Construções gerundiais em função de particípio presente Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira Universidade Católica do Salvador ABSTRACT: This paper based upon a comparative study of the latine and portuguese language observes the use of gerunds constructions in some contexts in which the present participle have to be used in order to see if this change represents a simple grammaticalization process. PALAVRAS-CHAVE: gerúndio; particípio presente; gramaticalização. Introdução As línguas românicas representam uma etapa qualitativamente nova do latim. As mudanças não se produziram bruscamente, mas aos poucos e se propagaram desde a fala individual até à coletiva. Não é apenas o léxico que muda, mudam, também, as estruturas gramaticais, a morfologia, a sintaxe. O sistema verbal latino, por exemplo, que já representava um estado simplificado do indo-europeu, continuou simplificando-se na língua falada com as substituições de várias formas sintéticas do latim padrão por analíticas, e sofreu, ainda, profundas reestruturações até chegar às línguas românicas atuais, especialmente a portuguesa. As formas verbo-nominais sofreram uma redução drástica: muitas se perderam por completo, outras se cristalizaram em adjetivos e substantivos ou foram reanalisadas em outras partes da gramática. Das formas adjetivas nos restam dois particípios: o passado e o presente; das substantivas permanecem o infinitivo presente ativo, e o gerúndio, esse último, mesmo assim, reduzido à forma ablativa que, aliás, já suplantava as outras desde o período arcaico do latim. Das formas sobreviventes na língua portuguesa parece ser o particípio presente a que mais tem incorporado mudanças; entre elas destaca-se, sem dúvida, a sua substituição pelo gerúndio, não se trata da evolução da forma de particípio para a forma de gerúndio, mas na total substituição de uma forma pela outra. Desse modo, a partir da análise de trechos de sermões de São Bernardo, escritos no século XII, em latim tardio, e de sua tradução para o português contemporâneo feita por frei Ary Pintarelli em 1999 e, ainda de versos da Carmina Drummondiana, poemas de Carlos Drummond de Andrade traduzidos para o latim, pretendemos observar, neste trabalho, construções gerundiais que substituem o particípio presente latino, objetivando discutir até que ponto essa mudança constitui-se num processo simples de gramaticalização. 1. Aspectos morfossintáticos O latim não possuía flexão do infinitivo, em seu lugar havia um conjunto de formas nominais cujo emprego se completava e se substituía, conforme o caso. Uma dessas formas era o gerúndio, forma nominal substantiva de aspecto inconcluso pertencente ao sistema do Infectum, o gerúndio latino era usado unicamente no tempo presente, voz ativa e seguia o modelo da segunda declinação nominal. O nome Gerundium foi formado a partir de Gerere, por analogia com Participium e indica o que se está susceptível a fazer. 571 É, por sua própria natureza, invariável quanto ao número; além disso, por seu caráter impessoal não concorda com o sujeito. O gerúndio latino representa o genitivo, o dativo e o ablativo preposicional, assim como o acusativo preposicional. Desses quatro casos sobrevive no latim vulgar e, conseqüentemente nas línguas românicas, apenas o ablativo em –ndo. Segundo Nunes (1951), forma-se do particípio futuro passivo, também chamado gerundivo, o qual se formara pela adjunção ao tema do presente do sufixo –ndo, tendo, portanto, -ndum para o acusativo; -ndi para o genitivo e –ndo para o dativo e ablativo. Na passagem para a língua portuguesa, do gerúndio perdeu-se o acusativo, o dativo e o genitivo os quais, desde o período arcaico latino, já eram menos usados que o ablativo. Aliás, Huber (1986) afirma que o ablativo do gerúndio é o caso que se encontra com mais freqüência no latim arcaico, acreditandose que tenha sido o caso original do qual se desenvolveram os demais. Na língua portuguesa, os demais casos são substituídos pelo infinitivo preposicionado: Vivimus postea obliviscimur Unus amor redit ad rixandum Ad condonandum A gente vive, depois esquece Só o amor volta para brigar Para perdoar. (Belkior e Andrade) O gerúndio tem como função básica exprimir o complemento de meio, de instrumento e de modo, que se mantém nas línguas românicas. Quanto ao particípio presente é uma forma nominal adjetiva, também formada com o tema do Infectum, ao qual se acrescentava –ns, -ntis, era inteiramente declinável como um adjetivo de segunda classe. O particípio presente, na língua portuguesa, provém do caso acusativo, como nos nomes; suas terminações evoluíram para –ante; -ente; -inte. A terminação -iente é preservada, apenas, em formas eruditas. Oliveira (2000), citando Lausberg (1981), observa que o particípio presente já vinha sendo substituído, na última fase da língua latina, pelo ablativus modi, e alguns ainda se mantiveram por via popular como adjetivos da terceira declinação. O gerúndio do ablativus modi designa uma ação secundária operada pelo sujeito, simultaneamente com a ação principal. Como se relaciona igualmente com o sujeito e o verbo principal, o gerúndio, do ponto de vista de sua natureza sintático-semântica, corresponde Pesquisas em Lingüística e Literatura: Descrição, Aplicação, Ensino - ISBN: 85-906478-0-3 a um adjetivo predicativo-comitativo do sujeito: em Sócrates subridendo venenum hausit (Sócrates, sorrindo, bebeu o veneno), o gerúndio corresponde ao adjetivo em Sócrates laetus venenum hausit (Sócrates, alegre, bebeu o veneno). Assim, o gerúndio pode assumir a função predicativa-comitativa de um particípio presente. Deste modo, o gerúndio expande as suas possibilidades de relacionamento com o substantivo por analogia com o particípio presente. Assim, do emprego predicativo-comitativo passa freqüentemente para uma função atributiva em relação ao sujeito e também ao objeto ou outras partes nominais da oração. A função com valor atributivo pertence legitimamente ao particípio presente de acordo com o uso latino e, mesmo quando usado com valor adjetivo, prevaleceu especialmente a intenção de reproduzir o valor latino do particípio, afirma Maurer Jr. (1953). 2. Variação: particípio/gerúndio Ernout e Thomas (1953) remontam ao período imperial a variação particípio/ gerúndio, afirmando que, no período clássico havia uma distinção nítida entre o gerúndio e o particípio presente, porém, a partir do período imperial era comum encontrarem-se exemplos em que se usava um pelo outro, ou um ao lado do outro com o mesmo valor sintático, sendo muito desenvolvido em Sallustio. Este fato justifica o caráter gradual da mudança lingüística. · Bocchus seu reputando (= reputans) [...] seu amnonitus [...] delegit. · [...] in edita (incendium) assurgens et rursus inferiora populando (=populans) anteiit remedia [...]. Essa construção segue-se no latim da decadência: · [...] ad cellulam cum omni populo canendo revertitur (=canens). Campos (1980), analisando o corpus de sua pesquisa, afirma, ainda: Os textos escritos, de autores dos períodos imperial e tardio mostram-nos que era possível usar-se o gerúndio com as funções e valores do particípio presente, o que provavelmente indica que esse emprego era comum na língua falada pelo povo desde uma época bem mais antiga. Também, na evolução para as línguas românicas, a forma do ablativo do gerúndio invade a esfera reservada ao particípio presente. Menendez Pidal (1956) afirma ter o gerúndio substituído o particípio presente nas glosas Silenses e Emilianenses, mais antigos documentos ibero-romance. No francês o que existe é a coalescência de gerúndio e particípio presente. Na língua portuguesa, em muitos casos, o gerúndio substitui o particípio latino. Pereira (1942) observa, até, que, dada à identidade de formas e semelhanças nas funções, duvidam se levantam sobre quando devemos encarar a forma gerundial em –ndo como particípio presente, e assim dele distinguir o gerúndio em português. Câmara Jr. (1979) chega a afirmar que a tradição gramatical oscilou entre a denominação de particípio e gerúndio, para a forma em –ndo; Dias (1970) registra ambas as formas como particípio: particípio em –nte e particípio em –ndo A confusão estabelecida, em português entre o gerúndio e o particípio presente latinos levou os modernos escritores a empregar, freqüentemente, o gerúndio pelo particípio presente, em frases como “Recebi uma caixa contendo doces gostosos”. Segundo Bueno (1967), os gramáticos estão divididos neste particular, achando os mais antigos que tal emprego constitui galicismo, e, portanto, erro da sintaxe portuguesa. Há, ainda os casos em que a gramática tradicional determina o uso do particípio e a prática registra o uso do gerúndio: “bolsa transbordando de dinheiro” (por transbordante); “cor tirando a vermelho” (por tirante). Na nossa dissertação de mestrado (Oliveira, 2000), na qual comparamos as formas participiais do latim tardio, constantes no corpus: Sancti Bernardi Sermones ad laudem Virginis Matris, com as correspondentes na tradução para o português contemporâneo de Frei Ary Pintarelli, coletamos noventa e quatro ocorrências de gerúndios substituindo o particípio presente latino. É importante ressaltar que as formas de particípio traduzidas por gerúndio são, em geral, nominativas, ou seja, aquelas que exercem função predicativa ou de adjunto adnominal, reforçando a idéia do enfraquecimento do valor verbal do particípio; isto pode ser explicado porque o gerúndio do ablativus-modi, como já dissemos, designa uma ação secundária operada pelo sujeito simultaneamente com a ação principal; corresponde a um adjetivo predicativo-comitativo do sujeito, assumindo, portanto, a função do particípio no nominativo: · [...] quod vel mihi de somno fraudans in noctibus [..] [...] talvez até roubando-o ao sono da noite. · [...] Maria vero matrem se agnoscens, [...] Maria, porém, reconhecendo-se mãe, [...] · Ipsam sequens non devias, ipsam rogans desperas, ipsam cogitans non erras. Seguindo-a não te desvias; invocando-a não desesperas; pensando nela não erras. Também Belchior (1982) ao verter para o latim poemas de Carlos Drummond de Andrade, converte em particípio presente as formas que, na língua portuguesa, aparecem em gerúndio: · Gastei uma hora pensando um verso Condens versum hora trivi. · Olha a lua nascendo Atrás daquela porta Respice lunam exsurgentem Ultra ianuam illam. · Dorme que o capeta Está perguntando Quedê a mulher acordada Dormi quoniam demo Sciscitatur quaerens Ubi mulier vigil. (Belkior e Andrade) 3. Gramaticalização: particípio/gerúndio Sabemos que a gramaticalização se define basicamente como “a atribuição de um caráter gramatical a uma palavra anteriormente autônoma” e está fundamentada em três aspectos gerais que a caracterizam: o caráter gradual da mudança, a reanálise e a mudança semântica; tudo isso emoldurado pelo princípio da unidirecionalidade, apontado como propriedade intrínseca desse processo. Supõe, ainda, a existência de três classes de palavras 572 indicando que há entre elas uma transição gradual ou recategorização. A gramaticalização é, pois, o estudo de mudanças lingüísticas situadas no continuum que se estabelece entre unidades independentes, localizadas em construções menos ligadas, e unidades dependentes, como clíticos, partículas, preposições. Oliveira (2000) sugere que a mudança particípio/gerúndio é um fato singular nesse processo. Como o particípio presente é uma forma híbrida, de limites imprecisos, vai, aos poucos, enfraquecendo a sua característica verbal e enfatizando a de adjetivo. Ao ser nominalizado o particípio presente, é o gerúndio que detém mais forte o valor verbal e vai se introduzindo nos sintagmas em cujo padrão sintático-semântico caberia o particípio. Quanto mais o particípio presente assume a sua característica nominal, mais o gerúndio vai adentrando o seu espaço. Afirmar que a mudança particípio/gerúndio constituise um processo simples de gramaticalização perpassa pela confirmação de duas assertivas fundamentais: a primeira diz respeito ao enfraquecimento do valor verbal do particípio presente propiciando a sua substituição pelo gerúndio; a segunda postula ser o gerúndio mais gramatical do que o particípio. A primeira assertiva já está largamente comprovada pelos exemplos que remontam ao latim imperial e continuam presentes na língua portuguesa. A segunda exige uma série de reflexões que inclui o trânsito entre as classes de palavras; se considerarmos o particípio e o gerúndio como formas verbais, portanto pertencente à mesma classe de palavras, a substituição de um pelo outro poderia ser considerado lexicalização; por outro lado, se considerarmos o valor adverbial do gerúndio como forma ablativa, teríamos uma recategorização que nos permite admitir ser o gerúndio mais gramatical que o particípio. Destarte, seria necessário verificar cuidadosamente as estruturas oracionais, antes de concluir pela mudança/reanálise do padrão sintáticosemântico. 4. Considerações finais O desmoronamento da fronteira que separava, no particípio presente, as funções verbais e nominais, permite a invasão do gerúndio na esfera participial; este fato que, comprovadamente, se inicia no período imperial quando era usado um pelo outro ou um ao lado do outro com o mesmo valor sintático, justifica o caráter gradual da mudança e caracteriza processo de gramaticalização. 573 Foi, certamente, a impressão de que o gerúndio românico era o equivalente normal do particípio presente latino que orientou, em boa parte, o desenvolvimento das diversas aplicações sintáticas que o gerúndio recebeu nas línguas modernas da família neolatina, especificamente o português. Muitas pistas, vislumbradas nessa pesquisa, permitem admitir a mudança particípio/gerúndio como um processo especial de gramaticalização, porém, nos parece, no mínimo, precipitado confirmar categoricamente esta possibilidade que carece ainda de estudos mais apurados da estrutura sintático-semântica em que tal mudança ocorre. Este estudo já está iniciado na elaboração da nossa tese de doutorado, previsto para ser concluído no final de 2003, na Universidade Federal da Bahia e que, certamente, responderá com mais precisão, com base na análise do corpus. Referências bibliográficas BELKIOR, Silva; ANDRADE, Carlos Drummond de. Carmina Drummondiana. Rio de Janeiro: Salamandra, 1982. BUENO, Silveira. A formação histórica da língua portuguesa. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1967. CÂMARA JR., Mattoso. História e estrutura da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Padrão, 1979. CAMPOS, Odette A. de Souza. O gerúndio no português. Rio de Janeiro: Presença. INL, 1980. 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