Natureza em construção - Bresser

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Natureza em construção
PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE CHICAGO, MARSHALL SAHLINS FALA
DE SUA EXPERIÊNCIA COM NATIVOS DA OCEANIA E COMPARA A GUERRA DO
IRAQUE AOS CONFRONTOS ENTRE ESPARTA E ATENAS
FRANÇOIS ARMANET
GILLES ANQUETIL
Folha de S. Paulo, 18 de novembro de 2007
Marshall Sahlins, 76, é professor emérito da Universidade de Chicago. Colaborador de Claude
Lévi-Strauss nos anos 1960, Sahlins é considerado o maior antropólogo americano vivo. Ele é
autor de livros como "História e Cultura" (ed. Jorge Zahar) e "Esperando Foucault, ainda"
(Cosacnaify).
Especialista nas culturas do Pacífico, conservou seu espírito de contestador, forjado com a
Guerra do Vietnã, como se verifica na entrevista abaixo. Sahlins também fala da Guerra do
Iraque e a compara aos confrontos entre Atenas e Esparta, na Antigüidade.
PERGUNTA - De origem russa, o sr. nasceu em Chicago, berço de uma grande escola da
antropologia norte-americana. De onde lhe veio o gosto por essa disciplina?
MARSHALL SAHLINS - A Universidade de Chicago de fato foi berço de uma grande escola
de antropologia, mas quando cheguei a ela, em 1973, esse movimento já tinha envelhecido.
Foi a escolha de Radcliffe-Brown para uma cadeira de professor, nos anos 1930, que fez de
Chicago o posto avançado, nos EUA, da antropologia social britânica, ao preço de várias
conciliações com a cultura local, como é o caso nesse gênero de situação colonial.
A universidade ficava no South Side, um bairro que, além da equipe de beisebol rival,
abrigava judeus alemães bastante esnobes, mais cultos e ricos que os judeus originários da
Europa Oriental que viviam no West Side. A gente não se misturava.
Sempre faço questão de acrescentar que tive uma criação inteiramente laica numa família nãopraticante. Quanto à política, minha família não era filiada a nenhum partido, mas minha mãe
admirava Emma Goldman [1869-1940, militante anarquista] e, durante o levante russo de
1905, quando ainda era criança, chegou a transportar folhetos revolucionários escondidos em
sua mala escolar!
Havia, portanto, afinidades entre esse meio de imigrantes esquerdistas do Meio-Oeste
americano e as teorias antropológicas de Leslie White [1900-75], que foi meu mentor na
Universidade de Michigan. White era um dos grandes "intelectuais orgânicos" contestatários
que a América rural e das pequenas cidades produziu na primeira metade do século 20, entre
os quais figuram também Thorstein Veblen, Clarence Ayres, Charles Beard e C. Wright Mills.
Eles eram, por assim dizer, os ateus da aldeia: universitários marginais em revolta contra os
exploradores, as classes dominantes, os dogmas ideológicos da sociedade americana.
PERGUNTA - Em 1965, em plena Guerra do Vietnã, o sr. lançou o primeiro "teach-in"
[manifestação em forma de aula] dos EUA. Poderia nos relatar essa experiência e o papel
que esse evento exerceu em seu pensamento?
SAHLINS - Lancei a idéia de um "teach-in", em oposição ao projeto inicial de "teach-out"
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lançado por cerca de 20 professores, que teria consistido em suspender as aulas para organizar
debates sobre a Guerra do Vietnã, fora do campus.
Diante das críticas virulentas de nossos colegas, propus, então, que ocupássemos as salas de
aula após as aulas, fizéssemos "teach-ins" e criticássemos a guerra até tarde da noite.
É verdade que eu talvez tivesse uma predisposição para as oposições binárias, pois nos anos
1960 os americanos estavam se apaixonando por [Claude] Lévi-Strauss.
Mas existiam, também, condições estruturais mais gerais, especialmente o abismo de
gerações, que se aprofundava nessa época: os estudantes, que até então vinham sendo
aprendizes de adultos burgueses, começavam a imitar a classe operária -Levi Strauss, os
jeans, não os livros!
No pós-guerra havia apenas um tipo de música popular que estava na moda nos EUA, e era
apreciada igualmente por adultos e adolescentes. Então surgiram Elvis e os Beatles,
comprovando que Confúcio e Platão tinham razão ao se preocuparem com a relação entre a
música e a harmonia política.
De fato, já existiam na juventude americana movimentos contraculturais e contestatários
dignos desse nome antes mesmo da intensificação do conflito no Vietnã, em fevereiro de
1965.
Ao reavaliar o papel que desempenhei nessa conjuntura, cheguei à conclusão de que o papel
histórico dos indivíduos autoriza a si próprio uma estrutura -ou seja, uma posição no interior
de um sistema, mesmo se essa posição não basta para determinar o que eles farão.
O poder coletivo pode encarnar-se em um indivíduo: seja por uma iniciativa feliz e oportuna como no caso dos "teach-ins", que tiveram grande sucesso-, seja pela autoridade constituída
do indivíduo agindo na condição de dirigente designado de uma coletividade estruturalmente
organizada para refletir e fazer ouvir tudo o que um George W. Bush pode fazer ou suportar.
Em todos os casos, porém, se esse indivíduo determina o destino da coletividade, esta, por sua
vez, não determina sua própria individualidade. Como diz Sartre, o grupo é obrigado a se
realizar, da mesma maneira como se deixa personificar.
De maneira geral, na esteira da Guerra Fria, a Guerra do Vietnã exerceu impacto considerável
sobre praticamente todas as disciplinas universitárias nos EUA. Considerações políticas e
estratégicas afetaram ou até mesmo ditaram a escolha das pesquisas científicas a serem
empreendidas, das línguas a serem ensinados, das regiões do mundo a serem estudadas.
Se consideramos até que ponto a Guerra Fria impregnou todos os campos de reflexão, a época
se prestava idealmente ao pensamento de Foucault, que, também ele, enxergava o poder por
toda parte.
Globalmente, as ciências humanas e as letras optaram por combater os poderes instituídos,
desenvolvendo uma crítica anti-hegemônica do nacionalismo, do imperialismo, do Estado, do
racismo, do sexismo e de outros demônios planetários. Elas correram o risco de se debaterem
numa contradição inevitável, já que, privilegiando os contradiscursos libertadores da antiestrutura ou da desconstrução, implicitamente ratificaram certos discursos de dominação
como sendo relatos fundadores, mais especialmente a versão foucaultiana.
Mas se, para muitas pessoas, a lição dos anos 1960 foi a de se opor a todas as formas de
poder, a lição do Vietnã me ensinou sobretudo a celebrar todas as formas de cultura. O êxito
dos vietnamitas diante do poderio americano não reforçou minha confiança no determinismo
tecnológico que eu aprendera na universidade.
Um missionário deplorou o fato de
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os havaianos disporem de 20
palavras diferentes para designar o
adultério
Iniciei uma série de estudos sobre o que chamei de a "indigenização da modernidade",
fazendo referência aos diferentes métodos culturais empregados pelos esquimós, os povos da
Nova Guiné, os polinésios etc.
para inscreverem um "sistema mundial" invasor dentro de um contexto ainda mais
englobador: seu próprio sistema do mundo.
PERGUNTA - Em 1968 e 1969 o sr. trabalhou com Lévi-Strauss em Paris. O que tirou
desse confronto?
SAHLINS - É impossível para mim sintetizar tudo o que aprendi nessa época no laboratório
de Lévi-Strauss no Collège de France. Permita que eu resuma essa experiência. Em 1969
apresentei uma pesquisa sobre determinados sistemas de troca tradicionais da Austrália e da
Melanésia, precisando bem, no preâmbulo, que eu não era estruturalista, pois não falava de
uma troca de mulheres ou de palavras, mas de uma infra-estrutura material bastante real e
concreta -cuja análise Lévi-Strauss já concedera a Marx.
Durante a discussão que se seguiu, ele afirmou que eu era estruturalista, sim: afinal, aquilo
que eu demonstrara com relação às trocas materiais correspondia a certas estruturas de troca
matrimonial que ele descrevera em "As Estruturas Elementares do Parentesco" [ed. Vozes].
Protestei, citando o trecho em "O Pensamento Selvagem" [Papirus] em que ele declara que o
estruturalismo é especificamente uma ciência de superestruturas.
"É verdade", ele retrucou, "mas o sr. deve compreender que aprendi antropologia com Franz
Boas [1858-1942] e Robert Lowie [1883-1957], que discutiam com índios de reservas os
costumes de gerações passadas" -ele chamava isso de "arqueologia do vivo". "Ninguém
prestava atenção à existência de índios contemporâneos", ele acrescentou. "Mas hoje é preciso
estender o estruturalismo às infra-estruturas."
Retruquei que eu acreditava que sua restrição do estruturalismo às superestruturas era uma
questão de princípio científico, e não pude me impedir de lhe perguntar: "O que é o
estruturalismo, afinal?". Ele me respondeu: "É a boa antropologia, em suma". E, de fato,
segundo esse critério, admito que eu era estruturalista.
PERGUNTA - Desde quando vem seu interesse pela Polinésia e por Fiji? Pode nos explicar
sua opção por uma etnografia histórica, fundamentada nos arquivos mais que no trabalho
de campo? O que o sr. aprendeu sobre essas sociedades?
SAHLINS - Como muitos homens de minha geração, minha iniciação na antropologia seguiu,
em sua própria escala modesta, a trajetória do primeiro grande mestre americano, Lewis
Henry Morgan [1818-81]. Ele decidiu fazer um estudo de campo sobre as tribos iroquesas
locais e, com isso, inaugurou a tradição etnográfica americana.
Da mesma maneira, minha infância -passada brincando de caubói e índio e lendo os romances
de Fenimore Cooper [1789-1851, de "O Último dos Moicanos"] escritos em falsa linguagem
indígena- me levou a fazer um estudo de campo sobre um tipo de clã incomum, por ser
hierarquizado, que qualificamos como "clã cônico".
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Eu acabava de concluir um estudo das hierarquias políticas polinésias, e era em Fiji que se
podia realizar um estudo etnográfico desse tipo de hierarquia de clã.
PERGUNTA - Por que o sr. escreve que a tradição nessas sociedades do Pacífico pode ser
também uma modalidade de mudança?
SAHLINS - Desde o século 19, os povos do Pacífico, à medida que a sobrevivência de sua
comunidade o permitiu, continuaram a ser atores e motores de suas próprias histórias.
Emprego o plural desse termo propositalmente, pois é sobretudo em suas culturas respectivas
que eles foram buscar os recursos para continuar a serem atores de suas histórias. Logo, a
tradição se tornou o mediador e a medida das transformações por que passaram. Basta estudar
dois exemplos muito distintos de cristianização, ambos seguindo um modelo protestante e até
mesmo puritano: de um lado os urapmins da Nova Guiné, que não demoraram a se perceber
atingidos pelo pecado original e, portanto, se converteram em massa -por contato com outros
povos da Nova Guiné- antes mesmo de terem visto qualquer missionário europeu. E, de outro
lado, os havaianos, sobretudo aqueles das camadas populares, que se mantiveram "devassos"
e resistiram à conversão durante décadas, porque, como freqüentemente observaram os
missionários americanos, "lhes faltava a aversão por eles mesmos".
Eu me contentarei em mencionar alguns elementos culturais para demonstrar essa diferença.
Para começar, o caráter fortemente centralizado da sociedade havaiana, segundo o qual a
existência e a felicidade das camadas populares dependia das ações de seus chefes.
Independentemente de suas próprias convicções, como repetiam aos missionários
desesperados, as pessoas comuns se converteriam ao cristianismo quando seu chefe lhes desse
o exemplo.
Mas, em vista do valor político e material das relações eróticas no sistema -o famoso "espírito
aloha", que governava a sorte tanto dos chefes quanto dos não-nobres-, era difícil convencêlos a praticar a abstinência e a mortificação nas quais os protestantes enxergavam o sinal da
graça divina. Um missionário deplorou o fato de os havaianos disporem de 20 palavras
diferentes para designar o adultério: se ele escolhesse uma delas para traduzir o sétimo
mandamento, eles pensariam que as outras formas de adultério continuariam a ser lícitas.
Inversamente, os urapmins formam um pequeno grupo, relativamente igualitário, de 360
pessoas que se casam entre si e se vêem envolvidas em relações recíprocas e complexas de
parentesco, intensas e freqüentemente incompatíveis. Seria possível dizer que, em seu sistema
tradicional, qualquer boa ação era também uma má ação na medida em que a escolha de viver
com alguém implicava deixar de lado outra pessoa, não menos próxima; ao dar um presente a
alguns, incentivava-se a crítica por ter desprezado suas obrigações em relação aos outros.
Assim, não surpreende que, para traduzir o conceito cristão de pecado, os urapmins
empreguem o termo "dívida". Mas eles se enganavam ao crer que o cristianismo seria sua
redenção. Como não podiam renunciar pura e simplesmente a sua cultura tradicional, eles
apenas agravaram seu caso, pois sua cultura era incompatível com os ideais de harmonia
cristã.
PERGUNTA - Qual o papel da cultura em sua pesquisa antropológica?
SAHLINS - Para mim a cultura é tudo. Em suas formas e em suas transformações, seu papel
na história das sociedades e na organização dos indivíduos, a cultura é o objeto por excelência
de todo saber antropológico.
A melhor maneira de ilustrar essa convicção talvez seja contestar o folclore do determinismo
genético que ficou tão em voga nos EUA: esse movimento pretende remeter toda forma
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cultural a uma "natureza humana" universal fundamentada no interesse pessoal e no espírito
de competição.
Associadas às teorias econômicas da "escolha racional", disciplinas vulgarizadas, como são a
sociobiologia e a psicologia evolutiva, estão criando uma ciência humana de múltiplos usos, a
ciência do "gene egoísta". Naturalmente, é fácil reconhecer nessa suposta natureza humana o
velho sujeito burguês.
Na espécie humana, a biologia é um
determinante culturalmente
determinado
Uma parcela grande demais dos americanos ainda está convencida de que "a espécie sou eu".
Entretanto, como prova a antropologia mais elementar, viver sua vida em conformidade com
sua cultura permite que se tenha a possibilidade e que se reconheça a necessidade de satisfazer
nossas inclinações naturais no modo simbólico, segundo definições significantes de nós
mesmos, de nosso ambiente, de nossas relações e de nossas produções.
De fato, a cultura humana é bem mais antiga que nossa natureza enquanto espécie, pois ela
remonta a pelo menos 2 milhões de anos, sendo que o Homo sapiens surgiu há apenas 200 mil
anos, engendrado dentro de e por um contexto cultural que tomava a reprodução humana a
seu cargo. Se evoluímos biologicamente, isso se deu sob a pressão da seleção cultural, ou seja,
a necessidade de culturalizar nossa animalidade.
Isso não faz de nós ou de nossos ancestrais "páginas em branco" despidas de qualquer
imperativo biológico; quer dizer simplesmente que o que foi selecionado de maneira
específica pelo gênero Homo foi a capacidade de realizar esses imperativos de mil maneiras
diferentes e pouco conhecidas, mas demonstradas pela história e pela antropologia.
O fato mais pertinente para compreender as relações entre cultura e natureza humana não é
(por exemplo) o fato de que todas as culturas conhecem a sexualidade, mas que toda
sexualidade conhece a cultura. As pulsões sexuais são diversamente expressas e reprimidas
segundo as definições, específicas de cada cultura, de o que são os parceiros, as
circunstâncias, os lugares, os momentos e as funções corporais apropriados.
Alguns chegam a praticar sexo por telefone. Outro exemplo de manipulação (o jogo de
palavras é proposital) conceitual é a célebre réplica do ex-presidente Bill Clinton: "Não fiz
sexo com essa mulher".
Inversamente, sublimamos nossa sexualidade genérica de mil maneiras, incluindo a de
transcendê-la e dar preferência à castidade, valorizada pelo pensamento cristão.
O mesmo se aplica à agressividade: podemos brincar de guerra, desancar impiedosamente o
livro mais recente de um acadêmico inimigo ou, mesmo, à moda nova-iorquina, responder a
um "tenha um bom dia" com "não preciso receber ordens de você!".
Sejam quais forem nossas necessidades, pulsões, inclinações inatas, quer sejam de ordem
agressiva, egoísta, alimentar, social ou altruísta, elas são frutos de uma definição simbólica,
portanto de ordem cultural. Na espécie humana, a biologia é um determinante culturalmente
determinado.
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PERGUNTA - O verdadeiro pensamento selvagem é o do capitalismo contemporâneo?
SAHLINS - Não no sentido estrito do termo. Mais exatamente, o capitalismo contemporâneo
implica uma mesma lógica cultural do concreto sob a forma de valores de uso, que, uma vez
fetichizados como preços e colocados em ação para fins lucrativos, fazem inegavelmente o
efeito de um pensamento selvagem incontrolado. Por mais que nossa racionalidade pecuniária
o tenha ocultado, se ergue sobre todo um sistema de valores culturais motivados que associam
sujeitos e objetos, logo, preferências e produtos, em razão de suas características distintivas.
É claro que essa realidade passa despercebida aos olhos dos sujeitos burgueses -que
geralmente vivem seus valores culturais como um hábito, sem prestar atenção a ele- e dos
economistas, que, tendo definido seu domínio como uma racionalidade prudente, enquadram
as formas culturais nos limbos dos fatores "exógenos" ou mesmo "irracionais".
Não nos damos conta de que nossas escolhas racionais -por exemplo, não serviremos
hambúrgueres a convidados que respeitamos- são baseadas num código de valores que não
guarda relação nenhuma com o caráter nutritivo e que tem tudo a ver com a significação
respectiva dos órgãos e dos músculos, da carne e dos cortes, do cortado e do moído, dos
pratos e dos sanduíches etc.
Da mesma maneira, não são as qualidades concretas das roupas que explicam a diferença de
estilo de vestimenta que manifesta a distinção social em vigor entre homens e mulheres em
situações de trabalho e de lazer, entre empresários e policiais, bailes de debutantes e boates:
basta pensar em todos os significados veiculados por uma peça de vestuário, como [Roland]
Barthes nos ensinou.
Vivemos hoje em um mundo que se encanta com objetos semioticamente construídos e
culturalmente relativos, como o ouro, a seda, as cepas de pinot noir, o petróleo, o filé mignon,
os tomates "primeira colheita" e a água pura de Fiji.
Assistimos a uma construção da natureza por meio de esquemas culturais historicamente
determinados, mas cujas qualidades simbólicas são transformadas em qualidades pecuniárias,
cujas fontes sociais são atribuídas a desejos individuais e cuja satisfação arbitrária é travestida
em escolha universalmente racional.
Mas, como é impelido à competição pelo interesse financeiro, esse encantamento produz uma
infinidade de objetos, enquanto ainda for possível metamorfosear as distinções sociais dos
sujeitos e dos objetos em mercadorias rentáveis.
PERGUNTA - O sr. não hesita em traçar comparações entre civilizações geográfica e
historicamente distantes, como, por exemplo, entre as guerras do Peloponeso narradas por
Tucídides e as de Fiji. O que lhe traz esse olhar cruzado?
SAHLINS - O conflito entre os reinos fijianos de Bau e de Rewa (e seus respectivos aliados),
que durou de 1843 a 1855, foi a maior guerra travada nos mares do Sul antes da Segunda
Guerra Mundial.
Como Bau (como Atenas) era uma potência naval imperialista, e Rewa (como Esparta) era
uma velha potência terrestre, a guerra da Polinésia já tinha levado os visitantes europeus do
século 19 a traçar comparações entre ela e as guerras do Peloponeso. A diferença de estrutura
política entre Bau e Rewa procedia de uma interdependência, comparável à relação entre o
parentesco de sangue (consangüinidade) e o parentesco por casamento (afinidade), o que
autoriza a pensar que os próprios fijianos teriam consciência de que essas estruturas eram o
espelho invertido (a antítese) uma da outra.
Da mesma maneira, Atenas e Esparta constituem antitipos estruturais e históricos: essas duas
cidades eram, respectivamente, cosmopolita e xenófoba, marítima e terrestre, comerciante e
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autárquica, luxuosa e frugal, democrática e oligárquica, urbana e campônia, autóctone e
imigrante...
Poderíamos continuar ao infinito com essas dicotomias. O que lembra a injunção tão influente
de Lévi-Strauss em "Race et Histoire" [Raça e História]: "É preciso evitar estudar a
diversidade das culturas humanas caso a caso, pois essa diversidade nasce menos do
isolamento dos diversos grupos que das relações entre eles".
Como esse princípio é confirmado várias vezes em "Mythologiques" [Mitológicas], somos
tentados a concluir que, apesar de seu apego à sincronia, o estruturalismo é igualmente
fortemente historicista.
PERGUNTA - O que as guerras do Peloponeso podem nos ensinar sobre a guerra do
Iraque, hoje?
SAHLINS - Substituindo os mitos de Heródoto pelo lógos, Tucídides usurpou o título de "pai
da história", tornando-se o queridinho dos pragmáticos das relações internacionais e outros
adeptos ocidentais da "realpolitik".
Mas o paralelo mais esclarecedor com o Iraque nos é oferecido pela guerra civil anárquica
("estase") que devastou Corcira, onde espartanos e atenienses se envolveram no conflito
interno que opunha os oligarcas locais aos democratas, disputando o controle da cidade. Em
Corcira, assim como no Iraque, quando as instituições de Estado perderam toda legitimidade e
a violência se tornou o recurso privilegiado de todas as causas partidárias, os valores sagrados
da justiça, da moral e da religião foram afogados no sangue e reduzidos a nada.
Platão observou um dia que cada "pólis" é na verdade composta de várias "pólei", pois ela se
divide em cidade dos ricos e cidade dos pobres, em guerra de um contra o outro, e cada uma é
dividida, ela própria, entre facções opostas. E, quando as causas e as forças internacionais como a dominação ateniense sobre Corcira ou a oposição entre democracia e
fundamentalismo islâmico no Iraque- se somam às dissensões locais, tem-se a impressão de
assistir a um colapso da ordem cultural e à irrupção da natureza humana sob sua forma mais
brutal.
Em Corcira, escreve Tucídides, "até as palavras foram obrigadas a renunciar a seu sentido
habitual e aceitar aquele que se lhes era dado". Desse modo, a premeditação virou "legítima
defesa"; a moderação, "falta de virilidade", a prudência, "covardia".
Ecoando alguns argumentos dos sofistas, opondo o caráter superficial da cultura ("nómos") ao
caráter irresistível da natureza ("physis"), o historiador antigo afirmava que essa manifestação
desenfreada de hipocrisia e injustiça se produziria cada vez que o desejo natural de poder e de
lucro se chocasse com as frágeis convenções da ordem social.
E ainda encontramos os ecos dessa ideologia no comentário feito por Donald Rumsfeld [então
secretário da Defesa] sobre o caos que se seguiu à ocupação americana de Bagdá: "Isso teria
que acontecer, cedo ou tarde", uma versão asseptizada de "Cedo ou tarde a coisa teria que
explodir". É um defeito que os ocidentais sempre atribuem aos outros povos, mas eles
próprios tendem rapidamente a confundir natureza e cultura.
Quer seja em Corcira ou no Iraque, foi preciso uma combinação gigantesca de causas morais
e políticas conflitantes para produzir esse suposto estado de natureza. Em Corcira, assim
como no Iraque, a intervenção de fatores externos poderosos conferiu um valor novo e
absoluto aos cismas internos da cidade, tornando-os tão insolúveis quanto abstratos e
ideológicos.
Daquele momento em diante, as pessoas passaram a lutar por ou contra generalidades: a
"liberdade", a "escravidão", a "democracia", o "islã", a "ditadura", o "terrorismo", o
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"imperialismo". Fato que prova simplesmente que é necessária muita cultura para criar um
estado de natureza.
A íntegra deste texto saiu na revista francesa "Nouvel Observateur". Tradução de Clara Allain.
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