ANÁLISE ECONÔMICA Maio 2011 Por George Bezerra A nova fase da economia mundial A crise econômica mundial que atingiu seu ápice em 2008 já foi superada? A resposta ainda é negativa, sob vários aspectos. Ao longo de décadas o mundo havia se acostumado a testemunhar freqüentes crises nos países menos desenvolvidos, particularmente na América Latina. A origem dessas crises geralmente estava relacionada principalmente à má condução das políticas macroeconômicas domésticas, com políticas fiscais e monetárias fora de controle, que resultavam numa situação permanente de fragilidade nas contas públicas e no balanço de pagamentos. Em 1982 o governo do México anunciou uma moratória da sua dívida externa. Isso causou uma queda abrupta da oferta mundial de crédito e uma crise de dívidas externas para vários países menos desenvolvidos, o que marcou o início da chamada “década perdida” para o Brasil. Em 1985 foi lançado o Plano Baker (alusão ao então Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, James Baker) para lidar com o problema das dívidas externas dos países em crise. O Plano previa novos empréstimos dos organismos internacionais e países desenvolvidos subordinados à adoção de reformas estruturais nos países devedores. Mas as condições desse Plano apenas permitiram que os bancos privados transferissem seus créditos para os bancos oficiais dos países desenvolvidos. A reestruturação das dívidas não funcionou e os países em crise se tornaram ainda mais endividados. Em março de 1989 um novo plano de reestruturação foi anunciado pelo então Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Nicholas F. Brady, que também ficou conhecido pelo seu sobrenome. Os países devedores que se engajaram no lançamento do Plano foram México, Brasil Argentina, Equador, Costa Rica, República Dominicana, Filipinas, Uruguai, Polônia, Nigéria e Marrocos. O novo Plano consistiu fundamentalmente na troca dos títulos de dívida externa desses países por novos papéis que passaram a ser chamados de Bradies. As dívidas foram securitizadas e os novos papéis contemplavam significativos abatimentos do principal ou dos juros. Criou-se um mercado secundário com crescente liquidez que permitiu enorme flexibilização do gerenciamento dessas dívidas (uma das causas da crise no início da década dos 80 fora exatamente a falta de flexibilidade na negociação dos débitos, uma vez que os países devedores eram proibidos de negociar os seus títulos de dívida). O Plano Brady reconhecidamente tornou gerenciáveis dívidas externas de vários países que nas condições anteriores eram impagáveis, retirando uma camisa de força que prejudicava toda a economia mundial, destacadamente os menos desenvolvidos. www.maximaasset.com.br [email protected] As negociações do plano Brady foram concluidas no início dos anos 90, mas o aprendizado que delas resultou foi usado de forma muito útil em outras crises posteriores, como nos casos do Equador e da Rússia. Seguiu-se uma fase da economia mundial em que vários países emergentes introduziram reformas estruturais importantes e melhoraram a qualidade das suas políticas econômicas domésticas. No caso do Brasil, um marco importantíssimo foi o lançamento do Plano Real em julho de 1994, que finalmente criou as condições para um esforço bem sucedido de combate à ameaça de hiper-inflação e deu início a um período de reformas (até hoje inacabadas) que resultou numa melhora substancial da sua política econômica. O fenômeno China e o crescimento da economia mundial entre 2003 e 2007 produziram uma enorme expansão da demanda por commodities, o que trouxe grandes benefícios para países emergentes exportadores, como o Brasil. Enquanto os Estados Unidos sustentavam taxas elevadas de crescimento com baixíssimos coeficientes de poupança doméstica, aumentando o déficit público e do balanço de pagamentos, esses países emergentes percorriam o caminho oposto. Ao longo desse período o Brasil se beneficiou de um enorme ganho dos termos de troca, que contribuiu fortemente para a eliminação da dívida pública externa, o acúmulo significativo de reservas internacionais e a conquista da posição de investment grade. Veio então a crise de 2008, quando parece que, temporariamente, “o sertão virou mar e o mar virou sertão”. Agora vários países emergentes gozavam de condições extremamente favoráveis nas suas condições de endividamento, enquanto alguns desenvolvidos como Estados Unidos e vários da Europa passaram a enfrentar uma rápida e brutal deterioração dos seus déficits e indicadores de dívida domésticos e internacionais. A crise agora era do mundo desenvolvido. A Origem da Crise, sua Evolução, seu Estado Atual e Perspectivas Os comentários retrospectivos serão feitos apenas com o objetivo de facilitar a avaliação das condições presentes e das perspectivas. Origem As causas de uma crise dessa magnitude são demasiadamente amplas e complexas para serem resumidas em dois ou três aspectos. Mas, a nosso ver, há duas causas relacionadas aos Estados Unidos, onde ela teve origem, que são de importância destacada: a combinação de um longo período Av. Atlântica 1130, 14º andar - Copacabana Rio de Janeiro RJ 22021-000 Tel: 55 21 3820-1777 Fax: 55 21 3820-1795 ANÁLISE ECONÔMICA Maio 2011 com taxas de juros muito baixas e liquidez abundante, com uma forte desregulamentação e ausência de cumprimento (enforcement) de regulamentações existentes no mercado financeiro. O excesso e a duração prolongada de estímulos monetários induziu os bancos e instituições financeiras em geral a adotarem um tamanho crescente de risco e alavancagem que inflaram “bolhas de ativos” em diversos segmentos do mercado. A explosão acabou se dando na pirâmide que vinha sendo agressivamente estruturada no mercado imobiliário. Evolução A crise tomou originalmente a forma de um gigantesco problema no mercado imobiliário e no sistema bancário, uma combinação dramática, dadas as importâncias relativas desses dois setores na economia americana. As estreitas relações entre os bancos dos Estados Unidos e da Europa imediatamente produziram o efeito contaminação. E a crise bancária e recessão que consequentemente atingiram a Europa enfatizaram drasticamente as dificuldades e inconsistências existentes no projeto de integração da Zona do Euro. Os países mais frágeis e menos competitivos daquela Zona, que haviam assumido enormes dívidas na fase de liquidez abundante e benefícios iniciais da unificação, entraram em colapso. Nesse novo ambiente muito mais adverso tornou-se claro que o problema dessas economias periféricas não era apenas o endividamento, mas antes de tudo a falta de competitividade. Esse problema, por sua vez, se tornou muito mais complexo frente à impossibilidade de que esses países pudessem lançar mão de desvalorizações cambiais, o que os deixava apenas as dolorosas opções de cortes reais de salários nominais e/ou aumento da inflação. Os Estados Unidos enfrentaram a crise de uma forma que agrediu constrangedoramente aos princípios de uma economia de mercado. Após uma breve tentativa de apego a esses princípios no problema do Lehman Brothers, praticamente todos os médios e grandes bancos americanos foram salvos com diferentes formas de utilização do dinheiro público. E o FED passou a utilizar doses ainda mais maciças do remédio que em parte havia contribuído para o surgimento da crise: a redução ainda maior da taxa de juros e a expansão também muito maior da injeção de liquidez na economia. Estado Atual Esses remédios continuam sendo usados até hoje e estão afetando, para o mal ou para o bem, as economias de todos os países do mundo. Tanto as economias dos Estados Unidos como da Europa já foram afastadas da beira do abismo onde balançaram perigosamente por algum tempo. Mas a recuperação vacilante de que desfrutam ainda continua dependendo da injeção maciça desses estranhos remédios do excesso de ativismo monetário. Nos Estados Unidos, a recuperação parece ter adquirido certa consistência, mas ainda se dá a taxas inferiores ao crescimento potencial da economia, de forma que o desemprego continuará elevado por muito tempo. Além disso, o problema do crescente e insustentável desequilíbrio fiscal de médio e longo prazo continua em aberto, pois republicanos e democratas não chegam a um acordo para lidar com essa questão crucial. Agências de avaliação de risco já sinalizaram a possibilidade de rebaixamento da classificação atual dos Estados Unidos. O resgate da crise das economias mais frágeis do sul da Europa tornou-se um desafio para o qual até agora não se vislumbra uma resposta concreta. O suporte financeiro concedido pela União Européia e Fundo Monetário Internacional à Grécia, Irlanda e mais recentemente Portugal, apenas adiam uma solução real para o problema Já há um nítido “cansaço de reformas” que impõem pesados sacrifícios a economias já em recessão, sem resultar no ganho de competitividade e retomada do crescimento que tornem suas dívidas auto-gerenciáveis. A situação atual de endividamento de Grécia, Irlanda e possivelmente Portugal é, essencialmente, a mesma em que se encontravam os diversos países (principalmente da América Latina) no final da década dos 80, quando foram resgatados pelo Plano Brady. A enorme expansão de liquidez que vem sendo criada pelos Estados Unidos desde 2008 transbordou para o mundo inteiro e se somou à demanda da China para produzir um forte aumento no preço das commodities e dos ativos de risco em geral. Num ambiente em que muitas economias emergentes já vinham crescendo a taxas elevadas, o resultado óbvio foi o surgimento de pressões inflacionárias em vários desses países, como China, Brasil e Índia. A necessidade de elevar as taxas de juros nesses países entra em conflito com a sobre-valorização da taxa de câmbio que tem resultado do excesso de liquidez externa, e agrava os conflitos da política econômica. As Perspectivas O aumento da inflação na área já forçou o Banco Central Europeu a promover uma primeira elevação da taxa de juros, e outras provavelmente serão terão que ocorrer ainda esse ano. Isso é algo que pode ser facilmente suportado por algumas economias da região, como a Alemanha, mas que torna ainda mais dramática a crise nos países mais frágeis. Há bastante tempo os mercados se convenceram de que uma reestruturação de dívidas é algo inevitável, pelo menos para a Grécia. E experiências bem sucedidas como a do Plano Brady, que descrevemos resumidamente acima, mostram o tipo de caminho a ser percorrido. Por que então as autoridades da União Européia e do FMI continuam empurrando o problema com a barriga, enquanto a crise, o risco de contaminação e o 2 www.maximaasset.com.br [email protected] Av. Atlântica 1130, 14º andar - Copacabana Rio de Janeiro RJ 22021-000 Tel: 55 21 3820-1777 Fax: 55 21 3820-1795 ANÁLISE ECONÔMICA Maio 2011 sofrimento do povo nesses países aumentam cada vez mais? Achamos que não há justificativas para essa atitude. Mas as dificuldades são agora provavelmente maiores do que aquelas encontradas pelas autoridades que conceberam e executaram o Plano Brady. A reestruturação da dívida de qualquer país de uma Área de Integração Econômica como a Zona do Euro é algo que inevitavelmente atinge a credibilidade de toda região e os próprios fundamentos do projeto. Principalmente se o ônus dessa reestruturação tiver que ser parcialmente assumido por países de fora da área de integração. Sabe-se também que a magnitude do desconto que teria que ser imposto à dívida grega para torná-la, daí em diante, auto-gerenciável, imporia a alguns bancos credores da própria Zona do Euro perdas que no momento atual eles não poderiam suportar. Há, portanto, também o risco de que a reestruturação das dívidas de economias relativamente pequenas, como as da Grécia, Irlanda e Portugal, acabe por gerar um efeito contaminação para a credibilidade de outras muito maiores, como a da Espanha. As dificuldades são desafiadoras, mas elas terão que ser enfrentadas, sob pena de que a deflagração de uma crise muito mais grave seja apenas uma questão de tempo. Qualquer caminho bem sucedido provavelmente terá que incluir um prévio reforço de capital para alguns bancos, o que também exigiria uma atualização de testes de stress bem realistas. A política monetária fortemente expansionista dos Estados Unidos certamente foi decisiva para a recuperação econômica que ora se observa, mas não poderia deixar de começar a produzir alguma pressão inflacionária também naquele país. Diante disso o FED já anunciou que em meados desse ano irá finalizar a injeção adicional de liquidez nos mercados (compra líquida de títulos públicos, o chamado QE2. Ou seja, não haverá um QE3). Se a recuperação econômica se sustentar, como se espera, os passos seguintes serão no sentido de começar a reduzir o estoque de liquidez e, em algum momento, dar início ao ciclo de elevação da taxa de juros. Obviamente, o reconhecimento pelos mercados de que uma mudança na política monetária americana já está delineada leva a importantes movimentos de antecipação. É isso que temos visto nas últimas semanas (por enquanto, quedas fortes dos preços das commodities no mundo e das bolsas nos países emergentes, entre outros). A pergunta que se coloca sobre as perspectivas da economia e dos mercados mundiais é a seguinte: se a política monetária na Europa e nos Estados Unidos vai começar a ser menos expansionista, é porque a atividade econômica já está em recuperação. Ou seja, a recessão foi superada. Então por que os mercados reagiriam mal? Ainda existem riscos que tornam a probabilidade de um ambiente econômico negativo para os próximos meses ou anos algo significativamente elevado (não menos que 30%, eu diria). Os riscos principais são os seguintes: 1. que o governo norte-americano demore excessivamente a aprovar um plano de ajuste fiscal para o médio e longo prazo. Isso poderia acrescentar enormes dificuldades ao desafio do FED de iniciar um ciclo de aperto monetário para evitar a alta da inflação; 2. que as autoridades da Zona do Euro e do FMI não sejam capazes de organizar um plano de reestruturação da dívida da Grécia – e possivelmente de Irlanda e Portugal – sem produzir nova crise bancária e um efeito contaminação para as economias maiores da região (a primeira candidata seria a Espanha, quarta maior economia da Zona do Euro); 3. que a prevalência dessas incertezas combinada com o início do ciclo de aperto monetário no mundo desenvolvido promova forte reversão da tendência recente do preço das commodities e dos ativos de risco em geral, o que atingiria várias economias emergentes, dentre as quais o Brasil. Os países emergentes exportadores de commodities, e o Brasil em particular, continuam fortemente dependentes das importações chinesas. Obviamente uma redução do crescimento do PIB da China para algo significativamente inferior a 8% ao ano também contribuiria para uma queda consistente dos preços de produtos com grande peso na pauta de exportações dos emergentes. Dadas a complexidades e peculiaridades da economia chinesa esse é um tipo de risco mais difícil ainda de se avaliar, que costuma ser objeto de grandes divergências mesmo entre os maiores especialistas. A crise de 2008 teve um impacto muito forte, mas de curta duração, sobre a economia brasileira. A reação eficaz do banco central à ameaça de crise bancária foi muito importante. E a rápida recuperação da demanda chinesa e a forte expansão monetária oriunda dos Estados Unidos produziram ao longo do tempo a continuidade do ciclo de aumento dos preços das commodities, que continuou favorecendo enormemente os nossos termos de troca. Agora um novo ciclo está começando. A ameaça de inflação é uma realidade para o mundo inteiro e exigirá uma gradual, mas consistente, política de aperto monetário. Enquanto isso o mundo desenvolvido ainda não superou algumas das graves seqüelas da crise econômica que abalou suas economias em 2008. Doravante cada país emergente terá que voltar a depender, cada vez mais, dos seus próprios recursos e da qualidade da sua política econômica doméstica. O Brasil está relativamente bem preparado, mas a perda de graus de liberdade comparativamente ao período 2003-2010 parece evidente. 3 www.maximaasset.com.br [email protected] Av. Atlântica 1130, 14º andar - Copacabana Rio de Janeiro RJ 22021-000 Tel: 55 21 3820-1777 Fax: 55 21 3820-1795