A ESPANHA ROMANA: CONQUISTA, COLONIZAÇÃO E

Propaganda
\
CONQUISTA,
A ESPANHA ROMANA:
COLONIZAÇÃO E DESAGREGAÇÃO
MARCOS CÉSAR BORGES DA SILVEIRA*
Este artigo enfoca a trajetória histórica da Espanha Romana. Neste sentido,
abordamos as causas políticas e econômicas que motivaram a conquista
romana da Península Ibérica, o processo de colonização levado a cabo pelo
conquistador romano, com ênfase na generalização do modo de produção
escravista e das instituições políticas e culturais romanas sobre os povos e o
território conquistado. Por outro lado, procuramos delinear, ainda que em linhas
gerais, a desagregação da sociedade hispano-romana, processo este
transcorrido no contexto da crise final do Império Romano do Ocidente.
PALAVRAS-CHAVE:
Espanha Romana; conquista; colonização.
Para Blasquez (1975), a expansão romana sobre a Península Ibérica
correspondeu aos imperativos da 11 Guerra Púnica. Tal acontecimento,
transcorrido no final do século 111 a.C., transformou a Península Ibérica em
palco de um conflito de grande amplitude histórica, envolvendo Roma e
Cartago, as duas grandes potências coloniais da época.
A necessidade de cortar o suprimento logístico dos cartagineses, que
a essa altura ameaçavam chegar à própria Roma, determinou o desembarque
das forças romanas em Ampúrias (218 a.C.), litoral norte mediterrâneo da
península. Os romanos, apoiados por vários povos da região ibérica,
derrotaram os cartagineses e passaram a dominar o litoral mediterrâneo.
Por volta de 195 a.C., os conquistadores começaram o avanço sobre o interior
da Península. A resistência promovida por vários povos nativos e o interesse
menor de Roma sobre a Península, se comparados
ao Mediterrâneo
Oriental, explicam o largo período que os romanos levaram para encerrar as
conquistas territoriais hispânicas, isto já durante o final do século I a.C.
Numa perspectiva que procura transcender os limites da história
política, sustentamos que a anexação da Península Ibérica aos domínios de
Roma correspondeu a um desdobramento lógico da evolução do modo de
Produção escravista durante a fase romana.
Até o século IV, a economia romana esteve assentada sobre o modo
de produção escravista, cujo surgimento, desenvolvimento
e reprodução
esteve vinculado à expansão colonial praticada de forma mais ou menos
* Professor do Dep. de Biblioteconomia e História - FURG. Mestre em História - UNISINOS.
BIBLQS,
Rio Grande,
13: 19·31,2001.
19
1111
contínua. Tal expansão garantia as terras e principalmente
a força-detrabalho necessária à economia romana. A reposição do exército de
trabalhadores sujeitos ao trabalho compulsório constituía a principal tarefa
do estado militar romano, uma notável estrutura de poder aparelhada para
atender aos interesses do latifúndio escravista. Segundo Perry Anderson,
A via típica da expansão na Antigüidade, em qualquer fase dada, era por isso
sempre um avanço "lateral" (conquista geográfica), não econômico. A
civilização clássica foi, por conseguinte, de caráter intrinsecamente colonial: a
cidade-estado celular reproduzia-se invariavelmente, nas fases de ascensão,
pelo povoamento e pela guerra. A pilhagem, o tributo e os escravos eram os
objetos centrais do engrandecimento, há um tempo meios e fins da expansão
colonial. O poder militar estava mais estreitamente ligado ao crescimento
econômico do que talvez em qualquer outro modo de produção, antes ou
depois, porque a principal fonte do trabalho escravo eram normalmente os
prisioneiros de guerra capturados, enquanto o recrutamento de tropas
urbanas livres para a guerra dependia da manutenção da produção
doméstica por meio de escravos; os campos de batalha forneciam a força
humana para os campos de cereal, e vice-versa, os trabalhadores cativos
permitiam a criação de exércitos de cidadãos (Anderson, 1984).
Na Península Ibérica, as campanhas militares contra os cartagineses
e depois as guerras coloniais no interior do território ofereceram à classe de
proprietários um considerável estoque de escravos, que eram utilizados na
agricultura, na extração de metais preciosos e nas atividades industriais
desenvolvidas na própria Península.
Na Hispânia, como nas demais regiões do mundo antigo onde
vigorou o modo de produção escravista, o trabalho escravo aparece
vinculado às atividades econômicas mais dinâmicas, com destaque para a
agricultura e a mineração. No caso da Espanha Romana, suas exportações
eram destinadas aos mercados do Mediterrâneo Ocidental, principalmente
Roma e outros centros itálicos, e com destaque menor apareciam os
mercados do norte da África e também das Gálias.
Um ponto significativo no processo de anexação da Península Ibérica
ao Império Romano diz respeito à resistência promovida por vários grupos
nativos à ofensiva romana. Neste sentido, lusitanos, celtiberos, galaicos,
cântabros, entre outros, sustentaram uma resistência armada contra os
conquistadores
durante
um largo período
de tempo.
Estas lutas
estenderam-se por quase duzentos anos, aproximadamente
entre 180 a.C.,
quando começa a expansão romana sobre a região celtibera, até a
conquista do litoral cantábrico em 24 a.C.
Desde os primeiros contatos com as potências mediterrâneas, os
povos da área celta e celtibera - que grosso modo, abrangia o norte, oeste
e centro do território peninsular - constituíram-se
em fornecedores de
mercenários para os exércitos púnicos, gregos e mesmo romanos. Era fato
comum a presença de mercenários hispânicos nos exércitos gregos e
20
BIBLOS,
Rio Grande, 13: 19-31,2001.
cartagineses já no século VI a.C. De acordo com um pesquisador,
La existencia de estas mercenarios, durante más de 300 anos, en cantidades
considerables cada vez que había ocasión para ello, indica una masa de
hombres dispuestos a ganarse Ia vida ai margen de Ias propias estructuras
sociales. Podemos sospechar que alguna causa les empujaba a tomar Ia
guerra como profesión. Y resulta perfectamente lícito relacionar este
fenómeno con otro también conocido a través de múltiples, referencias: el
bandolerismo [...] (Tarradell, 1977, p. 119).
Segundo Blasquez (1975) e Tarradell (1977), tanto o bandoleirismo
difundido entre os povos do interior do território peninsular como a presença
de mercenários hispânicos em vários exércitos explicam-se devido à
incidência de constrangimentos
de caráter econômico e social sobre as
populações hispânicas. As desigualdades sociais que afetavam os povos do
interior peninsular constituíram as causas responsáveis pela instituição e
generalização da rapinagem e das atividades guerreiras entre os antigos
hispânicos.
Para significativas parcelas sociais, excluídas do acesso à terra e
seus frutos, restava a guerra e o bandoleirismo como forma de assegurar a
manutenção de suas vidas. Daí entende-se o desenvolvimento
de uma
notável cultura guerreira entre os povos da Hispânia. Segundo fontes
antigas, o nativo, além de bandoleiro, constituía um soldado extremamente
adaptado à vida militar. Para Lívio, que visitou a península na época de
Catão, os hispânicos constituíam um "pueblo feroz, que pensa que Ia vida
sin armas no es digna de ser vivida" (Lívio, apud Blasquez, 1974, p. 96).
O sucesso da colonização romana dependia do controle sobre os
povos e as riquezas da Península. Tal controle não se esgotava apenas nas
áreas sujeitas ao domínio
de Roma, mas ia além, exigindo
dos
conquistadores a pacificação dos grupos oriundos do interior peninsular.
Principalmente porque tais grupos realizavam incursões sobre as regiões
peninsulares mais prósperas, inclusive as já submetidas a Roma.
A ação romana, praticada nos moldes de uma polícia colonial, visava
inibir as razias realizadas por bandos armados, provenientes das regiões
mais pobres e ainda não sujeitas ao domínio romano, sobre as populações
mais prósperas do litoral leste e sul peninsular. A prática da rapinagem,
reauzada por vários grupos hispânicos, não escapou às observações de
varios cronistas do mundo antigo. Nas palavras de um deles,
Existe una costumbre muy propia de los iberos, principalmente de los
lusitanos, y es que cuando alcanzan Ia edad adulta, aquellos que están más
apurados de recursos, pero sobresalen por el vigor de sus cuerpos y su
denuedo, proveyéndose de valor, y de armas, se reúnen en Ias asperezas de
los montes; allí forman bandas numerosas que recurren Iberia, acumulando
riquezas con el robo y ello 10 hacen con el más completo desprecio de todo
(Posidonio apud Tarradell, 1977, p. 119).
BIBLOS, Rio Grande, 13: 19-31,2001.
__•.•
0
.8C'S~
21
I
I!
Neste contexto, resistir ao conquistador romano apresentava-se
como um desdobramento
necessário frente à instauração de uma
ordem social que ameaçava o modo de vida de vários grupos nativos,
sobretudo aqueles que, premidos pela carência de recursos, tinham nas
razias periódicas uma forma de garantir a sua reprodução enquanto
grupo social.
Assim, povos com uma longa trajetória histórica, na qual as
atividades mercenárias e bandoleiras tinham seu lugar, entraram em
choque com uma das frentes da expansão romana. Por outro lado, a
experiência adquirida com as razias proporcionava aos nativos os meios
necessários para desenvolver uma guerra de guerrilhas contra Roma. Neste
sentido, o ambiente peninsular, onde não faltavam florestas densas e
territórios montanhosos, facilitava as incursões realizadas por bandos
armados contra as forças romanas.
Para os romanos, além da "pacificação" da península, momento
necessário para viabilizar a exploração do território, pesava também o
interesse sobre as reservas metalíferas do interior.
Desde a Idade do Bronze já era conhecido o potencial metalífero
da Península Ibérica, tanto de metais preciosos, o ouro e a prata,
como também os chamados metais industriais, como o ferro e o cobre.
De acordo com Rostovtzeff (1961), foram as ricas reservas de metais, a
capacidade cerealífera da terra e o potencial guerreiro dos povos
peninsulares que levaram os cartagineses a aumentarem suas possessões
na Espanha com vistas a transformar a península numa base em sua
luta contra Roma.
O fato de a Espanha ter sido uma terra extraordinariamente rica em
metais preciosos e industriais, segundo os padrões antigos, contribuiu para
o avanço das legiões romanas sobre o interior peninsular. Ademais, tal
avanço foi seguido de perto por uma significativa migração de romanos e
itálicos para a Hispânia.
Segundo Blasquez (1975), Hispânia foi o distrito mineiro romano mais
rico até o Principado, bem como o primeiro a ser explorado de forma
sistemática. A riqueza mineral desta província explica a intensa colonização
a que foi submetida durante o período republicano, inclusive a notável
difusão do padrão de sociabilidade e a cultura romana no litoral
mediterrâneo e no sul peninsular.
A importância econômica da Hispânia para Roma pode ser percebida
concretamente na presença militar romana nas regiões metalíferas da
península. Nestas áreas evidenciava-se a necessidade de o Estado
controlar de perto as minas, evitando assim a evasão fiscal: "Muctios
autores opinan que Ia presencia en legio (Léon) de Ia única legión de
guarnición permanente en Hispania - Ia legio X Gemina Felix - se explica
precisamente porque el Estado quería asegurar Ia zona dei oro contra
cualquier posible contingencia (Tarradell, 1977, p. 153).
22
BIBLOS, Rio Grande,
13: 19'31, 2001.
As áreas da Península Ibérica conquistadas e ocupadas pelos
romanos corresponderam à quase totalidade do território oenmsuiar, porém
nos territórios montanhosos localizados ao norte da península algumas
tribos notabilizaram-se pela resistência, de modo que foi menor a influência
romana nesta região.
Tampouco a absorção dos nativos pelo mundo romano pode ser
estendida a todas as áreas conquistadas. A romanização da península
correspondeu principalmente às áreas urbanizadas e àquelas de agricultura
de exportação. À margem destas cidades e das áreas rurais caracterizadas
pela presença das vil/as, a organização social arcaica sofreu um longo
processo de desgaste e somente aos poucos passou a assimilar instituições
e práticas culturais romanas, todavia mantendo sempre um forte conteúdo
residual, oriundo das antigas formas sociais e estoques culturais anteriores
à presença romana.
Esta realidade é marcante nas regiões noroeste e norte da península.
Nestas áreas os nativos encontravam-se num processo de romanização
muito mais lento, se comparado a outras regiões peninsulares. No início do
Principado, os povos localizados no norte peninsular, afastados do litoral
mediterrâneo, davam seus primeiros sinais de romanização, geralmente
sinais externos e de importância reduzida como o uso de toga e a adoção
de alguns hábitos romanos.
A agricultura e a exploração das reservas minerais eram as principais
fontes de riqueza da Hispânia. Estas atividades econômicas estavam nas mãos
de nativos romanizados e de imigrantes romanos e itálicos. Estes agentes
formavam uma classe de proprietários que vivia nas cidades litorâneas ou
bem-servidas de vias fluviais. A proximidade com o mar era importante porque
garantia a articulação da produção hispânica aos mercados mediterrâneos.
A colonização romana da Península Ibérica modificou as antigas
relações de produção e trabalho. Tal ruptura pode ser percebida na nova
relação cidade/campo que passou a vigorar na península. O antigo modo de
vida aldeão passou a sofrer um progressivo desgaste até reduzir-se a um
fenômeno residual próprio de áreas localizadas à margem da colonização
romana. A nova unidade produtiva no campo era a vil/a romana. Nestas
propriedades efetivava-se uma agricultura de exportação voltada para os
mercados do mundo antigo, com destaque para os produtos ligados à
chamada tríade mediterrânea (oliva, vinhas e cereais).
A produção rural encontrava seu contraponto na vida urbana. Na
~enínsula Ibérica, seguia-se o ideal romano, que consistia em ser cidadão,
Isto é, viver na cidade, embora as bases do poder e as riquezas estivessem
no campo.
O vínculo que ligava o produtor rural imediato ao apropriado r urbano
do seu produto era o ato universal e comercial da compra de mercadorias
realizada nas cidades, onde o tráfico escravo tinha seus próprios mercados
(Anderson, 1984).
BlBLOS, Rio Grande,
13: 19.31,2001.
?~
A generalização da urbanização acompanhou de perto as mudanças
que incidiram sobre o campo com a colonização romana. Antes do advento
do domínio romano, eram poucas as cidades que podiam realmente receber
este nome. Com exceção de algumas colônias gregas, como Rodes e
Ampúrias, ao norte, e cidades fenícias e/ou fenício-púnicas, como Gadir e
Cartago Nova ao sul, o que existia era um sem-número de aldeias, embora
algumas bem povoadas. Cidades como Córdoba, Sevilha, Barcelona e
Lisboa, para citar apenas algumas bem conhecidas, são produtos da
colonização romana.
Além do surgimento de colônias romanas e municípios de direito
romano ou latino, o processo de urbanização da Hispânia incidiu sobre
antigos centros nativos que se converteram em cidades com estrutura e
estilo urbanístico romano, inclusive contando com acréscimo populacional.
Novas cidades surgiram do deslocamento e acomodação dos povos
subjugados por Roma. Antigas aldeias, fortificadas e estabelecidas
nos
altos dos montes, foram abandonadas, dando lugar a cidades abertas em
terrenos baixos. Em alguns casos, populações inteiras foram transplantadas
para sítios distantes de seus antigos territórios.
O extraordinário florescimento
urbano na Península só pode ser
explicado com a introdução
e generalização
do modo de produção
escravista no território ibérico. No período em tela, a escravatura era a mola
econômica que ligava a cidade e o campo, e isto sempre em benefício da
cidade (Anderson, 1984).
Nas cidades romanizadas, os eqüestres e decuriões - categorias
sociais imediatamente abaixo dos senadores - constituíam uma oligarquia
capaz de reproduzir-se enquanto classe dominante graças à exploração das
minas e da agricultura com base no trabalho escravo. A opulência de alguns
centros urbanos denotava o poder de articulação destes agentes. Durante a
chamada
época dos Antônios,
a suntuosidade
de algumas cidades
hispânicas expressava bem a riqueza e o poder dos grupos dominantes.
Além dos cavaleiros e dos decuriões, os chamados senadores
também integravam a classe dominante da sociedade hispano-romana;
aliás, os senadores, em matéria de riquezas e propriedades, ocupavam o
primeiro plano na topografia social. Os senadores eram aqueles que
possuíam grandes fortunas; para fazer parte da ordem era necessário
amealhar no mínimo um milhão de sestércios. No entanto, a tendência
deste grupo foi apartar-se da vida urbana da província. O hispano-romano
que lograva alçar-se ao senado romano passava a concentrar sua vida no
centro do Império, inclusive realizando inversões de capitais acumulados na
Hispânia em Roma ou na Península Itálica.
A referida tendência dos senadores a afastarem-se da vida política e
social das cidades hispânicas foi reforçada durante o período denominado
Baixo Império. Neste momento conturbado da História Romana e, em
especial, de suas províncias
ocidentais, o afastamento
das cidades
significava para os senadores, bem como para as demais frações da classe
dominante, manter distância dos impostos abusivos, da direção de cidades
em dificuldades econômicas e das ameaças bárbaras.
Nas cidades romanizadas as classes dominantes falavam o latim,
vestiam togas, cultuavam divindades romanas, apresentavam
costumes
romanos como o gosto pelo vinho, espetáculos teatrais, circo e lutas de
gladiadores, mesmo a arquitetura e a decoração assinalam a integração da
península ao mundo romano.'
No plano jurídico-político, a romanização da Península Ibérica pode
ser acompanhada pela lenta mas progressiva extensão do direito romano
ou latino às cidades da Hispânia. No período que se seguiu à conquista,
algumas cidades hispânicas do litoral mediterrâneo mantiveram o seu antigo
status de aliadas (soch). Outras cidades que apoiaram Roma durante a
guerra contra Cartago recebiam o direito latino (ius /atil). Contudo, foi no
período das chamadas guerras sociais, principalmente
sob César, que
muitas cidades hispânicas receberam o referido benefício.
Sob o domínio de César também surgiram várias colônias formadas
por cidadãos romanos e aliados, principalmente
veteranos do exército
romano. Esta política foi seguida, embora variando em intensidade, pelos
chefes de estado romanos que sucederam
o ditador. No entanto, a
generalização do direito romano ou latino para a totalidade da Hispânia só
completou-se no reinado de Caracalla, já no início do século 111 d.C.
No conjunto das classes dominadas destacava-se a plebe rural e
urbana. Estes atores sociais não possuíam riquezas, porém gozavam da
liberdade formal. Neste amplo segmento encontramos desde o camponês
arrendatário até os artesãos organizados em companhias,
bem como a
maior parte dos libertos.
Na base econômica da sociedade, gerando o sobretrabalho que permitia
a reprodução das instituições e práticas sociais e a manutenção das classes
dominantes estavam os escravos. Assim, do ponto de vista da produção do
excedente, a sociedade hispano-romana era escravista, isto é, a produção da
riqueza nessa sociedade estava baseada na exploração do trabalho escravo.
A atividade mineradora constitui o exemplo mais significativo da
escravidão nessa província romana, isto tanto pelo número de escravos
empregados, como pelo tratamento dispensado aos cativos. Sabemos que,
somente nas minas de Cartago Nova, durante o século I a.C., trabalhavam
cerca de 40 mil escravos hispânicos (Políbio apud Blasquez, 1975, p. 159).
.
A condição do escravo na sociedade
hispano-romana
não era
diferente de outras regiões do mundo antigo onde vigorou o modo de
produção escravista. Aliás, as minas espanholas eram famosas em função
das péssimas condições de trabalho e do grau de brutalização
do
trabalhador cativo.
1
24
BIBLOS.
Rio Grande,
13: 19.31,2001.
A figura do Imperador foi cultuada em Hispânia já a partir do Principado
BIBlOS,
Rio Grande,
de Augusto.
13: 19.31,2001.
25
lt;~:·t\·
B,8L1U
Biblioteca d~ r;:;.í~r\ehã§
Humanas
·~"'h=~
o
status jurídico do escravo não ia além da condição conferida ao
animal. Na verdade o escravo era encarado como um animal falante, um
instrumentum vocale. Mesmo depois, com a generalização do credo cristão
na Península Ibérica - a partir do século IV d.C. - os religiosos encontraram
grande dificuldade em diminuir ou abrandar o uso indiscriminado
da
violência contra os cativos.
Os libertos constituem uma categoria social cuja existência decorre
diretamente da instituição da escravidão. Tal grupo correspondia
aos
escravos que conseguiram pagar pela sua liberdade ou por alguma razão
receberam a alforria de seus senhores.
A existência dos libertos nos permite iluminar melhor aspectos
centrais da economia e da sociedade em exame. Os diferentes lugares
ocupados pelos libertos na topografia social, inclusive alguns ocupando
postos privilegiados, aponta a presença de uma determinada mobilidade
social na sociedade hispano-romana.
Tal fato nos permite inferir sobre o dinamismo da vida urbana nos
principais centros peninsulares, uma vez que atividades como a manufatura,
o comércio e as finanças freqüentemente aparecem associadas aos libertos
(Finley, 1984, p. 115).
De outro lado, o grande número de libertos nos permite perceber de
forma concreta a generalização
da instituição da escravidão
nessa
sociedade, fato que, aliás, é sustentado por vários pesquisadores que se
dedicam ao estudo da Antigüidade Clássica.
Conforme Tarradell (1977), estudos de inscrições em túmulos da
época romana permitem avaliar a presença de um número significativo de
libertos na sociedade
hispano-romana,
contingente
muito superior ao
referente aos homens livres. Isso revela a intensidade da escravidão nessa
província romana, afinal maior que o contingente de libertos era o de
escravos. Como as fontes sobre os cativos são escassas - grande parte
dos escravos não tinham direito a qualquer tipo de registro escrito, nem ao
menos uma pedra escrita sobre suas covas -, o estudo da população de
libertos torna-se essencial para entendermos a dinâmica da escravidão.
Não é demais salientar que o mesmo tipo de análise, a partir dos
enterramentos
de libertos, serviu para elucidar a generalização
da
escravidão em Roma. Nesta cidade, numerosas pedras tumulares revelam
26
BIBLOS.
Rio Grande.
13: 19·31.2001.
m:d!Jf.ªtiâQ
c;:; UFPí.
uma preponderância
de libertos (ex-escravos)
sobre
(Finley, 1984, p. 127).
A organização política nas cidades romanizadas obedecia ao padrão
de organização ditado pela cidade-mãe, Roma. Até o Alto Império, o acesso
aos principais cargos políticos nas cidades hispânicas era bastante disputado
pelas classes dominantes. Eram sobretudo os proprietários de terras que
ocupavam os principais cargos públicos nos centros hispano-romanos.
A ordem
dos eqüestres,
geralmente
em número
de 100,
correspondia, em nível local, ao senado romano. A mesma correspondência
existia no que se refere à figura do cônsul romano. Neste caso, extraíam-se
da ordem dos eqüestres dois cidadãos para cada colônia romana (duumvin)
e quatro para cada município (quadrumvin).
Os eleitos exerciam suas funções na alta administração da cidade,
controlavam os censos e, é claro, os impostos destinados a Roma. Mesmo
os cargos medianos e religiosos guardavam
correspondência
com a
organização política de Roma.
Assim como em Roma, a participação política e a concorrência para
ocupar cargos de prestígio e poder ocupava boa parte da vida das classes
dominantes
hispânicas.
Nas cidades
romanizadas
da Hispânia
os
candidatos a cargos públicos ofereciam obras e espetáculos
para os
cidadãos em troca de votos. Assim, a vida política e a cultura do espetáculo
também tiveram destaque nas cidades hispano-romanas;
atrações como
festivais de circo e lutas de gladiadores eram promovidas pelas elites urbanas
com o fito de receberem apoio político e os votos de seus concidadãos.
Esta organização societal mantém-se até o século 111 d.C., quando a
Península sofre de modo intenso a crise política, social e econômica que
afeta todo o Império Romano. Da chamada anarquia militar passa-se às
invasões bárbaras, quando várias levas de povos germanos penetram de
norte a sul da península, promovendo destruição e desorganizando ainda
mais a sociedade hispano-romana.
Francos e alamanos saqueiam
cidades e áreas rurais menos
protegidas da Península. Nesta conjuntura, muitas cidades são abandonadas,
e os grupos ligados ao comércio de exportação acabam sendo os grandes
perdedores. Os senadores reforçam a sua tendência ao afastamento da vida
urbana e retiram-se definitivamente para seus latifúndios (fundI), nos quais
procuravam imprimir um novo modo de vida, caracterizado pela busca de
auto-suficiência. Um processo análogo ocorreu com os cavaleiros e decuriões,
que abandonam suas antigas atividades e passam a constituir senhorios.
A relativa recuperação do Império Romano é assinalada tanto pela
expulsão dos bárbaros para além do limes romano, como por uma
reestruturação interna do Império. Tal rearranjo incidiu sobre o mundo romano
em todos o seu âmbito político, econômico, social e cultural. Abre-se assim
~ma nova fase histórica no Ocidente, o chamado Baixo Império Romano, cuja
Importância está no fato de prefigurar em vários aspectos a Idade Média.
Los trabajadores de Ias minas hacen ricos a sus duefíos, porque los
rendimientos rebasan el límite de 10 creíble. Los mineros, bajo tierra, en Ias
galerías día y noche van consumiéndose y muchos mueren por Ia excesiva
dureza dei trabajo. No tienen casi ni respiro ni descanso en sus trabajos, sino
que los capataces, a fuerza de golpes, les obligan a aguantar sus males, y
así no vale nada su vida, que pierden en condiciones tan miserables.
Algunos, por su vigor corporal y fortaleza de ánimo, soportan sus
padecimientos largo tiempo, pues es preferible Ia muerte a vivir, dada tan
miserable situación (Diodoro, apud Blasquez e Tovar, 1974).
I
(fi
h
BIBLOS. Rio Grande.
13: 19·31.2001.
27
Em nível político-administrativo,
merece destaque a divisão do
Império em duas grandes áreas, o Oriente e o Ocidente, que passaram a
ser governados com chefes diferentes. Outra medida digna de nota diz
respeito ao aumento da máquina burocrática e militar em virtude da ameaça
dos bárbaros sobre as fronteiras do Império.
t
O reforço da presença militar romana nos limites do Império exiqiu
uma maior arrecadação por parte do Estado junto aos seus súditos. O
aumento das tropas nas fronteiras do Império levou o Estado Romano a
impor uma política fiscal severa, cujo resultado foi o empobrecimento
da
sociedade e a evasão de recursos.
A cidade, que havia sido a expressão máxima da grandeza e
prosperidade do mundo romano, não se recuperou após as invasões do
século 111 d.e. Na Península Ibérica, muitas cidades destruídas pelas razias
bárbaras foram abandonadas, e as que foram reconstruídas não voltaram a
ter a mesma importância econômica.
Dentre as cidades que resistiram à destruição, a redução dos sítios
urbanos expressou bem a crise que incidiu sobre a cidade hispano-romana.
Antigas áreas urbanas foram abandonadas, surgiram muralhas onde antes
eram bairros movimentados.
Foi o fim da cidade aberta, sinônimo de
segurança que marcou o mundo antigo em sua fase de esplendor e pujança.
Não se trata apenas de uma cidade encerrada por um esquema
defensivo que obedece a necessidades de tipo militar, mas a própria vida
urbana, antes tão cara às elites, não exerceu mais qualquer atração sobre
as classes dominantes. O peso dos impostos e a insegurança da época
obrigam ricos e pobres a fugirem para o campo. Os grandes proprietários
preferiam viver junto às suas terras, onde mantinham seus próprios efetivos
militares. Nas suas propriedades, receberam pessoas que abandonaram as
cidades, bem como pequenos proprietários que entregaram suas terras em
troca de proteção.
[...) Ia gran densidad de pequenas casas de campo de los siglos I ai III
abandonadas a partir de esta fecha, se sustituye una villa única, que debía
englobar Ias tierras de todas [...) Ias desaparecidas. Es el caso de Ia zona de
Villar dei Arzobispo, en Ia parte central dei País Valenciano. En Ias regiones
donde el latifundismo ya tenía una larga tradición, como Castilla o Andalucía,
el paso ai nuevo sistema comportó menos cambias de distribución de tierras,
pero el esquema es paralelo (Tarradell, 1977, p. 167).
A crise iniciada no século 111 d.e. e agravada pela política fiscal do
Estado Romano nos períodos
subseqüentes
afetou sobremaneira
o
comércio de exportação, que entrou em colapso e ficou reduzido aos
pequenos mercados de tipo local e comarcal. A queda da produção para
exportação leva ao abandono do trabalho escravo, que já vinha em crise
desde a "Pex de Augusto". o resultado foi o reforço do processo de
ruralização da Hispânia, aliás, tendência comum a todo o Ocidente.
28
BIBlOS.
Rio Grande,
13: 19.31,2001.
À medida que a economia de exportação demonstrava sinais de
cansaço, a instituição da escravidão sofreu um progressivo enfraquecimento,
que, em contrapartida, redundou num aumento substancial do colonato.
Alguns autores enfatizam o papel do cristianismo no declínio da
escravidão na Antigüidade,
o que costuma ser rebatido por outros
pesquisadores do tema (Finley, 1984, Ohlweiler, 1990).
Na Espanha,
existem
indícios sobre a presença de "Igrejas"
(comunidades cristãs) desde as primeiras décadas que se seguiram à morte
de Jesus Cristo, porém a transformação
do credo cristão em religião
dominante só ocorreu a partir do século IV d.e. É nesse momento que a
ideologia cristã e a ação dos religiosos deve ter favorecido a transição do
sistema de escravidão para o colonato.
No entanto, devemos limitar a influência do cristianismo na crise da
escravidão no mundo antigo. Sabemos que o cristianismo difundido na
península já estava bastante depurado de seu caráter primitivo e
revolucionárío".
Pelo contrário, o cristianismo que vigorou como religião
dominante a partir do século IV d.e. na Península Ibérica estava perfeitamente
ajustado aos interesses das classes proprietárias e do Estado Romano.
No que se refere à questão da escravidão, as autoridades religiosas
limitavam-se a reconhecer
a humanidade dos cativos, seu direito à
salvação, e censurar os atos de violência por parte dos senhores. A Igreja
postulava um relacionamento
do tipo moral entre o senhor e o escravo,
cabendo ao primeiro comportar-se comedidamente em relação ao cativo e
ao segundo aceitar a sua condição de propriedade. Portanto, a Igreja, na
medida em que sistematizava
as relações
senhor-cativo,
acabava
justificando e endossando a instituição da escravidão.
A partir de meados do século 111 d.e., a classe dos terra tenentes
passou a constituir-se basicamente por cristãos, enquanto os camponeses
permaneceram na sua maioria paqãos". Ao mesmo tempo que os grupos
dominantes selavam sua aliança com a Igreja, os pobres livres e escravos
evoluíam para uma maior homogeneidade.
Ao longo do período aberto com as invasões dos francos e alamanos
Ocorreu uma aproximação dos pobres livres com os escravos. Melhorou a
situação do escravo com o fim de antigas instituições, como o direito de vida
e morte sobre os cativos e o açoite; de outro lado, degradou-se em vários
aspectos a situação do camponês livre, que se viu forçado, em troca de
segurança, a sujeitar-se ao jugo de um senhor.
A explicação destas mudanças deve-se a fatores mais de ordem
material do que espiritual. Na verdade a falência da cidade e da pequena
2
A existência de alguns grupos minoritários heréticos, como os priscilianistas,
que defendiam
uma vida comunitária, sem hierarquias e desigualdades sociais, não altera substancialmente
o
~uadro apresentado.
A palavra pagão tem sua origem etimológica
campo, isto é do pagus.
no vocábulo,
paganus
referente
ao habitante
do
BIBLOS, Rio Grande, 13: 19-31,2001.
29
propriedade assegurou aos grandes proprietários uma oferta de mão-deobra barata e abundante. Um contingente significativo de homens pobres
livres do campo e da cidade passaram a depender dos grandes
proprietários. Este contingente heterogêneo (artesãos, pequenos proprietários,
arrendatários, homens pobres livres e libertos) passou a constituir uma
classe camponesa sujeita a um alto grau de exploração.
A falência do comércio de exportação e a existência de uma classe
produtora circunscrita aos domínios do latifúndio inviabilizaram o tráfico de
escravos. Os cativos tornaram-se mais raros e caros, tanto devido às
distâncias
das regiões "abastecedoras",
como
às dificuldades de
abastecimento criadas pelo caos social.
A partir do século IV d.e., a Península Ibérica já não comporta a
estrutura social herdada do Alto Império Romano; trata-se de uma
sociedade composta basicamente por duas classes, os terratenientes e os
campesinos. Esta nova configuração, ao contrário da antiga estrutura social,
atinge um caráter geral, abarcando todo o território ibérico. Segundo um
pesquisador do tema, "Esta nueva estructura económica y social rígida
cubría Ia totalidad de Ia Península Ibérica, como se desprende de Ia
aparición de lujosas villae rústicas en todas Ias regiones, e incluso de su
abundancia en zonas donde Ia vida urbana no había florecido antes"
(Blasquez, 1975, p. 17).
Esta estrutura social marcada pela polarização
entre ricos
proprietários e pobres campesinos revelou-se explosiva com as invasões
bárbaras do século V d.e. Nesse momento, conjuntamente com as invasões
bárbaras, estouraram levantes de escravos e camponeses em toda a
Península Ibérica. As invasões bárbaras, potencializadas pelas revoltas
bagaudas, tornaram impossível para as forças romanas o controle do território
peninsular. A amplitude dos conflitos e a fraqueza do Estado Romano
mergulharam a sociedade hispano-romana num período de anarquia social.
Os visigodos emergiram como vencedores de um processo de
enfrentamento que durou mais de um século, e envolveu hispânicos,
francos, alanos, suevos, vândalos e o próprio Império Romano do Oriente.
No entanto, o Estado fundado por Leovigildo em 576, a monarquia de
Toledo, não logrou alterar as bases sociais e econômicas legadas pelo
Baixo Império Romano; antes disso, radicalizou as forças centrífugas
herdadas do período de crise e desagregação da sociedade hispanoromana. Não é à toa que os campesinos e judeus, classe e grupo mais
explorados pela aristocracia hispano-goda, colaboraram com os árabes no
momento em que estes investiram contra o desmantelado Reino Visigodo.
A Monarquia Visigoda não foi capaz de opor uma resistência
significativa à investida árabe. Em 711, diante de um poderoso conquistador
alimentado pelo desejo de riquezas e convencido da proteção divina, a
Espanha simplesmente capitulou.
':ln
BIBlOS.
Rio Grande.
13: 19.31.2001.
BIBLIOGRAFIA
ANDERSON,
Perry. O modo de produção escravista.
produção na antigüidade. São Paulo: Global, 1984.
In: PINKY,
Jaime
(org.).
Modos
de
BLASQUEZ, José Maria. Ciclos y temas de Ia historia de Espana. Madrid: Istmo, 1975. t. 1-2:
romanización.
ta
BLASQUEZ,
CRAWFORD,
J. M.; TOVAR, A. Historia de Ia Hispania
Michael.
FINLEY, M. Amos e escravos.
São Paulo: Global, 1984.
In: PINSKY,
Jaime
OHLWEILER,
Aberto, 1990.
e a filosofia
no mundo
Otto. A religião
TARRADELL, Miguel. Espana antigua.
social e económica. Barcelona, 1977.
ROSTOVTZEFF,
BIBLas.
Rio Grande.
Romana. Madrid: Alianza,
1975.
La república romana. Madrid, Taurus, 1988.
(org.). Modos de produção
greco-romano.
na antigüidade.
Porto' Alegre:
Mercado
In: VIVES, Vicens (org.). Historia de Espana y América:
M. História de Roma. Rio de Janeiro: Zahar, 1961.
13: 19-31.2001.
31
Download