Regis Bonvicino

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Régis Bonvicino
1
Régis Bonvicino nasceu na cidade de São Paulo, em 25 de fevereiro de 1955. Formou-se em
Direito pela USP, em 1978. Trabalhou como articulista do jornal Folha de S. Paulo e de outros
veículos até ingressar na magistratura, em 1990.
Seus três primeiros livros, Bicho papel (1975), Régis Hotel (1978) e Sósia da cópia (1983)
foram por ele mesmo editados. Hoje, estão reunidos no volume Primeiro tempo (Perspectiva,
1995).
Entre suas participações em leituras de poesia destacam-se as atuações em Buenos Aires
(1990); Miami (Miami Book Fair, 1992); Copenhague (1993); na III Bienal Internacional de
Poetas em Val-de-Marne (1995), fazendo leituras em Paris (Maison de La Amerique Latine) e
Marselha (Centro Internacional de Poesia); Berkeley (1996), com Michael Palmer, e na San
Francisco State Universty. Em 1998, apresentou-se com Charles Bernstein no Segue
Performance Foundation, de Nova York; no ano de 1999 esteve em Santiago de Compostela,
na Universidade de Santiago. Fez leituras em Iowa City (2000), com Michael Palmer, e em
Chicago; participou do IV Encontro Internacional de Poetas de Coimbra (2001). Destaca-se
ainda sua participação na Feira do Livro da Cidade do México (2004). Seu trabalho está
traduzido para o inglês, espanhol, francês, chinês, catalão, finlandês e dinamarquês.
Entre 1975 e 1983, dirigiu as revistas de poesia Qorpo Estranho – com três números –, Poesia
em Greve e Muda. Fundou, em 2001, e co-dirige, ao lado de Charles Bernstein, a revista
Sibila publicada atualmente pela Martins Editora.
Do diálogo com a poesia concreta para o diálogo consigo mesmo. Assim pode ser
definida a trajetória de Régis Bonvicino. Inicialmente, ele parece ter compartilhado com
Paulo Leminski (1944-89) a idéia de injetar no rigor vanguardista o anarquismo contracultural
dos anos 70 — conforme escreveria no poema que dá título ao livro Más Companhias (1987):
"mamãe dizia/ meu filho/ não ande/ em más companhias// a anarquia a maconha/ o ácido/
eram más companhias// & aquele mar da bahia/ (onde o mar maresia)// andar com joyce/
debaixo do braço// & fazer poesiaemgreveqorpoestranhomuda/ alegria/ dor/ & fantasia".
Em suas primeiras obras, portanto, há esse cruzamento de experimentalismo lingüístico e
hedonismo libertário que, grosso modo, o aproxima dos tropicalistas e da chamada geração
marginal. Mas a poesia de Bonvicino logo se singulariza. Da matriz concreta, ele preserva
uma economia formal em que os signos surgem de maneira descontínua, como ilhas de
significação em atrito dentro de frases elípticas; de seu percurso inicial, ele preserva um
sentido crítico que transforma a descontinuidade sintática em expressão da consciência
cindida, alienada, que caracteriza o sujeito moderno: "Não nada ainda do outro/ semelhante
ainda ao mesmo/ mínimo ainda o outro/ ele mesmo não ainda outro/ de um mesmo morto
outro/ insulado em seu corpo",
escreve ele em Outros Poemas (1993).
Mas é sobretudo a partir de Ossos de Borboleta (1996) e Céu-Eclipse (1999) que a antipoesia
concreta vai se plasmando nas mãos de Bonvicino até adquirir o sentido ético e político de
uma negatividade pura, de uma crise da representação: de livro a livro, seus poemas
encadeiam visões e sensações que se assemelham a estilhaços de realidade; quanto mais o
poeta contempla os objetos, mais opacos eles ficam.
Podemos reconhecer na poesia de Bonvicino referentes da exclusão social, da violência, de
temas contemporâneos como o movimento antiglobalização e a guerra ao narcotráfico. Mas,
em geral, seus poemas se enfileiram numa "muda sequência de quinas", como se fossem
fotogramas de um filme que dispõe fragmentos da vida urbana, tornada inapreensível pelas
experiências de choque a que somos submetidos diariamente.
A poética de Bonvicino tem influência considerável sobre as novas gerações. Sua presença é
perceptível num escritor como Tarso de Melo, mas é Manoel Ricardo de Lima quem mantém
com ele uma inter-locução mais explícita, seja no livro de poemas Embrulho (2000), em que
as palavras parecem se esgueirar entre silêncios), seja na prosa poética de As Mãos (2003),
2
em que o tema da separação amorosa gera o confinamento do narrador e do seu mundo
numa sintaxe espasmódica.
POESIA
• Bicho Papel. São Paulo, Edições Greve, 1975.
• Régis Hotel. São Paulo, Edições Groove, 1978.
• Sósia da Cópia. São Paulo, Max Limonad, 1983.
• Más Companhias. São Paulo, Olavobrás, 1987.
• 33 Poemas. São Paulo, Iluminuras, 1990.
• Outros Poemas. São Paulo, Iluminuras, 1993.
• Ossos de Borboleta. São Paulo, Editora 34, 1996.
• Céu-eclipse. São Paulo, Editora 34, 1999.
• Remorso do Cosmos (de ter vindo ao sol). São Paulo, Ateliê Editorial, 2003.
• Página Órfã. São Paulo, Martins Editora, 2007.
ANTOLOGIAS
• Primeiro Tempo. São Paulo, Perspectiva, 1995 (reunião dos livros Bicho Papel, Régis Hotel
e Sósia da Cópia).
• Sky-Eclipse selected poems. Los Angeles, Green Integer, 2000.
• Lindero Nuevo Vedado. Porto, Edições Quasi, 2002 (com poemas de 33 Poemas, Outros
Poemas, Ossos de Borboleta e Céu-eclipse).
• Poemas (1999-2003), Ciudad de Mexico, Alforja Conaculta-Fonca, 2006.
POEMA COLETIVO
• Together – um poema, vozes. São Paulo, Ateliê Editorial, 1996.
Protegido pela Lei do Direito Autoral
LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, modificado e que as
informações sejam mantidas.
3
Sexto Poema
Régis Bonvicino
Sob a ira das víboras
na agonia das cortinas
onde atiravam pedras
no aterro de mim mesmo
meses a fio
o veneno de acônitos
no atear-se fogo
no açular o nervo do açúcar
querer algo além dos cômoros
Setimo Poema
Régis Bonvicino
Silêncio é forma
contar é ato
livre, imprevisto
traço de luz
ele se aquieta
contraste & vulto
que rompe súbito
em outra véspera
voz das camândulas
no livre curso
lis de petúnias,
fisionomia,
muda, da sombra,
& os avelórios
cortando os dedos,
a cada conta
para Claude
Aniversário
Régis Bonvicino
O que fiz do tempo
êxito?
De acácias paralelas
agora em fevereiro
talvez o da... mirra
a anunciar a sina —
tigres famintos em busca da presa;
a estátua, de kanisha
cessaram os sapatos com a vida
I have been overkilled by my peers
o que digo
4
enigma?
(da janela, os automóveis, fluindo
kanisha é Ganesha,
um deus da Índia,
estátua, carniça!)
—
o nada transmigra
o bodisatva mija
o buda mijava
quando não era argila
A Nuvem
Régis Bonvicino
A nuvem é um espaço
abrupto. Um céu brusco
É um espaço muito
pouco firme e úmido
quando chove
é um espaço acústico
Espaço que se funde
(um abutre atravessa uma nuvem)
o raio rompe, ignívomo,
vômito de fogo,
o céu nublado da janela
do edifício no crepúsculo fulvo
um céu de rosas adunco
o vento traga as nuvens
êxtase
É um espaço vizinho
pó de meteoros e abismo
não está ao alcance do úmero
ou das mãos
É um espaço aflito
apátrida
para a chuva, as cifras e o cacto
lua ao meio-dia
É um espaço inútil
do ponto de vista de um número
É o espaço último
quando um míssil
noctilucente triste lúgubre
para a Vera Barro
5
Canção
Régis Bonvicino
Carinho na Bebel e no Pingo
carinho
na barriga da filha-cadela
e do filhote-menino
carinho no menino lindo
spitz, pêlo espesso, altivo
psiu! a Maltesa quer dormir
carinho na menina linda
que leva a Bruna
para a escola
com a mamãe Darly
e que adora
visitar a casa da vovó
Marlene e do vovô Daury
festa para o Marcelo
alvoroço, a Darlene chegou!
carinho na Bebel e no Pingo
o Pingo ganha um osso
quando faz cocô
certinho
carinho na menina linda
que rosna para a porta
quando ouve um barulho
sombra viva
branca vida
carinho no menino
que acabou de chegar
e já dorme sozinho
para a Bruna,
em seu 13º aniversário
Canção da Luly*
Régis Bonvicino
Vento na persiana da sala
a cadela late
ao som do aproximar-se
alguém na porta do apartamento
para que a noite se desate
do frio a cadela late
quando a noite mais abate
para que ela não se dilate
rói a noite como um osso
late à janela, diante do Vale
que se abre, de fina neblina
late para que a manhã se reate
com a luz clara do dia
poema escrito em 2001
* Luly, maltesa, nasceu em 2000 e morreu em 2002
6
de REMORSO DO COSMOS
Portugues by Odile Cisneros:
ETC
Régis Bonvicino
Tateava um morteiro
& seu alcance,
a lâmina do radar
& sua rede
flexível
sondava o ânimo,
clandestino, de um elmo
seu afã
mira & diâmetro
sob o arco aceso da madrugada
me sentia só
ao som das teclas de um piano
apontava para o céu,
serena luz, longínqua,
via, apenas,
os seus braços
na parede do quarto
lâmpada repousava
o espaço,
horizonte & cápsulas
sigdasys sugavam cabeças
decepadas & a estrela extraordinária
riscava-se,
em cores opacas
ETC (2)
Régis Bonvicino
Tentava apanhar a flor
meia-parede
braço entre as grades
tentava
alcançar a haste
verde da cósmea
consolo do sol ou azul do miosótis
na ponta dos dedos
7
pétalas brancas do narciso,
em si incólumes
além do muro
um caule ostentava folhas enormes
golpeava uma constelação
inútil, firetalk,
com aparência de duna
talvez fosse pantera
& não apenas idéia
que se transfigura
& toca seu próprio núcleo
sólido, estrelas pousavam
em meu olho, como um aporte
punhaladas no corpo,
paleta, nódoa
& salva de galopes
ETC (3)
Régis Bonvicino
Tentava seguir, passos
vozes, no mármore
folha, vermelha, do ácer
nesta parede, do The Art ...
ou no jardim da casa de
Frank Lloyd Wright em Oak
Park, do verde, tênue,
glauco captar
a cor do céu,
tentava entender o sol
folhas amarelas
esplêndidas ainda com seiva
observando numa rua
qualquer na verdade cor do ouro
em contraste
daqui a pouco secas
concorrendo
com o outono, vermelhas
como um pôr-do-sol
de bolso
na moldura inox,
antes de cair,
uma garota de cabelos vermelhos
talvez Nolde
Chicago, outubro de 2000
8
ETC (4)
Régis Bonvicino
Tentava entender a figura
do cavalo amarelo
no Museu de Arte ...
manhã, no Parque
(bicos-de-papagaio avançando para
além do muro, outra rua,
folhas de sangue)
tentava captar, o possível
estrela, cascos-labareda,
lobo & esquilo,
únicos & mútuos,
& um tipo quase de buda
cavalo farejando
nuvem, olhar atento,
boiando, rajadas de
vermelho, no céu, pétalas
do flamboyant
tentava entender a luz
& seu cavalo alto
a cor & seu cavalo mudo
num quadro
pintado de Nolde
além da janela
talvez chova talvez faça sol
São Paulo, novembro de 2000
SEXTO POEMA
Régis Bonvicino
Sob a ira das víboras
na agonia das cortinas
onde atiravam pedras
no aterro de mim mesmo
meses a fio
o veneno de acônitos
no atear-se fogo
no açular o nervo do açúcar
querer algo além dos cômoros
9
SÉTIMO POEMA
Régis Bonvicino
Silêncio é forma
contar é ato
livre, imprevisto
traço de luz
ele se aquieta
contraste & vulto
que rompe súbito
em outra véspera
voz das camândulas
no livre curso
lis de petúnias,
fisionomia,
muda, da sombra,
& os avelórios
cortando os dedos,
a cada conta
para Claude
SEM TÍTULO (1)
Régis Bonvicino
Minas, silenciadores, a dissolução prévia do corpo, nadis, flama, recôndito, Sundevil, Léxisnexis, arpa, sard, cisa, carmina, estrondos, satcoma, satélites, retratos na parede, capricórnio,
gama, gorizont, ISSO, parasita, morgancanine mantis, ionosfera, reflexo, & o surto de outras
figuras, batedores, white noise, sexo, enseadas, Speakeasy, colmilho, miras estriadas, os
ópios de emergência, e um vento, índigo, explosivo, mania, gases úteis para o exercício diário
da vida, janela, Bubba, the Love Sponge, onde pousava, de madrugada, a brisa
SEM TÍTULO (2)
Régis Bonvicino
Na virtude dos músculos, dias diamantinos, no frêmito de ser & quando efetivo, na força das
vigas, no ânimo de paredes, erguidas, gerânios no canteiro, tijolo, um a um, firmes, fio avariado,
pupilo de um suicídio, alento de silhueta, na derrocada da cor, estilhas de vidro, aranhas na
cama, sol em surdina, persistindo, no tumulto de pancadas, cúpulas, ópio hipnótico, clemência
dos meses, brio de ladrilhos, lâmpadas sob o teto, o alento em si do vento no flagelo da janela
e demais utensílios, déspota de portas, escombros do cômodo, caliça, verdugo de seu próprio
muro, maciço.
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SEM TÍTULO (4)
(Fanti-Axanti)
Régis Bonvicino
Caras-douradas, monos-carvoeiros, iguanas, tiês incandescentes, bromélias, orquídeas, saíras,
do cimo das árvores, araras, precipitam-se: berloques, chircas, tônis, jias, néticos, Avi Shelter!,
no Mar da Ligúria, Cúpula-cáfila, de réplicas - abatis, por mísseis e cifras - contra o plus, o
sm@sh, o black - aqui, no Sul, o vento alastra o fogo, o fogo queimando a Mata - Gênova,
disparos, balas na cabeça, o corpo esmagado pelo jipe, dos carabinieri - punk bestia!,
Alimonda, estigma decapitado, agora, "alcoólotra, amigo das drogas" (Fa Lun Gong, calado! e
os da Coca-Cola, na Colômbia, atraidos, assassinando) YA Basta! contro li alieni, lábaros e
carros incendiados, vitrines destruídas - o corpo, respect!, vômito & os da tribo bux nígrous,
livres, em algum lugar, recôndito, das florestas das Guianas reanimando, escombros
21.07.01
ANIVERSÁRIO
Régis Bonvicino
O que fiz do tempo
êxito ?
De acácias paralelas
agora em fevereiro
talvez o da ... mirra
a anunciar a sina tigres famintos em busca da presa;
a estátua, de kanisha
cessaram os sapatos com a vida
I have been overkilled by my peers
o que digo
enigma?
(da janela, os automóveis, fluindo
kanisha é Ganesha,
um deus da Índia,
estátua, carniça!)
—
o nada transmigra
o bodisatva mija
o buda mijava
quando não era argila
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ACONTECIMENTO
Régis Bonvicino
1
Timbre áspero. Ângulo vivo do vento. Sol para magnólia. Chuva para cacto. Crótalos para
cobra e cauda de guizo. Rotação e traslação, desmedidas. "A" para coisa e estrela e para calar
e para ex. Mera passagem em si, para seguir. As cinzas de um mapa queimado. Estacas para
mônadas. Atalho para alado. Detargo, o vulto precipitado anula a asa do dragão
2
Lento para sol. Lento que expõe o azul. Cicio para silêncio Silvo para calado. Força para fluxo,
magnético, onde a estrela atrai a noite. Noite para estrela. Estrela para sol. Mútuo para azul e
cor, distantes. Ritmo para noite. Sol para luzes e nuvem. Nulo para azul. Azul nulo para espaço.
Coisa e sombra mais adiante
ACONTECIMENTO (2)
(Little wing)
Régis Bonvicino
Entre nuvens
halo
que se dissipa
rápido
lilás
raio de lua
e contos de fadas
borboletas e zebras
- só - na sala,
ouvindo música,
asa, que se abre
(torna-se visível)
e me socorre
ventura, êxtase
movimenta-se
no vento e passa
ACONTECIMENTO (3)
Régis Bonvicino
Hoje é domingo ontem foi sábado, dia 1o de janeiro será feriado porque ouço música na sala e
a lua não estará em um novo quarto, a semente é vermelha e dura, a madeira é escarlate, a
semente é de madeira: vermelha e negra, de uma única fruta; a semente não cai da árvore, a
semente tem asa, a semente tem pêlos, a semente é um pássaro de pena escarlate, a
semente é madeira, que acorda nas grunhas, nos hortos e, uma vez, acordou na praia de
12
Trindade; (há outros poucos tipos de semente de tenteiro, um deles, casca, da vagem, marrom,
âmago, amarelo, vivo, e a semente é vermelha, rutilante, a vagem, sinuosa, vai secando), a
semente só cai da árvore depois de no mínimo dois anos - a semente é lenha, a semente é
fogo, a semente é vermelha, cinza, nas terras úmidas do Pará, é estrela, mucunas, buiuçu, ou,
aqui, no sul, olho de cabra, tanto faz, a semente é colar, da árvore, flores só a intervalos de
vários anos, (um vaso, no canto da sala, agora num silêncio sibilino, sinistro), pétalas negrovioláceas, algumas vezes mais claras fugazes
dezembro, 30, 2001
QUARTO POEMA
(Canalha densamente canina)
Régis Bonvicino
Flores exalam medo,
cólera de cor,
magnólias exalam silêncio
tulipa intimidada,
o idioma dos medos
folhas caducas
das calêndulas sem janeiro
remorso do cosmos
de ter vindo ao sol
a rosa e seu
perfume, seco
sombra
apavorada de begônia
azul de hortênsia,
visgo arredio,
tenso
crisântemo em pânico
pétalas vermelhas do rododendro
trêmulas não
do vento
NO BECO DO PROPÓSITO
Régis Bonvicino
a estrela desaproveita
o sol queima lâmpadas à noite
o flamboyant
entrando no telhado da casa da esquina
tem favas pretas, & semente,
manhã azul
pétalas vermelhas de vênus
13
no muro,
o arbusto se ergue, esguio, da pedra
como vulto
um cão, de passagem, rói um osso
os cravos cheiram muito
para a Bruna
Paraty, 12/7/2000
COM A BRUNA
(ela aos 8 anos)
Régis Bonvicino
Ao atravessar o parque
folhas sob os pés
pisando, em mim, o outono
CANÇÃO (6)
Régis Bonvicino
Mais um golpe impunha dobras
na cova das olheiras
ninguém que me guardasse a porta
como um cão
Cadáver de suicídio,
naquela manhã suave de abril,
do vômito em jorro,
apagando qualquer
vestígio de flor em meu corpo,
Calúnia acéfala,
folhas amarelas do jacarandá,
cabeças ruivas das nipéias
a casa em declive de lua, iluminada
por um sol de hemisfério
búgulas, de vacilantes chamas azuis
verdade ou música?
(trapo do tempo
e de tanto desprezo,
o roxo tombo,
da verdade em peso)
para Alva Flôr, in memoriam
14
ABSTRACT (2)
Régis Bonvicino
Gaivotas caindo na água
em Niagara, verde.
Esgotam-se os dólares.
Um homem dormia num vão
numa esquina da Lexington
na calçada
da Collaborative High School –
School of the Future –
entre a porta de vidro
e as telas de arame,
caixas de papelão,
uma espécie de abrigo
(cigarros pisoteados),
“Visitors: no trespassing”
Ele não obedeceu ao aviso
Em Manhattan, só o rato é democrático
13/9/2002
VARIAÇÃO HORACIANA
Régis Bonvicino
O esqueleto do morcego é um dejeto
Inóbvio
Diante do espelho
Avança
Sob a pele
Do meu próprio
Esqueleto de morcego
Dejeto inóbvio
Diante do espelho
Avanço
Sob a pele
Do meu próprio
ANTIMUSEU
Régis Bonvicino
Ócio, verão exuberante, a poça, os dois canários bebendo água na poça, um abacaxi, a fruta
coroada, apodrecendo na grama, o mangue, céu nublado, uma garça no mar, porque, daqui a
pouco, terei as horas contadas, (os minutos contados), os dias contados
15
agora, da janela do quarto, magnólias, a exuberância do verão, que a chuva aflora, chuva da
tarde, as doze pétalas da guzmania lingulata estrela, laranja e verde, o elã das plantas,
rutilantes gladíolos, agapantos, vaganas, zebrinas, o que cai com a chuva, cavalo, parado,
horizonte, primaveras se largam, para além dos muros, nuvem e o que se move por tais linhas
entre a foz do rio e o mar, no mangue, há árvores perto do cavalo, moita de cães, terra firme?,
o cavalo pastando sob a chuva, angélicas, rente ao chão, tritomas altivas para alívio de um raio,
amarílis, curcumas, lírios, o sal da lua nas ruas ainda vazias, palmeiras, o vento nas palavras,
pio, esparso, pássaros, e ela não mais jorra, pelos telhados, a água, o que não passa com a
chuva
Paraty, 22/1/2003
QUASE
Régis Bonvicino
Em mais uma troca
oca de mim para mim
mesmo entretanto oscilei
e o silêncio revidou
subi um degrau
reverso visível
como que num encanto
sapos no estômago
ratos nas entranhas
pus na medula
Duro como ferro
e inexpresso
cavei um espaço
no mármore
um bálsamo não me alçou
emérito despedido
o sol do dia
finalmente me persuadiu
à tarde, no Jardim Botânico
Poesia Pura,
Floribunda,
haste com espinhos –
vermelha, branca
rosíssima, como flor
16
A NUVEM
Régis Bonvicino
A nuvem é um espaço
abrupto. Um céu brusco
É um espaço muito
pouco firme e úmido
quando chove
é um espaço acústico
Espaço que se funde
(um abutre atravessa uma nuvem)
o raio rompe, ignívomo,
vômito de fogo,
o céu nublado da janela
do edifício no crepúsculo fulvo
um céu de rosas adunco
o vento traga as nuvens
êxtase
É um espaço vizinho
pó de meteoros e abismo
não está ao alcance do úmero
ou das mãos
É um espaço aflito
apátrida
para a chuva, as cifras e o cacto
lua ao meio-dia
É um espaço inútil
do ponto de vista de um número
É o espaço último
quando um míssil
noctilucente triste lúgubre
para a Vera Barros
AQUELOUTRO
Régis Bonvicino
Dizem que sou um dúbio mascarado
Um falso atônito
– que fala sem tom nem som –
que nunca deu sequer um berro ao Ideal
Um ingrato,
arrotando disparates “avant-garde”
Um irascível, mau-caráter
Um filho da puta, desleal,
asco de vômito
17
Um gelado, que passa ao largo
de cadáveres atropelados
*
Me mato todos os dias de um modo homeopático
Loquazes, gárrulos!
AGONIA
Régis Bonvicino
Uma gaivota rente ao mar
voa entre os barcos
no pôr-do-sol
toca
asas na água
sem o peixe
voando em círculos
perto da árvore
em bando barcos parados
a voz da gaivota,
aguda, ecoa
rumo ao mar
fechado, mergulha
imersa, agora como ostra
destroça o peixe
entre as patas gaivotas a lua?
na água que apagou
nuvens sobre a montanha
onde já é quase noite
acima um céu azul ainda
horizonte uma gaivota voa
luz acesa da ponte
silêncio íntimo da baía
cor no entanto a onda
EXTINÇÃO
V
O lobo-guará é manso
foge diante de qualquer ameaça
é solitário
avesso ao dia, tímido
18
detesta as cidades
para fugir do ataque
cada vez mais inevitável
dos cachorros
atravessa estradas
onde quase sempre é atropelado
onívoro, com mandíbulas fracas
come pássaros, ratos, ovos, frutas
às vezes, quando está perdido,
vasculha latas de lixo nas ruas
engasga ao mastigar garrafas
de plástico ou isopores
se corta e ou morre ao morder
lâmpadas fluorescentes
ou engolir fios elétricos
morre ao lamber inseticidas
ou restos de tinta
ou ao engolir remédios vencidos
ou seringas e agulhas
descartáveis
dócil, sem astúcia,
é facilmente capturado e morto
por traficantes de pele
quando então uiva
LETRA
Régis Bonvicino
Nine out of ten computers are infected
Leminski morreu
do uso contínuo
de um coquetel
de álcool, cigarro e drogas
às vezes
de álcool puro e Pervitin
pupilas dilatadas para encarar o nada
às vésperas da morte
fétido
camiseta cavada e chinelos
trapos a pele
verde como vômito
arranhando o violão e traduzindo Beckett
getting a tan without the sun
que o futuro o disseque
( ... numa outra década,
19
guerrilha nas favelas,
Kaetán morreu de uma overdose
de dólares
êxtase de cheques,
abanando o leque
um séquito de adeptos)
nine out of ten computers ... are infected
para Alcir Pécora
O LIXO
Régis Bonvicino
Plásticos voando baixo
cacos de uma garrafa
pétalas
sobre o asfalto
aquilo
que não mais
se considera útil
ou propício
há um balde
naquela lixeira
está nos sacos
jogados na esquina
caixas de madeira
está nos sacos
ao lado da cabine
telefônica
o lixo está contido
em outro saco
restos de comida e cigarros
no canteiro, sem a árvore,
lixo consentido
agora sob o viaduto
onde se confunde
com mendigos
20
O SONO
Régis Bonvicino
Durmo acordado
acordo dormindo
a manhã não é manhã
acordo súbito
sempre
é um sono entre dentes
com vasos de férulas
no criado-mudo
durmo me matando
acordo de ressaca
engolindo o estômago
não durmo
o sono não se inicia
a cabeça me soletra
pesadelos
ouço a música
de um banjo
feito de uma lata opaca
durmo com medo
de não dormir
de acordar abrupto
vivo em estado de vigília
insônia ínsita
a me fertilizar narciso
a insônia é vício
pulsos cortados
gilete, comprimidos
irrompe um suicídio
qualquer coisa me invade
o sono não existe
preciso fumar mais
um cigarro
musgo viscoso da memória
escolhido a dedo
a memória me molesta
desleal, pesada
o sono é pisadeira
durmo acordado
acordo letargo
e a noite pisa em mim
para Nayra Ganhito
21
ROUPOEMA
Régis Bonvicino
Seus dentes poderiam fazer merchandising
de maconha
embora façam de Colgate
dos lóbulos caem pingentes
to sell ou vender
seus pés não pisam em piso falso
e andam descalços
num clip ou num filme
seus pés anunciam
uma sandália de plástico imputrescível
Vênus pu(t)ibunda
bebe de tudo, nos bastidores,
agora se parece às vezes
com um travesti
também
agora Hollywood está a seus pés
posa, cheia de si
se exibe com peitos de silicone
veste casacos, no inverno, de pele de lontra
ou de alguma outra espécie
sua cabeça está cheia de cocaína escondida
declara ter hobbies e entre eles
o predileto: fazer blow job
é mais asséptico, sob controle,
e poupa o clitóris
preservando o cheiro dos cosméticos
no corpo e nas roupas
nos lábios, botox
o nariz anuncia um perfume alegórico
de seus cabelos longos e ondulados,
caem letras cegas, se refletem flashes
de vez em quando, usa uma gargantilha
limpa sua própria língua
principalmente o dorso posterior
com um produto novo
para segurar o hálito
não vende roupa
vende os lábios
os lábios vendem a boca,
cornucópia de si mesma
ouve tecno e hip hop
digita no papelote
22
Não sabe escrever nada
Além do próprio nome
SEM TÍTULO
Régis Bonvicino
para Arkadii Dragomoshenko
Quase ninguém vê
o que eu vejo nas palavras
bizantino iconoclasmo
o relógio marca meia-noite ou meio-dia?
a Susi está em transe
ouvindo música
cha rá rá cha rô
teatro da ralé
o sol brilha através das árvores
num dia de outono claro
o Brasil é uma selva onde
cobras devoram tortas na rua
zmei ediat znanie
onde putos andam nus
sob a sombra de ocás
e usam a madeira
para fazer jangadas arcaicas
um muro sujo é uma sala vip
o sarcófago corroído de Chernobyl
um mendigo poluindo a calçada
pés sobre os sacos de lixo
caem painas do céu da cidade
um Infiniti FX passa,
em alta velocidade
AZULEJO
Régis Bonvicino
Meu pai e minha mãe
mortos
ninguém
algum
um
duplo
silêncio
ininterrupto
23
cacos ásperos
que, agora,
num ato de acúmulo,
rejunto
TAMBOR DE MINA
Régis Bonvicino
Há cacos de vidro na comida todos os dias
A ilha de Anjadiva está à deriva
Carpe diem,
carpe idem a rotina dos dias
Sex is sx
O esperma congelado dos mamutes
O uivo trêmulo revela tristeza e queixa
Há um movimento para liquidar os cães loucos na China
O basenji não late nunca
para também
surpreender suas presas nos terrenos aduncos
A parotia berlepschi ou ave do paraíso está quase extinta
Um pássaro, atingido por uma bala perdida
O picharro é cobiçado pelo tráfico
No Jardim do Éden,
há resíduos altamente enriquecidos de maçã
Dói-me a flor
A estrela resplandece pesadelos
Um dionísio corcunda, full love,
freqüenta o bazar das utopias
Uma prisca
Há um ranho estranho no nariz do executivo
Doe – como Lucky –
um kit de ossos de galinha,
sopa de açorda e agasalhos usados
para seus vassalos
O acúmulo de lixo irrita meu fígado
O reduto é – agora – pó e cinzas
A chuva inunda as ruas
A vodunce dança
uma dança que afasta como faca
o exu
Ligue suas palavras
com língua e agulha
esmague a farpa do anzol
e pesque à pluma
24
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