Arte e simbolização: a poética da dor Milena Donato Meu encontro com a arte Pintar, colar, rabiscar, escrever, poetiza, moldar, dizer.... Muitas são as maneiras de se fazer arte e expressar o que se sente. Desde menina eu utilizava a escrita e a criação de histórias como recurso necessário e importante para expressar minhas dores, tristezas e alegrias. E eu cresci assim, acreditando que esse caminho da expressão artística era uma escolha possível e importante para se dizer o que se sente. Resolvo fazer psicologia e durante minha formação me debruço sobre o estudo da saúde mental e psiquiatria e nesse percurso encontro com a Arteterapia no meu estágio final do curso em um Centro de Atenção Psicossocial – CAPS. Esta instituição propõe o trabalho com oficinas terapêuticas, partilhando da visão de Valladares et al (2003, p. 6), que diz que elas “são atividades de encontro de vidas entre pessoas em sofrimento psíquico, promovendo o exercício da cidadania, a expressão de liberdade e convivência dos diferentes através preferencialmente da inclusão pela arte”. A partir dessa experiência minha linha de trabalho segue na área da arteterapia, da saúde mental e da psicologia, influenciada por alguns teóricos da Arteterapia como Ângela Philippini e Guttimanm, da Psicologia Analítica Junguiana sob o olhar de Nise da Silveira e na Psicanálise com as contribuições de Winnicott, Manoel T. Berlink. Um trabalho Arteterapêutico Nas linhas que seguem apresentarei uma experiência de trabalho com arteterapia desenvolvido com pacientes portadores de dor crônica no Centro de Tratamento para Dor Crônica – CENDOR, dispositivo de saúde do Município de João Pessoa-PB. Ao iniciar meu trabalho neste Centro me deparo com pacientes bastante fragilizados, poliqueixosos e doloridos. A queixa dos médicos e fisioterapeutas do serviço eram que a maioria de seus pacientes não obtinham melhora do quadro álgico porque traziam uma história de vida sofrida e só conseguiam olhar para a dor, potencializando-a. A partir dessa demanda, inicio os atendimentos na modalidade individual e aos poucos vou inserindo os grupos terapêuticos no qual a arte passa a ser o recurso terapêutico principal para a expressão da dor. Entendendo Arte “como Processo Expressivo, de forma mais ampla que se puder concebê-lo. Não abordando questões particulares de ordem estética, técnica ou acadêmica” (PHILIPPINI, 2008, p. 13, grifo do autor). A partir disso a Arteterapia se define como um processo terapêutico que ocorre através de modalidades expressivas diversas, entendendo o sujeito como um ser de possibilidades criativas e singulares. Foram criados dois grupos com cinco integrantes cada um, na sua maioria mulheres com faixa etária entre 40 e 70 anos, diagnosticados com fibromialgia e outras comorbidades reumáticas. Inicialmente, começo utilizando a contação de história, que naquele momento funcionava como acolhimento e maternagem. A cada história contada observava a conexão que eles faziam com suas próprias histórias e assim íamos tecendo um vínculo importante para os desdobramentos que esses encontros arteterapêuticos teriam. A contação de história permaneceu presente em quase todos os encontros, muito embora usávamos, prioritariamente, outros recursos como a argila, a tinta e a escrita. Para José Tolentino Rosa, estudioso da dor, “pacientes cujas queixas estão registradas no nível da concretude do corpo trazem para o psicoterapeuta um corpo que conta uma história” (ROSA, et al. 2013, p.11). E nesse sentido observava que cada paciente tinha uma história a contar através da concreta dor no corpo; e essa história começava a ser contada de formas diversas através dos inúmeros recursos arteterapêuticos disponibilizados a cada encontro. Ao iniciar o uso da argila como recurso terapêutico, sugeri como mote inicial o seguinte enunciado: Que imagem tem a minha Dor? E em seguida eles foram dando vida a massa fria e sem forma. Na medida que iam criando livremente suas peças sentiam o que a imagem lhe anunciava e a partir disso disparava novas associações. Após a produção com argila do que a paciente chama de “pedra seixo” ela escreve: A minha dor é tão grande que chega a me sufocar. É um fardo muito pesado... Jesus, Rola essa pedra de cima de mim, que me machuca tanto. No uso da argila não há regras para a sua confecção, trazendo como uma vantagem a mais livre exploração e criação. Este material visa auxiliar os indivíduos em suas problemáticas, facilitando a expressão simbólica nas modelagens em argila dos sentimentos, das percepções e angústias. Como nos diz Stephen Nachmanovitch: “A criação espontânea nasce do nosso ser mais profundo e é imaculadamente e originariamente nós. O que temos que expressar já existe em nós, é nós, de forma que trabalhar a criatividade não é uma questão de surgir o material, mas de desbloquear os obstáculos que impedem seu fluxo natural” (1993, p.21). Possibilita, assim, ao paciente construir imagens, esculturas, representativas de seu íntimo e que, dentro do setting terapêutico, terão um sentido. Dividíamos o momento com a argila em duas partes, a primeira eles entravam em contato com a massa e davam forma e na segunda eles pintavam as peças. Em ambas as etapas além do trabalho com a argila, eram utilizados a contação de história e outras modalidades expressivas, como o desenho, a pintura e a escrita que as vezes funcionavam como mote, as vezes funcionavam como desdobramento da criação. E assim seguiam nossos encontros, sempre guiados pela espontaneidade e pela história dolorida de cada um. Apresentando os atores dessa história São encaminhados para a psicoterapia no CENDOR pacientes diagnosticados com dor crônica, na sua maioria com fibromialgia, que de acordo com Berlink “significa literalmente, dor nos músculos e nos tecidos fibrosos (ligamentos e tendões) e que é implacável, espalhando-se por todo o corpo e possui uma grande proximidade com a depressão e a angústia” (1999, p.8). Neste sentido os pacientes se apresentam tomados pela dor, poliqueixosos, sem esperança e na sua maioria com sintomas depressivos e ansiosos. Era uma vez uma mulher muito alegre, que gostava muito de passear, de ir as festas, de ir à igreja, gostava muito de se comunicar com as pessoas. Era feliz. Até que um dia aconteceu um fato muito dolorido que até hoje lhe tirou sua alegria: as dores do seu corpo, a perda dos movimentos. Hoje só lhe resta angústia muito grande, diante de tantos problemas de saúde. Eu tenho saudade de quem eu era, eu tenho saudade de mim. Está mulher sou eu! (Texto elaborado por uma paciente do grupo terapêutico após contação de história do livro Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque). Observamos na história narrada acima a proximidade que a dor física tem com a tristeza e a angústia. Sigmund Freud para refletir o quanto a dor, a depressão e a angústia se relacionam entre si diz: Ao formar um juízo sobre as dores, que se costuma considerar como fenômenos físicos, em geral cabe levar em conta sua claríssima dependência das condições anímicas. Os leigos, que de bom grado reúnem tais influências anímicas sob o nome de imaginação, costumam ter pouco respeito pelas dores decorrentes da imaginação, em contraste com as que são causadas por lesões, doenças ou inflamações. Mas isso é evidentemente injusto: qualquer que seja sua causa, inclusive a imaginação, as dores em si nem por isso são menos reais ou menos violentas (FREUD, Sigmund. 1996, p.276. Grifo nosso). Essa questão trazida por Freud faz todo sentido, pois em muitos casos as dores dos pacientes são desacreditadas pela família visto que não podem ser vistas, mas tão somente sentida. Aumentando ainda mais a angustia e contribuindo para a exaltação da dor. Percebo que enquanto o sujeito não sentir e entender o sentido de sua dor mais difícil será a diminuição da intensidade da mesma. Diante disso, é ferramenta fundamental para a efetividade do tratamento proposto compreender como cada paciente interpreta o impacto do quadro de dor crônica na sua vida e para que isso ocorra é necessário utilizar mais recursos que permitam que o paciente possa expressar seu sofrimento de forma mais livre e criativa (LODUCA, 2014). Alguns pacientes do grupo terapêutico trazem em seu discurso que a dor foi a forma encontrada pelo corpo de dizer que não aguenta mais. Isso faz todo sentido, considerando que a sensação dolorosa vem sendo construída ao longo de nossa existência, conforme Berlink a dor anuncia um perigo, ou melhor dizendo a dor é uma “defesa contra ameaças lesivas ou lesões vinda da realidade externa ao organismo” (1999, p.10). Trabalhei desde meus 7 anos pegando em enxada e lata d’água na cabeça. Hoje meu corpo gritou dizendo que não aguenta mais. (Um homem membro do grupo descrevendo o porquê de tanta dor). Concluindo sem um Fim necessário Portanto, o objetivo do trabalho psicoterapêutico não é, absolutamente, a remissão total da dor, pois se assim o fizéssemos deixaríamos de ser humano. Nossa meta então seria ajuda-los a reconhecer e suportar essa dor, sem deixa-la com centro de suas vidas. Levá-los a entender que a dor são manifestações da vida da espécie humana, sendo fundamental suportá-la com mais leveza e criatividade. Neste sentido a Arteterapia oferece a possibilidade, através do processo expressivo e criador, de compreender as transições e transformações em direção a tornar-se um indivíduo, aquele que não se divide face às pressões externas e que assim procura viver plenamente, integrando possibilidades e talentos, às feridas e faltas psíquicas. (PHILIPPINI, 2008). É incrível como isso faz sentido quando observamos os desdobramentos de cada paciente em seu processo psicoterápico. Após a criação de uma perna de argila e depois pintada de modo bem colorido e vibrante a paciente escreve: Era uma vez uma perna, pois ela dói tanto que quando estou dormindo ela incomoda muito que fico procurando a melhor posição para que eu possa dormir mais confortável. Ela também tem a ver com o meu emocional; porque quando me estresso muito ela dói mais ainda, não só ela, mas todas as dores que sinto. Mas eu procuro esquecer que tenho essas dores para viver melhoro meu dia a dia. Pois já que tenho que conviver com ela para o resto da minha vida, quero procurar o melhor para mim e cuidar de mim, esquecer o que não me faz bem e procurar ser feliz e aceitar e cuidar das minhas dores tanto físicas como emocional. (Grifo nosso). Deste modo, observo que os efeitos alcançados por estes grupos terapêuticos são sentidos e tecidos por mim, por cada paciente singularmente e pelo grupo, a cada encontro. E, por isso, o presente estudo tem sua importância científica por contribuir no alargamento das discussões sobre os diferentes recursos utilizados no tratamento da dor, demonstrando, com isso, sua aplicabilidade eficaz, obtendo efeitos terapêuticos que colaboram com a construção de um novo olhar da sociedade e da comunidade científica sobre a dor crônica. REFERÊNCIAS: BERLINK, Manoel Tosta. A dor. In: BERLINK, Manoel Tosta (Org). Dor. São Paulo: Escuta, 1999, p. 7-22. FREUD, Sigmund. Tratamento Psíquico (ou mental) (1905). ESB, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 276. LODUCA, Adriana. et al. Retrato de dores crônicas: percepção da dor através do olhar dos sofredores. Dor. São Paulo. v. 15, n. 1, p. 30-35, jan./mar. 2014. NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo. 3. ed. São Paulo: Summus, 1993, p. 21. PHILIPPINI, Angela. Para entender arteterapia: Cartografias da coragem. 4. ed. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2008. ROSA, José Tolentino (org.). et al. Fantasias inconscientes na clínica psicanalítica de pacientes com dor crônica. São Paulo: Associação de Psicoterapia Psicanalítica, 2013. E-Book. ISBN: 978-85-66238-02-0. Disponível em: http://appsi.com.br/fotos/%7B8891621D-7C05-4963-8746-45F4339D1156%7D_Ebook%20APP.pdf. Acesso em: 18/07/2016. Milena Donato – Nota curricular Psicóloga clínica (CRP 13/6142), Especialização em Psicologia Clínica – Psicanálise (em andamento - EPSI), formação em Clínica Psicanalítica com Casal e Família (EPSI), e Arteterapia (em andamento) pela Traços – PE. Endereço: Rua Geraldo Mariz, 525, Ap. 1501, Tambauzinho, João Pessoa, PB, CEP 58042-060. Telefone.: (83) 99999.7275 / (83) 98851.8905 e-mail: [email protected]