Aula 2 - Unisanta

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ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS, FILOSÓFICOS E
SÓCIO-CULTURAIS DO HOMEM 1
Aula 2
O legado de Franz Boas – É difícil acreditar que Franz Boas (1858-1942), um dos
fundadores da moderna Antropologia, tenha a sua obra conhecida do leitor brasileiro só 62
anos depois de sua morte. Mais inacreditável ainda é que, rompendo esse silêncio, saiam à
luz no mesmo ano por editoras diferentes dois livros que tratam da obra do antropólogo que
mais influenciou Gilberto Freyre: no Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor lançou em
fevereiro de 2004 Antropologia Cultural, coletânea de cinco ensaios do pensador; e, em
São Paulo, a Editora Hucitec acaba de mandar para as livrarias Nascimento da
Antropologia Cultural: a obra de Franz Boas, de Margarida Maria Moura, professora do
Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (USP).
Originalmente apresentado como tese de livre-docência na USP em 2000, este
trabalho discute a vida e a obra de Boas, antropólogo que revolucionou os meios
intelectuais na primeira metade do século XX, afirmando o conceito de cultura como fator
explicativo das diversidades sociais, em contraposição às teorias hegemônicas que até então
explicavam a evolução da espécie humana a partir de determinações raciais, geográficas e
econômicas. A igualdade básica dos grupos humanos foi tese que sempre defendeu.
Nascido em Minden, na Vestefália, Alemanha, numa família judaica de alta posição
social, Boas teve, desde cedo, uma sólida formação, apaixonando-se por Goethe.
Adolescente, leu o teatro grego, a poesia e a filosofia, tanto as clássicas quanto as
contemporâneas, como diz a professora Margarida Maria Moura, ao traçar um bem acabado
perfil do antropólogo. Ainda jovem, Boas, com o apoio financeiro do pai comerciante,
depois de passagens pelas universidades de Heidelberg, Bonn e Kiel nas quais estudou
filosofia, geografia e física, participou de uma expedição às regiões polares do Canadá,
onde encontrou a matéria de seu maior interesse – a vida dos esquimós, hoje conhecidos
como Inuit.
No verão de 1886, começou uma detalhada pesquisa etnográfica entre os Kwakiutl
da Colúmbia Britânica que redundaria na redação de Kwakiutl Ethnography, que também
abrangeria outros povos da região. Depois, em 1896, passou a atuar tanto na pesquisa como
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no ensino da antropologia na Universidade de Colúmbia, em Nova York, onde em 1901
formou o primeiro doutor sob sua orientação, Alfred Kroeber, que abriu uma série notável
de nomes tanto masculinos quanto femininos da antropologia norte-americana.
Além de exercer poderosa influência sobre a antropologia mexicana moderna, ao
dirigir de 1911 e 1912 a Escuela Internacional de Arqueología e Etnología Americanas e
manter intenso trabalho de cooperação, interrompido pela eclosão da Primeira Guerra
Mundial, Boas ainda estendeu seus conhecimentos à Alemanha, França e Canadá.
No Brasil, sua influência dá-se a partir dos primeiros anos do século XIX, como
prova o fato de o pensador político Alberto Torres, falecido em 1917, ter mantido diálogo
com sua obra. Embora conservador e autoritário, como diz Margarida Maria Moura, Torres
acreditava na antropologia anti-racista do mestre, que contrastava com a tradição de
inferioridade racial dos negros e índios e do brasileiro em geral.
Na conservadora sociedade norte-americana das primeiras décadas do século XX,
Boas desempenhou um papel público importante na luta contra o racismo e a favor da
liberdade intelectual, cujo episódio mais agudo, a respeito do blue lumbar spot, Margarida
Maria Moura recupera com detalhes. O blue lumbar spot nada mais é que o conhecido
jenipapo na bunda, sinal de mestiçagem chamado em português também de mancha
mongólica, que ocorre na mistura entre branco e negro, branco e índio e outros grupos
homogêneos como os amarelos.
Esse sinal de mestiçagem serviu nos Estados Unidos na década de 1930 como
argumento para barrar a entrada no país de crianças armênias sob a alegação de que seu
caráter genético mongólico e, portanto, “inferior”, iria comprometer a eugenia do branco
norte-americano, o wasp (white, anglo-saxon and protestant). Se lembrarmos que o
sociólogo Samuel P. Huntington, professor em Harvard, alega em Who are we (Nova
York, Simon & Schuster, 2004) que, em breve, os hispanos-americanos podem dominar a
América e ameaçam a civilização wasp, não é difícil concluir que essas idéias racistas
continuam latentes na sociedade norte-americana.
Como diz a autora, as contribuições do pensamento boasiano não foram inovadoras
apenas na antropologia cultural, mas também na antropologia física, “que nele, como bem
se vê, é já o prenúncio de uma antropologia biológica, de cunho mais genético do que
antropométrico – sem negar a importância científica intrínseca da antropometria, feita por
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si mesma e desprovida de juízos de valor”. Nesse sentido, observa, o antropólogo
antecipava as grandes inovações da genética, na segunda metade do século XX. Para ela,
por esse motivo, Boas fundou, de fato, um campo intelectual novo tanto para a antropologia
cultural quanto para a antropologia física como para a lingüística, estabelecendo, portanto,
uma tríplice paternidade.
Filha da antropólga física Maria Júlia Pourchet, que manteve larga correspondência
com Boas, além de ter mantido relações de amizade com Anna Urbach, irmã mais nova do
antropólogo que morou no Rio de Janeiro, a autora reconhece que foi sua mãe a verdadeira
iniciadora do trabalho de que resultou sua pesquisa.
Além de honrar essa dívida afetiva com a mãe, a autora, com sua pesquisa, não só
tira da penumbra a vida e a obra de Boas – até aqui só conhecidas de segunda mão e
restritas à academia – como amplia o debate aberto com a publicação de Antropologia
Cultural, organizado e traduzido por Celso Castro, mestre e doutor em antropologia social
pelo Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Na apresentação deste livro, que reúne textos publicados em Race, Language and
Culture, de 1940, Castro lembra que a influência das idéias de Boas no Brasil se fez sentir
principalmente na obra de Gilberto Freyre, que conheceu o mestre quando estudou em
Colúmbia no começo da década de 1920. Em seu clássico Casa Grande e Senzala, de
1933, Freyre reconheceu ter o antropológo alemão o ajudado a se libertar da visão negativa
sobre a mestiçagem, então considerada um problema da formação social brasileira.
Que a obra de um homem de tamanha importância para o pensamento brasileiro
tenha ficado tanto tempo sem quem a colocasse ao alcance do público, é algo lastimável.
Ainda bem que os professores Margarida Maria Moura e Celso Castro repararam essa
omissão. (Adelto Gonçalves).
Cultura: um conceito antropológico — Boas desenvolveu o particularismo
histórico (ou a chamada Escola Cultural Americana), segundo a qual cada cultura segue os
seus próprios caminhos em função dos diferentes eventos históricos que enfrentou. Não
basta a natureza criar indivíduos altamente inteligentes, isto ela o faz com freqüência, mas é
necessário que coloque ao alcance desses indivíduos o material que o permita exercer a sua
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criatividade de uma maneira revolucionária. Santos Dumont (1873-1932) não teria sido o
inventor do avião se não tivesse abandonado a sua pachorrenta Palmira, em Minas Gerais,
no final do século XIX, e se transferido em 1872 para Paris. Ali teve acesso a todo
conhecimento acumulado pela civilização ocidental. Alberto Einstein (1879-1955) não teria
desenvolvido a teoria da relatividade se tivesse nascido numa distante localidade do
Himalaia e lá permanecido.
Se eles tivessem morrido na infância, a humanidade talvez tivesse de esperar mais
um pouco por suas descobertas, mas outros cientistas e inventores estariam aptos a utilizar
os mesmos conhecimentos e realizar as mesmas façanhas. No Brasil, no final do século
XIX e começo do século XX, o padre jesuíta gaúcho Landell de Moura, nascido em 1861,
teria sido o real inventor da telegrafia sem fio. Entre 1893 e 1894, ele fez várias
demonstrações de seu invento em São Paulo, com uma delas alcançando oito quilômetros
de distância.
Em 1905, fez uma proposta ao presidente Rodrigues Alves para testar seu invento
em dois navios da marinha em alto-mar. Foi considerado maluco pelo representante do
presidente e desistiu de tudo, voltando a se ocupar de sua paróquia. Landell já havia
inventado a válvula eletrônica que foi fundamental para a radiodifusão. Também já fazia
pesquisas sobre a transmissão por meio da luz, ou seja, a televisão. Em 1904, ele patenteou
“The Telephotorama”, que viria a ser a televisão, conforme comprovaram testes feitos por
técnicos da Embratel. Sem apoio, não pôde levar adiante suas teorias, ao contrário de
Marconi, que montou uma empresa e recebeu apoio na Inglaterra.
O homem e o chimpanzé — Acompanhando o desenvolvimento de uma criança
humana e de uma criança chimpanzé até o primeiro ano de vida, não se nota muita
diferença: ambas são capazes de aprender, mais ou menos, as mesmas coisas. Mas quando a
criança começa a aprender a falar, coisa que o chimpanzé não consegue, a distância tornase imensa. Através da comunicação oral, a criança vai recebendo informações sobre todo o
conhecimento acumulado pela cultura em que vive. Tal fato, associado com a sua
capacidade de observação e de invenção, faz com que ela se distancie cada vez mais de seu
companheiro de infância.
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É interessante observar que não falta ao chimpanzé a mesma capacidade de
observação e invenção, faltando-lhe, porém, a possibilidade de comunicação. Assim sendo,
a observação realizada por um chimpanzé não beneficia a sua espécie, pois nasce e acaba
com ele. No caso humano, ocorre exatamente o contrário: toda a experiência de um
indivíduo é transmitida aos demais, criando assim um interminável processo de
acumulação. Portanto, não existiria cultura se o homem não tivesse um sistema articulado
de comunicação oral.
Incesto — Claude Lévi-Strauss, destacado antropólogo francês, considera que a
cultura surgiu no momento em que o homem convencionou a primeira regra, a primeira
norma. Para ele, esta seria a proibição do incesto, padrão de comportamento comum a todas
as sociedades humanas. Todas estas proíbem a relação sexual de um homem com certas
categorias de mulheres (mãe, filha e irmã).
Leslie White, antropólogo norte-americano contemporâneo, considera que a
passagem do estado animal para o humano ocorreu quando o cérebro humano foi capaz de
gerar símbolos. Temos de concordar que é impossível para um animal compreender os
significados que os objetos recebem de cada cultura. Como, por exemplo, a cor preta
significa luto entre nós e entre os chineses é o branco que exprime esse sentimento. Mesmo
um símio não saberia fazer a distinção entre um pedaço de pano, sacudido ao vento, e uma
bandeira desfraldada. Ou seja, para conhecer o significado de um símbolo, é preciso
conhecer a cultura que o criou.
A natureza não age por saltos. O primata não foi promovido a homem da noite para
o dia. O conhecimento científico atual está convencido de que o salto da natureza para a
cultura foi contínuo, mas muito lento. O corpo humano formou-se aos poucos. O
Austrolopiteco Africano, que viveu há mais de dois milhões de anos, tinha um cérebro 1/3
menor que o nosso e uma estatura não superior a 1m20, mas já manufaturava objetos e
caçava pequenos animais. Devido à dimensão de seu cérebro, é improvável que usasse
alguma linguagem. Mas já tinha um sistema de comunicação mais avançado do que o dos
macacos contemporâneos.
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