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S imon Goldhill
AMOR, SEXO & TRAG
TRAGÉDIA
DIA
Como o mundo antigo influencia nossas vidas
Jorge ZAHAR Editor
Rio de Janeiro
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SUM˘RIO
Uma vida em ruínas
Parte I Quem voce pensa que é?
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
O corpo perfeito
Coisa de homem?
O corpo feminino – macio e esponjoso, depilado e recatado
Dele e dela – uma história de amor?
Amor grego
Um homem é um homem é um...
Ansiando por safo
Fazendo o que vem naturalmente?
Parte II AONDE VOC¯ PENSA QUE VAI?
1.
2.
3.
4.
5.
6.
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O império da religião
Superestrelas da carne
O sexo e a cidade
O que é Atenas para Jerusalém?
O grego é heresia
Sabendo a resposta
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Parte III O QUE VOC¯ ACHA QUE DEVE ACONTECER?
1.
2.
3.
4.
5.
6.
A política precisa da história?
A democracia ateniense – mudando o mapa
O bom cidadão
Os críticos da democracia – especialista e educação
Uma questão de traição
A vontade do povo
Parte IV O QUE VOC¯ QUER FAZER?
1. Isto é entretenimento
2. A questão da tragédia
3. O gladiador e a multidão delirante – “Sob meu comando,
desatrelemos o inferno”
4. A última ceia
Parte V DE ONDE VOC¯ ACHA QUE VEM?
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Uma Grécia da imaginária
Os pais fundadores – De Keats a Hollywood e de volta
Descobrindo a pátria – de onde vem o Édipo de Freud
A mãe de todas as histórias – o Édipo grego
O mito das origens
A história hoje
Notas
Sugestões de leitura
Créditos das ilustrações
Agradecimentos
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Parte I
Quem você pensa que é?
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O corpo perfeito
Quando Clark Gable tirou a camisa no filme Aconteceu naquela noite (1934),
duas coisas extraordinárias ocorreram. Em primeiro lugar, a indústria do vestuário foi alterada para sempre. Como ele não estava usando uma camisa por
baixo, milhares e milhares de homens decidiram também nunca mais usar
uma, e no período de um ano uma série de fabricantes de roupas pediu falência. Em segundo lugar, milhares de pessoas ficaram boquiabertas diante do
torso nu do galã, considerado o mais sensual dos homens.
Para uma geração moderna de espectadores de cinema, é quase impossível
recapturar o choque e o erotismo daquele momento. Hoje não há quase nenhuma parte do corpo masculino que não possa ser vista na tela ou nas revistas, e é
provável que nós estejamos mais acostumados com o torso de Russel Crowe que
com o nosso. Em Casablanca (1942), Humphrey Bogart não tira a camisa. Nos
filmes de guerra ou de faroeste –o filé-mignon da indústria cinematográfica –,
um soldado ou um caubói é sempre ferido, mas de maneira arquetípica o ferimento se dá apenas no braço. É um clichê do gênero. A manga da camisa pode
se rasgar, um momento dramático é assegurado, mas o corpo é mantido recatadamente coberto. Um índio enfurecido ou outro “nativo” pode ter um torso
bronzeado e nu, mas não um de nossos rapazes. Quando Noël Coward naufraga
na maravilhosamente patriótica aventura naval Nosso barco, nossa alma (1942),
ele nunca desabotoa nem mesmo o primeiro botão de sua camisa.
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Só no final dos anos 1960 e 1970 é que as coisas começaram a mudar sistematicamente. Filmes de guerra como M*A*S*H (1970) – uma resposta cínica,
engraçada e ousada ao conflito no Vietnã – são típicos. O filme mostrava o corpo lacerado, carnal, ensangüentado e exposto. Desde então, seja em histórias de
amor ou de heroísmo, o corpo é cada vez mais exibido. De Rocky a Gladiador,
o herói agora tem de estar com o torso nu.
Essa não é a primeira vez que a imagem do herói transita entre o coberto
e o desnudo (ou vice-versa). A história de Perseu e Andrômeda é um dos mitos
gregos representados com mais freqüência pela pintura, sobretudo a cena em
que Andrômeda, acorrentada a uma rocha, esperando ser devorada por um
monstro marinho, é salva por Perseu, que aterrissa para matar a fera e casar-se
com a moça. Em pinturas antigas, é Perseu que aparece nu – como em geral
aparecem os heróis gregos –, com exceção de um capacete, sandálias aladas e,
muitas vezes, uma capa esvoaçante. Normalmente, Andrômeda aparece envolta em uma comportada toga.
Mas no Renascimento, quando a história volta a ser popular para artistas europeus, o Perseu clássico aparece vestido com uma armadura ou uma
túnica, e Andrômeda se torna cada vez mais exposta, até que os longos cabelos e as sedas esvoaçantes sirvam apenas como moldura para a exibição de
seu corpo despido.
Ticiano realça tanto a desnuda Andrômeda que os olhos do observador
quase não percebeu o arrebatador Perseu, que, em segundo plano, está completamente vestido. Para ser heróico, Perseu precisa agora de sua armadura,
ao passo que o corpo feminino se apresenta vulnerável – tanto para os olhos
masculinos como para os do monstro marinho. A idéia de uma nudez aceitável
ou normal foi radicalmente transformada.
Existe uma história das formas de exposição do corpo masculino. Não é
apenas uma questão de quanto do corpo pode ser mostrado, mas também de
que aparência o corpo deve tomar: um torso em Gladiador ou em Rocky não
se parece com o de Clark Gable. Imagens do corpo estão por todo lado – de
imagens de homens em filmes, na televisão ou em revistas, ao corpo dos que
teorizam sobre a medicina, às representações de escritores, ao sistema legal, à
arte erudita e à arte suja da grafite. Todas essas imagens corporais nos ditam
como ser, como pensar sobre nós mesmos, como nos enxergar. Mas de onde se
originam tais representações do corpo perfeito?
A resposta mais simples é a Grécia. Desde o Renascimento e sua redescoberta da arte clássica vigora uma longa tradição de tomar a escultura grega
como o ideal de corpo masculino. O torso delgado porém musculoso, a elegante
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O corpo perfeito
[Fig. 1]
Perseu e Andrômeda
[Fig. 2]
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Perseu e Andrômeda, por Ticiano
simetria da figura, o equilibrado giro da cabeça ou a curva da forma atlética
produziram uma imagem tão fortemente arraigada na imaginação ocidental que
é difícil considerá-la de uma nova maneira ou através de um prisma histórico.
Para qualquer um que freqüenta uma academia de ginástica, que se preocupa
com a balança, com a forma ou com seu tônus muscular – ou simplesmente
para alguém que sabe o que é um belo corpo - existe uma história que remonta à
Grécia antiga e que modifica o modo como o próprio corpo é visto.
No Ocidente moderno, somos bombardeados com imagens do corpo. Os
olhos do cidadão da Grécia clássica, assim como os espaços públicos e privados da cidade, também foram extraordinariamente inundados com imagens.
Quando um ateniense passeava pelo mercado, as construções que o rodeavam
eram todas decoradas com imponentes pinturas, financiadas pelo Estado, de
guerreiros e batalhas do passado. Havia enormes estátuas dos heróis da democracia, e reinando sobre a cidade erguia-se a Acrópole, com o Panteão e
seus outros templos ornados com frisas representando multidões. Por todos os
lados, erguia-se uma floresta de estátuas – de atletas, heróis falecidos, generais,
benfeitores civis, deuses. Ladeando as avenidas, erguiam-se representações da
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forma masculina, localizadas ao redor dos santuários, em pedra ou em bronze, esculpidas em relevo, nos templos e nas tumbas, nos pórticos e nos prédios cívicos. Quando o ateniense sentava-se em casa para tomar vinho, suas
panelas e taças eram decoradas com imagens primorosamente pintadas – um
batalhão de corpos perfeitos. As principais cidades e arenas cívicas da Grécia
clássica estavam apinhadas de centenas de imagens de uma masculinidade
exercitada e reverenciada.
O corpo perfeito oferecia ao cidadão grego um modelo difícil de ser
seguido. O condicionamento físico requeria treinamento e isso significava
principalmente ir ao ginásio. O ginásio era uma das principais características
da cultura grega. Você poderia ter certeza de estar em uma cidade grega caso
avistasse um teatro, um simpósio,* um debate político – e um ginásio. Era um
lugar fundamental para se pensar sobre o corpo, e também para utilizá-lo. A
preocupação moderna com o ginásio, freqüentemente vista como um sinal
da vida urbana contemporânea, encontra aqui, na antiga cidade grega, sua
verdadeira origem. Nossa preocupação com o corpo e o exercício não tem
nada de novo, não passa de outra herança clássica. A escolha da academia,
a preocupação com a aparência, o exercício do corpo, o seguimento de uma
dieta, a utilização de um personal trainer – tudo isso são bons e velhos hábitos da Grécia antiga.
O ginásio era o lugar que o cidadão grego freqüentava com o intuito de se
exercitar. Era exclusivo para homens. Um cidadão deveria ir ao ginásio com regularidade, mesmo diariamente, e grupos distintos freqüentavam locais específicos. Segundo Platão, Sócrates gostava de freqüentar o ginásio Taureas, perto
do Templo da Rainha dos Deuses, onde se exercitavam membros da mais alta
sociedade ateniense – mas, quando convidado por um belo e jovem rapaz, era
facilmente persuadido a freqüentar outros ginásios. O cidadão se despia. (Diferentemente da academia moderna, todos os exercícios eram praticados sem
roupa – embora o pênis fosse amarrado para trás em competições de corridas.)
Ele esfregava óleo sobre o corpo, ou ordenava que seu servo o fizesse, e então se
exercitava – corria, lutava, pulava ou treinava para outras competições, como
*
O simpósio (symposium) era uma reunião exclusivamente masculina. Os homens encontravam-se para beber, comer e conversar – em geral sobre assuntos políticos e filosóficos. Muitas
vezes o termo “simposium” é traduzido como “banquete”. É o caso, por exemplo, do título da
obra de Platão. (N.T.)
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O corpo perfeito
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arremesso de dardos ou de discos. Meninos, pelo menos os de melhor espécie,
eram acompanhados por seus tutores, que por eles zelavam, e treinadores profissionais preparavam os atletas mais sérios. No final, o óleo e a sujeira eram
raspados com um instrumento de metal chamado estrigil. Era com o frasco
de óleo e o estrigil que os homens circulavam resolutamente, como com uma
mochila ou uma raquete de tênis.
Até os anos 1970, o epítome da propaganda moderna era Charles Atlas,
que empregava o título de “o mais perfeitamente desenvolvido homem do
mundo” para promover sua promessa de que o exercício “fará de você um homem” assim como havia acontecido com ele. (Charles alegava ter de fato se
inspirado em uma estátua de Hércules do Metropolitan Museum of Art de
Nova York para atingir “o corpo masculino perfeito”.) O antigo ginásio era
fundamental para a exibição de masculinidade na cidade clássica: ele “fazia
de você um homem”. Isso significava, em primeiro lugar, trabalhar o corpo
em preparação para a guerra, já que todos os homens de verdade lutavam no
exército ou na marinha. O ensaísta do século II Luciano, capta a noção cultural
de como deveria ser a aparência de um homem no ginásio:
Os jovens rapazes têm a pele bronzeada de sol, feições masculinas; revelam vitalidade, fervor, masculinidade. Eles brilham com fabuloso condicionamento: nem
magros nem com peso excessivo, mas esculpidos com simetria. Com seu suor, livraram-se de toda carne desnecessária, e o que sobra é força e resistência, sem as
manchas de qualquer qualidade inferior. Eles mantêm seus corpos com vigor.
A forma ideal não é nem muito magra nem muito gorda, mas perfeitamente balanceada. Em evidência estão não somente as qualidades físicas, mas
a “masculinidade” e o “vigor” que emanam das feições “masculinas”. Os corpos
demonstram que tipo de homem eles são, e como vivem. Essa total perfeição
do masculino é o que promete a ginástica, e a razão pela qual você freqüenta a academia. Entretanto, diz Luciano, sem exercício o corpo de um homem
acabará assim: “Terá uma flacidez branca e preguiçosa ou uma pálida magreza, como o corpo de uma mulher, descorado pela sombra, trêmulo, ofegante
e pingando de suor...” A ameaça ao corpo de um homem é ser “como o de
uma mulher” – o reverso de tudo o que é bom para um homem. Luciano lista
uma série de qualidades negativas – pálido, esquelético, flácido, trêmulo, fraco
e úmido – a serem contrastadas com as qualidades a que todos devem aspirar:
bronzeado, firme, simétrico, vigoroso e enxuto. A mensagem é clara: exercitese com vigor ou sofra a humilhação de um corpo inferior, o que equivale a ser
um cidadão inadequado.
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Os artistas clássicos representaram o corpo ideal do atleta, que Luciano descreveu com tanto entusiasmo. O friso reproduzido na figura 3 fazia parte da base
de uma estátua masculina que servia como ornamento de um jazigo. Os seis corpos estão expostos como se estivessem em um livro de anatomia, começando na
esquerda com uma visão total da frente e girando em círculo até que a parte de
trás seja visível. (O escultor teve alguns problemas com a rotação, principalmente
na quinta figura. O corpo deve ser, como insiste Luciano, magro mas bem desenvolvido – encorpado pela prática do exercício, mas não gordo ou exageradamente
musculoso como um halterofilista dos dias atuais. Os músculos devem ser bem
definidos (“talhados”), abdome tipo “tanquinho” e peitoral definido; o torso deve
revelar a crista do ilíaco, a acentuada linha ou vinco que se estende do topo da
virilha ao quadril e que só pode ser vista quando os músculos são extremamente
bem desenvolvidos e a taxa de gordura é excepcionalmente baixa – essa linha era
enfatizada de tal maneira pelas esculturas gregas que era impossível copiá-la na
vida real. As coxas são poderosas, as panturrilhas nitidamente delineadas, o pênis
pequeno (sempre) e, uma vez que se trata de belos e jovens rapazes, eles ainda não
têm barba, ainda que seus cabelos sejam cuidadosamente penteados.
Era no ginásio que o cidadão descobria que tipo de homem ele era – por
meio da competição com outros homens, da exibição do corpo, da masculinização. O ginásio testava a masculinidade, e não apenas nas atividades atléticas. Era
também um lugar-chave para encontros eróticos, onde o belo menino ficava
conhecido como uma beldade, onde homens disputavam a atenção de garotos
atraentes e onde se reuniam para conversar, se exibir e observar uns aos outros.
Era onde se podia ver outros homens, compara-los e comparar a si mesmo com
a imagem do corpo perfeito. O ginásio fazia do corpo um tópico de conversação, exibição, desejo e preocupação, assim como de exercício e cuidados.
[Fig. 3]
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Friso “anatômico” de um monumento funerário
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