Ciência O cérebro é o espírito Nossa cultura fala do cérebro

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Ciência
O cérebro é o espírito
Nossa cultura fala do cérebro como se fosse um computador. Ele é a sede da razão, e a arte é
reservada ao espírito. Mas
agora a neurociência estuda a música e outras atividades
que definem a essência humana
Carlos Graieb
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O cérebro nunca recebeu o devido crédito pelas criações
Nesta reportagem
artísticas. Aplicado à pintura ou à música, o adjetivo
• Quadro: O fascínio do
"cerebral" tem inclusive conotações negativas. Implica frieza cérebro através das idades
ou cálculo – como se o mesmo órgão não fosse responsável
• Quadro: A neuroestética
por processar as emoções. O cérebro é engrenagem,
Nesta edição
computador, razão. Mas não arte. Há também quem julgue
• A grande orquestra do
que tratar as esculturas de Michelangelo ou as sinfonias de
cérebro
Beethoven como produtos de um emaranhado de células
• Enigmas da linguagem
nervosas tira delas a transcendência. Devido à antiquíssima
divisão da experiência humana entre o físico e o imaterial, foi e continua sendo mais comum
associar a arte a abstrações como as musas e o espírito do que ao trabalho de nossa massa
encefálica. Em boa parte, contudo, essas idéias se deviam à falta de instrumentos adequados
para estudar as artes do ponto de vista da neurologia. Isso mudou. Técnicas como a
ressonância magnética funcional, que permitem captar imagens do cérebro em
funcionamento, associadas a pesquisas no campo da neuroquímica e, de modo menos
divulgado, a refinados modelos de computador de nossas redes neuronais, puseram em
marcha uma revolução. A nova ciência do cérebro fez explodir o número de estudos sobre
essas atividades tão intimamente ligadas à nossa essência humana: a produção e a fruição das
artes. "Está surgindo uma nova disciplina", afirma o inglês Semir Zeki, uma das maiores
autoridades mundiais na neurologia da visão. "Podemos chamá-la de neuroestética."
A neuroestética é uma via de mão dupla. Ajuda a entender melhor o cérebro e as artes.
Cientistas que usam a música ou a linguagem como ferramentas para explorar nossa vida
neural têm colaborado para derrubar velhos dogmas e refazer a cartografia do cérebro. O
cérebro humano tem 100 bilhões de células nervosas e mais de cinqüenta substâncias
neurotransmissoras. Estima-se que o potencial de conexões entre os neurônios chegue a 500
trilhões. Qualquer comportamento complexo depende de diversos grupos de células ligados
por circuitos. A metáfora mais freqüente nos novos livros de neurologia é a das cascatas
neurais – grandes seqüências de ativação de áreas do cérebro, às vezes bastante afastadas
entre si. Uma das teorias destroçadas pelos achados recentes é o "localizacionismo". Ele
remonta ao cirurgião francês Paul Broca, do século XIX, e postula que as principais
habilidades humanas se devem única e exclusivamente a uma região do cérebro. Sim, é
verdade que o órgão tem partes especializadas. Broca identificou uma delas, relacionada à
fala. Como observa o biólogo americano Philip Lieberman, contudo, hoje é certo que a
linguagem humana "pode ser rastreada até as respostas motoras dos répteis". Dito de outra
maneira, ela envolve tanto partes primitivas do cérebro – aquelas que compartilhamos com
cobras e lagartos – quanto outras que apareceram muito mais tarde na escala da evolução,
como o lobo frontal esquerdo, que aloja a área de Broca. Especialização e coordenação –
essa última em níveis às vezes insuspeitados – são dois princípios que governam o cérebro.
Mais recente ainda é a descoberta da incrível plasticidade do cérebro. Não faz muito tempo,
pensava-se que pela idade de 3 anos o cérebro tinha sua estrutura rigidamente estabelecida.
Hoje, está comprovado que a organização que o tecido cerebral assume no começo da vida
não é definitiva. Provas assombrosas de que o cérebro é capaz de encontrar rotas alternativas
para atingir a mesma finalidade estão nas hemisferectomias – operações que extirpam um
dos hemisférios do cérebro, atingido por um sério dano. Um dos casos mais famosos é o do
menino inglês Alex. Ele tinha uma anomalia no lado esquerdo, onde se concentram as
estruturas responsáveis pela fala, e aos 8 anos de idade era incapaz de se comunicar. Dez
meses depois que o hemisfério malformado foi retirado, Alex começou a se expressar com
sentenças complexas, num exemplo dramático de como a massa encefálica consegue se
rearranjar. Mas o fato é que pequenas metamorfoses neurológicas ocorrem todos os dias de
nossa vida: a plasticidade é também o mecanismo pelo qual o cérebro responde ao mundo
externo. Assim, áreas mais requisitadas por algum tipo de aprendizado, como o estudo
musical, podem transformar-se em verdadeiros latifúndios neuronais. As conseqüências de
constatar a maleabilidade do cérebro são profundas. Com isso, a velha disputa sobre quem
molda o comportamento humano, a natureza ou a cultura, pode estar fadada a resolver-se
num empate. Embora condicione de muitas maneiras a nossa experiência do mundo, o
cérebro também possui uma capacidade espantosa de reconfigurar-se de acordo com a
informação que recebe de fora.
Enquanto ajudam a compor uma nova "teoria geral do cérebro", cientistas interessados em
arte fazem achados num terreno anteriormente percorrido apenas por filósofos e críticos
culturais. Por exemplo: o que é a beleza? Numa experiência realizada no University College
de Londres, Semir Zeki e sua equipe pediram a um grupo de pessoas que classificassem 300
pinturas como belas, feias ou neutras, numa escala de 1 a 10. Depois, as mesmas pinturas
lhes foram reapresentadas, enquanto seus cérebros eram monitorados numa máquina de
ressonância magnética. Uma gama diversa de estruturas cerebrais reagiu durante a
experiência. Concluiu-se, no entanto, que o córtex orbito frontal medial e o córtex motor
eram as áreas de fato ligadas ao julgamento do belo. O córtex orbito frontal medial,
relacionado ao prazer e às recompensas, apresentou atividade mais intensa diante de quadros
belos. A atividade era maior para um quadro que recebera nota 9 do que para um quadro nota
7. O oposto aconteceu com o córtex motor: maior atividade diante da feiúra. Como essa
estrutura controla os movimentos, pode-se supor que a visão de algo feio deixa o corpo
pronto a reagir, se necessário: se alguém diz ter vontade de "fugir" diante, digamos, de uma
obra do artista brasileiro Tunga, talvez não esteja usando apenas uma figura de linguagem.
"Tempos atrás, se você dissesse estar maravilhado com uma obra de arte, eu não teria uma
maneira objetiva de verificar isso", diz Zeki. "Agora, as máquinas de neuroimagem nos
permitem avaliar estados subjetivos. Melhor, permitem quantificá-los, pois a atividade numa
região do cérebro tende a ser proporcional à intensidade declarada da experiência. Filósofos
especulam sobre a beleza. Eu diria que ela é um aumento de fluxo sanguíneo na base do lobo
frontal."
Semir Zeki escreveu um livro em parceria com o pintor francês Balthus e recita de memória
trechos de poetas como T.S. Eliot. Ele diz que aprendeu com os artistas – "neurologistas
intuitivos", que exploram e desvendam regras da percepção. Ele gosta de citar uma frase de
Picasso: "Seria muito interessante preservar fotograficamente as metamorfoses de uma
pintura. Talvez assim se pudesse descobrir o caminho percorrido pelo cérebro para
materializar um sonho". Segundo Zeki, é isso que a neurociência começa a fazer.
Desvendando um cérebro que calcula, mas também cria. E é tão sutil quanto as musas ou o
espírito.
Arte para quê?
Quem pensa nas artes como um produto do cérebro logo chega a outras questões. Por que o
órgão mais complexo do corpo nos capacita a criar pinturas e poemas? Qual a função dessas
atividades? Será que despender energia inventando batidas de tambor e desenhos para a
caverna ajudou nossos ancestrais a sobreviver? Essas perguntas remetem ao naturalista
inglês Charles Darwin e sua teoria da evolução. Darwin refletiu sobre uma arte em especial –
a música – e concluiu que ela teve papel evolutivo. Como a cauda nos pavões, ela nos
ajudava a atrair o sexo oposto. Era uma ferramenta a mais do processo que Darwin chamou
de "seleção sexual". Essa é uma de suas teses mais controvertidas. Para os cientistas que
discordam, a arte é apenas um subproduto do aparato sensorial. O fato de alguns estímulos
nos darem prazer fez com que inventássemos formas de ter acesso a eles repetidamente. Para
o psicólogo canadense Steven Pinker, arte é um "doce mental" – dispensável mas saborosa.
Ainda assim, Darwin pode estar certo? O fato de astros do rock, mesmo com as rugas de
Mick Jagger, terem muito mais parceiras do que um homem comum seria uma confirmação
da tese do papel da música na seleção sexual. Seria mesmo? Em parte sim, mas Jagger as
atrai pela música, pela fama, pela riqueza ou pelo poder hipnótico sobre as massas? O debate
continua. Só se sabe com certeza que, entre todos os grupos de hominídeos que disputavam
recursos escassos na Idade do Gelo, o mais bem-sucedido foi o que encontrou tempo para
decorar com pinturas as paredes das cavernas.
http://veja.abril.com.br/260907/p_098.shtml
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