.
BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Rio de Janeiro: Editora Objetiva
Ltda., 2000.
JENKINS, Harold. ed. Hamlet. By William Shakespeare. London: Methuen, 1982.
KERMODE, Frank. Shakespeare’s language. New York: Farrar, Straus, and Giroux,
2000.
MACK, Maynard. Everybody's Shakespeare: reflections chiefly on the tragedies. Yale:
University of Nebraska Press, 1994.
NEWELL, Alex. The soliloquies of Hamlet. London: Associated University Presses, 1991.
ROTHWELL, Kenneth S. Shakespeare in silence: from stage to screen. A History of
Shakespeare on Screen. Cambridge : Cambridge University Press, 1999.
TAYLOR, Neil. In: Shakespeare and the moving image - the plays on film and television.
New York: Cambridge University Press, 1994.
WILLEMS, Michele. Shakespeare à la télévision. Rouen: Publications de l’Université de
Rouen, 1987.
35
Anexo
Opiniões da crítica sobre o Hamlet de Zeffirelli
CARYN JAMES, assistente de editoria do NEW YORK TIMES, 19 de dezembro de
1990.
Caryn classifica como um grande desserviço de Zeffirelli o fato de o diretor afirmar
que foi inspirado a escolher o elenco de Hamlet após assistir a atuação de Mel
Gibson em Máquina Mortífera (Lethal Weapon, 1987), mais precisamente na cena
onde o personagem de Gibson, Sargento-detetive Martin Riggs, põe a arma contra a
própria cabeça e chega próximo ao suicídio (porque, segundo Caryn, embora a cena
possa remeter a Ser ou não ser, não conduz diretamente a Shakespeare; antes
remete a paródias como Mad Hamlet, the Road Warrior – aqui, uma alusão a Mad
Max 2: The Road Warrior, 1981). Ou seja, segundo a opinião da editora do New York
Times, a tentativa de ligar a cena de Máquina Mortífera ao famoso To be or not to be
em Hamlet de Shakespeare funciona muito mais como um simulacro que como uma
(pretensa) intertextualidade.
Curiosamente, contudo, Caryn reconhece que o grande serviço de Zeffirelli foi
conseguir obter sucesso com essa conexão, para ela ridícula. Avalia o Hamlet
interpretado por Mel Gibson como forte, inteligente e situado em uma margem
confortavelmente distante do ridículo. É um Hamlet profundo, torturado por seus
próprios pensamentos e paixões, que se sente confuso no processo de
reconhecimento da maldade, um Hamlet cujas emoções ainda são cruas o suficiente
para reter uma inteligência desesperada que será necessária para agir como um
louco. Para Caryn James, a interpretação de Gibson é a melhor parte do Hamlet de
Zeffirelli, uma versão que, embora escorregadia em alguns momentos, é sempre
lúcida, belissimamente filmada e elaboradamente produzida. Os trajes usados por
Glenn Close (Gertrudes) são capazes de, por si só, atrair a atenção, com seus véus
flutuantes e jóias elegantes. Mas a beleza visual permanece como um cenário de
fundo para a trama, e não como um fim em si mesma. Conclui que, ao apresentar
uma interpretação naturalística (em oposição à clássica interpretação teatral
elisabetana da peça original, que, por exemplo, era desprovida de cenários
elaborados) e carregada de emoção (o mesmo procedimento utilizado por Zeffirelli
36
em Romeu e Julieta em 1968), essa versão de Hamlet, embora popular e
artisticamente um sucesso, não se adapta ao gosto dos filósofos e puristas.
Hal Hinson, membro da equipe de redação do Washington Post, 18 de janeiro de
1991.
De imediato Hinson tranqüiliza o leitor, ao afirmar que a presença de Gibson nessa
versão de Hamlet não a torna uma espécie de Adaga Mortífera (em uma alusão
clara à Máquina Mortífera e às lanças utilizadas em Hamlet). Antes enaltece o fato
de a versão de Zeffirelli, com Mel Gibson no papel do melancólico príncipe
dinamarquês, apresentar um design aerodinâmico – para ele, a primeira produção
de uma tragédia de Shakespeare a ser construída com o auxílio de túnel de vento.
Para o crítico, não há nada embaraçoso em se fazer uma versão ágil como a de
Zeffirelli, que permanece crível em sua totalidade, mesmo sendo uma versão que
não procura ser fiel a um extremo ou outro, permanecendo sempre no meio-termo. O
crítico reconhece, de qualquer maneira, que, ao alijar da peça todas as falas que
poderiam desacelerar o ritmo da peça em direção ao epílogo, Zeffirelli apresenta
uma versão não apropriada para os puristas shakespearianos.
Sobre os atores, o desempenho de Gibson não convence Hal. Para ele, o ator lê
bem as partes, mas os versos jamais chegam a ter vida. Sobre os solilóquios, por
exemplo, o crítico vê neles apenas uma recitação de Gibson, como um mero
estudante fazendo o dever de casa, o que traz como resultado o fato de não
sobrarem muitos pontos escuros na psique desse Hamlet. Hinson elogia, contudo, a
atuação de Helena Bonham-Carter, cuja Ofélia transmite fragilidade e loucura
genuínas – segundo Hal, ela parece uma boneca de trapos se desvanecendo. E as
breves aparições de Paul Scofield (como o fantasma) apresentam uma compostura
horripilante. O crítico elogia ainda a atuação de Alan Bates (Cláudio),
particularmente na cena final, onde, por acidente, Gertrudes bebe o veneno
destinado a Hamlet. Sobre Glenn Close (Gertrudes), Hal destaca uma única cena
memorável – aquela da cama, após Hamlet ferir mortalmente Polônio. Essa é, aliás,
uma das únicas cenas convincentes e capazes de transmitir toda a força de
sentimentos excitantes na atuação de Gibson, segundo o crítico.
37
Finalmente, ao considerar que a platéia de Zeffirelli deve ser muito mais fã de
Gibson que de Shakespeare, Hinson classifica essa versão de Hamlet como
relativamente refinada – ágil, merecedora de respeito, mas decididamente não o
suficiente para se tornar um Hamlet para a posteridade.
Roger Ebert, colunista do Chicago Sun-times, 18 de Janeiro de 1991
Para Ebert, o estilo do Hamlet de Zeffirelli, com Gibson no papel-título, é robusto e
fisicamente vigoroso (em contraste com um vigor mental ou espiritual). Roger aponta
que Gibson não nos proporciona mais um Hamlet coberto por sombras e lamentando
seu destino. Ao invés disso, temos a noção (como platéia) que não havia nada
fundamentalmente errado com Hamlet, até que tudo saiu errado em sua vida,
quando seu pai morreu e sua mãe casou-se com Cláudio, tio de Hamlet, irmão do rei
morto, com uma rapidez jamais vista. Esse Hamlet é um príncipe que era saudável e
feliz e que poderia ter vivido uma longa e ativa vida, se as coisas tivessem lhe
sucedido de maneira diferente, segundo o crítico.
Ainda segundo Roger, parte dessa argumentação pode ter vindo de Zeffirelli, cuja
famosa versão cinematográfica de Romeu e Julieta (1968) também apostava na
juventude e sedução dos personagens principais, cheios de vida e amor ardente até
que a tragédia os separou. Outra parte, sinaliza o crítico, pode ter vindo do próprio
Gibson, para ele a mais bem-humorada das estrelas atuais (1991), cujo estilo
pessoal é quebrar a seriedade com uma piada, e que não se entrega facilmente à
autopiedade e ao masoquismo melancólico. Ele nos dá um Hamlet que faz o melhor
de si para suportar seu fardo, até que finalmente submerge sob o peso descomunal
dos eventos, analisa Ebert.
Roger lembra ainda que Zeffirelli utilizou uma locação espetacular – um castelo
encravado em uma formação rochosa da costa norte da Escócia, situado no alto de
uma rocha cercada quase que totalmente pelo mar (Castelo de Blackness). Havia
muita lama, chuva e névoa. Para o crítico, esse é um mundo substancial da real
presença física, encarnado por um número incomum de extras; nele temos o
sentimento que esta realeza governa sobre algo real, em vez de existir somente na
imaginação de Shakespeare. O crítico ainda considera que, acertando nas locações,
Zeffirelli e seu colaborador no roteiro, Christopher De Vore, tomam a liberdade com
38
Hamlet, deslocando alguns diálogos e adicionando algumas palavras para criar
cenas que não existem no original: por exemplo, a vigília do pai do Hamlet, com
Hamlet, Gertrudes e Cláudio confrontando-se sobre o caixão. Para o crítico, em
termos cinematográficos essa cena clarifica perfeitamente o problema central de
Hamlet, e fortalece dramaticamente tudo o que se segue. Sobre o elenco, Ebert
avalia que é algo que sempre pode ser chamado de “distinto”, o que usualmente,
mas não necessariamente, significa “britânico”, lembrando que inclui pelo menos três
atores que já interpretaram o príncipe Hamlet: Alan Bates, aqui como Cláudio, Paul
Scofield, como o fantasma do pai do Hamlet, e Ian Holm, como Polônio. As mulheres
da peça, Glenn Close, como Gertrudes, e Helena Bonham-Carter, como Ofélia, são
ambas bem interpretadas, segundo o crítico: “Close em particular adiciona um
elemento de credibilidade atuando como mãe, o que às vezes é ausente em
Gertrudes. Ama seu filho e preocupa-se com ele - não é simplesmente uma esposa
infiel com uma memória curta”. Para Roger, há de fato sutis sugestões físicas de que
ela tenha amado o filho de maneira muito próxima, muito ardente, criando assim os
sentimentos incestuosos ocultos que são o verdadeiro motivo das ações de Hamlet:
“Por que teria Gertrudes se casado em segundas núpcias com tanta pressa? Talvez
simplesmente porque assim o vácuo de poder no reino seria preenchido; ela parece
ser um tipo sensitivo (dotado de poderes parapsicológicos), enquanto todos os
outros personagens nessa versão pareceriam a Hamlet serem razoavelmente
normais, se ele pudesse ter se libertado de seu ressentimento mordaz e da
vergonha a tempo suficiente de perceber isso.”
O crítico destaca ainda a participação de Helena Bonham-Carter, que considera uma
bela atriz que, representando Ofélia, tem o papel mais difícil da peça, uma vez que
uma personagem que enlouquece não pode mais apresentar nenhuma relação com
os outros personagens, devendo essencialmente se tornar uma solista. Todas as
últimas cenas de Ofélia são essencialmente com ela mesma, não havendo um
interação racional com os presentes.
Isso deixa Hamlet e seu melhor amigo, Horácio (Stephen Dillane), como aqueles que
não estão satisfeitos com os estado das coisas no reino, e Dillane, com sua atuação
natural, proporciona um parceiro adequado para Gibson. Como tudo caminha para o
duelo final de espadas e tudo o que isso envolve, e à medida que as habilidades
naturais de Hamlet enfraquecem sob o peso de seus pensamentos, o filme
prossegue de maneira lógica através de suas emoções. Para Ebert nós nunca
39
sentimos, como algumas vezes acontece com outras produções, que os eventos
acontecem de maneira arbitrária.
O crítico finaliza argumentando que a grande contribuição de Zeffirelli em
“popularizar” a peça foi deixar claro às platéias o porquê de os eventos serem
desdobrados da maneira como são. Argumenta, ainda, que esse Hamlet se sustenta
ou cai dependendo do desempenho de Mel Gibson, e pensa que surpreenderá
alguns espectadores com sua força e apelo. Para ele, Gibson não ficou intimidado
por fazer Shakespeare, não caiu em uma armadilha de fazer esse papel demasiado
solene e lúgubre. Observou o jovem das primeiras e menos problemáticas cenas,
começando sua atuação desse ponto, em vez de deixar cada nuance ser um
presságio do que está por vir. Para o crítico esse é um desempenho forte,
inteligente, cheio de vida, e isso faz esse Hamlet ser surpreendentemente robusto.
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