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UMA HISTORIA DA HISTORIA DE JESUS
Hélcion Ribeiro1
RESUMO: O artigo se propõe a delinear como foi sendo construída a história
da compreensão de Jesus. Outra vez, sua origem narrada nos evangelhos, a
racionalidade dos discursos – notadamente os helênicos, que levaram à composição
dos dogmas ou, ainda, as devoções. Os dogmas e as devoções são as duas grandes
realidades que permeiam a história humana na relação com Jesus Cristo. Privilegiouse, na Igreja, a memória do discurso racional sobre Jesus. A memória devocional é
mais volátil e contém menos documentação. Os textos escritos por intelectuais são mais
duradouros; a memória popular perde-se mais rapidamente por causa de suas
mudanças. Os chamados “concílios de ouro da cristologia” marcaram o primeiro
milênio. (????) Finalmente, não havendo grandes inovações teológicas, surgiram
diversificadas devoções, especialmente “as doloristas” e as eucarísticas. Estes dois
modelos marcam o lugar de Jesus na história da fé.
PALAVRAS-CHAVE:
discursos; Dogmas; Devoção.
Compreensão
sobre
Jesus;
Racionalidade
dos
ABSTRACT: This article aims to outline how the story was constructed
understanding of Jesus. Meanwhile also, the origin of Jesus narrated in the Gospels, the
rationality of the speeches - especially the Hellenes, which led to the composition of
dogmas, or even the devotions. The dogmas and devotions are the two great realities
that has permeated the human history in relationship with Jesus Christ. We privilege in
the Church, the memory of rational discourse about Jesus. The memory devotional is
more volatile and contains less documentation. The texts written by scholars are more
durable. The popular memory is lost faster because of the constant changes. The socalled "golden councils of Christology" marks the first millennium (????). Finally, as
there was no great theological innovations emerged diversified devotions, especially
those “of the Passion” and the Eucharist. These two models mark the place of Jesus in
the history of faith.
KEY WORDS: Understanding about Jesus; Rationality speeches; Dogmas;
Devotions "of the Passion" and Eucharistic.
1
Mestre e doutor em Missiologia, pós doutor em Antropologia Teológica, pela Pontifícia Universidade
Gregoriana de Roma e professor do Studium
Algumas observações iniciais
Este é um artigo de síntese. Síntese sempre indica uma (nova) posição (tese)
sujeita à críticas (antíteses). Então, uma síntese é sempre algo dinâmico e provisório,
mas não diz tudo. Não é um resumo. Um resumo está baseado em algo pronto e dele
não se sai. A síntese se abre para dizer novas coisas- que se tornarão velhas um dia.
Escrever sobre a história do que disseram de Jesus é um processo arriscado.
Para uns, faltará isto ou aquilo. Outros poderão dizer que não é bem assim. Então o
artigo, que é provisório, torna-se também provocador. E disto o autor está consciente e,
de modo algum, pretende ser dogmático ou definitivo.
O artigo não tem como objetivo primeiro escrever sobre Jesus. Não é uma
“jesuologia”. Mas, também e muito menos é uma “cristologia”. É tão somente uma
(tentativa de) caracterização de como interpretaram Jesus na história. O peso, pois, está
na história, não dele, mas do que fizeram dele, de como o conceberam – o que,
inclusive, serviu para assim justificar atitudes de poder, piedade, exclusão/inclusão,
pecado/graça etc.
“Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai...” (Mt. 11,27). Esta afirmação
joanina já é suficiente para indicar a provisoriedade de todo conhecimento sobre Jesus;
mas, ao mesmo tempo, é a possibilidade real e histórica de conhecer Jesus, o que revela
o Pai. Conhecer Jesus é um ato de fé. Porém nem tudo que se conhece de Jesus é uma
questão de fé. 2
Jesus nas várias explicações do Novo Testamento e dos primeiros Santos
Padres
A fonte normativa primária para saber como se conhece Jesus é a Bíblia
Sagrada, prioritariamente o Novo Testamento. Mas, ninguém pode conhecê-lo sem o
suporte revelatório do Antigo Testamento. Convém dizer, logo no início, que para a
compreensão eclesial de Jesus, a dogmática cristológica é integrativa da fé professada –
mesmo que o dogma, no caso, decorra da explicitação do que se encontra na Bíblia.
Foi S. Paulo quem por primeiro escreveu sobre Jesus. Toda tradição bíblica
que possuímos confirma isto. Só depois vieram os evangelhos. Primeiros os evangelhos
sinóticos, depois o de João. Os apócrifos – que também têm algum valor, mesmo que
não canônico – vieram bem mais tarde. Eles têm sido valorizados em muitos ambientes
religiosos e teológicos atuais
2
Seminar.
Veja-se, por exemplo, toda a discussão sobre Jesus histórico, promovida pelo Jesus
São Paulo interessou-se pelo Cristo crucificado. Mas, o crucificado é o
ressuscitado (1Cor 2,2) . Dele que vem a fé. S. Paulo, porém, – que de modo algum se
detém sobre a história de Jesus – procura, antes e, sobretudo, entender o significado de
Jesus como Cristo de Deus. É claro, além do fato histórico da morte, Paulo também
afirma ser Ele nascido de mulher (Gal 4,4)3. Certamente as interpretações paulinas são
fundamentais para compreender Jesus como o Filho Unigênito, o Primogênito de toda
criatura, o Filho de Deus nascido segunda a carne da estirpe de Davi e constituído em
virtude como Filho de Deus, segundo o espírito de santidade (Rom.1,3ss). É ele o Filho
de Deus, enviado a nós para que, por sua morte, nós fossemos salvos, i. é: todos os
homens fossem salvos não importando se judeus ou pagãos (Rom 3,24; 6,22; 1Tim 2,6
etc.). É aquele que se humilhou em sua divindade para fazer-se um homem e ainda
mais, em sua humilhação, fez um escravo que foi crucificado (cf. Fil 2, 6-11).
De modo mais ordenado, pode-se dizer que Paulo, na fase inicial, vê Jesus,
através de sua ressurreição, como o futuro salvador escatológico (1-2Ts; 1Cor 15).
Depois, enfatizando o Crucificado-Ressuscitado, o encontra como aquele que opera,
desde já, a salvação (cf 1-2 Cor, Gl, Rm). Por fim, para Paulo, Jesus ocupa todo o centro
do plano de Deus, desde o início da criação até sua consumação. É o Cristo cósmico.4
A reflexão paulina considera Jesus em seu mistério a partir de Deus e a partir
de sua missão escatológica. O apóstolo certamente não ignora a vida de Jesus vivida na
carne, mas ele amplia o significado histórico, embasado no Primeiro Testamento e nas
suas visões pessoais de Jesus (cf. caps. 9, 22 e 26), para os significados cósmico e
escatológico. É a partir daí que ele compreende quem foi Jesus.
Os evangelhos sinóticos surgiram para assentar a revelação de Deus sobre
Jesus e foram escritos à luz da ressurreição. Consequentemente nem pretendem ser uma
biografia de Jesus tal qual nós entendemos hoje. Aliás, tampouco foram escritos para ser
um relato fiel e imediato da vida e obras de Jesus. Antes, foram escritos em função das
necessidades da fé das comunidades primitivas que já não mais conheciam
pessoalmente Jesus. Mesmo assim, é o que de mais próximo e autoritativo que se tem da
vida dele. As poucas referências da literatura judaica5 e romana são ainda muito mais
insuficientes, tanto por serem poucas quanto por serem quase sempre uma referência
indireta ou complementar.
Foi assim que Marcos6 escreveu para mostrar, sempre à luz da ressurreição,
que Jesus era verdadeiramente o Filho de Deus7. O texto foi escrito depois dos anos 40 e
3
- Paulo não diz que ele nasceu de Maria. Convém lembrar aqui que Paulo foi fervoroso
judeu e mesmo tendo dito que depois de Cristo não há mais judeu ou grego prosélito ou pagão
4
Jesus é Deus, para S. Paulo? – Bem, esta é outra discussão de cuja oportunidade não se
ocupa este texto
5
Aqui se incluem também as de Flávio Josefo, sempre mais tidas como glosa de cristãos
no texto do historiador)
6
O texto de Marcos é mais antigo que possuímos, mesmo que se fale de algum texto mais
primitivo, não conhecido hoje
7
Cf. no início: 1, 1; no meio: 9,29 e, no final,:15,39.
antes da destruição de Jerusalém, em função da catequese das comunidades gentiocristãs; i. é : de cristãos “convertidos do paganismo” que formaram comunidades
estabelecidas e que não conheciam suficientemente os costumes judeus.
Marcos descreve as atividades de Jesus antes de sua ressurreição – que é o
mesmo pregado como ressuscitado e o juiz do mundo, o Filho de Deus. Constrói um
Jesus com a misteriosidade de messias: o Filho de Deus. Titulo, aliás, evitado por Jesus,
que inclusive proíbe a divulgação de seus feitos messiânicos (os chamados “os segredos
messiânicos”). Mas, o título se torna conveniente aos “ouvintes descrentes” – e a todos
os pósteros – tanto por causa do fim trágico de Jesus quanto da revelação de sua
messianidade. O evangelista, em seu esquemático texto, apresenta Jesus não como um
“homem divino”, um super homem, ou um semideus glorioso e triunfante, realizador de
fatos e causas extraordinários. Antes, a filialidade e a messianidade de Jesus são
mostradas pelo sofrimento e morte na cruz: ele deu a vida pela nossa salvação e nele se
cumpriram as promessas messiânicas de Deus, já feitas no AT.
O Jesus de Mc é aquele que está no meio do povo. É o que prega, cura
enfermos, expulsa demônios, faz refeições com os pecadores (i.é: os excluídos), instrui
seus discípulos e o povo em geral. Ele discute as tradições judaicas e se vê acuado pelos
fariseus, por Herodes e outras autoridades judaicas. Por fim, ele vê sua própria morte
aproximar-se de modo violento. Mesmo assim, não deixa de ser crítico da sociedade
estabelecida, agindo sobretudo como um messias de Deus. Aprisionado, julgado e
condenado, morre na cruz para ser ressuscitado depois do sábado da Preparação.
Mateus – cujo escrito foi o segundo a ser produzido, apesar de o texto oficial
da Bíblia vir como primeiro – foi escrito por volta do ano 85, para as comunidades
judaica-cristãs que, não só se distanciaram das sinagogas, mas também viverem em
tensão com os judeus – agora considerados como um povo que abandonou Deus. O
Jesus mateano é o novo Moisés, o libertador e nele se realizam as inúmeras profecias
veterotestamentárias sobre o messias prometido8. Ele é o filho de Davi, verdadeiro filho
de Abraão. É quem escolhe doze apóstolos que simbolizam as novas doze tribos de
Israel. Os apóstolos encabeçarão o novo Israel que haverá de escutar os novos
ensinamentos do “reino dos céus” (cf. Mt. 4, 23; 24,14) e aceitará a nova Lei de Jesus,
que já o velho Israel rejeitará mais e mais tais ensinamentos e tal Lei.
Mateus escreve ao novo e verdadeiro Israel, a Igreja, e evidencia Jesus como
“Filho de Deus”, em quem se cumprem e se projetam as realidades da imprevisível e
insuperável vinda de Deus. Assim Jesus é, definitivamente, o Cristo, o Emanuel (1, 22),
o que estará sempre conosco (29,18-20) e a quem será dado todo poder no céu e na terra
(26, 54-56). Todavia sua vida está constantemente ameaçada no antigo Israel. São
constantes as intrigas e ciladas até ser rejeitado e levado à morte, pelas forças históricas
– que na verdade são as forças do mal recusando a Deus. Mas, o sangue da nova aliança,
derramado por muitos para a remissão dos pecados (26,28), será ocasião expiatória que
levará à exaltação do Filho de Deus, por quem vem chegando o Reino dos Céus.
8
Diz-se que ao todo há 118 profecias a respeito de Jesus, no AT..
O terceiro evangelista escreve, pelos anos 80, para os cristãos vindos do
helenismo. O evangelista evidencia a misericórdia de seu Mestre para com os
pecadores. Insiste na ternura de Jesus para com os humildes, marginalizados e
excluídos, com as crianças e mulheres, com doentes e pobres, sem perder a justa
condenação aos soberbos de corações, aos folgazões da vida – apesar de que no fundo
Jesus é o que até espera a conversão deles à causa do reino. Em seu primeiro livro,
Lucas relata com delicadeza e sensibilidade os acontecimentos com Jesus, dentro dos
mistérios do Deus amoroso, sob a ação do Espírito. Jesus, o que vence o tentador (4,111) é o portador da luz e da salvação, inclusive para os pagãos (2, 32.30), mesmo se
rejeitado pelos seus (2,34). Ele ensina a seus discípulos conhecê-lo mais
profundamente, em meio a contradições e situações pequenas. Ao mesmo tempo, ensina
o povo, a quem é dado conhecer os mistérios de Deus (8,10). Devotado aos seus, ao
povo e a Deus, demonstra o Reino como serviço de Deus, do qual é ele o primeiro
servidor, até mesmo no martírio exemplar. Ele, na verdade lucana, é de fato o Filho de
Deus como salvador de todos, especialmente dos pequenos, dos pecadores e dos pagãos.
É ele o mestre de vida, tanto no acolhimento quanto na dor.
No mais teológico dos quatro evangelhos, Jesus vem apresentado no embate
entre Deus e o mundo, cuja aparente vitória do mundo é na verdade o gesto de amor
maior daquele que dá a vida pelos seus. O Filho encarnado, pré-existente a tudo quanto
existe, veio morar entre os seus. Ele é o revelador do Pai e da vida eterna que passa pela
sua cruz, pela sua glorificação. Os fatos e as palavras de Jesus são sempre sinais
maiores que compõem uma “história qualitativa” só possível a quem nascer de novo. É
o Espírito que faz perceber isto. Entrar para seu círculo é entrar em comunhão com seu
Pai, que faz brilhar a glória do Filho na paixão e ressurreição, conhecido na fé e no dom
do Espírito. Esse Jesus, relativamente misterioso, é capaz de soerguer o mundo,
afastando o mal ao chegar a sua hora, pois é ele quem revela e comunica a salvação
como enviado do Pai – com quem mantém um relacionamento singular, a ponto de
poder dizer: “eu e o Pai somos um”, “faço as obras que vejo meu Pai fazer”. Esse Jesus
joanino – que avoca o testemunho do Pai sobre si – é capaz também de dizer: “eu sou” o
pão da vida, o bom pastor, a porta das ovelhas, a água da vida, a ressurreição etc. Todas
essas realidades indicam as necessidades profundas da alma humana, e ele pode, por
isso mesmo, dizer que é “o caminho, a verdade e a vida” (14,16; cf. 11,25)
Quanto mais tempo passava, mais a lembrança viva de Jesus se perdia; não só
iam morrendo os que conviveram com ele, mas também as gerações que se sucediam
iam esquecendo os fatos narrados, em geral, oralmente. Por outro lado, os “seguidores
do Caminho” – que começaram a ser chamados de cristãos, pela primeira vez na
Antioquia, pelo ano 43, passaram a criar novas comunidades e levando a mensagem e o
jeito de ser cristão para outras culturas.
Além dos discípulos de Jesus, os judeus que se foram convertendo, constituíam
comunidades de vida, perseverando na oração, na fração do pão, na leitura e memória
da Palavra de Deus. Adotavam modos de vida comunitários. Uns ajudavam os outros, a
ponto de venderem os bens e pôr o resultado da venda em caixa comum. Tais judeus
convertido, junto com os apóstolos, eram um só coração e chamavam a atenção pelo
modo de viver. “Vede como se amam”, diziam os outros. 9
Esses primeiros adeptos de Jesus, após a ressurreição seguiam seus
ensinamentos, procurando pô-los na vida diária, e, em meio aos adeptos do judaísmo,
tinham seu modo próprio de vida. Também tiveram um modo bem plural de
compreender Jesus, a quem seguiam. A pluralidade de interpretar Jesus e os modos de
seguí-lo se deve às diversas possibilidades contextuais de interpretá-lo e compreendê-lo.
Nenhuma por si só era oniabrangente, mesmo com o referencial comum, pois não era
nem o modo de seguí-lo nem o modo de interpretá-lo que o criaram: antes, “aquele que
passara pelo mundo fazendo o bem” (At. 10, 38), que morto fora ressuscitado pelo Pai,
era tão plural que nenhum grupo poderia apreender toda sua “plenitude” (cf. Ef. 4,13).
Todavia, “a estrutura básica comum consiste na indissolúvel vinculação da
revelação de Deus à pessoa e obra de Jesus de Nazaré: por meio dele, Deus e sua
salvação tornam-se insuplantavelmente válidos (escatológicos) e são comunicados de
maneira universal”.10 Esse Jesus foi “aprovado por Deus diante de vós, com milagres,
prodígios e sinais, que Deus operou por meio dele entre vós... que vós o matastes e
Deus o ressuscitou (...) e o constituiu Senhor e Cristo” (At. 2, 22.32.36). Esse Jesus não
provinha “de nenhum grupo ou tendência determinada do judaísmo. Ele as conhece,
envolve-se com seus questionamentos, mas não se deixa dominar por nenhuma delas.
Ele não é um homem da ordem, nem um revolucionário político; com grande liberdade
passa por cima dos esquemas. Os dois únicos particularismos que ele pratica de modo
muito engajado são: considerar Deus como seu Pai e agir em defesa das pessoas
desprezadas, débeis, sem oportunidade e pecadores: de resto, ele se dirige ao povo todo
e o chama à conversão (também os piedosos)” 11. Ele se ateve a Deus como centro de
sua vida e ao projeto do Reino de Deus, a ponto de dar sua vida.
Assim, os primeiros crentes – ainda dentro do judaísmo – foram percebendo o
papel histórico-salvífico de Jesus, enfatizando o homem concreto, mas escolhido de
Deus (“Deus o exaltou”). À medida que – quer por pressões internas do judaísmo, quer
por questões da dominação romana que pressionava com exílio e/ou “correntes
migratórias” – os seguidores de Jesus foram entrando em contato especialmente com
novas cultura, se viram obrigados a explicar quem eram e a quem seguiam com
elementos alheios a sua origem. Se a pureza originária ia sendo perdida na inculturação,
abriam-se também perspectivas novas.
9
É encantadora a descrição de um texto antigo: alias o mais antigo que descreve a vida
dos primeiros cristãos depois das anotações de Paulo, Lucas e outros textos neotestamentarios:
DIDAQUÈ.
10
KESSLER, Hans. Cristologia in SHNEIDER, Th. (org.) Manual de dogmática, Vol. I.
Petrópolis: Vozes², pg.291
11
Idem, pg. 240
Já desde o início, após a morte e a ressurreição de Jesus, sua riqueza
multifacética, que era de boa conivência, também gerou tensões. À medida do
distanciamento dos fatos iniciais, os diversos grupos passavam a criar suas
interpretações e modos de vida, os quais nem sempre eram os mais concordes com os
ensinamentos e a vida de Jesus. A Didaqué e os textos joaninos indicam tensões bem
evidentes. Aí estão presentes gnósticos, ebionitas, monarquianos, docetas etc. As
discussões vão se centrar ora na redução ou contestação da divindade de Jesus, ora na
redução ou contestação de sua humanidade.
Todavia, houve grupos não especulativos que mantiveram um equilíbrio
simétrico entre a divindade e a humanidade, como por exemplo os Padres pósapostólicos e antignósticos. Sto. Inácio de Antioquia (+ 117) exemplifica bem este
comportamento ao escrever suas diversas cartas aos magnésios, aos efésios, aos
romanos etc. “Deus é um”, afirma Inácio, mas vai acrescentando, de modo muito
natural que o Cristo é o “nosso”, o “seu” Deus”, ou ainda ”Deus no ser humano” , a
verdadeira “gnose de Deus” (Aos Efésios 7.2; 17,2). Mais tarde, Sto. Irineu (+205)
enfatizará o significado salvifico de Jesus Cristo, Deus e ser humano, um e o mesmo
(Adv. Haer.III 16, 2.8; I. 9,2), segundo sua substancia, capaz de mediar e reunir, de
aproximar os homens de Deus (III, 18,7). Ainda Irineu vai explicar a larga que em
Jesus, Deus se fez homem para que os homens se tornasse divinos.
Idéia esta enfatizada em Tertuliano (+ após 220), com modificações evidentes:
Jesus, homem e Deus, com duas naturezas que se unem, mas não se confundem. Isto só
se torna possível à medida, como faz Irineu, que se identifica o Deus criador como o
Deus redentor e vice versa. Para Tertuliano –e daí em diante isto se vai fixando, até
caracterizar toda a sotereologia do segundo milênio – Deus se fez homem, em Jesus,
para restabelecer, por meio de sua morte redentora, a ordem perturbada pelo pecado. A
morte é a verdadeira finalidade da encarnação, “verdadeiro fundamento do Evangelho e
da nossa salvação” (Adv. Marc. III, 8,5).
A discussões dos intelectuais, bispos e teológos
A passagem para a cultura helênica, sobretudo sob a ótica do platonismo
médio, vai exigir dos intelectuais cristãos desde II e III séculos, uma diferenciação
metafísica entre a divindade invisível e a força de sua presença visível no cosmo. Na
realidade surge a questão: como o Deus uno e transcendente poderia manifestar-se
(multiplicar-se) em Jesus? A tensão entre o Uno e o Múltiplo passa a ser contemplada
nos escritos dos apologistas cristãos do século II – Justino (+ 165) é um dos mais
importantes - para resolver a questão da preexistência do Cristo gerado pelo Pai, antes
de todas as criaturas.
Na verdade, a entrada no mundo intelectual helênico levou os cristãos a
abandonarem a concretude da linguagem semita e a buscar conceitos filosóficos exatos
e definidos, que levaram à grande construção da dogmática cristã, sobretudo entre os
séculos IV e VIII de nossa era. Há alguns marcos que não se pode omitir, pois eles
fazem parte integrante da fé, ao lado da normatividade constituída pelas escrituras
sagradas do A. e do N. Testamentos.
Questões como o relacionamento do Logos-Filho com Deus-Pai levaram os
bispos, pressionados pelo imperador Constantino ( 274-337) que visava à unidade do
império, a declarar a divindade do Pai e a do Filho, sepultando teorias tipo:
subordinacionismo, modalismo, adocianismo etc. Surge do Concilio de Nicéia (325) um
credo que enfatiza mais a essência da realidade intradivina, calcada em princípios mais
metafísicos que na realidade histórico-salvífica. Então a Igreja passou a entender e crer
”num só Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus (preexistente e eterno), gerado/nascido do
Pai como unigênito, isto é, da substancia (ousia) do Pai (...), Deus verdadeiro do Deus
verdadeiro (...) gerado/nascido, não feito, de uma só substancia como o Pai (homousios)
pelo qual foram feitas todas as coisas (...); o qual, por nós homens e para a nossa
salvação, desceu do céu e se encarnou, se fez homem, sofreu e ressuscitou ao terceiro
dia”. (DZ 125/155).
Sem ter como outro objetivo que esclarecer a fé em Jesus, os bispos e teólogos
conciliares introduziram uma nova linguagem (a helênica), embora pretendendo manter
a realidade redentora de Jesus – doravante enriquecida para além dos textos imediatos
dos evangelhos que narravam a história singular do homem Jesus: ele é salvador porque
é Deus com o Pai e como o Pai.
Estava claro, sem mais discussões: Jesus é verdadeiramente Deus como o é o
Pai. Um concílio, o de Constantinopla (381) complementou a discussão de Niceia
declarando que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são verdadeiramente um único e não
três deuses, apesar de suas diferenças: uma é a substância de Deus, mas três são suas
realizações ou expressões (como Pai, como Filho e como Espírito divino). E ainda mais:
Jesus é verdadeiro homem. Só assim seria o nosso salvador.
As discussões dos grandes não pararam aí. Surgiam novas dúvidas, em meio a
interesses e esforços de mediação, que encontraram respostas no Concílio de Éfeso
(431): Jesus, Deus verdadeiro e homem verdadeiro (integral, completo) é uma só
pessoa. Tudo o que se diz do homem Jesus se deve dizer do Verbo Divino, porque ele é
um só. O homem e Deus não estão unidos nele como algo misturado, mas ele é um só e
o mesmo, com dimensões humanas e divinas; por isso Maria também é a mãe do Deus,
o que se encarnou, viveu, sofreu e morreu por nós e para a nossa salvação e, por fim,
ressuscitou e foi constituído Senhor e Cristo.
A dogmatização proposta pela Igreja praticamente se afirmou no Concilio de
Calcedônia (451), quando se chegou a um consenso em que se compôs uma fórmula
doutrinária capaz de unir as afirmações dos concílios anteriores com a expressão: “um e
o mesmo”. Assim tudo o que se diz de Deus em Jesus se afirma ao mesmo tempo do
homem Jesus: o mesmo verdadeiro Deus e homem, o mesmo consubstancial a Deus e à
humanidade, o mesmo nascido (gerado) por Deus antes dos séculos e de Maria,
conhecido em duas naturezas que não se confundem e nem se mudam, mas também não
se dividem e nem se separam. Tudo isso veio a ser conhecido como a “união
hipostática”.12
Terminadas as grandes discussões cristológicas, a Igreja se volta para outras
questões que, neste artigo, não nos são importantes. Todavia, no início do século XII,
surge o texto de um grande bispo teólogo, que vai estabelecer bases para um novo modo
de compreender quem era de Jesus, ou melhor, qual o seu papel. Anselmo de Cantuária
(de Aosta, para outros), conhecido também como Sto. Anselmo (+1109) escreveu um
livrinho para dialogar com judeus e muçulmanos, sobre o porquê Deus se encarnou (Cur
Deus homo?13). O livrinho teve uma influência muito grande em todo o cristianismo,
sobretudo durante todo o segundo milênio. As idéias aí expressas praticamente se
tornaram “a” resposta cristã: Deus se fez homem porque só alguém proveniente de Deus
mesmo, por causa de sua dignidade, pudesse sacrificar sua vida, em nosso lugar,
morrendo na cruz; só assim se conseguiria de obter o perdão de Deus sobre nossos
pecados. Deste modo, a encarnação de Jesus estava voltada para a morte redentora.
O livro de Sto. Anselmo está datado num tempo de senhores feudais e
absolutistas que tinham domínio pleno sobre a vida e a morte de seus servos. E mesmo
que esta teologia tenha se tornado hegemônica, convém recordar que a Igreja não
dogmatizou uma sotereologia e nem mesmo a desenvolveu muito se comparado com a
cristologia. A posição anselmiana foi muito estudado por grandes teólogos; mas, nem
todos lhe dão razão total. Sto. Tomás(+1274) , por exemplo, assinala a morte de Jesus
como uma expressão absoluta de seu amor por nós e por Deus, mais que uma
necessidade de perdão por nossos pecados.
Por causa das teorias de Freud (sadismo, masoquismo, complexos etc.), muitos
teólogos de hoje discordam da posição de Anselmo por fazer de Deus alguém vingativo,
justiceiro e sem amor, enquadrado nos critérios e limites das questiúnculas humanas
desatento ao que é divino.
Místicos, adoradores e penitentes
As posições teológicas acima são as dos cristãos intelectuais (bispos e
teólogos). E não deixa de ser a grande tradição da Igreja. Mas, terá sido assim e, sempre
assim, a postura dos cristãos leigos e, porque não, até de clérigos?
– A adesão cotidiana dos fiéis cristãos (católicos) a Jesus passa por outros
canais. Por vezes até bem distantes da ortodoxia doutrinária, sem ser necessariamente
contra ela.
12
Depois deste concilio, surgiram ainda algumas outras questões como quantas vontades
Jesus teria? O que na verdade o movia? Qual a mais importante? etc.
13
ANSELMO, Sto. Porque Deus se fez homem? São Paulo: Editora Cristã Novo Século 2003
Acima fizemos a referencia a dois textos (Atos dos Apóstolos e Didaqué) sobre
a vida dos primeiros cristãos, de como eles se posicionavam enquanto crentes fiéis e
como viviam o que criam.
Ser cristão para eles, bem como para os de todos os tempos, é um estilo de
vida. Ser cristão não comporta fragmentar a vida pessoal. O estilo de vida é global,
holístico. É a partir deste “ser cristão” que se vai pensar a economia, a política, o
casamento, a paternidade ou a filialidade, o estudo, enfim a vida e a morte. É óbvio que
em todas estas realidades – entremisturadas de graça e pecado – há uma gradualidade.
Assim, não é por ser bem intelectualizado nas “coisas da fé” que um será mais cristão
que outro, que aderirá mais a Jesus que outro, que viverá uma práxis mais intensa que
um outro. Também é importante perceber que a vivencia religiosa está constantemente
condicionada à educação recebida. Alguém que foi instruído a viver a fé pela fidelidade
aos sacramentos, sem a preocupação com o seguimento de Jesus, é quase óbvio que não
se preocupará (muito) com a justiça social. Um que é introduzido na fé pela ênfase na
adoração eucarística, dificilmente entenderá a necessidade de um real seguimento de
Cristo. Ou aquele que recebe só a introdução à vida sacramental, certamente não
chegará à maturidade da fé. Nisso, transparece a importância (educadora) da
comunidade de fé.
Na história da evangelização, porém, há – por muitos motivos – comunidades
inteiras que não conseguiram ou não conseguem viver a integralidade da fé por não ter
quem as ensine (cf Rom 10,14) e nem lhes confira o Espírito Santo.
A memória história sobre a relação de Jesus e seus fiéis não se limita às
questões teóricas da teologia. Ela também passa por outras possibilidades, sempre
cercadas de várias nuances.
Assim, é válido perguntar como as primeiras comunidades cristãs, a partir da
expansão missionária, seja entre os judeus seja entre os “pagãos”, entendiam quem é
Jesus? Reuniam-se eles para prestar culto a ele, adorando-o? Ou para se autoesclarecerem sobre quem era Jesus? Ou ainda, buscarem razões a fim de imitá-lo? Ou se
reuniam para, fortificando-se entre si, tornarem-se suas testemunhas? Ou enfim, tudo
isto junto?
Os relatos são muitos e bem variados. Atualmente, na Inglaterra, discute-se
sobre se os primeiros cristãos prestavam culto a Jesus, o Cristo, enquanto Deus. Duas
linhas se sobrepõem. Uma capitaneada por Larry W. Hurtado.14 A outra é liderada por
J. G. D. Dunn15
14
Cf. HURTADO, Larry, W. Lord Jesus Christ. Devotion to Jesus in Earliest Christianity.
Michigan Wn B. Eedmans, 2003. Também em espanhol: Señor JesuCristo. La devoción a Jesús en el
cristianismo primitive. Salamanca: Sigueme, 2008
15
DUNN, J.G. D. Did the Firsdt Christians Worship Jesus? The New Testament. London:
SPCK, 20119. Também em espanhol: Dieron culto a Jesus los primeros cristianos. Estella (Navarra): Ed.
Verbo Divino, 2011.
Para Hurtado, o culto a Jesus tem início em algo como uma explosão
simultânea em várias comunidades primitivas, logo após a morte e ressurreição de
Jesus, que incluía os próprios apóstolos e discípulos. Esses cristãos proclamavam e
adoram Jesus como Deus, vivendo e morrendo por ele, bem antes do desenvolvimento
dos credos e das doutrinas, do início de século II. Foi a devoção a Jesus como Senhor à
direita de Deus (Pai) a fonte propulsora do culto binário a Deus – que incluía Jesus. Os
problemas desta assertiva não estavam na divindade de Jesus, mas no compreender, em
sua devoção, a verdadeira dimensão humana e o significado de Deus. Dado o
pressuposto da divindade, decorriam os cultos, os ritos e as devoções que alimentavam a
certeza tão rapidamente difundida: ele era Deus, como o Pai e, por isso, se lhe prestava
culto. A devoção a Jesus e o reconhecimento de sua divindade não é, para Hurtado, o
resultado de uma processo, mesmo que rápido, mas a explosão de sentimentos
religiosos desde sua ressurreição.
Dunn defende a idéia de que os primeiros cristãos estavam convencidos de que
em Jesus se havia aberto uma porta nova e definitiva na relação recíproca entre Deus e
os seres humanos. Os títulos divinos atribuídos a ele tinham uma função paradoxal: ao
mesmo tempo revelavam sua identidade, mas impediam os cristãos de porem, a seu
capricho, o mistério insondável e abissal de Deus nele revelado. Jesus não abre
totalmente o mistério, tampouco o fecha; antes, o entre-abre. Ele é o sentinela do ser de
Deus e do ser do homem. O Deus único(o Pai), e só Ele, recebe a adoração – mesmo
que seja por meio de Jesus na força do Espírito.
Dunn historia o significado evolutivo do fato Jesus, afirmando que no
cristianismo primitivo foram sendo assentadas todas as variáveis para confirmar a
devoção a Jesus. De modo óbvio, tal devoção não tem os parâmetros e a sofisticação
atuais. Mas, lá estão configuradas as crenças, as convicções fundamentais, as
possibilidades do desenvolvimento doutrinal (e dogmático) e a prática devocional, que
levarão a entendê-lo mais tarde como Deus mesmo. Apesar de que alguns tenham
afirmado que a devoção surgiu para contrapor a outras divindades epocais, é fato que a
proto-ortodoxia foi estabelecendo bases teóricas para uma nova compreensão do
significado de Deus a fim de melhor entender Jesus. Tal processo foi um crescendo nos
círculos judeucristãos, inclusive da diáspora, gentios e helenistas em geral. Isto daria
fundamento ao sentido de Jesus como salvador e Deus mesmo.
Esse história da origem da compreensão de Jesus como Deus desde os
primeiros dias após sua morte ou a partir do período da dogmatização, é em boa parte
é desconhecida da maioria dos cristãos hodiernos que o professam, em geral, como
Deus desde a anunciação (Maria sabia que seu filho era Deus) sobretudo na
celebração do natal: nasceu o menino-Deus...
Bem outra é a história da história de Jesus no inicio da implantação do
cristianismo na capital do imperio. Os primeiros cristãos em Roma foram
progressivamente penetrando, o tecido social da cidade, a partir dos pobres, como eles,
e dos judeus. Para chegar a isto, convém não esquecer as querelas iniciais entre cristãos
e judeus migrantes na capital imperial, as perseguições especialmente de Nero, a
culpabilização dos cristãos pelo incêndio de Roma, os martírios constantes. Como ser
seguidor de Jesus neste contesto? E como compreendê-lo? Como foi a compreensão
dessa história?
A vida de fé foi vivida, durante muitas décadas nas casas e nos
cemitérios/catacumbas. Alguns cristãos também se manifestavam de modo mais
público, mesmo sob as constantes ameaças. Roma viveu, no inicio do cristianismo, uma
“psicose” de martírio e de perseguição Os martírios, que passaram a ser freqüentes,
tornavam-se fonte de encorajamento e testemunho para viver o seguimento de Jesus. É
provável que os cristãos fossem notados por seus comportamentos públicos e pessoais
cheios de ética, que fossem exemplares na vida familiar e social, que se distinguissem
pela ação caritativa entre os pobres: mas por serem considerados ateus - não prestavam
culto ao imperado - tinham uma “religião ilícita”, dizia-se. Em certa ocasião (ano 111) o
próconsul de Bitínia, Plínio, o Jovem (62-113), consultou o imperador Trajano sobre o
que fazer com os cristãos – que eram homens bons, apesar de serem supersticiosos e
entoarem hinos a um certo Cristo como a um deus.
Têm-se poucos documentos deste período para compreender como eles
apresentavam Jesus, a quem seguiam pelo modo de viver no cotidiano, nos cultos e nas
artes. Aliás, as raras pinturas e imagens de Jesus encontradas, até hoje, nas catacumbas,
mostram Jesus como o Bom Pastor, como um peixe ou pescador ou como homem
orante.
Uns três séculos após a ressurreição de Jesus, os cristãos tinham se tornado
dezenas de milhares na capital, a ponto de o imperador Constantino fazer do
cristianismo a religião oficial, certo de que – até independentemente de seu significado
religioso intrínseco – dava o melhor passo para a união e manutenção do império.
Após a legalização do culto e a oficialização da religião, sem dúvida, a grande
maioria dos cristãos continuou firme em sua fidelidade a Jesus. E a ele tributavam o
sentido de suas ações, de suas vidas. Mas, o cristianismo, agora transformado em
religião do império, deu as bases cristãs ao Estado, que progressivamente transformouse no “Imperium Christianorum”, primeiro como Império Bizantino, depois Carolíngio
e, por fim, Sacro Império Romano. Neste processo, muitos cristãos, “sepultados na vida
como velhos homens, e renascidos como homens novos pelo batismo” (cf. Rom, 64) se
afastavam dos hábitos e estruturas do “velho” mundo, deixando comércio, açougues,
teatros, arte e literatura pagãs, serviço militar, certos esportes, cultos e banhos públicos.
À medida que aumentava a estabilidade cristã do império, a progressiva conversão dos
povos românicos, celtas, germânicos e eslavos, passaram a surgir mosteiros que iriam
orientá-los, dando-lhes conhecimentos e indicações da prática cristã.
É de se supor que se a religião do rei, do príncipe, era a religião do povo, então
à medida que os governantes adotavam o cristianismo iam se entremisturando também a
fé culta e pura com as superstições pagãs, gerando sincretismo cristão entre todos os
povos. Por outro lado, a escassez de missionários e de mosteiros, não apenas deixava o
povo abandonado, mas também pouco instruído. A Igreja, já antes do início do segundo
milênio, tinha se tornado uma força político-religiosa estendida por todo o ocidente.
Assumiu e transformou circunstancias histórico-sociais e religiosas das culturas,
sobretudo, romana e anglo-germânica, para criar uma cultura de cristandade.
Como se compreendia, então, quem era Jesus Cristo, em tempos que eram
raríssimos os letrados e um grande número de monges e padres era composto de
analfabeto, inclusive muitos mal sabendo latim – consequentemente quem conheceria a
Bíblia? Tudo era ou por ouvir dizer ou pela visualização nas “chamadas bíblias dos
pobres” (os vitrais das igrejas).
Pode-se dizer que no segundo milênio, especialmente no medievo, se
encontrariam, facilmente, quatro grandes grupos de cristãos que se tornaram
significativos para a compreensão de Jesus neste período: os místicos, os adoradores, os
penitentes e os artistas, entre esses os poetas e dramaturgos também.
Como acreditar que a grande conquista intelectual dos séculos de ouro da
cristologia (a dogmática) pudesse fazer parte da compreensão e vivencia dos
subordinados aos senhores feudais, dos camponeses e das mulheres (mães,
principalmente), se até mesmo nos mosteiros e conventos havia tanta ignorância? Que
cristologia haveria de passar por estes tempos? – Como estas perguntas não podem ser
diferentes para outros tempos, anteriores e posteriores, convém situar a vida cristã na
história, outra vez.
Enquanto a herança e o desenvolvimento das culturas predominantes, grecoromana e anglossaxônica, ocorriam nos grandes centros urbanos, e aí, nos círculos dos
nobres, intelectuais e ricos; sobravam as “migalhas” do cristianismo para o povo (a
plebe). E quem era Jesus para eles? Lembremos: por causas dos medos dos inimigos,
dos invasores, dos animais ferozes, das doenças e pestes, no tempo do feudalismo se
vivia apinhado nos morros ao redor dos castelos, subservindo ao monarca – que era o
patrocinador, inclusive da religião. Aos medos dos feudais eram acrescentados – desde
os tempos fortes dos monges de Cluny, motivadores das confissões auriculares - os
medos do pecado, por causa do inferno. Daí em diante, passou-se a desenvolver uma
cultura cristã em torno do Crucificado e de um dolorismo cheio de Vias Sacras, Mater
Dolorosa, almas do purgatório, autos da paixão, culpabilizações da morte do Senhor
pelos pecados da humanidade, de jejum, penitência, auto-flagelação etc., ao lado das
situações, cheias de ternura, do Menino Jesus do presépio.
Para “fugir do mundo”, muitos homens se recolheram aos mosteiros, como o
de S. Bento de Núrsia (480-547) – recriando os antigos monaquismos do romano
Pacômio (292-346) na oriental Tebas (Egito), de Atanásio no ocidente (durante seu
exílio em Tréveris (340-346), de Basílio Magno (330- 379) na Igreja Bizantina. Ao
redor destes mosteiros europeus desenvolveu-se uma vida de penitência e sacrifico em
meio à doenças e pestes, fomes e vida pesada. Ganhava espaço uma piedade centrada na
paixão e morte do Senhor: algo para ser contemplado, amado e chorado. A devoção a
tudo que girava em torno da cruz de Jesus e de suas dores se complementava com a vida
crucificado dos povos e pessoas que se identificavam com Ele.
Multiplicadas as “devoções doloristas” centradas na paixão e morte do Senhor,
tornava-se fácil o surgimento de penitentes tanto individuais quanto em grupos, tendo à
frente, místicos e santos (de profunda espiritualidade), que geravam seguidores nos mais
diversos graus de “santidade e loucura”. Esses penitentes se prolongam ainda hoje
naqueles que se auto-flagelam nas sextas-feiras santas, com em Manila, na Espanha e
América espanhola, além de outros lugares.
O segundo milênio construiu-se entre a cruz e o desprendimento, entre a
autoflagelação e os misticismos, entre o desprezo ao mundo e a santidade interior, ora
num processo devocional intenso ora na contemplação em meio à “noite escura”.
Mas, nem tudo esteve ligado apenas ao Cristo sofredor. Neste tempo, foram
desenvolvidas muitas devoções centradas em outras dimensões de Jesus. Adoradores e
adoradoras do Santíssimo Sacramento apareceram por toda a Europa. Místicos e beatos,
com suas visões, criavam o gosto pela adoração e devoção à Sagrada Eucaristia (Como
não lembrar a festa do Corpus Chisti?). Na França, Alemanha, Espanha, Países Baixos,
Itália etc., foram fundadas centenas de ordens e congregações – masculinas e femininas
- dedicadas ao Sagrado Coração de Jesus. Apareceram inúmeros livros de piedade que
incentivam uma comunhão mística com o Senhor, dos quais o mais famoso é a
“Imitação de Cristo”.16
Artistas plásticos produziram expressivas imagens para sustentar esta piedade,
incluindo uma expressividade tal que raiava a uma projeção de imagens que pareciam
falar, gemer e chorar. Algumas pinturas do rosto de Jesus se tornaram célebres; mas,
não se pode esquecer a face dele nos populares “santos sudários”, dos quais o mais
famoso é o de Turin, e o do Véu de Verônica. A eles devem ser somados os poetas e
dramaturgos, com seus autos, que expressam em seus textos esta mesma espiritualidade
dolorista e/ou de uma mística tão elevada a ponto de quase materializar o mistério.
Quem foi então Jesus no segundo milênio senão aquele que devia ser adorado,
amado, chorado e imitado? Quem foi Jesus no segundo milênio senão que aquele que
era conhecido e “divulgado” pelo clero e autoridades eclesiásticas – os únicos que
tinham acesso ao Evangelho, mas eram extremamente versados na dogmática – e,
sobretudo, pelos pais/mães e pregadores ambulantes?
O Brasil e a América Latina,durante cinco séculos, foram evangelizados à
sombra do Crucificado (veja-se o valor da Sexta-feira Santa, dos crucifixos, das Via16
Atribui-se a Thomas de Kempis a autoria de “Imitação de Cristo, que em português é
feita nova edição todos os anos pela Vozes, de Petrópolis. Sabe-se que este livrinho estava na cabeceira
do papa João João Paulo I, por ocasião de sua morte, em 1978
sacras e correlatos), da devoção ao Santíssimo Sacramento e do Sagrado Coração de
Jesus (veja-se a devoção das primeiras Sextas-Feiras do mês, da força do Apostolado da
Oração, do número de igrejas dedicados ao Coração Santo reparador dos pecados
humanos.). De modo muito intenso, no crucificado se via o Deus crucificado por nós;
nas devoções à eucaristia, o Deus presente na hóstia consagrada e no culto ao Sagrado
Coração, o divino que em chamas de amor age por nós e por quem se deve reparar os
pecados no mundo. No fundo para valorizar Deus, se desvalorizava, na prática, o
homem Jesus. A piedade popular pode facilmente incorrer num docetismo camuflado.
Daí decorrem a força e a fraqueza da fé entre nós, na compreensão de quem é
Jesus. Por um lado, imagens do Cristo Redentor (do Corcovado no Rio de Janeiro e
inúmeros outros lugares, é a expressão simbólica de um Cristo docético... distante... que
diz quase nada, pois se tornou menos ainda que uma fonte de adoração e de imitação.
Por outro lado, há uns “Jesus” da coluna, do bairro ou do lugar tal, ao lado de outras
devoções tão enfraquecidas ou despersonalizadas como algumas que se percebe já a
primeira vista ser apenas “o espírito mais aperfeiçoado dentre todos os homens” (que
nem precisa ser Deus e muito menos libertador/salvador). Em algumas ocasiões
paralitúrgicas, Jesus “no ostensório que passeia no meio do povo” serve para abençoar
todos os objetos tocados por ele (como mais um objeto de devoção)17. As comoventes
encenações na paixão, cada vez mais popularizadas, originalmente eram ocasiões
paroquiais para despertar a fé e a piedade; todavia desde que passaram a ser espetáculos
públicas e midiáticos – e desligados de um processo evangelizador – se tornam apenas
um elemento cultural que fomenta religiosidades descomprometidas com a verdade de
Jesus e o anúncio de seu Reino.
Alguém já chamou a atenção que no Brasil, popularmente, chegou-se a
algumas posturas que podem assim ser sintetizadas: o Cristo morto, o Cristo distante, o
sem poder, o que não inspira respeito e/ou o desencarnado.18 A esta lista, pode-se falar
do Cristo milagroso, de Jesus santo entre outros santos, do Jesus sofredor ou da Paixão.
Imagens do “doce e amado” Jesus, “meigo redentor”, “grande amado”, “bom amigo”
indicam dimensões muito subjetivas, que tendem ao individualismo (católico e
protestante), capazes de construir um Jesus intimista, “meu salvador e redentor”, num
clima de familismo.
No entanto, convém chamar a atenção que na história da história de Jesus entre
nós, no Brasil e na América Latina, nas últimas cinco décadas tem houve um grande
incremento na práxis e na teorização sobre Jesus libertador. Milhares de comunidades e
grupos, com centenas de assessores, discutiram e rezaram, aprofundaram a vivência
17
Não quero afirmar que todos os cultos e bênçãos eucarísticos sejam isto
ou só isto.
18
Cf. ARAUJO, João Dias. Imagens de Jesus Cristo na cultura do povo brasileiro, in BOFF, L
et alii. Quem é Jesus no Brasil? São Paulo: ASTE, 1974, os 39 ss.
espiritual e encaminharam seus projetos e trabalhos pastorais à luz da cristologia
libertadora. Nunca se vira isto antes nesta América meredional e que, no entanto, agora
vai dando lugar no presente à devoção e adoração eucarísticas.
A história da história de Jesus é um processo bimilenar que pervade toda a
cultura do ocidente, desde os antigos povos europeus, tão cheios de outros deuses ricos
de tradições, mitos e magias, até os povos novos – como os da América Latina –
também cheios de sincretismo, a ponto de envolver espiritualidades afro, espíritas,
indígenas com folclores e lendas. Nem sempre os cristãos têm conseguido o equilíbrio
melhor entre a devoção, a adoração e a penitência, com o compromisso, o testemunho e
o seguimento.
Nas apresentações de Jesus na história devem ser recordadas também as
dimensões da “burguesia moderna” provenientes da Europa ocidental, mesmo com
certos pressupostos filosóficos, como os de Lessing (+1781), Kant +1804), Marx (
+1883), que propuseram Jesus como “o pedagogo”, “o mestre”, “o filantropo”, “o
libertador político”, em síntese “o melhor e o mais perfeito dos homens”. Tais imagens
geraram, no meio do povo, concepções que levaram ao encontro do “menino Jesus com
cabelos loiros e olhos azuis”. Ou ainda, seja no âmbito católico ou protestante,
construíram-se imagens subjetivas do “meu Jesus”, o que perdoa meus pecados, pois
por mim morreu na cruz.
Nestes tempos, percebe-se um novo movimento na vida eclesial católica.
Muitos dizem ser ele de um retorno. Parece que das concretudes e proposta de Jesus
sobre o Reino que já está próximo (cf. Mc. 1,15), quer-se reencontrar (quase de modo
agressivo) Jesus na Eucaristia, para ser amado e adorado. Entretanto, alguns conseguem
lembrar que ele deve ser imitado. Enquanto outros o lembram como libertador que deve
ser testemunhado como o que veio revelar quem é Deus e implantar seu Reino de
Justiça e de verdade. Quem ousasse perguntar quem é Jesus entre nós poderia criar um
certo embaraço para a resposta, pois Jesus não tem uma dimensão só. Ele é bem mais
rico que o dogma do clero, que as narrativas dos simples, que a devoção (por vezes,
devocionismo) de grupos. Suas múltiplas faces estão interligadas e devem interagir na
vivência da fé. Ele deve ser amado, adorado, imitado, tanto quanto testemunhado e
seguido. Ele é e continua sendo sempre o caminho para Deus e para o irmão. Nós o
conhecemos, primordialmente, pelos evangelhos no contexto bíblico; depois, pela
ampliação intelectualizante dos grandes Concílios cristológicos, pela compreensão
contextualizada da fé, pontualizado pelo magistério e pelo “sensum fidelium”. Jesus, em
quem cremos e queremos seguir e testemunhar, é alguém do nosso mundo e do mundo
de Deus, sempre maior que nós.
Jesus é plural
É interessante observar até mesmo a cristologia do papa Bento XVI,
insatisfeito com as idéias desenvolvidas sobre o Jesus histórico. O teólogo papa propôsse à tarefa de retraçar uma figura contemporânea de “Jesus de Nazaré” desde o inicio de
sua vida pública19 até (alguns esboços sobre a) ressurreição20, prometendo um terceiro
volume sobre a infância de Jesus. A preocupação do papa teólogo não foi a tradicional
reafirmação do dogma, certamente por estar convencido que muitos já não entendem
esta linguagem e outros não se importariam com ela. Ratzinger buscou, desde os
evangelhos em primeiro lugar, apresentar convincentemente (o seu) Jesus para o homem
de hoje (sobretudo europeu culto e de primeiro mundo, mesmo com a pretensão de
universalização). É certo que o papa Ratzinger escreveu seu “Jesus de Nazaré” não pelo
simples prazer de teologizar sobre o tema; mas para pontualizar a nova questão
cristológica (Jesus histórico) evidenciando, em meio a um crescente “analfabetismo
religioso”, a necessidade de apresentar outra vez Jesus, porém tendo como ponto de
partida a revelação bíblica.
Recuperar o Jesus “bíblico”, no contexto do séculoXXI, sem perder as grandes
intuições do passado, é uma tarefa a que muitos vem se propondo. Muitos na América
Latina, ao invéz de partir de um Jesus ontologizado, têm preferido fazer uma cristologia
descendente ou seja: do Verbo que se fez carne e habitou entre nós: ele é Jesus o Cristo.
Outros tem buscado uma cristologia ascendente, procurando descobrir Deus no homem
de Nazaré, pois tão humano assim só poderia ser Deus entre nós.
Se na história de Jesus, durante muitos séculos, o seu nome e a sua pessoa,
foram suficientes, parece que hoje torna-se igualmente importante a consciência de seu
papel salvífico. Ao lado de uma cristologia, rica e milenar, faz-se necessária uma
abertura para superação da sotereologia tão “precária” destes dois milênios de história.
É importante lembrar ainda que também a sotereologia é plural desde o NT.
Ela, a partir de Tertuliano foi se fixando na necessidade de restabelecer a ordem
perturbada pelo pecado, portanto de voltar às origens antes do pecado. A morte de Jesus
seria a finalidade de sua vinda ao mundo. Posição esta bem diferente da de Sto. Irineu
que encontrava o significado sotereológico na elevação e consumação da humanidade, e
a morte de Jesus como um momento de sua trajetória no grande processo da realização
do plano salvador de Deus21.
Ninguém e nenhum grupo algum pode dizer: “sou dono dele ou de sua
história”. Ao contrario, Ele é o Senhor nosso e só Ele é o Senhor de todos. Assim, a
histórica plurissemia, tanto intelectual quanto popular-devocional, não esgotam a
história da história de Jesus e nem mesmo o seu significa. O que vale, é ele mesmo
Deus entre nós, como um Deus que nos ensina a caminhar seu Caminho de Verdade e
Vida e nos conduz à plenificação junto do Pai.
19
Ratzinger, J./ Bento XVI. Jesus de Nazaré. Do batismo no Jordão até a transfiguração. S.
Paulo: Ed. Planeta do Brasil, 2007
20
RATZINGER, J/ Bento XVI. Jesus de Nazaré. Da entrada em Jerusalém até a ressurreição.
S. Paulo: Ed. Planeta, 2011 (no prelo) .
21
KESSLER, Hans. Op.cit. pg.302
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