Aspectos históricos da neuropsicologia e o problema mente

Propaganda
1
Aspectos históricos da neuropsicologia
e o problema mente-cérebro
DANIEL C. MOGRABI
GABRIEL J. C. MOGRABI
J. LANDEIRA-FERNANDEZ
O PROBLEMA MENTE-CÉREBRO
E O INTERACIONISMO CARTESIANO
How can the soul of man determine
the spirits of the body, so as to produce
voluntary actions (given that the soul
is only a thinking substance)*
(Elisabeth da Boêmia apud Kim, 2005. p. 73)
poderia ser incluído no rol dos precursores
da neuropsicologia pela via da relação entre filosofia psicológica e fisiologia (mesmo que contingenciada pelos pressupostos
ontológicos da noção de alma ainda vicejante naquele então), como se pode notar
pela seguinte citação de seu último livro,
As paixões da alma:
Enfim, sabe-se que todos esses movimenA epígrafe, trazendo-nos a objeção da printos dos músculos, assim como todos os
cesa da Boêmia ao seu preceptor, serve aqui
sentidos, dependem dos nervos, que são
de manifestação do impasse entre teoria
como pequenos fios ou como pequenos
psicológica e filosófica versus prática méditubos que procedem, todos, do cérebro, e
ca e científica na modernidade. Descartes,
contêm, como ele, certo ar ou vento muito
conhecedor da obra de Harvey e ele messutil que chamamos espíritos animais [...]
mo engajado na dissecação de animais, em
(Descartes, 1979, p. 229).
especial de seus cérebros, muito oportunamente para sua própria condição palaciaDescartes entende que a relação do
na e cortesã, não questionava os dogmas
cérebro com o corpo e a mente é mediada
católicos que poderiam gerar anátemas,
por esses espíritos animais. Assim, sua posiexcomunhões de diversos níveis e mesmo
ção poderia ser considerada uma forma de
a fogueira, como aconteceu com Giordano
interacionismo. No entanto, como se pode
Bruno, caso conhecido e temido por Desver pela citação seguinte, na obra cartesiacartes a ponto de fazê-lo pena, ainda que à alma seja resdir a seus discípulos que puguardada uma natureza disDescartes entende que a rela­
blicassem seu primeiro livro,
ção do cérebro com o corpo e
tinta, a de res cogitans, coisa
a mente é mediada por esses
um tratado sobre ótica que
pensante, aos espíritos aniespíritos animais. Assim, sua
desafiava o geocentrismo,
mais é conferida uma condiposição poderia ser consideapenas postumamente. No
ção puramente material:
rada uma forma de interacioentanto, o próprio Descartes
nismo.
*
Como pode a alma do homem determinar / o humor
do corpo, de modo a produzir / ações voluntárias (uma
vez que a alma / é apenas uma substância pensante).
Fuentes.indd 19
[...] pois o que denomino aqui
espíritos não são mais do que
corpos e não têm qualquer outra propriedade, exceto a de serem corpos muito
pequenos e se moverem muito depressa,
8/11/2013 10:44:42
20
Fuentes, Malloy-Diniz, Camargo & Cosenza (orgs.)
assim como as partes da chama que sai
de sela árabe. É notável a ideia de que uma
de uma tocha; de sorte que não se detêm
alteração do corpo na alma (ou mente) ou
em nenhum lugar e, à medida que entram
vice-versa dependa de um movimento, no
alguns nas cavidades do cérebro, também
sentido tradicional de deslocamento, gesaem outros pelos poros existentes na sua
rado pela impulsão de espíritos. Além dissubstância, poros que os conduzem aos
so, mesmo que esse movimento pudesse se
nervos e daí aos músculos, por meio dos
dar em pequenas dimensões, ele é concebiquais movem o corpo em todas as diversas
do ainda de maneira extensa, vetorial e com
maneiras pelas quais esse pode ser movitodas as demais propriedades que possamos
do [...] (Descartes, 1979,
atribuir à matéria condensap. 230).
É notável a ideia de que uma
alteração do corpo na alma (ou
mente) ou vice-versa dependa de um movimento, no sentido tradicional de deslocamento, gerado pela impulsão de espíritos.
No entanto, de que maneira a interação entre alma
e espíritos se daria? Descartes
afirma que há uma diminuta
glândula no meio do cérebro
que perfaz o papel de locus
principal da interação da alma com o corpo pela via dos espíritos:
Concebamos, pois, que a alma tem a
sua sede principal na pequena glândula
que existe no meio do cérebro, de onde
irradia para todo o resto do corpo, por
intermédio dos espíritos, dos nervos e
mesmo do sangue, que, participando das
impressões dos espíritos, podem levá-los
pelas artérias a todos os membros [...]
(Descartes, 1979, p. 240).
A glândula mencionada é a pineal. A
escolha de Descartes pela glândula pineal
se dá por dois motivos: trata-se de uma es­
trutura única e centralizada, em vez de dupla e dividida em hemisférios, que, assim,
por razões analógicas e quase geométricas,
é vista pelo autor como a melhor candidata
para ser um centro de unificação das representações e impressões. Numa carta a Mersenne, datada de 24 de dezembro de 1640,
Descartes (1979) afirma que o caráter de
unicidade é também pertinente à glândula
hipófise, mas que esta “não dispõe da mobilidade da pineal”, referindo-se ao fato de
que a hipófise está presa à face superior do
osso esfenoide por meio da sela túrcica (ou
sela turca), uma pequena fosseta em forma
Fuentes.indd 20
da.
No entanto, não foram
os arroubos de materialismo
de Descartes recém-descritos que ficaram consagrados
na história da filosofia, e sim
o seu dualismo de substâncias: a ideia de que a realidade é cindida em
dois mundos – um pensante; outro, extenso e material. Assim, o imaterialismo e racionalismo se coadunavam em uma decisão filosófica clara de sobrepor a racionalidade da
mente às paixões, devendo esta ser sua guia e
determinante. Esses mesmos racionalismo e
primazia do pensamento podem ser abstraídos da popularizada máxima cartesiana “cogito ergo sum”. A existência é descoberta pela primazia epistemológica do pensamento, e
o pensamento se configura como substância
imaterial e inextensa. Até hoje sofremos influências desse dualismo cartesiano, que segue reverberando em algumas das tendências explicativas presentes no senso comum
e mesmo no debate filosófico, menos afeito à interdisciplinaridade com ciências empíricas. Pode-se afirmar, inclusive, de acordo
com Searle (1992), que o uso desse vocabulário antiquado condiciona o debate de tal
forma espúria que muitos dos alegados problemas filosóficos da relação mente-corpo
seriam pseudoproblemas.
No trecho a seguir, será feito um mapeamento de algumas das mais importantes correntes contemporâneas de análise do
problema mente-cérebro. Não se pretende
exibir em caráter exaustivo todas as correntes e suas subdivisões, mas apenas criar uma
8/11/2013 10:44:42
Neuropsicologia
21
possibilidade de entendimento das diferentes postulações no que concerne essa relação para melhor compreensão da fundamentação histórica da neuropsicologia.
por exemplo, atitudes proposicionais: relações entre conteúdos proposicionais e uma
determinada postura mental com implicações práticas (p. ex., acreditar, desejar, esperar) (P. M. Churchland, 1981; P. S. Church­
land, 1986). Também foi proposto por
ALGUMAS TESES CORRENTES
eliminativistas (Dennett, 1992) que a noção de qualia (sensações e experiências coSOBRE A RELAÇÃO MENTE-CÉREBRO
mo estados subjetivos qualitativos) poderia
ter um caráter ilusório e não ter a existência
Raros são os dualistas de substâncias na
que lhes é atribuída na psicologia popular.
contemporaneidade. A maioria das teorias
Em sua grande maioria, pofilosóficas, na atualidade, resições eliminativistas entenpudia essa postura tida como
Existem filósofos que, apelandem que uma neurociência
ultrapassada diante de nosdo para a noção de possibilidade lógica (ou, ainda, para a
em alto grau de maturidade
so vigente quadro de referênnoção mais geral de possibilie desenvolvimento irá substicias, tanto filosófico como
dade metafísica), argumentam
tuir essa terminologia da psicientífico. Ainda assim, exisque não se pode em princípio
cologia popular que se refetem filósofos que, apelando
excluir a possibilidade de que
riria a objetos não existentes
para a noção de possibilidade
haja uma substância não física
por uma descrição científica
lógica (ou, ainda, para a noque corresponda à natureza da
de fato.
ção mais geral de possibilidamente ou de uma suposta alma.
Voltando a outro lado­
de metafísica), argumentam
do espectro de posições, mais comuns são
que não se pode em princípio excluir a posaqueles que defendem alguma versão de
sibilidade de que haja uma substância não
dualismo de propriedades. Eles entendem
física que corresponda à natureza da mente
que propriedades mentais não podem, em
ou de uma suposta alma.
princípio, ser reduzidas às propriedades fíNo lado diametralmente oposto do
sicas ou cerebrais; no entanto, acreditam
espectro de posições sobre a relação menteque os componentes últimos da realida-cérebro, encontra-se o eliminativismo ou
de sejam todos de natureza física, diferenmaterialismo eliminativo. Uma das princitemente dos dualistas de substâncias. Entre
pais teses do eliminativismo é a de que a folk
os dualistas de propriedades, poderíamos
psychology (psicologia popular) trabalha
distinguir dois grupos majoritários de pocom categorizações falsas, terminologias
sições: aqueles que acreditam em causação
herdadas de um passado remoto que premental, ou seja, que é possível que propriecisam ser eliminadas para um progresso da
dades mentais tenham poder causal nesse
compreensão da relação cérebro-mente. Asmundo constituído de uma substância físim como a teoria do phlogiston foi superasica; e os epifenomenalistas – aqueles que
da cientificamente e tornada obsoleta pelas
acreditam que propriedades mentais sepesquisas empíricas em oxidação, também
riam epifenômenos e, assim, desprovidas de
muitas classes de supostos estados mentais
qualquer papel causal (Jackson, 1982).
seriam apenas ilusões. Ainda que permaneAlém das tendências teóricas já descriçam em nosso vocabulário explicativo, esses
tas, existem várias formas mais ou menos
entia non-gratia não possuiriam qualquer
redutivas de fisicalismo ou materialismo.
capacidade causal, nem sequer existiriam,
Por redutivo, entende-se, aqui, a capaci­dade
tal como bruxas, almas, elán vital, etc. Entre
de uma teoria explicar predicados mentais
as entidades mentais que essa linha de penem termos de predicados neurais ou criar
samento pretende eliminar, encontram-se,
Fuentes.indd 21
8/11/2013 10:44:42
22
Fuentes, Malloy-Diniz, Camargo & Cosenza (orgs.)
reduções interteóricas do vocabulário exum correlato neural. A ideia de correlatos
plicativo mental em termos de um vocaneurais pode ter várias versões e variações;
bulário neural por via de leis de ponte, ou,
entretanto, algumas dessas versões não se
ainda, funcionalizar propriedades mentais
comprometem com uma postura necessaem termos de sua estrutura causal física.
riamente identitária, o que é uma vantaAlém dessas posições, existem teorias idengem. Trata-se, aqui, de encontrar o conjuntitárias que defendem a ideia de que proto mínimo de eventos e processos cerebrais
cessos mentais seriam idênticos a processos
que possa ser correlacionado a uma capaneurais. Além de outras variantes, as teocidade mental como seu substrato neural.
rias identitárias podem ser classificadas em
Variações dessa ideia se dispõem fundaduas­famílias de posições: a identidade de
mentalmente em um eixo no qual postutipo (Lewis, 1966) e a identidade de ocorras mais localizacionistas (Zeki et al., 1991)
rência (token) (Kim, 1966). No primeiro caou globalistas/conexionistas (Baars, 1988;
so, cria-se uma identidade estável entre um
Mesulam, 2012) são postuladas. Por locatipo mental e um tipo físico. No entanto, o
lizacionismo, entende-se, aqui, o poder de
argumento da múltipla realizabilidade (Foimputar a áreas bem determinadas do céredor, 1974; Putnam 1967) – a defesa da posbro capacidades distintas e específicas. Por
sibilidade de que um estado mental (funcioglobalismo/conexionismo, considera-se a
nal) possa ser realizado por diversos estados
possibilidade de que as correlações sejam
cerebrais – coloca o argumento da identiestabelecidas entre capacidades funcionais e
dade de tipo em maus lenáreas em interação e reverbeA fidelidade responsável ao
çóis. No caso da identi­dade
ração informativa, como será
projeto de uma neuropsicolode ocorrência, esse problema
abordado mais adiante neste
gia há de congregar o entenparece estar, pelo menos, mimesmo capítulo. Entende-se
dimento dessas propriedades
tigado, já que as identidades
aqui que a fidelidade responsistêmicas que emergem da
se dariam entre ocorrências
sável ao projeto de uma neuinteração complexa entre diferentes níveis de processaindividuais de estados cereropsicologia há de congremento de informação em áreas­
brais e mentais. Muitos fungar o entendimento dessas
distintas do cérebro, sem, no
cionalistas acabam por adepropriedades sistêmicas que
entanto, perder de vista a esrir a essa posição, visto que
emergem da interação compecificidade inerente a cada
visões mais algorítmicas de
plexa entre diferentes níveis
parte ou subsistema constifuncionalismo acreditam que
de processamento de infortuinte do sistema.
uma função pode ser instanmação em áreas distintas do
ciada, por exemplo, tanto in silico como in
cérebro, sem, no entanto, perder de vista a
vivo. Assim, para tal linha de argumentação,
especificidade inerente a cada parte ou subo suporte material que sustenta o algoritmo
sistema constituinte do sistema. Essa dupla
não faria grande diferença. Como será covinculação da neuropsicologia será discutimentado a seguir, tal postura pode até ser
da nas duas seções seguintes.
entendida como uma forma de dua­lismo, já
que a mente pode ser vista como uma estrutura meramente formal.
O MÉTODO ANATOMOCLÍNICO E O
Mais promissoras são as pesquisas inSURGIMENTO DA NEUROPSICOLOGIA
terdisciplinares que coadunam filosofia da
Ainda que não seja possível determinar o
mente e da ciência com neuropsicologia,
exato surgimento de uma disciplina comneurociência e ciência cognitiva, entendenplexa como a neuropsicologia, um de seus
do que qualquer capacidade mental deve ter
Fuentes.indd 22
8/11/2013 10:44:43
Neuropsicologia
23
atos de fundação pode ser considerado o
que o segundo estágio, após a morte do patrabalho de Pierre Paul Broca (1824-1880)
ciente, envolvia a necropsia do cérebro e da
na localização de um centro dedicado pamedula espinal (Goetz, 2010). Assim, o méra produção da fala no cérebro. Em meio à
todo permitia vincular dados clínicos com
controvérsia sobre a localização das funções
informações sobre neuroanatomia, sugecerebrais – que persistia desde a Antiguidarindo uma potencial relação de causalidade, mas havia ganhado força a partir do séde entre esses dois fatores e possibilitando a
culo XVII –, Broca faz uma breve comuniclassificação de doenças neurológicas a parcação, em 1861, no Boletim da Sociedade de
tir de achados anatômicos.
Antropologia (que na época discutia temas
Desde a descoberta de Broca (1891),
tão diversos quanto arqueologia, mitologia,
evidências crescentes indicaram uma coranatomia e psicologia), sobre o caso de um
relação entre disfunções cognitivas ou quapaciente com um comprodros clínicos específicos com
Desde a descoberta de Broca,
metimento específico na capadrões de lesões cerebrais.
evidências crescentes indicapacidade de produção de faPor exemplo, amparado na
ram uma correlação entre disla, em meio a um quadro de
casuística de centenas de exfunções cognitivas ou quadros
relativa preservação cogniti-combatentes da Primeiclínicos específicos com pava (Sagan, 1979). Essa publira Guerra Mundial, Kleist
drões de lesões cerebrais.
cação é acompanhada de ou(1934) desenvolve, na décatra, mais extensa, no Boletim da Sociedade
da de 1930, um mapa de localização cereAnatômica, também em 1861. O paciente,
bral relativamente preciso, sugerindo comSr. Leborgne, havia “perdido o uso da paprometimentos específicos que o dano focal
lavra” e era incapaz de “pronunciar mais do
ao cérebro traz.
que uma sílaba, que ele repetia duas vezes
O conhecimento sobre a localização
seguidas” (tan tan) (Broca, 1861). Leborgne
de funções cerebrais ganharia novo impulso
morreu pouco tempo depois do exame clía partir dos estudos de Wilder Penfield, na
nico, e sua autópsia revelou uma lesão espedécada de 1950, que, em seu trabalho com
cífica no giro frontal inferior esquerdo. Brocirurgias de pacientes epilépticos utilizando
ca (1861) conclui em seu relato que “[...]
o procedimento Montreal, estabeleceu por
tudo permite crer que, neste caso específico,
meio de estimulação elétrica um detalhado
a lesão do lobo frontal foi a causa da perda
mapa de processamento sensorial (Jasper &
da palavra [...]”. O quadro clínico específico
Penfield, 1954). Na segunda metade do séde perda de produção da fala e o giro fronculo XX, evidências de estudos de lesão, motal inferior se tornaram epônimos de Broca,
delos animais, medições em células únicas
sendo chamados, respectivamente, de afasia
e, mais recentemente, pesquisas utilizando
de Broca e área de Broca.
neuroimagem acumularam-se para indicar
Broca (1891) utilizava em seus estudos
de forma inequívoca a especialização de reo método anatomoclínico, o esteio da neugiões cerebrais em termos de processamenrologia científica no final do século XIX. Esto de informação. Tais dados, no entanto,
se método consistia em um exame em dois
são complementados por perspectivas coneestágios com o intuito de vincular sinais clíxionistas e por um gra­dual ­refinamento do
nicos a padrões de alteração cerebral (Goetz,
conceito de localização cerebral. Esses pon2010). O primeiro estágio dessa abordagem
tos são discutidos nas seções seguintes deste
dedicava-se a um exame clínico em profuncapítulo, a partir da biografia e das ideias de
didade, acompanhando o paciente ao longo
um dos precursores da neuropsicologia, Alede um extenso período de tempo, ao passo
xander Romanovich Luria.
Fuentes.indd 23
8/11/2013 10:44:43
24
Fuentes, Malloy-Diniz, Camargo & Cosenza (orgs.)
LURIA, O CONCEITO DE SISTEMA E A
INSTANCIAÇÃO DA CULTURA NO CÉREBRO
Morreu aos 77 anos, vítima de problemas
cardíacos.
Luria foi não apenas um dos fundadores da neuropsicologia contemporânea,
Alexander Romanovich Luria nasceu em
mas também teve papel proeminente no
1902, na cidade russa de Kazan, em uma fadesenvolvimento da psicologia históricomília judia formada por profissionais libe-cultural. Em função dessa dupla vincularais. Seu pai era um médico especializado
ção, Luria tinha uma perspectiva privilegiaem doenças gastrintestinais, e sua mãe era
da sobre a relação entre biologia e cultura.
dentista – algo pouco comum na época. Sua
Para ele, a dissociação entre psicologia soformação é marcada por grande ecletismo,
cial e individual era uma falácia teórica, e o
graduando-se primeiro em ciências sociais
desenvolvimento e funcionamento do cérepela Universidade de Kazan; entrou no curbro se davam a partir de complexas interaso no ano seguinte à Revolução Russa, pações entre fatores biológicos e sociais (Lura posteriormente formar-se em medicina
ria, 1976). Essa posição encontra ecos em
pela Universidade de Moscou. Ao longo de
tendências contemporâneas da neurociênseu percurso acadêmico, filiou-se a divercia, que sugerem que, na medida em que os
sas teorias. No início de sua formação, nos
humanos fazem parte de uma espécie altaanos 1920, estudou psicanálise, traduzindo
mente social, nosso desenvolvimento bioFreud para o russo e fundando a Associação
lógico não pode ser dissociado da influênPsicanalítica de Kazan. Em 1924, conheceu
cia da interação social. Isso é indicado, por
Lev S. Vygotsky e Aleksei N. Leon­tiev, junexemplo, por proponentes da hipótese do
to aos quais estabeleceu os fundamentos
cérebro social, que sugerem que demande uma psicologia que considerasse a indas impostas pela estrutura social completeração entre fatores individuais e elemenxa da ordem dos primatas foram um dos fatos sociais/culturais. Ocorreram, em seguitores determinantes na evolução do cérebro
da, na década de 1930, suas excursões à Ásia
(Dunbar, 1998).
Menor, em que realizou estudos sobre a inUma das ideias essenciais da aborfluência de fatores como escolaridade na
dagem de Luria é a noção de que vínculos
cognição e linguagem. Também são desfuncionais entre regiões cerebrais são conssa época seus estudos com gêmeos, quando
truídos historicamente. Por exemplo, áreas
tentou elucidar a relação entre fatores genéresponsáveis pela linguagem se tornam funticos e culturais. Durante a Segunda Guercionalmente conectadas a regiões vinculara Mundial, trabalhou em um hospital para
das ao processamento visual e motor a parex-combatentes, estendendo seu conhecitir da invenção da escrita (Luria, 1976). Essa
mento sobre pacientes com lesões cerebrais
perspectiva é particularmente relevante na
adquiridas. Na década de 1950, em virtude
medida em que relativiza a
de uma onda de antissemitisideia de um cérebro humano
mo, afastou-se do DepartaUma das ideias essenciais da
trans-histórico (cérebros da
abor­dagem de Luria é a noção
mento de Neurocirurgia, dede que vínculos funcionais entre
idade de pedra) (Cosmides &
dicando-se a estudos sobre
regiões cerebrais são construíTooby, 1994), considerando
crianças com déficits cognidos historicamente.
que a escrita surgiu em tortivos e atrasos de desenvolno de 3.500 anos atrás (Kravimento. Ao final dessa démer, 1981) e, portanto, tem uma história
cada, retornou ao trabalho com pacientes
muito curta em contraste com as primeiras
neurológicos, passando os últimos anos de
evidências de humanos anatomicamente
sua carreira refinando seu arsenal clínico.
Fuentes.indd 24
8/11/2013 10:44:43
Neuropsicologia
25
modernos, com no mínimo 100 mil anos
a atividade de outros em casos de dano ce(Stringer, 2012). Com base na visão de Lurebral. Assim, essa perspectiva é particularria, podemos especular como são formadas
mente frutífera para pensar implicações clías conexões entre as áreas do cérebro hunicas e o aspecto qualitativo de sintomas
mano a partir da estimulação e do ambienneurológicos.
te providos na sociedade contemporânea.
Um conceito fundamental dentro da
TRAZENDO A NEUROPSICOLOGIA
perspectiva luriana, que ressitua a questão
da localização cerebral, é o de sistema funPARA O SÉCULO XXI
cional. Luria (1976) promove uma desconstrução da ideia de função ao sugerir que,
Em que pese o impacto da obra de Luria na
em suas formas complexas, esta não pode
formação da neuropsicologia como disciser atribuída a um único órgão ou tecido.
plina, alguns de seus insights não foram pleDando o exemplo da respiração, ele afirnamente incorporados por autores que o
ma que não se trata de uma função apeseguiram. De forma geral, a neuropsicolonas do pulmão, sendo executada por um
gia ainda hoje subscreve a um campo consistema completo, que inclui diversos órceitual em descompasso com algumas das
gãos e um aparato muscular amplo. A novias mais frutíferas para se pensar a relação de sistema sugere um alto grau de plasção entre funcionamento mental e cerebral.
ticidade e compensação entre as suas partes.
Por exemplo, a noção de modularidade, um
Atendo-se ainda ao exemplo da respiração,
dos pilares da abordagem neuropsicológica,
Luria indica como os músculos intercosvem sendo relativizada diante de achados
tais são recrutados para compensar casos
empíricos novos. Especificamente, o auem que há atividade deficiente do diafragmento de estudos sobre conectividade esma. Modalidades complexas
trutural, funcional e efetiva
de cognição seriam, segundo
entre regiões cerebrais (MeO aumento de estudos sobre
conectividade estrutural, funele, um exemplo privilegiado
sulam, 2012) sugere que, aincional e efetiva entre regiões
de funcionamento sistêmida que a especialização funcerebrais (Mesulam, 2012) suco, com diferentes áreas cecional de regiões cerebrais
gere que, ainda que a esperebrais trabalhando em conseja inegável, é somente da
cialização funcional de regicerto para sua consecução.
interação entre áreas que
ões cerebrais seja inegável,
Luria identifica três sistefunções complexas podem
é somente da interação entre
mas com base em contribuiemergir. Além disso, paradigáreas­que funções complexas
podem emergir.
ções funcionais específicas:
mas recentes para o entendiuma unidade de sono-vigília,
mento do funcionamento ceuma de processamento sensorial e armazerebral calcam-se em modelos dinâmicos,
namento de informação e uma de regulaem que o processamento de informação,
ção e monitoramento de atividades (Luria,
mesmo em níveis básicos, é influenciado
1976). Ainda que essas unidades funcionais
por processos de ordem superior (Frispossam ser situadas em diferentes substraton, 2010). Um exemplo privilegiado dessas
tos neurais (respectivamente, no tronco ceperspectivas é o estudo da consciência, que
rebral, nos córtices occipital, parietal e temganhou nova força a partir da adoção dos
poral e no córtex pré-frontal), o conceito de
conceitos de conectividade (Tononi, 2007)
sistema pressupõe a ideia de que tais regiões
e predição probabilística (Friston, 2010).
cumprem funções amplas e que diferentes
Paralelamente, as últimas décadas trou­
componentes de cada unidade compensam
xeram um gradual abandono da metáfora da
Fuentes.indd 25
8/11/2013 10:44:43
26
Fuentes, Malloy-Diniz, Camargo & Cosenza (orgs.)
mente como um computador. Fundamental
foram excluídos da neurociência cognitipara a discussão promovida neste capítulo,
va, em parte por dificuldades metodolóo cognitivismo estrito sugeria que a mente
gicas. O estudo da emoção em humanos é
funcionaria tal como um software, que poum exemplo princeps dessa mudança. Uma
deria ser instalado em diferentes suportes,
explo­ração científica da emoção é complinão importando as características do hard­
cada pelo fato de que estados emocionais
ware (i. e., o corpo e o cérebro) no qual funsão subjetivos e acessados de forma privicionava. Essa perspectiva, considerada ad
legiada a partir de uma perspectiva de priextremum, cai em uma posição dualista, em
meira pessoa. Ainda que essa limitação não
que a mente é um conjunto de regras forse aplique a aspectos comportamentais da
mais que pode ser instanciado independenemoção (p. ex., expressões faciais), o estudo
temente de sua base orgânica (Searle, 1980).
objetivo de sentimentos e estados internos
Em oposição a essa perspecganhou novo impulso com
Uma exploração científica da
tiva, acompanha-se a incortécnicas de imagem (Ekman,
emoção é complicada pelo fato
poração nas neurociências de
1992). As evidências converde que estados emocionais são
um paradigma biológico que
gentes sobre o processamensubjetivos e acessados de forconsidera todos os processos
to emocional em humanos e
ma privilegiada a partir de uma
cognitivos como calcados em
a extensa litera­tura sobre moperspectiva de primeira pessoa.
uma base material (o céredelos animais e estudos combro) e motivados em última instância por
parados fizeram emergir nas últimas déquestões referentes à adaptação do organiscadas o campo das neurociências afetivas
mo. De um ponto de vista clínico, a adesão
(Panksepp, 2004).
da neuropsicologia a esse paradigma biolóDiante desse panorama, um dos desagico enfatiza o caráter adaptativo dos sintofios atuais da neuropsicologia é acompanhar
mas e respostas de pacientes neurológicos,
os últimos desenvolvimentos do campo mais
em vez de considerá-los meramente expresamplo das neurociências, encampando posisões de déficits.
ções que possam revitalizar seus métodos e
Além dessas questões de ordem teóriteorias. Ao mesmo tempo, a neuropsicologia,
ca, uma neuropsicologia para o século XXI
amparada na vasta riqueza de seus dados clíprecisa reinventar-se metodologicamente.
nicos, pode informar produções futuras nas
Estudos de lesão formaram o cerne da aborneurociências. Sendo assim, esse desafio dedagem neuropsicológica ao longo do sécuve ser encarado com otimismo.
lo XX. Nas últimas décadas, os campos mais
amplos da neurologia clínica e das neuro­
REFERÊNCIAS
ciências cognitivas beneficiaram-se de inovações técnicas, como procedimentos de
Baars, B. J. (1988). A cognitive theory of consciousness.
neuroimagem de alta resolução espacial (p.
New York: Cambridge University.
ex., fMRI, PET, DTI). Essas técnicas possibiBroca, P. P. (1861). Perte de la parole, ramollissement
litam evitar as limitações associadas com eschronique et destruction partielle du lobe antérieur
tudos de lesão, como, por exemplo, o fato de
gauche du cerveau. Bulletin de la Societé Anthropoque raramente o dano cerebral está limitalogique, 2, 235-238.
do a áreas corticais específicas e a dificuldaChurchland, P. M. (1981). Eliminative materialism
de em determinar as habilidades pré-mórand the propositional attitudes. Journal of Philosobidas de pacientes (Fotopoulou, 2013).
phy, 78(2), 67-90.
Além disso, essas técnicas permiChurchland, P. S. (1986). Neurophilosophy: toward
tem de forma mais eficaz a investigação
a unified science of the mind/brain. Cambridge:
MIT.
de objetos de estudo que tradicionalmente
Fuentes.indd 26
8/11/2013 10:44:43
Neuropsicologia
Cosmides, L., & Tooby, J. (1994). Beyond intuition
and instinct blindness: toward an evolutionarily
rigorous cognitive science. Cognition, 50(1-3), 41-77.
Dennett, D. C. (1992). Quining qualia. In A. Marcel,
& E. Bisiach (Eds.), Consciousness in contemporary
science (pp. 42-77). New York: Oxford University.
Descartes, R. (1979). As paixões da alma. In Abril
Cultural, Os Pensadores (2. ed., pp. 213-294). São
Paulo: Abril.
Dunbar, R. (1998). The social brain hypothesis.
Evolutionary anthropology, 6(5), 178-90.
Ekman, P. (1992). An argument for basic emotions.
Cognition and emotion, 6, 169-200.
Fodor, J. (1974). Special sciences: or the disunity
of science as a working hypothesis. Synthese, 28(2),
97-115.
Fotopoulou, A. (2013). Time to get rid of the
‘Modular’ in neuropsychology: a unified theory of
anosognosia as aberrant predictive coding. Journal
of Neuropsychology, doi: 10.1111/jnp.12010. [Epub
ahead of print].
Friston, K. (2010). The free-energy principle: a
unified brain theory? Nature Reviews Neuroscience,
11, 127-138.
Goetz, C. G. (2010). Chapter 15: Jean-Martin Charcot and the anatomo-clinical method of neurology.
Handbook of Clinical Neurology, 95, 203-212.
Jackson, F. (1982). Epiphenomenal qualia. The Philosophical Quarterly, 32, p. 127-136.
Jasper, H., & Penfield, W. (1954). Epilepsy and the
functional anatomy of the human brain (2nd ed.).
New York: Brow.
Kim, J. (1966). On the psycho-physical identity theory. American Philosophical Quarterly, 3(3), 227-235.
Kim, J. (2005). Physicalism, or something near enough. New York: Princeton University.
Fuentes.indd 27
27
Kleist, K. (1934). Gehirnpathologie. Leipzig: J.A. Barth.
Kramer, S. N. (1981). Appendix B: the origin of the
cuneiform writing system. In S. N. Kramer, History
Begins at sumer: thirty-nine firsts in man’s recorded
history (3rd ed., pp. 381-383). Philadelphia: University of Pennsylvania.
Lewis, D. (1966). An argument for the identity theory. Journal of Philosophy, 63(1), 17-25.
Luria, A. R. (1976). The working brain: an introduction to neuropsychology. New York: Basic Books.
Mesulam, M. (2012). The evolving landscape of
human cortical connectivity: facts and inferences.
Neuroimage, 62(4), 2182-2189.
Panksepp, J. (2004). Affective neuroscience: the foundations of human and animal emotions. New York:
Oxford University.
Putnam, H. (1967). Psychological predicates. In
W. H. Capitan, & D. D. Merrill (Eds.), Art, mind,
and religion (pp. 37-48). Pittsburgh: University of
Pittsburgh.
Sagan, C. (1979). Broca’s brain. New York: Random
House.
Searle, J. (1980). Minds, brains and programs. Behavioral and brain science, 3(3), 417-457.
Searle, J. (1992). The rediscovery of the mind. Cambridge: MIT.
Stringer, C. (2012). Origin of our species. London:
Penguin Books.
Tononi, G. (2007). The information integration theory of consciousness. In M. Velmans, & S. Schneider
(Eds.), The Blackwell companion to consciousness (pp.
287-299). Malden: Blackwell.
Zeki, S., Watson, J. D., Lueck, C. J., Friston, K. J.,
Kennard, C., & Frackowiak, R. S. (1991). A direct demonstration of functional specialization in human
visual cortex. Journal of Neuroscience, 11(3), 641-649.
8/11/2013 10:44:43
Download