Rocha Pombo 1500-1531 – DESCOBRIMENTO E PRIMEIRAS INCURSÕES O mundo do Século 15 O Século 15 é um desses grandes dias da História, em que a humanidade como que se sente atacada da vertigem do desconhecido. O mundo era, então, pouco maior que a Europa. Na costa africana do Norte, havia uns restos de obra colonial dos fenícios e dos gregos. Para o Oriente, os limites do mundo não se estendiam além da Ásia Menor e do Egito. A humanidade tinha ainda, por teatro, o Mediterrâneo fechado quase entre Gibraltar e Suez. Os próprios romanos, como se sabe, além do Suez, conheceram apenas os confins da Síria. Nem o imenso litoral da África, nem a América, tinham entrado na vida histórica do planeta. Da própria Europa, havia uma grande porção ainda envolta em mistério, como a Escandinávia e a Rússia. É dentro desses estreitos limites que a humanidade se debate por longos séculos. Toda Idade Média tinha sido uma série contínua de desordens em todas as esferas da ação humana. - 008 - Ainda fatigada da luta com os Bárbaros, a sociedade ocidental se alarma com as invasões muçulmanas. Por fortuna da cristandade, o heroísmo de Carlos Martel circunscreve na Ibéria as vitórias do Corão; e, mais tarde, o vigor renascente dos sérvios impede o avanço dos turcos sobre o ocidente europeu. Na ordem política, o regime feudal sucede à dissolução do Império Romano. Sob o feudalismo, começam logo a fazer-se, lentamente, as novas integrações políticas: formam-se, afinal, a França, a Inglaterra, a Espanha. Mas, se na esfera política, a realeza trazia a ordem, fora dela a anarquia geral era cada vez mais tremenda. O espírito humano continuava a agitar-se sem oriente, como um viajante que se tivesse perdido num deserto. Os povos, inquietos e aflitos, dir-se-ia que se sentem apertados entre os confins daquele mundo. Em todas as questões, o espírito daquela época se mostra desvairado e entregue a excessos de fanatismo. - 009 Principalmente na ordem econômica, é espantosa a angústia de todas as classes. Não há indústria, nem comércio; não há fábricas, nem oficinas; não se cultiva a terra, ou pelo menos a produção agrícola não corresponde à massa das populações. Os braços validos, em regra, andam fazendo a guerra, servindo príncipes contra príncipes. Os servos de gleba que escapam ao tributo do sangue são insuficientes para prover a toda a economia geral. Examinando o estado da Europa no Século 15, temos de convencer-nos de que os males que afligem aquela sociedade têm raízes mais profundas na consciência daqueles tempos. Em filosofia, a indisciplina geral, a carência de uma vasta síntese, de um corpo de doutrinas e de um método capazes de ordenarem a mentalidade do momento, determinavam o estado de dúvida que caracterizou aquele período histórico. - 010 No domínio das consciências, os erros do papado foram ao extremo de entregar à discussão os dogmas que a política da Igreja havia imposto; e não demorou que a Reforma, como verdadeira insurreição de almas, conflagrasse toda a Europa. Doloroso século, aquele, em que os horizontes pareciam fechados para todas as aflições humanas. E, no entanto, é de uma situação tão excepcional que vai sair, imprevistamente, uma nova era de fé no destino e na coragem para a vida. Como se, de um instante para outro, se sentissem renovadas, despertam as energias das grandes raças que se mesclam, das nacionalidades que se constituem; e crer-se-ia que a terra tinha, outra vez, a agitar-se no seu seio, aquele espírito que no Gênesis vivificava os abismos. Nunca se poderia encontrar, em linguagem humana, um termo que exprimisse tão precisamente o que vai passar de grande na História moderna como o termo Renascimento, para indicar os alvoroços com que a alma do século XV se sentiu, como de súbito, revigorada de esperanças para continuar afirmando sua indefinida evolução no planeta. A epopeia das navegações. Não eram só os mares que atraiam o espírito daquela humanidade, como que atacada agora de uma espécie de histeria. Novas terras, novos mundos, não eram, naquele momento, menos que um símbolo de fé que se gerava naquelas mesmas almas que vinham esmorecendo. O novo mundo procurado, dir-se-ia que andava nos ares, pressentido pelo instinto daquelas gerações, e enchendo o tempo. Era a revolução que se ia fazer em toda a existência humana: na esfera econômica e na esfera política; no domínio intelectual, como no próprio sentimento religioso. Na ordem política, era a realeza moderna golpeando de morte a onipotência do senhor feudal. Na ordem econômica, era a riqueza geral pela expansão do comércio. Na esfera das consciências, era o livre exame, a controvérsia, a discussão que ilumina para pacificar. No domínio da intelectualidade, era a ciência emancipada das escolas, e popularizando-se. - 011 Novo mundo era aquele alvoroço geral que vinha produzir os grandes inventos: a imprensa, a pólvora, a mecânica industrial com seus próprios prodígios. E aquela revivescência dos espíritos a operar-se pelo ressurgimento de tudo que o passado tinha de excelente - eis aí o novo mundo que estava para vir. De todos os aspectos daquela grande época, no entanto, incontestável é que o mais grandioso é o movimento que se fez para os mares da terra, e que os lances do novo heroísmo tem proporções de uma epopeia gigantesca. Tem realmente qualquer coisa de sobre-humano aquele desassombro com que, das praias ocidentais da Europa, os novos heróis partiam, para fazer no domínio dos mares o que os Hércules e Teseus haviam feito nas terras. Primeiro, descobrem os Açores, a Madeira, o Cabo Verde, e perlongam toda a costa africana do Oeste. Fundam feitorias nas paragens visitadas. Repovoam as Canárias. - 012 Chegam ao extremo sul da África; dobram o cabo das Tormentas [depois, cabo da Boa Esperança] (1486); sobem ao longo das costas orientais e vão até a Índia lendária suspirada (1498). Investem, decisivamente, o Atlântico e descobrem a América. Descem até o extremo do novo continente; passam para o Pacífico, e revelam infinidade de ilhas da Oceania. Em seguida, expedições em tumulto vão batendo os dois oceanos. A terra parecia ampliar-se indefinidamente à vista dos navegantes! A Europa vai, de surpresa em surpresa, suspensa de pasmo e maravilha. O homem não sabia que o mundo era tão grande! Durante os Séculos 15 e 16, centenas de naus andavam devassando, em todas as direções, os mares da terra. Era Portugal, era a Espanha; logo, era a Holanda, a França, a Inglaterra, todas as nações marítimas da Europa, que se lançavam à disputa para todos os rumos, ansiosas de descobrir e de conquistar. - 013 Nesse vasto movimento, os portugueses tiveram a vanguarda. O grande Infante criara para eles aquela causa, de que a nação ia viver os seus dias de mais esplendor. É por isso o poema de Camões, a obra do gênio que, com mais eloquência, assinala a entrada do mundo ocidental na História dos tempos modernos. Lendas e tradições sobre a existência de novas terras Entre as ideias que agitavam o espírito daquela época, estava a da existência de um vasto continente para os confins ocidentais do Atlântico. Datam de tempos muito remotos essas tradições. Segundo Platão (nos seus livros Timeu e Critias) alguns sacerdotes do Egito fizeram a Sólon a narração de sucessos ocorridos uns 9.000 anos antes, numa imensa ilha denominada Atlântida, depois desaparecida na profundeza dos mares. - 014 Aristóteles assegurava que a Índia era tão extensa que, navegando da Europa, rumo do ocidente, se chegaria àquele país oriental. Também Sêneca e Virgílio aludem muito claro a existência de terras desconhecidas no Atlântico. No Século 15, com o impulso que se dava à navegação, essas tradições avultaram. Além das tradições, e de pressentimentos mais ou menos vagos, conjecturas mais bem fundadas e indícios mais precisos iam pressionando o espírito dos mais ousados aventureiros dos mares. Dizia-se, por exemplo, que um parente de Colombo, em viagem para as Canárias, tendo-se afastado um pouco para o ocidente, encontrara a flutuar sobre as águas, impelido por vento do oeste, um pedaço de madeira trabalhado por mãos humanas. Os habitantes dos Açores tinham também recolhido, uma vez, nas costas das ilhas mais ocidentais, uns troncos de árvores de pouco desarraigadas e ainda verdes, indicando, pela direção de onde eram trazidas pelos ventos, que tinham vindo de terras do ocidente. Um indício ainda mais positivo foi o aparecimento, a praia de uma daquelas ilhas, dos cadáveres de dois homens, cuja cor e cujos traços físicos não se pareciam nem com os europeus, nem com os africanos. A ser autêntica essa notícia, não podia restar mais dúvida sobre a existência de terras para o ocidente dos Açores. - 015 Uma das lendas correntes naqueles tempos, e que alguns autores dão o caráter de absoluta veracidade, é a seguinte: quando os portugueses chegaram pela primeira vez ao arquipélago dos Açores ou ao das Canárias, encontraram numa das ilhas uma estátua colossal de bronze ou granito, com os braços estendidos na direção do poente, como se quisesse indicar aos navegantes o novo caminho do mundo. Refere-se, mesmo, que uma expedição chegou a ser enviada àquela ilha, onde encontrou apenas fragmentos da estátua, derrocada por um terremoto. Outras muitas histórias e notícias corriam, principalmente em toda a Europa marítima, e multiplicavam-se planos em torno do grande pensamento que dominava a alma daqueles tempos. Dir-se-ia que todo o mundo se alvoroça, de olhos voltados para o oceano, e numa grande ânsia de devassar-lhe os mistérios. Descobrimento da América Entre os navegantes daquela época, foi Cristóvão Colombo quem melhor concretizou, num grande projeto, a ideia de descobrimentos no Atlântico. - 016 Na esperança de conseguir os recursos necessários para o empreendimento, e principalmente para garantir o seu trabalho pela autoridade de um poder soberano, dirigiu-se primeiro ao senado de Gênova, sua pátria. Sendo aí tratado como um visionário, ou simples aventureiro, resolveu procurar o país onde se encontrava o movimento das navegações [Portugal]. D. João 2º muito se interessou pelo projeto de Colombo; mas os sábios da corte desdenharam o capitão genovês; e conta-se que só por satisfazerem ao rei, fizeram sair ocultamente para o oceano um marinheiro de confiança, com ordem de navegar sempre no rumo indicado pelo pretendente. Ao cabo de algumas semanas, porém, o tal marinheiro voltava a Lisboa, sem nada ter encontrado. Desiludido ainda uma vez, voltou Colombo para a Espanha as suas esperanças. Ali se achavam Isabel e Fernando empenhados então na guerra contra os últimos mouros da península; e Colombo, já desanimado, dispunha-se a recorrer a outros príncipes da Europa, quando a queda de Granada [Espanha] vem dar-lhe nova coragem. Insiste no seu projeto, principalmente junto à rainha, apesar de muito hostilizado pela ciência oficial. Até que, por fim, conseguiu assinar com o Governo espanhol, em abril de 1492, um contrato pelo qual ele se punha ao serviço da coroa de Castela, com o título de almirante e vice-rei das terras que descobrisse. Associado aos irmãos Pinzón, cuidou Colombo de organizar a sua frota, que se compôs apenas das naus Santa Maria, Pinta e Niña. - 017 No dia 3 de agosto de 1492, partia de Palos a pequena expedição que ia resolver para a humanidade o problema de mais extensas consequências nos tempos modernos. Numa das Canárias, teve Colombo de fazer uma estação de cerca de um mês, para reparar avarias em uma das naus. No dia 6 de setembro, continuou viagem rumo ao oeste. Alguns dias depois, a marinhagem começou a dar sinais de desânimo. O almirante logo compreendeu os embaraços imprevistos que se lhe deparavam, isolado assim no oceano, em luta com o terror daquelas criaturas que, para levar à realidade aquele sonho, não tinham, como ele, a alma fortalecida de absoluta confiança no destino. As provisões escasseiam; e se tivessem de continuar a marcha para o poente, naquele oceano vazio como uma voragem, a volta para a pátria seria difícil, senão impossível. A equipagem blasfema, tomada de pânico. A frota se achava a mil milhas a oeste de Gomera [uma das ilhas Canárias], quando a navegação começou a ser estorvada por uma enorme quantidade de plantas que cobriam a superfície do mar. A isso, juntou-se o fenômeno, então estranho, de perturbação da bússola: os marinheiros pensaram que tinham chegado ao fim do mundo e que, em breve, as águas se abririam para os tragar. Colombo, a muito custo, consegue aplacar a revolta dos marujos e, por muitos dias, continuaram a navegar sem ver terra. A perspectiva da fome, porém, logo se insurge de novo; e agora os oficiais da frota se juntam aos marinheiros e impõe ao almirante inconsiderado a volta imediata para a Espanha. Colombo, amargurado, ia ceder àquela imposição, quando viu, em torno de sua nau, sinais evidentes de vizinhança de terra; e então propôs aos seus companheiros voltar, se dentro de três dias não encontrasse terra; sendo esta proposta aceita como um voto solene. Os indícios de terra se tornaram, afinal, tão seguros que, na noite de 11 de outubro ordenou ao almirante que as velas fossem colhidas, e que todos ficassem alerta para evitar as costas que se aproximam. - 018 Com efeito, pouco depois da meia-noite, um tiro de canhão do Pinta dava o aviso de terra à vista; e, ao amanhecer, estavam as naus diante de uma ilha. Era a primeira terra que se tocava, do hemisfério novo. Portugal e Espanha no Atlântico O sucesso da expedição de Colombo produzira na Europa grande impressão e alvoroço geral. As nações ocidentais do continente, maravilhadas daquela fortuna da Espanha, tiveram logo ímpetos de seguir-lhe o caminho na conquista dos mares. Principalmente a Inglaterra, a França e a Holanda procuraram, com esforço, assegurar o seu quinhão na partilha do novo hemisfério revelado ao mundo. Portugal, de todas as nações da Europa, foi a que mais invejou a sorte da Espanha, lamentando que lhe houvesse escapado aquela glória e aquele imenso proveito que Colombo tinha dado aos reis católicos. Quando D. João II recebeu em Lisboa o almirante, de volta de um mundo descoberto, não pode reprimir o seu desgosto e arrependimento de haver dado ouvidos à ignorância e à má fé dos conselheiros que o tinham induzido a não dar imediato apoio ao projeto de Colombo. A própria corte sentiu-se como humilhada ante a figura daquele homem, tornada legendária. - 019 - Assim que Colombo prosseguiu para Barcelona, o rei português convocou os de seu conselho; e depois de os censurar pelo erro cometido, sugeriu e aventou a ideia de um plano tendente a salvar o que fosse possível daquele desastre. D. João resolveu, portanto, organizar imediatamente uma expedição para atacar a Espanha, nomeando-lhe como chefe o grande Almeida, mais tarde o verdadeiro fundador do império lusitano na Ásia. Tal expedição, porém, não se efetuou, porque os dois soberanos da península sentiram necessidade de um acordo que regulasse os seus intentos. - 020 Encontrando-se nos mares, tiveram as duas bandeiras de fixar o seu direito de conquista, primeiro aceitando a intervenção do Papa; e em seguida, como a solução não satisfizesse a Portugal, celebrando o Tratado das Tordesilhas (em 1495), pelo qual a coroa da Espanha cedia em arredar cerca de 15 graus para o ocidente os limites que a bula pontifícia tinha assinalado à ação dos portugueses. Ficavam, assim, discriminadas as respectivas jurisdições. D. João II morreu, pois, legando a D. Manuel aquele grande intento de não ficar no caminho da Índia e de assegurar, para o oeste no Atlântico, a parte que a Portugal pudesse tocar no novo mundo descoberto, de cujas proporções, aliás, não se fazia ainda ideia exata. Logo que subiu ao trono, fez D. Manuel preparar uma grande expedição, destinada a ir completar no Oriente a obra que se iniciara. E, dois anos depois que a de Vasco da Gama, partia do Tejo a esquadra que ia dar a Portugal a glória de um novo descobrimento. Descoberta do Brasil D. Manuel, como era uso naqueles tempos, quis dar um aparato descomunal às cerimônias de partida da frota, cujo comando se confiara a Pedro Álvares Cabral. - 021 Na capela do mosteiro de Belém, então ainda em obras, celebraram-se ofícios solenes a que assistiram, com muita pompa, os grandes da corte e enorme multidão. Durante a missa, teve el-rei ao seu lado o almirante, muito comovido. No meio do grande silêncio e geral expectativa, sobe ao púlpito o bispo Ortiz e profere um sermão eloquentíssimo, exaltando os méritos de Cabral e abençoando o heroísmo daqueles que "pela pátria, pela fé e pelo rei" iam afrontar os mares. Acabada a cerimônia, o bispo benzeu o estandarte real e o chapéu que o Papa tinha mandado ao almirante e que el-rei, por suas próprias mãos, colocara na cabeça de Cabral. Em seguida, dirigiram-se todos, a pé, para o cais, indo o chefe da frota a par del-rei, levando o estandarte onde se desenhava (assim como nas velas das naus) a cruz da Ordem de Cristo. Mal se pode imaginar o que tinha de edificante aquela cena, em que o monarca e sua corte se confundiam com o povo, formando longo préstito, em lenta marcha, ao som de clarins e de tambores. Em todo o percurso, do mosteiro até a margem do Tejo, a multidão não cessara de aclamar a el-rei e aos oficiais da expedição. Conquanto tantas vezes repetida, aquela festa era sempre nova em Lisboa; e agora, com mais razão se alegra o povo, tanto aí como em todo o reino, pois já se haviam desfeito os mistérios do grande oceano. "Lisboa apresentou então - diz o nosso Norberto de Souza - um desses espetáculos faustosos que poucas vezes oferecem os povos, em que as lágrimas e os soluços de saudade se misturavam com os risos e vivas que retumbavam nos ares em aclamações." - 022 Era o dia 9 de março de 1500. A frota tomou rumo do Sul; e até as ilhas Cabo Verde pouco se afastou da costa africana. Numa daquelas ilhas (São Nicolau), abrigou-se por dois dias, a espera de uma das naus, que se havia transviado. A 25 de março a frota continuou viagem, tomando agora o rumo do ocidente; e passados alguns dias, o de sudoeste. Por cerca de uma quinzena, os doze navios navegaram nessa direção. As calmarias da zona equatorial e as correntes oceânicas retardavam muito a marcha das naus. Por meados de abril, no entanto, começaram a aparecer sinais de terra próxima como aves, plantas marinhas, etc. No dia 21 de abril, os indícios fizeram-se mais evidentes; e pela tarde do dia seguinte (uma quarta-feira) avistou-se um monte (a que se deu o nome de Monte Pascal) e distinguiu-se toda a sombra da costa que se alongava no horizonte. Estava a esquadra diante de uma terra desconhecida, de cuja extensão, naquele momento, não se fez ideia exata, supondo-se que fosse uma grande ilha. Abrigada a esquadra na baía, que recebeu o nome de Porto Seguro, fez Cabral erguer na praia uma grande cruz de madeira e um altar, onde frei Henrique de Coimbra celebrou missa em ação de graças. - 023 Reconhecimento da terra descoberta Não era possível, mesmo, que D. Manuel fizesse logo uma ideia da importância do descobrimento que Cabral lhe anunciava. O próprio almirante continuara sua viagem para a Ásia persuadido de que não era mais que uma grande ilha a terra onde plantara, ao lado da cruz, o marco do domínio português. Ao notificar às outras cortes aquela nova possessão que acrescentava ao seu já vasto império marítimo, fazia D. Manuel sentir que "o achamento daquela terra foi providencial", pois serviria ela de estação e abrigo para as caravanas que se destinassem aos mares do Oriente. Conquanto se achasse D. Manuel muito preocupado com os negócios da Índia, não deixou, todavia, de tomar algumas medidas no intuito de reconhecerse a terra descoberta. Divergem os autores quanto às primeiras expedições que aqui vieram. Da primeira, sob o comando de André Gonçalves (ou Gaspar de Lemos, ou Pero Coelho, ou D. Nuno Manuel e ainda outros), veio como piloto Américo Vespúcio, o marinheiro florentino que devia ligar seu nome ao novo mundo. Essa expedição (por sinal até hoje muito controvertida, e até por alguns formalmente contestada) devia ter partido de Lisboa em maio de 1501 e, navegando ao longo do continente, visitara diversos pontos da costa do Brasil, desde o cabo de São Roque até o de Santa Maria, dando-lhes os nomes que ainda conservam. Em 1503, vem a expedição cujo comando foi confiado a Gonçalo Coelho e da qual fazia parte ainda Américo Vespúcio. Atribui-se a esta expedição a primeira feitoria fundada no Brasil - a feitoria de Santa Cruz, na baía onde se presumia ter Cabral aportado ou, segundo outros, na baía de Caravelas (ou mesmo numa enseada de Cabo Frio). Continuando a reconhecer o litoral, Gonçalo Coelho, já separado de Vespúcio, chegou até o cabo das Virgens, levantando por toda a parte marcos com as armas de Portugal. Parece que uma outra expedição se fez em seguida, da qual, entretanto, não resultaram maiores proveitos para o conhecimento do país. - 024 – Além dessas expedições, diversos navegantes tiveram o ensejo de visitar pontos da costa, de passagem para a Ásia. Logo por aqueles tempos, a terra começou a ser visitada por muitos aventureiros, principalmente franceses, que procuravam entrar em relações com os nativos e tirar proveitos do tráfico, sobre tudo do pau brasil. Assim que correra na Europa a notícia do descobrimento, volveu para aqui o espírito de aventura em largo assanho; e, em breve, o encontro dos traficantes degenerou em luta, e a ação dos especuladores em desbragada pirataria. Foi sem dúvidas esse movimento de cobiça geral que despertou as cortes portuguesas e a induziu a cuidar com mais solicitude a sorte dos novos domínios. Apressou-se D. Manuel a autenticar as suas posses, fazendo confirmar pelo Papa os seus direitos; e não dispondo de recursos que o habilitassem a fazer os gastos dispensáveis de conta direta da coroa, procurou animar o esforço de particulares, concedendo privilégios a armadores que se incumbissem ao mesmo tempo de explorar as novas terras. - 025 A lenda de Caramuru Por aqueles tempos, deram-se frequentes naufrágios nos mares da costa americana. As tradições e as crônicas falam de alguns desses desastres ocorridos em águas do nosso imenso litoral, e referem-se à sorte, quase sempre funesta, de muitos náufragos que, salvos das ondas, vieram perecer em terra, nas mãos dos selvagens. Entre os náufragos, raros conseguiam iludir a sanha e canibalismo dos indígenas, principalmente dos que dominavam as paragens mais orientais do continente. Desses poucos, no domínio português, a história registrou dois nomes que a lenda fez avultar: Caramuru e João Ramalho. Coloca-se geralmente em 1510 a expedição em que veio Diogo Álvares Correia, o Caramuru. Tendo ela naufragado junto às costas da Bahia, a maior parte dos infelizes que a compunham morreram afogados e, dos que chegaram vivos às praias, poucos lograram escapar à ferocidade dos nativos, e isso mesmo graças à precaução de um companheiro, que se havia munido de um barril de pólvora. - 026 Esse companheiro era Diogo Álvares. Tendo feito uso da arma diante dos selvagens, mostraram-se estes muito espantados da denotação, e curiosos daquele maravilhoso artifício, no qual o estrangeiro guardava o trovão e podia manejá-lo contra os inimigos. Daí o nome de Caramuru, que deram a Diogo, e o interesse de lhe conservarem a vida. Soube Caramuru impor-se à estima dos tupinambás, auxiliando-os em guerras contra diversas tribos vizinhas, guiando os chefes com seus conselhos, os quais eram ouvidos e respeitados. O que principalmente concorreu para a fortuna de Diogo Álvares foi a afeição de algumas índias que o disputaram, dentre as quais ele preferiu a formosa Paraguaçu, filha de um grande chefe de Itaparica. - Muitas lendas formaram-se em torno do nome de Caramuru, algumas das quais não passam de meras ficções poéticas. Entre as obras literárias que tem servido de assunto às aventuras de Caramuru, destaca-se o belo poema do nosso Santa Rita Durão, a quem deve ainda a posteridade um preito de justiça. Diogo Álvares não era, de certo, um espírito culto, como os grandes tipos que, na América ocidental, passam por guias de povos e fundadores de grandes impérios. É verdade, aliás, que o estado das populações que veio encontrar na costa oriental do continente não lhe permitia fazer aqui o que, no Peru, por exemplo, fez Manco-Capac [fundador do império dos incas]. No entanto, segundo alguns cronistas, esforçou-se Diogo Álvares quanto pôde por organizar alguma coisa, chegando a fundar, no recôncavo da baía de Todos os Santos, uma povoação - a Vila Velha - onde estabeleceu alguns usos e costumes e até um arremedo de polícia à europeia. Caramuru alcançou grande fama e prestígio entre os selvagens e prestou bons serviços às expedições subsequentes, destinadas a colonizar o país. Martim Afonso, em 1531, encontrou-o na Bahia. - 027 Muitos outros portugueses ficaram ali vivendo, por ele amparados, e um deles, de nome Paulo Dias, até casou-se com uma filha do herói. Quando, em 1549, veio Tomé de Sousa como Governador Geral, D. João III mandou uma carta a Caramuru, pedindo que recebesse bem o seu vassalo e que em tudo o auxiliasse. A ascendência que aquele homem exercia sobre os chefes indígenas tornou-se de grande importância para o Governador. A lenda de João Ramalho A época em que teria chegado João Ramalho ao Brasil tem dado lugar a controvérsias. Frei Gaspar da Madre de Dios, nas suas Memórias para a História da Capitania de São Vicente, pretende que Ramalho tivesse mesmo antecedido a Colombo em terras do novo Mundo, chegando àquela parte da costa, que depois se chamou São Vicente, no ano de 1490, portanto, dois anos antes de haver o navegador genovês aportado a Guanahani. - 028 Isso, porém, não excede a proporções de pura lenda. Os investigadores das nossas velhas crônicas e tradições têm encontrado, aliás, motivos valiosos para acreditar na existência de dois indivíduos sob o nome de João Ramalho. O primeiro, é de crer que fosse aquele mesmo famoso bacharel português de quem falam alguns navegantes que passaram por São Vicente, e que ali foi encontrado em 1532 por Martim Afonso; e o segundo - talvez filho do primeiro é um que, segundo frei Gaspar, ainda vivia em 1580. Parece que esta versão é mais verossímil que a outra, que dá o mesmo bacharel de Cananéia chegado ao continente pelos princípios do Século 16 (e até dez anos antes, segundo frei Gaspar), vivendo ainda em 1580 e, alguns nos antes, capitaneando bandeiras contra os índios do sertão. Para que fosse assim, seria necessário admitir que esse único Ramalho teve a longevidade de mais de cem anos. O que está mais ou menos apurado é o seguinte: - Em 1502 (ou 1512) chegou, João Ramalho, à ilha de São Vicente ou paragens da vizinhança, em companhia de um Antônio Rodrigues e, talvez, de outros. Acolhidos com bondade pelos índios Goianás, não quiseram (ou não puderam) mais voltar para a Europa, e ficaram por ali vivendo vida aventurosa. Ganharam logo a confiança dos naturais e exerceram grande influência sobre os chefes de tribos da redondeza. Ramalho tomou por esposas as filhas de alguns caciques e casou-se, afinal, com Bartira, filha de Tibiriçá. Antônio Rodrigues teve por mulher uma filha de Piquerobi, chefe da aldeia de Ururaí. Martin Afonso de Souza, em 1532, entra na baía de São Vicente; toma o canal a oeste da ilha; e cuida logo de fundar a povoação que teve o mesmo nome de São Vicente. Apresentou-se ali João Ramalho, com quem provavelmente tinha falado em Cananéia, quando descera para o sul. Prestou Ramalho os melhores serviços àquela expedição, assegurando ao capitão português a obediência e apoio dos caciques que senhoreavam no litoral. De Antônio Rodrigues pouco se ocupam as crônicas, sabendo-se, no entanto, que ainda vivia e ali estava ao tempo em que se fundou a vila. - 029 Os colonos portugueses, de entrada, trataram de explorar uma boa parte daquela costa, e logo subiram ao planalto. Mas, como invariavelmente acontecia em todos os pontos da América, não demorou que os colonos de São Vicente se pusessem em colisões com os índios de serra-acima. Diversos chefes aliaram-se para atacar os portugueses na ilha. Em número considerável, teriam, talvez, exterminado a nascente colônia, se Ramalho não interviesse, aplicando-lhes a revolta e conseguindo, por fim, que fizessem uma perfeita aliança com os forasteiros. Foi só depois desse pacto, que os portugueses entraram nos campos de Piratininga. - 030 –