1 FÍSTULAS DIGESTIVAS Maria Isabel T. D. Correia Profa. Titular de Cirurgia Faculdade de Medicina Universidade Federal de Minas Gerais Generalidades As fístulas digestivas são definidas como comunicação anormal entre vísceras ocas (fístulas internas) ou entre estas e a pele (fístulas externas). Podem ser congênitas ou adquiridas, sendo as últimas pós-operatórias, traumáticas ou espontâneas. A maioria das fístulas digestivas adquiridas ( 75 - 85 % ) são pós-operatórias1. Podem se apresentar sob a forma de quadros dramáticos, com mortalidade significativa. Assim, o adequado manuseio dessa complicação por cirurgião mais experiente implica em evidente redução da morbidez e mortalidade. Por exemplo, não é incomum, em algumas situações de abordagem cirúrgica precoce, ao identificar o orifício fistuloso da anastomose, especialmente quando pequeno, o cirurgião inexperiente acreditar que um simples ponto no local corrigiria o problema. Entretanto, pelas condições locais, o que frequentemente se observa é a ampliação do orifício após o manuseio. Evitar atitudes “heróicas” é salutar, sob todos os aspectos. O tratamento primário das fístulas digestivas pósoperatórias é conservador, reservando-se a abordagem cirúrgica para casos de insucesso. Classificação Existem múltiplas classificações de fístulas digestivas mas as que trazem maior informação prática são as estabelecidas de acordo com critérios anatômicos, fisiológicos e etiológicos. Os dados anatômicos estão relacionados com os procedimentos cirúrgicos previamente executados, fatores de risco para o surgimento da fístula ou, por meio de realização de ultrassonografia abdominal, tomografia computadorizada, ressonância magnética do abdome e estudos radiológicos contrastados convencionais ou administrando o contraste pelo trajeto da fístula. Os primeiros métodos de imagem citados quase sempre localizam coleções purulentas intra-abdominais. O estudo contrastado através do orifício externo da fístula é o que traz maiores informações anatômicas da fístula, mas não substitui os demais métodos pois fornece informações distintas. O manuseio do trajeto da fístula deve ser cuidadoso e preferencialmente realizado alguns dias após a instalação, quando ocorrer estabilização da fístula, com bloqueio peritonial do trajeto, permitindo a realização do estudo. As fístulas podem ser internas, externas, envolvendo múltiplos órgãos, com ou sem descontinuidade total, com ou sem obstrução distal, de trajeto curto ou longo (tendo como base dois centímetros) e com defeitos na parede intestinal maiores ou menores do que um centímetro de diâmetro. Alguns fatores que influenciam a cicatrização espontânea das fístulas estão listados na tabela 11. A classificação fisiológica leva em consideração o débito da fístula em 24 horas e assume grande importância ao identificar os pacientes que terão perdas maiores de líquidos, 2 eletrólitos e proteínas. Nestes o índice de morbimortalidade é maior1. O débito da fístula não é marcador prognóstico da cicatrização espontânea. As fístulas são consideradas de baixo débito quando o volume drenado em 24 horas, no paciente em jejum, é inferior a 200mL, de débito moderado quando esse está entre 200 e 500mL e de alto débito se o volume ultrapassa 500mL por dia. Do ponto de vista prático, classificar a fístula como de baixo ou alto débito é suficiente na programação terapêutica e, do ponto de vista prognóstico geral2. A classificação etiológica é importante pois a causa da fístula por si só é fator preditivo isolado de cicatrização espontânea. Cerca de 15 a 25 % das fístulas são espontâneas e são frequentemente as mais complexas, apresentando baixo índice de cicatrização com o tratamento conservador1. Estão na maioria dos casos associadas a radioterapia, doença inflamatória intestinal, isquemia intestinal, diverticulite do sigmóide, apendicite, pancreatite ou neoplasias malignas. As fístulas pós-operatórias respondem por 75 a 85 % de todas as fístulas enterocutâneas1. As típicas ocorrem do quinto ao décimo dia pós-operatório e resultam de falha de cicatrização da anastomose, seja por tensão na linha de sutura, vascularização deficiente ou erro técnico do cirurgião. As demais fístulas pós-operatórias decorrem de lesão não identificada da parede da víscera durante dissecção ou, na síntese da parede abdominal. Fisiopatologia O aparecimento de fístula digestiva depende de vários fatores, isolados ou associados, relacionados ao paciente ou mesmo ao cirurgião. Há condições gerais que podem propiciar o aparecimento da fístula, tais como desnutrição grave, imunossupressão, radioterapia, quimioterapia, presença de câncer e uso prolongado de corticóides. Dentre as condições locais, salientam-se vascularização deficiente na linha de sutura, presença de peritonite infecciosa e anastomose realizada em área intestinal previamente doente (doença inflamatória intestinal, neoplasia etc). O papel do cirurgião é importante visto que ligaduras vasculares inadequadas, anastomose sob tensão e falhas técnicas na execução podem levar ao aparecimento de fístulas iatrogênicas. Chama muita atenção o fato de que cerca de metade das fístulas de intestino delgado que surgem no pósoperatório estão associadas a lesão inadvertida e não às anastomoses ou suturas intestinais1. O conjunto dos fatores fisiopatológicos relatados leva a resultados muito diferentes em variadas situações, como descrito a seguir. A fístula após gastrectomia por câncer ocorre entre 5 e 10% dos casos e tem mortalidade de 50 a 75%. Se a mesma operação é realizada por doença benigna, o índice de fistulização é de 1 a 3%. A localização anatômica da fístula é outro fator que influencia no índice de mortalidade. Por exemplo, a mortalidade geral dos portadores de fístula duodenal é de 30%1. Quadro clínico A possibilidade do aparecimento de fístula digestiva pode ser presumida pelo cirurgião. É importante conhecer que essa pode ocorrer sem nenhum fator indicativo geral ou local e sem falha técnica por parte do cirurgião. Nas situações de mais alto risco, como por exemplo, após sutura duodenal de úlcera perfurada com intenso processo inflamatório na parede intestinal, o cirurgião deve optar pela colocação de dreno sentinela nas 3 proximidades da sutura. O objetivo é dirigir a possível drenagem para o exterior, estabelecendo diagnóstico mais precoce e diminuindo a possibilidade de formação de abscesso intra-abdominal ou peritonite difusa. Em outro grupo de pacientes, com menor possibilidade do aparecimento de fístulas digestivas, não são posicionados drenos abdominais, pois os mesmos também podem gerar complicações como infecção e até erosão da parede intestinal, passando então à condição de agentes causadores de fístula. Frequentemente o pós-operatório dos portadores de fístula digestiva não é o habitual, sendo observados distensão abdominal, náuseas e vômitos, dismotilidade gastrointestional mais prolongada que o esperado, taquicardia persistente e febre. Nos pacientes sem drenos abdominais, além da evolução abdominal arrastada, em geral, a partir do 4o e até o 10o dia pós-operatório surgem sinais de infecção na ferida cirúrgica tais como dor, rubor, calor e edema. A drenagem cirúrgica ou espontânea permite a eliminação de secreção purulenta e digestiva, configurando a fístula externa. No paciente com dreno abdominal pode ocorrer processo idêntico ao observado no doente sem dreno ou a secreção purulenta e digestiva se exterioriza através do dreno sentinela. Em um número menor de casos, não há exteriorização de secreção digestiva pelo dreno ou pela incisão cirúrgica e o paciente evolui com quadro de peritonite difusa ou de abscesso intraabdominal. Na primeira circunstância, à laparotomia o cirurgião se depara com secreção digestiva e purulenta na cavidade abdominal e a detalhada inspeção da anastomose permite identificar o sítio do extravasamento digestivo. Na segunda situação, ao drenar o abscesso intra-abdominal obtém-se secreção purulenta e digestiva. Há situações de fístula de débito muito baixo em que é duvidosa a caracterização pois o aspecto da secreção drenada deixa dúvidas de que se trata de secreção digestiva. Nesta oportunidade pode-se lançar mão da administração de azul de metileno por via oral, que tingirá a secreção drenada em caso de fístula. Diagnóstico O diagnóstico é firmado ao se encontrar secreção digestiva no conteúdo proveniente do dreno abdominal ou nas drenagens de incisões cirúrgicas espontâneas ou operatórias. Quando o paciente apresenta abscesso intra-abdominal o diagnóstico segue as etapas descritas anteriormente. Se o doente se apresenta com peritonite difusa sem exteriorização de secreção digestiva, o diagnóstico prévio será o do acometimento peritonial, com suspeita de fístula digestiva. Neste caso, o paciente apresenta dor abdominal difusa, distensão abdominal, sinais de irritação peritonial, febre, taquicardia, sequestro de líquidos e oligúria. A avaliação laboratorial pode evidenciar distúrbio hidro-eletrolítico, leucocitose com desvio à esquerda e elevação de escórias. A radiografia simples de abdome demonstra distensão de alças intestinais com níveis hidroaéreos e mesmo sinais de líquido peritonial aumentado. A ultrassonografia abdominal fica prejudicada pelo excesso de gases abdominais mas pode demonstrar espessamento da parede das alças intestinais e presença de líquidos na cavidade peritonial. A tomografia abdominal computadorizada não é afetada pela presença de gases, demonstra espessamento e distensão das alças intestinais e presença de líquido na cavidade peritonial. Em relação à ultrassonografia abdominal, a tomografia tem a desvantagem da irradiação e do maior custo. Estabelecido o diagnóstico de peritonite difusa, a laparotomia permite que se conclua quanto à etiologia do processo 4 e firma o diagnóstico de fístula, por meio do encontro de secreção digestiva na cavidade peritonial. A detalhada inspeção da anastomose permite caracterizar melhor a fístula. Tratamento A fístula digestiva tem por ter espectro de apresentações muito amplo, pode evoluir de distintas maneiras, desde quadros catastróficos até àqueles sem qualquer repercussão no paciente como um todo. O diagnóstico pode ser até mesmo fortuito. O tratamento às vezes é quase contemplativo. Por outro lado, nos casos de apresentação catastrófica com grande comprometimento do estado geral do paciente, deiscência completa da parede abdominal, lesão grave de pele, septicemia, distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-básicos, síndrome da resposta inflamatória sistêmica grave e insuficiência renal, há a necessidade de conhecimento e experiência na abordagem. A rápida evolução para o óbito pode ocorrer na falha terapêutica. As bases do tratamento do portador de fístula digestiva são drenagem adequada, tratamento da infecção associada por meio de antibioticoterapia e drenagem de abscessos intra-abdominais, correção dos distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-básicos, terapia nutricional e cuidados com a pele. É rotineiro o jejum absoluto por via oral, especialmente nas fístulas proximais. Neste grupo, quando a fístula é de alto débito, diferentemente do que pensamos, alguns autores utilizam cateter nasogástrica para reduzir a drenagem da fístula2. Algumas drogas, também visando redução do débito da fístula têm sido empregadas, como veremos adiante. Colas biológicas podem ser utilizadas, no intuito de se tentar obter fechamento mais precoce das fístulas. Nos casos de insucesso com o tratamento conservador, institui-se a abordagem cirúrgica da fístula. Drenagem externa adequada Quando se estabelece o diagnóstico pela exteriorização de secreção digestiva é fundamental analisar o contexto do aparecimento. Nos casos de pequena drenagem espontânea de secreção digestiva na ferida cirúrgica sem qualquer repercussão geral pode-se apenas observar. Em algumas oportunidades, sob anestesia local, amplia-se cirurgicamente a área de deiscência da incisão cirúrgica para facilitar a drenagem. Se o paciente tem peritonite difusa com repercussão significativa é necessário operá-lo, em caráter de urgência. Procede-se à coleta de material para estudo bacteriológico, à adequada limpeza da cavidade peritonial, à identificação e caracterização da fístula e drenagem para o exterior, com drenos tubulares, preferencialmente de silastic. Não está indicada a sutura do orifício fistuloso pois, quase invariavelmente, haverá deiscência com ampliação da lesão e piora do prognóstico. Caso a fístula se estabeleça no paciente com sinais de bloqueio peritonial, o tratamento inicial é conservador. Se durante a evolução, pós-estabelecimento da fístula, surgirem sinais de retenção de secreção (dor abdominal, febre, distensão abdominal, taquicardia, queda abrupta do volume drenado) é necessário proceder-se a drenagem adequada, seja por manuseio de drenos abdominais seja por drenagem cirúrgica clássica ou percutânea. Sempre que possível a drenagem deve ser obtida por via percutânea ou por incisões localizadas, visando impedir a contaminação do restante da cavidade abdominal em paciente com estado geral frequentemente comprometido 5 A secreção drenada deve ser mensurada, diariamente, e ter o aspecto analisado pelo cirurgião. O melhor sistema parece ser a manutenção de aspiração contínua das secreções, sob baixa pressão, para não ocasionar lesão tecidual. Esta abordagem ajuda na proteção da pele, reduzindo o contato da secreção com a mesma, facilita a quantificação do volume drenado e torna a drenagem mais eficaz. Apesar de alguns autores reintroduzirem a secreção drenada nos pacientes que têm jejunostomia à jusante de fístulas altas3 , não nos parece adequada a técnica pois é comum diarreia sequencial, por contaminação da secreção digestiva. Ademais, há outras maneiras de se repor esta perda. O método selante a vácuo representa alternativa moderna e atraente para o tratamento de fístulas digestivas e já foi utilizado com sucesso em humanos. Trata-se de criar barreira semi-permeável envolvendo a área da fístula com polímero hidrofóbico sintético acoplado a câmara de vácuo. Isto mantém a secreção digestiva no interior da alça intestinal. Um dos relatos da literatura, descreve o débito da fístula que era em média de 800mL por dia tendo diminuído imediatamente para 10mL em 24 horas. A cicatrização da fístula e da ferida cutânea ocorreu em 50 dias de tratamento4. A experiência ainda é muito pequena para se obter quaisquer conclusões. Tratamento da infecção associada Quase sempre na fase inicial da fístula digestiva coexiste infecção. Nesta situação, tão logo se obtém material para estudo bacteriológico, inicia-se a antibioticoterapia empírica, baseada na microbiota relacionada ao órgão acometido pela fístula. Quando se estabelece adequado bloqueio peritonial e drenagem efetiva da fístula, os antibióticos só devem ser usados se houver evidências de infecção. Tardiamente é comum a infecção polimicrobiana e envolvendo inclusive germes hospitalares. Sempre que houver abscesso intra-abdominal, seja este próximo ou não do orifício fistuloso interno, a drenagem se impõe. O tratamento cirúrgico do abscesso abdominal foi descrito anteriormente. Em pacientes com sinais de sepsis não relacionados a flebite superficial, endocardite, infecção urinária, de ferida cirúrgica, de cateter central ou pulmonar e que apresentam tomografia abdominal normal ou inconclusiva deve-se realizar laparotomia exploradora5. O adequado controle da infecção é fundamental no tratamento desses pacientes Um estudo revelou índice de cicatrização de fístulas digestivas de 90% em um mês em doentes com controle da infecção. Nos casos em que a abordagem da sepsis não foi efetiva, a cicatrização espontânea ocorreu em apenas 6% dos casos e a mortalidade atingiu 85% dos pacientes5. Correção dos distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-básicos Fístulas de baixo débito e distais no aparelho digestivo são de mais fácil controle do ponto de vista hidroeletrolítico e ácido-básico. Entretanto, mesmo neste grupo de pacientes é fundamental o balanço diário de ofertas e perdas para a reposição hidroeletrolítica. O volume de água e eletrólitos a ser administrado baseia-se nas necessidades diárias estimadas acrescidas das perdas detectadas. O volume urinário deve ser regularmente mensurado A dosagem, pelo menos, semanal de eletrólitos no plasma orienta a suplementação. Pacientes com fístulas proximais e de alto débito têm alto risco de desenvolver complicações maiores como distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-básicos graves, 6 insuficiência renal pré-renal e óbito. As perdas podem suplantar quatro a seis litros a cada 24 horas2. Neste grupo de doentes o balanço de ofertas e perdas deve ser realizado não mais diariamente mas a cada intervalo de quatro a seis horas. A reposição leva em consideração perdas estimadas e não apenas as já ocorridas sob pena de não haver mais tempo hábil para corrigi-las. A dosagem de eletrólitos é realizada diariamente. Terapia nutricional Pacientes com fístula digestiva apresentam, na grande maioria, quadro concomitante de desnutrição grave. Este é, em geral, decorrente do processo hipercatabólico associado à infecção, do longo período de jejum associado ou não a dismotilidade intestinal prolongada e, de outras causas prévias à operação. De sorte que, a Terapia Nutricional deve ser indicada o mais precocemente possível. Desta maneira, tenta-se evitar a piora progressiva do estado nutricional, que é por si só fator de mau prognóstico para que ocorra cicatrização espontânea da fístula6. A opção pelo tipo de tratamento nutricional (parenteral ou enteral) deve levar em conta a localização e o débito da fístula, ainda que numa fase inicial, quase sempre, se deva optar pela administração de nutrição parenteral (NP). Esta atitude é justificada pela necessidade de garantir, de imediato, a oferta de nutrientes a pacientes já previamente desnutridos, e que em geral, apresentam dismotilidade gastrointestinal associada, o que dificulta a administração de nutrição enteral. A nutrição parenteral poderá ser feita em veia periférica ou central. No entanto, o acesso central (veias subclávias ou jugulares, via de regra) é, quase sempre o mais indicado, pois de antemão se sabe que o tempo médio para a cicatrização de uma fístula é de quatro a seis semanas. A nutrição parenteral periférica está indicada para pacientes com perspectiva de uso de NP por tempo inferior a quinze dias. Após o estabelecimento e controle da fístula, mesmo em pacientes já em uso de NP, a nutrição enteral poderá ser usada. Via de regra, em pacientes com fístulas de baixo débito, quando estas estão localizadas no trato gastrointestinal baixo ou no caso de localização no trato gastrointestinal alto quando se dispõe de acesso enteral à jusante do orifício fistuloso (cateter ou ostomia) devemos usar a nutrição enteral. Se houver aumento significativo do débito da fístula, esta forma de tratamento deve ser reavaliada. Pode optar-se por interromper a nutrição enteral ou apenas diminuir o volume de infusão e associar NP. Nos pacientes que não apresentaram aumento significativo do débito da fístula com a nutrição enteral e, assim que as necessidades nutricionais sejam alcançadas, deve-se suspender a NP. Ao se prescrever nutrição enteral é importante determinar o tipo de fórmula a ser usado. De preferência, as fórmulas oligoméricas que são mais facilmente absorvidas devem ser prescritas. O uso de nutrientes imunoestimulantes, como arginina, RNA, glutamina e ácidos graxos Omega-3 parece trazer benefícios a pacientes com quadros de resposta inflamatória sistêmica. No entanto, o assunto ainda é controverso. Além disso, não existem, no mercado, fórmulas oligoméricas prontas contendo estes nutrientes, o que representa a necessidade de serem adicionados, o que ocasiona maiores riscos de contaminação das fórmulas enterais. A nutrição parenteral é o tratamento de escolha para pacientes com fístulas de alto débito. Todavia, sempre que possível, o mínimo de nutrição enteral deve ser ofertado, com intuito de estimular os enterócitos. Isto pode ocorrer tanto em pacientes com fístulas do trato gastrointestinal baixo (cateter posicionado no estômago) ou alto (cateter ou ostomia 7 à jusante do orifício fistuloso). Muito se tem discutido sobre a adição da glutamina à fórmula de parenteral. A glutamina é um aminoácido não essencial que em situações de estresse ou desuso total do trato gastrointestinal passa a ser essencial7. Trabalhos recentes têm demonstrado nítido benefício da suplementação de glutamina, na dose de até 500 mg/Kg/dia, por via parenteral, em pacientes que não apresentem insuficiência renal8. Cuidados com a pele As secreções digestivas são ricas em enzimas lesivas para a pele. Mesmo em pacientes em uso de drenos abdominais ocorre extravasamento de secreção para a pele circunjacente com consequente lesão cutânea. Estas são dolorosas, têm aspecto de queimadura, propiciam o aparecimento de infecção secundária e impressionam negativamente o paciente. As fístulas proximais dão vazão a secreção mais lesiva do que as distais. O ideal é iniciar precocemente as medidas protetoras da pele, antes mesmo do estabelecimento de lesões mais significativas. Não há processo ideal de prevenção. O cirurgião deve lançar mão dos métodos conhecidos adaptando-os a cada caso. Nos portadores de fístula digestiva é bastante comum a técnica “tentativa-erro” com modificações e adaptações durante a evolução da fístula9. Devem ser considerados o custo, a disponibilidade dos materiais, o conhecimento dos produtos e a criatividade do cirurgião. Como já referido, parece-nos válido manter aspiração contínua sob baixa pressão, limitando assim o volume drenado que pode entrar em contato com a pele. Esta conduta é amplamente empregada mas não é de aceitação geral10. Quando a fístula é de alto débito, utilizam-se bolsas coletoras se há integridade da parede abdominal. A bolsa deve ser drenável para se evitar a troca freqeente, o que agrava a lesão cutânea, e preferencialmente dever ser transparente para permitir a avaliação do aspecto da secreção drenada. O sistema de aspiração contínua é posicionado no cateter plástico colocado no dreno abdominal ou no trajeto fistuloso, através da bolsa coletora. Se a fístula drena volumes pequenos, como por exemplo 50mL em cada 24 horas, usamse gazes absorventes e não bolsas. Alguns preconizam utilização de bolsas se houver necessidade de trocar curativos de gazes com intervalos inferiores a quatro horas9. Há autores que contraindicam o uso de gazes mesmo neste grupo de pacientes10. Nos pacientes com deiscência da parede abdominal é muito mais difícil adaptar bolsas coletoras que são então fixadas por cintos envolventes no abdome9. Pessoalmente preferimos utilizar o sistema de aspiração contínua associado ao uso de compressas cirúrgicas esterilizadas, nestes pacientes Utilizam-se substâncias com o objetivo de constituir camada protetora na pele, tais como pasta de alumínio ou zinco, cimento branco, clara de ovo, gelatina, colóide elástico e outros. Uso de drogas O jejum por via oral como parte integrante do tratamento da fístula digestiva baseia-se na expectativa de reduzir as secreções digestivas circulantes na área da fístula, com o objetivo de facilitar a cicatrização espontânea. Na tentativa de reduzir mais ainda a secreção digestiva, várias substâncias podem ser utilizadas, como por exemplo a somatostatina ou o análogo, octreotide. Estas substâncias reduzem a circulação esplâncnica e, assim, diminuem significativamente a secreção digestiva. Alguns estudos 8 comparando utilização ou não de somatostatina ou octreotide demonstraram percentual de cicatrização idêntico, porém no grupo que utilizou a droga houve redução de até sete dias no tempo de cicatrização da fístula. Parece que apesar de reduzir o tempo de cicatrização da fístula, o período de hospitalização e a mortalidade não são afetados 12. Como essas drogas têm custo alto, não fazem parte da rotina no tratamento das fístulas em todos os Serviços cirúrgicos. Há inclusive citação retrospectiva na qual se observou aumento no índice de complicações trombóticas em pacientes em uso de octreotide comparado aos que não utilizaram a droga10. Colas biológicas Mais recentemente tem-se lançado mão da utilização de colas biológicas com o intuito de propiciar cicatrização da fístula digestiva. A cola pode ser introduzida por via endoscópica, através do orifício interno ou externo, após desbridamento e limpeza do trajeto fistuloso. A experiência ainda é pequena mas os resultados iniciais parecem ser promissores. Abordagem cirúrgica da fístula Considera-se que o período médio de cicatrização espontânea da fístula digestiva seja de quatro a seis semanas. Há fatores que impedem a cicatrização da fístula, tais como infecção local associada, presença de corpo estranho, atapetamento mucoso do trajeto fistuloso, fístula terminal, obstrução distal à fístula, desnutrição grave, neoplasia ou doença inflamatória comprometendo o segmento intestinal. O cirurgião indica o tratamento operatório para complementar o tratamento conservador (por exemplo, drenar abscessos intra-abdominais) ou para abordar diretamente a fístula que não cicatrizou após seis a oito semanas de tratamento adequado. Pode-se também em alguns casos optar por realizar desvio do trânsito intestinal e não a abordagem direta da fístula (por exemplo, realização de colostomia). As operações de desvio tem a desvantagem de não garantir a cicatrização da fístula além de requerer nova intervenção cirúrgica posterior para reconstrução do trânsito intestinal. O uso da endoscopia intervencionista mostra-se promissora nas fístulas gastroduodenais e de cólon. Sete pacientes com fístulas gástricas tiveram o trajeto da fístula obliterado por cola de fibrina injetada por via endoscópica, em várias sessões. Todas as fístulas cicatrizaram e não houve complicação neste grupo12. Os resultados foram semelhantes no tratamento de três pacientes utilizando-se a mesma técnica em outro Serviço de endoscopia13. Nove pacientes com fístulas digestivas altas foram tratados por meio de fistuloscopia, desbridamento, limpeza e preenchimento do trajeto com cola de fibrina. Foram necessárias de uma a quatro sessões (média de duas), realizadas quatro a 19 dias depois do diagnóstico (média de 12 dias). Não houve complicações e todas as fístulas cicatrizaram dois a 46 dias após o procedimento (média de 18,7 dias )14. Não é possível com este trabalho avaliar a eficácia desta técnica, mas o método representa uma alternativa no tratamento menos intervencionista dos portadores de fístula digestiva. Prognóstico Mesmo com os avanços obtidos, a mortalidade dos portadores de fístula digestiva ainda é alta, no geral oscilando entre 6,5% e 21%10. Há, no entanto estatísticas recentes em que os índices atingem 37%. Isto se deve à heterogeneidade dos pacientes e das fístulas. Nos 9 casos de fístulas proximais de alto débito, a mortalidade deve-se principalmente a distúrbios hidroeletrolíticos, insuficiência renal, infarto agudo do miocárdio, embolia pulmonar e acidente vascular cerebral. Já nas fístulas mais distais, o principal mecanismo de óbito é a infecção com síndrome da resposta inflamatória sistêmica grave e falência orgânica multissistêmica. É difícil concluir com segurança que a presença ou ausência de um fator prognóstico isolado possa influenciar significativamente no índice de mortalidade dos pacientes com fístula digestiva. Entretanto é interessante conhecer estes fatores prognósticos, que se encontram listados na tabela 26. Tabela 1 Fatores anatômicos que influenciam na cicatrização espontânea de fístulas digestivas Favoráveis Desfavoráveis Manutenção da continuidade Fístula terminal Sem abscesso associado Intestino adjacente sadio Fluxo distal livre Esofágica Côto duodenal Jejunal Trajeto > 2 cm Orificio interno < 1 cm Descontinuidade intestinal Fístula lateral Com abscesso associado Intestino adjacente doente Obstrução distal Gástrica Duodenal lateral Ileal Trajeto < 2 cm Orificio interno > 1 cm 10 Tabela 2 Fatores que influenciam a mortalidade em pacientes com fístulas gastrointestinais Fator Favorável Desfavorável Característica da fístula Trajeto fistuloso longo Continuidade intestinal Ausência de obstrução Trajeto fistuloso curto Eversão da mucosa Intestino adjacente doente Evisceração Oclusão distal Defeito na parede abdominal Órgão de origem Gástrica Bíleo-pancreática Cólon Duodeno Jejunoileal Complicações (sepsis) Ausente Presente Etiologia Doença inflamatória intest. Deiscência de anastomose Malignidade Idade <50 anos >50 anos Origem do paciente Mesmo hospital Transferido Débito da fístula <500 mL /dia >500mL /dia Desnutrição Ausente Presente Duração da fístula Crônica Aguda 11 Bibliografia 1. Berry S, Fischer JE. Classification and Pathophysiology os Enterocutaneous Fistulas. Surg Clin N Am 1996; 76: 1009-18. 2. Foster EF, Lefor AT. General management of gastrointestinal fistulas. Surg Clin N Am 1996; 76: 1019-33. 3. Bisset IP. Postoperative small bowel fistula: back to basics.Trop Doct 2000; 30:138-40. 4. Hyon SH, Martinez-Garbino JA, Benati ML, Lopez-Avellaneda ME, Brozzi NA. Management of a high-output postoperative enterocutaneous fistula with a vacuum sealing method and continuous enteral nutrition. Asaio J 2000;46:511-14 5. Rolandelli R, Roslyn JJ. Surgical management and treatment of sepsis associated with gastrointestinal fistulas. Surg Clin N Am 1996; 76: 1111-22. 6. Campos ACL, Meguid MM, Coelho JCU. 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